Dissert-2006 CRESPO Jeanne Cristina Menezes-S

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRA JEANNE CRISTINA MENEZES CRESPO UM ESTUDO COMPARATIVO DOS CONTATOS ESTABELECIDOS ENTRE EMPORITANOS E INDIGETES: O CASO EMPORITANO E O OPPIDUM DE ULLASTRET (500 - 350 a.C.) Niterói 2006

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRA

    JEANNE CRISTINA MENEZES CRESPO

    UM ESTUDO COMPARATIVO DOS CONTATOS ESTABELECIDOS ENTRE EMPORITANOS E INDIGETES:

    O CASO EMPORITANO E O OPPIDUM DE ULLASTRET (500 - 350 a.C.)

    Niteri

    2006

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    JEANNE CRISTINA MENEZES CRESPO

    UM ESTUDO COMPARATIVO DOS CONTATOS ESTABELECIDOS ENTRE EMPORITANOS E INDIGETES:

    O CASO EMPORITANO E O OPPIDUM DE ULLASTRET (500 -350 a.C.)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense como requisito para obteno do Grau de Mestre.

    Orientador: Prof. Dr. MARCOS JOS DE ARAJO CALDAS

    Niteri 2006

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    JEANNE CRISTINA MENEZES CRESPO

    UM ESTUDO COMPARATIVO DOS CONTATOS ESTABELECIDOS ENTRE EMPORITANOS E INDIGETES:

    O CASO EMPORITANO E O OPPIDUM DE ULLASTRET (500 - 350 a.C.)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense como requisito para obteno do certificado de Mestre em Histria.

    Aprovada em abril de 2006.

    BANCA EXAMINADORA:

    Prof. Dr. Marcos Jos de Arajo Caldas Orientador PRODOC / Universidade Federal Fluminense

    Prof. Dr. Marcelo Rede Universidade Federal Fluminense

    Prof. Dra. Maria Regina Cndido Universidade Estadual do Rio de Janeiro

    Niteri 2006

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    AGRADECIMENTOS

    minha famlia, por ter me apoiado em todos os momentos ; Ao Professor Doutor Marcos Jos de Arajo Caldas, orientador presente e amigo;

    Ao auxlio da CAPES, sem o qual no me permitiria realizar tal pesquisa;

    Aos profissionais dos Departamentos de Histria das Universidades de Valncia e de Barcelona, que me receberam em seus institutos e me permitiram ter contato com todo o material necessrio para escrever o presente trabalho. Dentre todos, destaco a ajuda do Prof. Dr. Miquel Jimenez Requena, cuja hospitalidade e ajuda foram primordiais para que eu pudesse ir Espanha concluir meu trabalho; equipe de arquelogos do Museu Arqueolgico de Amprias; A todos os meus amigos do curso de Mestrado, com os quais foram compartilhados muitos momentos de crises e indagaes; A todos os professores com quem convivi e de quem tive privilgio de ser aluna durante o curso de Mestrado; Profa. Dra. Neyde Theml, para sempre uma fonte de inspirao.

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    Quando voc elimina o impossvel, o que resta inexoravelmente a verdade.

    (Sherlock Holmes)

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    RESUMO

    Na presente dissertao propomos-nos a apresentar um estudo acerca das relaes de contato estabelecidas entre os colonos que habitavam Emporion, descendentes dos emporoi massaliotas (habitantes de Massalia, colnia fundada pelos foceus no sul da Frana), e as populaes indgenas que habitavam a regio prxima a esse estabelecimento, na regio nordeste da Catalunha (Espanha). Para tanto, utilizaremos dois casos: os contatos com o oppidum de Ullastret, o maior assentamento nativo da regio; e os contatos desenvolvidos com a populao nativa que vivia prxima ao estabelecimento emporitano. Sendo estes ltimos, aqueles que Estrabo (III.4.8) cita ao falar do sinecismo em Emporion, e que provavelmente tratariam-se dos nativos que dividem, com os colonos, o espao de enterramento nas necrpoles emporitanas. O corte cronolgico da presente pesquisa ser o momento compreendido entre os sculos V a.C. e a primeira metade do sculo IV a.C.

    Palavras-chave: Histria Antiga, Colonizao Grega, Emporion, Contatos inter-tnicos, Ibria pr-romana.

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    ABSTRACT

    We intend to study the relationships established among the colonists from Emporion, descendents from the massaliotas emporoi (inhabitants of Massalia, colony founded by focians in the south of France), and the natives populations from the surrounding area to that establishment, in the northeast of Catalua (Spain). We will use two cases: the contacts with the oppidum of Ullastret, the largest native establishment of that area; and the contacts developed with the native population that lived near Emporion. These last ones were those whom Strabo (III.4.8) has mentioned when he was speaking about the sinecism process occurred in Emporion; the same native population whose remains were found in Emporion necropolises. It was chosen as chronological mark all the V century B.C. until the first half of

    the IV B.C.

    Keywords: Ancient History, Greek Colonization, Emporion, Interethnic contacts, Preromain Iberia.

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    SUMRIO

    INTRODUO 11

    CAP 01 - O QU A DOCUMENTAO "FALA" SOBRE EMPORION 1.1) A Fundao de Emporion de Acordo com as Fontes Clssicas ....................................31 1.2) O Stio Arqueolgico de Amprias...............................................................................47 1.2.1) O Assentamento Emporitano: A Neaplis .................................................................51 1.2.2) Grafitos Ibricos Sobre Cermica tica..... ................................................................61 1.3) De Emporion Plis .....................................................................................................64

    1.3.1) As Cartas Escritas em Lmina de Chumbo.................................................................74 1.3.1.1) A Carta de Emporion ..............................................................................................74 a) Amprias 1 .......................................................................................................................74 1.3.1.2) As Cartas de Pech Maho .......................................................................................78 a) Pech Maho 1 .....................................................................................................................78 b) Pech Maho 2.....................................................................................................................79

    CAP. 02 - A PRESENA EMPORITANA NO AMPURDN 2.1) As Populaes Nativas Peninsulares de Acordo com as Fontes Clssicas ...................86 2.2) O Ampurdn : Territrio e Iberizao .......................................................................91 2.3) Contatos Entre os Nativos Peninsulares e as Sociedades Mediterrneas......................96 2.4) Os Contatos entre Ullastret e as Populaes Mediterrneas a Partir da Anlise dos Indcios Materiais .............................................................................................................. 103 2.5) Contatos entre Emporion e Ullastret .........................................................................1088 2.6) Ullastret: Organizao Urbanstica Sculos VI e V a.C.........................................1133 2.7) Emporion e Ullastret - Por Um Balano dos Contatos .............................................1188

    CAP. 03 - A INTEGRAO STY TERRITRIO : AS NECRPOLES 3.1) As Necrpoles Emporitanas ........................................................................................128 3.2) Prticas Funerrias X Prticas Sociais ........................................................................133 3.2.1) Necrpole da Muralha Nordeste: .............................................................................136 3.2.2) Necrpole Mart: ......................................................................................................145 3.2.3) Necrpole Bonjoan:..................................................................................................173 3.2.4) Complexo das Necrpoles Mateu e Granada: ..........................................................175 3.3) Anlise das Necrpoles Emporitanas:.........................................................................178 3.3.1) A Localizao Espacial das Necrpoles...................................................................178 3.3.2) Disposio das Sepulturas........................................................................................179

    3.3.3) Tipos de Tmulos e Objetos Associados..................................................................182

    CONCLUSO 191

    BIBLIOGRAFIA 198

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    LISTA DE ABREVIATURAS

    AAVV: Autores Vrios AespA: Arquivo Espanhol de Arqueologia

    BCH: Bulletin de Correspondance Hellnique. CRAI: Comptes rendues de lAcadmie des Inscriptions et Belles-Lettres. Cuad. Preh. y Arqueol. Castellonense: Cuadernos de Pehistoria y Arqueologia Castellonense EM: Emrita Focei: I Focei dall'Anatolia all'Oceano. 1982. Ic : Tumba de incinerao In : Tumba de inumao Magna Grcia: La Magna Grecia e il lontano Occidente. Atti del XXIX Convegno di Studi sulla Magna Grecia. Tarento. 1990. MDAI(M) : MEFRA: Mlanges de lcole Franaise de Rome. RAN: Revue archologique de Narbonnaise REA: Revista de Estudios Arqueologicos

    ZPE: Zeitschrift fr Papyrologie und Epigraphik

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    INDICE DE FIGURAS E MAPAS

    Mapa 01: Os Assentamentos Gregos no Golfo de Rosas 16 Mapa 02: Colonizao Focia no Ocidente 20 Mapa 03: O Assentamento de Amprias 25 Mapa 04: Topografia do Stio Arqueolgico de Amprias 50 Mapa 05: Plano da Neaplis de Emporion 53 Mapa 06: O Golfo de Lyon 81 Mapa 07: As Populaes da Pennsula Ibrica de Acordo com Avieno 88 Mapa 08: O Territrio do Ampurdn 97 Mapa 09: O Oppidum de Ullastret: Sua Ocupao Extra Muros e Suburbana 105 Mapa 10: Topografia de Amprias 130 Mapa 11: As Necrpoles Emporitanas 131

    Fig. 01: Reconstituio do Sistema Defensivo da Neaplis 54 Fig. 02: Fragmentos da Estrutura Superior do Santurio Suburbano Emporitano 57 Fig.03: O setor dos santurios na Neapolis 58 Fig. 04: A gora de Emporion 59 Fig. 05: O Dique Helenstico de Emporion 61 Fig. 06: Cermicas com Inscries Ibricas Encontradas em Emporion 62 Fig. 07: A Carta Comercial de Amprias 77 Fig. 08: A Carta de Pech Maho 82

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    INTRODUO

    Emporion foi fundado entre os anos 600-576 a.C. por emproi foceu-massaliotas no Nordeste da atual Espanha. De acordo com o relato contido no livro III da Geografia1 de Estrabo, Emporion seria uma dpolis, onde os colonos foceus e os indigetes (nativos peninsulares que habitavam a regio circunvizinha) compartilhavam o mesmo espao. Tal afirmativa de Estrabo, no entanto, ainda muito questionada entre os estudiosos que trabalham com Emporion. Os vestgios arqueolgicos da cidade grega vm sendo interpretados pelos arquelogos de maneiras diferenciadas, resultando em informaes contraditrias. At hoje no foram encontrados os vestgios materiais da existncia do provvel assentamento nativo que teria se formado prximo muralha da sty emporitana, antes do processo de sinecismo descrito por Estrabo.

    Emporion foi fundada para ser um enclave comercial, emporion, de Massala2 na Ibria. Em um primeiro momento, os colonos permaneceram assentados em uma ilhota, na poca, um pouco afastada da costa. No ltimo quartel do sculo VI a.C., houve a fundao de um novo assentamento, j em territrio peninsular.

    Por sua natureza comercial, as relaes com os nativos locais eram necessrias para garantir o funcionamento do estabelecimento. As interpretaes acerca da cultura material, principalmente a partir da disseminao de cermica nos assentamentos nativos da regio, que chegaria em territrio peninsular pelo porto emporitano, apontam para contatos freqentes

    com o assentamento nativo mais prximo, Ullastret. Alm disso, a cultura material encontrada no prprio assentamento emporitano

    tambm aponta para um estado de contatos freqentes com as populaes nativas, como podemos perceber a partir da existncia de: inscries ibricas em cermica grega; nas cartas comerciais escritas em lminas de chumbo; alm das necrpoles emporitanas, cujas evidncias

    1 Geografia. III, 4, 8.

    2 Colnia fundada em 600 a.C., no sul da Frana (Marselha), pelos foceus.

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    materiais apontam para a existncia de espaos compartilhados de enterramento, funcionando coetneamente.

    A prpria afirmao de Estrabo j um tanto curiosa, j que classifica de dpolis um local chamado Emporion, cujo nome foi dado a partir de sua funo comercial. No entanto, tal prerrogativa no quer dizer que concordamos com o relato de Estrabo, alm disso, no ser nosso objetivo testar a veracidade da informao desse autor, j que tal debate mostra-se algo ultrapassado, e j um tanto desgastado.

    Nosso objetivo no presente trabalho, a partir das evidncias materiais acima listadas, ser nos interrogar acerca da natureza das relaes de contato estabelecidas entre os colonos foceu-massaliotas e esses nativos do nordeste catalo, ou Ampurdn. Para tanto, utilizaremos ambos os casos, at como meio de comparao: os contatos estabelecidos com o assentamento de Ullastret; e os contatos desenvolvidos com a populao nativa que deveria transitar (ou at habitar) prxima, ou at mesmo no centro emporitano. Talvez, os mesmos nativos que eram sepultados nas necrpoles emporitanas.

    O recorte cronolgico da presente pesquisa compreende o espao temporal que vai do sculo V a.C. at a primeira metade do sc. IV a.C. Nossa escolha justifica-se pelo fato de que tal contexto foi marcado pelo fortalecimento das relaes entre os colonos foceu-massaliotas e as populaes nativas peninsulares, sendo estas verificadas, principalmente, a partir das interpretaes dos arquelogos acerca dos vestgios materiais encontrados em territrio peninsular.

    Alm disso, a segunda metade do sculo IV a.C. marcaria um momento decisivo na trajetria de Emporion. De acordo com os arquelogos que trabalham neste stio, a segunda metade do sculo IV a.C. marcaria o final da reorganizao ocorrida no sistema defensivo do assentamento. Neste processo, de acordo com os pesquisadores que procuram comprovar a veracidade do relato de Estrabo, o provvel assentamento nativo que existiria junto s muralhas emporitanas seria incorporado sua sty, caracterizando uma nova realidade para Emporion: a formao da dpolis descrita por Estrabo. Por isso, limitamos nosso corte temporal a tal data.

    Em primeiro lugar, chamaremos a ateno para o fato de que a presena grega na Pennsula Ibrica, assim como as repercusses desta, tem sido objeto de debates entre a

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    historiografia, principalmente no momento em que h o confronto do que nos informa as fontes textuais clssicas e os vestgios materiais encontrados em territrio peninsular. Apesar de no nos interessar apresentar, pelo menos no presente trabalho, toda essa discusso historiogrfica, necessrio se faz apresentar nossa posio sobre tal assunto, at para entendermos qual a situao de Emporion no contexto das incurses gregas na Pennsula Ibrica.

    Dentre os mais antigos testemunhos e notcias sobre a Ibria3 figuram uma srie de relatos mticos: os livros de Homero, os relatos dos Argonautas, as lendas de Hracles - como sua expedio s Colunas de Hracles (Estreito de Gibraltar), o mito de Atlntida encontrado em Plato, e at mesmo, certas trechos bblicos do livro de Gnesis. Segundo tais relatos, as costas ibricas receberiam constantes visitas, visando a procura de matrias-primas e metais, de navios vindos do Mediterrneo oriental - principalmente de fencios, smios, rdios, cartagineses e foceu-massaliotas.

    Os itinerrios destas rotas de viagem, muitas vezes eram compilados nos famosos priploi, gregos, que grosso modo caracterizavam-se como guias de navegao na medida que continham informaes geogrficas, e muitas vezes tambm etnogrficas, das regies que descreviam. Muitos desses itinerrios chegavam a ser ocultados, a fim de evitar a competio comercial. Para o caso da Ibria, os priploi mais conhecidos so os de Hann e Himilcn, e o priplo massaliota que serviu de base para que Avieno escrevesse sua obra Ora Martima.

    O interesse das fontes literrias aumentou com a srie de historiadores e gegrafos clssicos que descreviam as guerras de Roma, ou as terras hispnicas conquistadas por Roma. Tais escritores se ocupavam em descrever os povos nativos e seus costumes atvicos, antes dessas populaes serem incorporados civilitas romana. Dentre tais escritores, destacamos: Tito Lvio, Polbio, Estrabo, Plnio (o Antigo), Justino, Din Cassio, Floro, Orsio. Esses autores, apesar de escreverem em um perodo posterior, traaram em suas obras um panorama da Ibria pr-romana. Devemos, porm, ter cuidado ao operacionar com este tipo de

    3 Iberia, terra entre rios, o nome dado pelos helenos tanto a Pennsula Ibrica, quanto a faixa de

    terra entre os Grandes Cucasos e a Armnia, atual Gergia. As duas regies constituam os dois extremos do mundo conhecido pelos gregos, at ento.

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    documentao textual, pois, tais relatos constituam-se em construes tardias de uma realidade anterior, na maioria das vezes desconhecida por tais autores.

    A Ora Martima escrita por Rufius Festus Avieno uma documentao que devemos destacar, j que esta nos apresenta uma ampla descrio das costas da Ibria, desde a Galcia at os Pirineus. Avieno nasceu em Volsnia (Itlia), no sculo IV d.C. e foi pro-cnsul da Batica. Escreveu em verso sua Ora Martima copiando itinerrios antiqssimos de navegao, que teriam sido compilados por um marinheiro pnico do sculo VI a.C. Nesta obra, Avieno realizou uma descrio geogrfica referente a um momento anterior (um milnio antes), onde se carece em absoluto de documentao textual referente s cidades, portos, acidentes geogrficos e populaes que habitavam a Ibria do ano 600 a.C. Avieno, ainda, tece um detalhado relato sobre os habitantes peninsulares, mencionando os Dragani na Galcia; os Saephes e Cempsos na Lusitnia; os Cynetes em El Algarve; os Cilbicienos, Tartsios, Massienos, Etmanei, Ileates, Igletes, Lbio-Fencios e Fencios na Andaluzia; os Gymnetes, Beribraces e Iberos no levante; os Indigetes, Ceretes e Elysices na Catalunha. As informaes apresentadas na obra de Avieno tm sido analisadas desde a pioneira obra de Schulten, Fontes Hispaniae Antiquae4.

    Avieno descreveu exaustivamente a rea prxima a Massala e a costa da nascente do Rio Rdano. Alm disso, temos no priplo os nomes e as supostas localizaes de uma srie de feitorias helnicas em territrio peninsular (Kpsela, Kallpolis, Lebedontia e Salauris), sendo a mais importante dentre elas, Hemeroskopion, embora esta ltima seja descrita como desabitada. J. Arce5 acredita que o fato de ainda no se haver encontrado arqueologicamente os vestgios de nenhuma dessas feitorias, pode ser um indicativo de que essas poderiam tratar-se de topnimos indgenas para ajudar os navegantes gregos em suas escalas de navegao, embora tambm possam tratar-se de pequenos enclaves abertos ao comrcio, onde estariam instalados alguns mercadores gregos. Da a preciso destes pontos de escala para comrcio e refgio.

    4 SCHULTEN, A. Fontes Hispaniae Antiquae. Vol I (Avieno, Ora Martima). 1956; Vol II (500 a.C.: Csar),

    1925. 5 ARCE, J. Colonizacin griega en Espaa: algunas consideraciones metodolgicas. In: Archivo Espaol de

    Arqueologa, 52, 1979. pp.105-110.

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    Ao nosso ver, no achamos muito apropriado o termo colonizao para o caso da ocupao grega em territrio peninsular. Concordamos com J. Alvar6, quando este agrupa as distintas formas de atividade grega na pennsula sob o termo presena grega, que segundo este autor seria um termo menos caricato e que permitiria visualizar a heterogeneidade da experincia grega no extremo Ocidente, que no poderia ser caracterizada por experincias coloniais em sua totalidade:

    ... as relaes dos gregos com a Pennsula no conduziram, exceto no que diz respeito ao territrio bem delimitado do Golfo de Rosas [Emporion e Rhodes], constituio de ncleos urbanos caractersticos do mundo colonial grego, seno fundamentalmente a uma atividade comercial que encontrou seu calo na corrente regular estabelecida pelos mais antigos navegantes que freqentaram as costas ibricas (marinheiros smios, rdios, eubeos, eginetas, sicilianos, suritlicos), e que utilizou como mercados os assentamentos feno-pnicos ou pnico-indgenas com classe de feitorias, assim como o porto de Gades7.

    No entanto, antes de tocarmos na questo da fundao de Emporion, importante se faz mencionar as caractersticas essenciais de uma fundao colonial para os antigos Gregos. Primeiro, o termo colnia , num certo sentido, imprprio, j que ele evoca o movimento de colonizao da poca moderna em direo s Amricas, no qual as novas instalaes coloniais eram dependentes das suas metrpoles. A palavra colnia deriva do latim8, e designava, pelo menos para a poca da Repblica Romana, a transferncia de indivduos com o objetivo de controlar administrativamente uma cidade, ou regio, conquistada por Roma9. Para o caso

    6 Encontramos essa discusso no trecho escrito por J. Alvar no livro: PLCIDO, D. , ALVAR, J., WAGNER, C.

    G. (orgs.) La formacin de los estados en el Mediterrneo Occidental. Madrid: 1991. In: http://www.uc3m.es/uc3m/gral/ES/ESHU/cursotartesos.doc. 7 FERNNDEZ-NIETO, J. Griegos y Colonizacin griega en la Peninsula Iberica. In: CHAVES TRISTN,

    F.(ed.) Griegos en Occidente. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1992. p.132. 8 Colnia deriva dos termos: 1) colere: cultivar ou habitar; 2) colonia: grupo de indivduos enviados pela

    Repblica romana para garantir a sua segurana de terras longnquas; as colnias continuaram a ser utilizadas durante o Imprio e tambm serviram como forma de assentamento de veteranos do exrcito; 3) quem cultiva a terra para sua subsistncia e que conserva sua cidadania original. In: http://www.historiaehistoria.com.br/arquivos/glossario_poseidonia2.htm 9 MONTEL, S. POLINNI, A. Colonizao grega no Ocidente atravs do exemplo de Poseidnia. In:

    http://www.historiaehistoria.com.br/ materia.cfm?tb=historiadores&ID=29

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    grego, o termo utilizado era apoikia, termo que implicava na instalao de uma populao em um local diferente da sua habitao de origem.

    Mapa 01: Os Assentamentos Gregos no Golfo de Rosas

    Mapa indicando a localizao das fundaes gregas no Golfo de Rosas, regio nordeste da atual Catalunha (Espanha): Emporion e Rhode. Fonte: LEJEUNE, M.; POUILLOUX, J.; SOLIER, Y. "Etrusque et ionien archaques sur un plomb de Pech Maho (Aude)". RAN, 21, 1988. p.22.

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    As apoikias tinham como objetivo principal conceder terras aos que no as possuam na Grcia, buscavam o estabelecimento de uma plis, que apesar de conservar com a sua metrpole laos de distinta ndole, tinha sua vida prpria, desenvolvendo-se independentemente da dita metrpole10. Tais colnias de povoamento seriam o resultado de uma deciso de sua metrpole, a qual, motivada por diferentes razes, organizava a marcha de uma parte de seus habitantes sob o comando de um oikists11, e sua instalao em um novo territrio.

    A fundao de uma nova colnia consistia, em um primeiro momento em um ato religioso, implicando na transferncia do culto oficial da metrpole para a colnia, sendo o oikists o personagem designado para cumprir tal rito, marcando oficialmente o nascimento de uma nova cidade12. De acordo com a passagem de Herdoto13, Bato (oikists fundador da colnia de Cirene, no Norte da frica) foi enviado a Delfos pelos habitantes da ilha de Tera, e escolhido como chefe para conduzir a uma expedio que resultou na fundao de Cirene. Este reinou em Cirene durante 40 anos e foi embaixador da dinastia dos batadas, que exerceu controle sobre a cidade por quase dois sculos.

    Os laos de unio entre metrpole e colnia, apesar de concretos no plano religioso, j que a presena do oikists assegurava que o culto colonial principal fosse o da divindade principal da metrpole, no eram to estreitos de outros pontos de vista. Do ponto de vista das instituies polticas, por exemplo, a evoluo das colnias pde ser muito diferenciada das suas metrpoles. Um exemplo disto foi a colnia espartana de Tarento14, que desfrutou de leis prprias, e organizou uma realeza que estava nas mos de uma s pessoa, ao contrrio do modelo de realeza espartana15.

    10 Graham, A. J. Colony and mother city in ancient Greece, Manchester: Manchester University Press, 1964.

    11 Indivduo, pertencente normalmente aristocracia da cidade de origem, responsvel pela organizao da

    expedio colonial. Suas atividades podiam incluir uma consulta ao orculo de Apolo em Delfos visando conselhos sobre o local preciso para a fundao da nova cidade, o recrutamento do contingente de colonos, a organizao da vida na colnia, sobretudo a diviso de terras entre os colonos, assim que a atribuio do espao reservado para os templos e as propriedades dos santurios rurais. In: http://www.historiaehistoria.com.br/arquivos/glossario_poseidonia2.htm 12

    DUNBABIN, T. J. The Western Greeks : the history of Sicily and South Italy from the foundation of the Greek colonies to 480 B.C., Londres: Ares Publishers, 1948 13

    Herdoto. Histrias. IV, 156-157. 14

    Fundada pelos espartanos em 708 aC., na regio de Apulia, costa norte do Golfo de Tarento, regio costeira do Mar Jnico. 15

    LPEA EIRE, A. La etimologa de y los orgenes de la retrica, Faventia 20/2, 1998. pp. 61-69.

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    Em alguns casos esta falta de laos polticos entre colnias e metrpoles encontra sua explicao no fato de que, ao serem pleis, tais colnias desenvolviam suas prprias estruturas sociais e polticas particulares16. Alm disso, a experincia poltica grega no domnio colonial foi variada e segundo as circunstncias prprias de cada lugar e poca, levando a atitudes diferenciadas, obrigando-nos ao estudo de caso a caso.

    Para o caso do movimento colonial foceu, que nos interessa no presente trabalho, houve uma conjuntura muito particular para explicar as razes desses nas incurses coloniais. Ao longo do sculo VII a.C., a Focia, Mileto e outras pleis da Jnia tiveram uma gradativa reduo de sua chra ante o avano persa. Para seus habitantes, a colonizao de outros territrios afigurava-se, pois, como uma via alternativa para a fundao de assentamentos que servissem de refgio seguro, onde lhes fosse possvel encontrar abrigo, liberdade cvica e dar continuidade atividade comercial que mantinham suas pleis17. Encontramos relatos sobre tais eventos em Herdoto18.

    A colonizao focia optou por estabelecer suas colnias em locais distantes, na parte ocidental do Mediterrneo, talvez pelo fato de que ao terem iniciado sua fase colonial mais tardiamente19, viram-se obrigados a navegar em regies mais longnquas, j que todas as regies mais prximas j estavam ocupadas20. Assim, aps fundar Lampsaco (atual Lapseki) no Helesponto, Mediterrneo oriental, voltaram-se para o Mediterrneo ocidental. Sanmart Grego21 pressups que os foceus tinham preferncia por determinados tipos de lugar para

    16 MONTEL, S. POLINNI, A. Colonizao grega no Ocidente atravs do exemplo de Poseidonia. In:

    http://www.historiaehistoria.com.br/ materia.cfm?tb=historiadores&ID=29 17

    SAKELLARIOU, Michail. The Metropolises of the Western Greek Colonies. In: Carratelli, Giovanni Pugliese. The Western Greeks. Classical Civilization in the Western Mediterranean. New York: Thames and Hudson, 1997. pp. 177-188. 18

    Histrias. I, 163-167. 19

    De acordo com Charon e Brard, a maioria das pleis gregas, como Eubea e Chalcis, comeou a fundar suas colnias j no sculo VIII a.C. Esses autores vem o processo de colonizao como algo resultante do processo de estruturao das pleis. BERARD, C. et ALTHHER-CHARON, A. Ertrie: lorganisation de lespace et la formation d une cit grecque. In: SCHNAP, Alain (org.). LArchologie Aujourdhui. Paris: Hachette, 1980. pp. 229-249. p.230. 20

    MONTENEGRO,A., BLSQUEZ, J.M. et all. Historia de Espaa II: Colonizaciones y formacin de los pueblos prerromanos (1200-218 a.C.). Madrid: Gredos, 1998. p. 176 / Sakellariou Michail. The Metropolises of the Western Greek Colonies. In: CARRATELLI, Giovanni Pugliese. The Western Greeks. Classical Civilization in the Western Mediterranean. New York: Thames and Hudson, 1997. pp. 177-188. p.185. 21

    SANMARTI-GREGO, E. "Emporion, port grec a vocation ibrique". In: Magna Grecia e il lontano Occidente. Atti del ventinovesimo convegno di studi sulla Magna Grecia (Taranto, 1989).Napoli: Universidade de Taranto, 1990. pp.389-410. p. 389.

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    fundarem suas colnias. Portanto, ou preferiam regies rodeadas por marismas22, relativamente elevadas e secas, situadas na maioria das vezes perto da nascente de algum rio - nessa modalidade se encontrariam os casos de Emporion, Elea, Alalia e Agatha; ou escolhiam regies muito parecidas com o entorno fsico da Focia, como foi o caso de Massalia23.

    As regies mais ocidentais do Mediterrneo no eram desconhecidas24 pelos gregos, j que eubeus, calcidianos e rdios j haviam fundado colnias na Itlia e Siclia. Alm disso, durante o sculo VII a.C., j havia um comrcio empreendido pelos foceus no Mediterrneo ocidental, mesmo antes da fundao de suas colnias. Assim, entre o final do sculo VII e incio do sculo VI a.C., os foceus j estabeleciam relaes comerciais com as regies mais prximas ao delta do Rdano, com Tartesos25, na regio da Andaluzia (Espanha), e com as colnias fencias da costa sul da Pennsula Ibrica26.

    22 Marismas so terrenos alagadios beira do mar.

    23 Ver Estrabo. Geografia. IV, 1, 4.

    24 Tais afirmativas discordam do relato de Herdoto (I, 163), que indica que os foceus foram os primeiros gregos

    que empreenderam navegaes de longa distncia. Herdoto, no mesmo relato citado, afirma que os foceus foram os primeiros a descobrir Tartesos. Posteriormente, mais precisamente no Livro IV, 152, de sua Histria, Herdoto explica que houve uma presena de mercadores smios em Tartesos, que era um entreposto comercial ainda inexplorado at aquele momento. Tal presena foi explicada pela ao de um vento, que deslocou a rota do navio desses mercadores, que originalmente rumariam para o Egito. No s Herdoto que cai em contradio acerca dos primeiros elementos gregos a chegarem em territrio peninsular. A prpria produo historiogrfica apresenta concluses bem diversas acerca de tal fato. Estudos relativos presena grega na Ibria tm sido revisados nos ltimos anos. Os primeiros vestgios materiais da presena grega na Pennsula Ibrica so datados dos sculos VIII e VII a.C. Atualmente, a viso mais aceita a de que esses eram parte integrante do comrcio internacional Mediterrneo e chegaram s rotas comerciais peninsulares pelos mercadores fencios, j que o volume desses materiais no seria suficiente para justificar uma presena grega efetiva. In: SHEFTON, B. B. Greek Imports at the Extremities of the Mediterranean, West and East: Reflections on the case of Iberia in the Fifth Century BC. In: CUNLIFFE, B. & KEAY, S. Social Complexity and Development of Towns in Iberia. From the Cooper Age to the Second Century A.D. Oxford: University : Press, 1994. pp.127-155. 25

    Sobre a presena dos foceus em Tartesos, Herdoto (I, 165) descreveu a amizade que os mercadores foceus havia desenvolvido com o rei Argantnio. Amizade que levou este rei a oferecer-lhes terras para que se instalassem em seu reino ante a ameaa persa, e que os foceus recusaram aceitando ento bens com os quais edificariam slidas muralhas de defesa. Posteriormente, comenta Herdoto, quando os Persas tomaram a Focia, em 545 a.C., Argantnio j havia morrido e no poderia mais ajud-los. Herdoto, ainda, insiste em enfatizar a capacidade nutica dos foceus, j que os foceus embarcaram todos seus bens mveis e religiosos em uma frota de pentecnteras (tipo de embarcao grega), e termina afirmando que esses chegaram ao Mediterrneo ocidental. 26

    CABRERA BONET, P. Emporion y el comercio griego arcaico en el NE de la Pennsula Ibrica. In: OLMOS, R & ROUILLARD, P. Formes archaiques et arts ibriques. Madrid: Casa de Velzquez, 1996. Collection de la Casa de Vlazquez, n.59. p. 45.

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    Mapa 02: Colonizao Focia no Ocidente

    Mapa da colonizao focia no Mediterrneo ocidental. Ressaltamos a localizao dos assentamentos Gades (Cdiz), Emporion (Amprias), Marselha (Massala), mencionados no trabalho. Fonte: YANGAS, Narcisa Santos e PICAZO, Marina. La colonizacin griega: comercio y colonizacin de los griegos en la Antigedad. Madrid: Akal, 1980. (Collccion Manifesto, Serie Historia Antigua) p. 316.

    Dentre os gregos, os foceus foram aqueles que mais avanaram em direo ao Ocidente, chegando a Tartesos (Cdiz, Espanha), alm de terem fundado estabelecimentos no nordeste Espanhol (Emporion e Rosas), no Sul da Frana (Massala) e na Itlia (Vlia) (ver localizao desses assentamentos no mapa 02).

    At agora, mencionamos somente as colnias fundadas por Metrpoles gregas, mas quase todas essas colnias, relativamente pouco tempo depois de seu estabelecimento,

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    fundaram tambm sub-colnias, ou colnias secundrias27. Este fenmeno central para nossa proposta, pois Emporion era uma espcie de sub-colnia; j que foi fundada como emporion de Massala, colnia focia fundada em 600 a.C. no sul da Frana.

    As emporia, tradicionalmente reconhecidas como entrepostos comerciais, tinham seus interesses mais ligados a questes comerciais, na busca de matrias-primas que eram necessrias ao desenvolvimento da vida cotidiana no mundo grego propriamente dito (fundamentalmente produtos alimentcios e minerais), assim como, posteriormente, pela ocasio do desenvolvimento da escravido, homens. Tal presena nas terras mais ocidentais propiciou o estabelecimento de diversas emporia que, por sua funo comercial, proporcionavam o estabelecimento de relaes com as populaes nativas de cada rea. Estas deram origem a rotas comerciais, cujo controle poderia ser rentvel a algumas cidades. Inclusive, a maior parte das ditas emporia acabaram por passar a ser cidades do tipo clssico, com a existncia de chra e sty, no apresentando diferena alguma das colnias do tipo agrcola28.

    A instalao de um grupo de colonos em terras novas tornava necessria da criao de estruturas urbanas e agrrias capazes de garantir a continuidade da comunidade, sua subsistncia e sua prosperidade. Por isso, o j superado debate sobre a vocao das colnias gregas, se comerciais ou agrcolas, esquematiza demais um processo bem mais complexo: a trajetria de cada colnia em particular. Neste caso, a relao da colnia com a regio e conseqentemente, com as populaes nativas desta, seria essencial, j que as relaes com as sociedades nativas foram determinantes para a dinmica das colnias.

    De acordo com um levantamento feito por R. Etienne29 de todas os locais caracterizados como emporion na obra Geografia, de Estrabo, o denominador comum a todos eles seria a facilidade de comunicao a longa distncia. Estes escoariam por via terrestre ou fluvial as mercadorias nativas do interior que podem ser reexportadas, enquanto

    27 Sakellariou Michail. The Metropolises of the Western Greek Colonies. In: CARRATELLI, Giovanni

    Pugliese. The Western Greeks. Classical Civilization in the Western Mediterranean. New York: Thames and Hudson, 1997. pp. 177-188. 28

    TIENNE, R. A. Les Emporia Strabonienes: Inventaire, Hirarchies et Mcanismes Comerciaux. In: BRESSON, A. et ROILLARD, P. (org.) LEmporion. Paris: Diffusion De Boccard, Publications du Centre Pierre Paris 26(URA991), 1993. Pp. 23 34. 29

    TIENNE, R. Idem. pp. 23 34.

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    recebiam em seus entrepostos martimos ou terrestres, produtos de lugares distantes. Um emporion, em sua origem, seria o lugar onde se exercia a emporia30, atividade comercial, do empros, comerciante que empreendia viagens a longa distncia.

    M. Gras31 conceituou o comrcio foceu, para o Perodo Arcaico, como uma linha de contato entre os dois paradigmas comerciais formulados por G. Vallet e P. Villard: o comrcio colonial e o comrcio internacional. No primeiro caso, um centro grego importante

    (Metrpole), proveria os distintos centros gregos disseminados pelas costas mediterrneas ocidentais (colnias) de produtos de uso corrente, manufaturados naquele centro32. J o segundo paradigma, o comrcio internacional, referia-se ao trfico entre gregos e brbaros (que poderiam ser fencios, cartagineses, etruscos, iberos, etc.), apresentando-se enquanto um comrcio a longa distncia, com trocas espordicas de objetos de luxo. Consideramos, contudo, que no existiria um comrcio de tipo colonial, mas sim, como afirma Mele33, um pequeno comrcio local de curta distncia (kapelea), empreendido por pequenos mercadores (kapeloi), e o comrcio martimo de longa distncia (emporia), voltado para o exterior da comunidade, isto , com estrangeiros. No Perodo Arcaico, tal comrcio era praticado por aristocratas, que praticavam-no segundo os valores aristocrticos34, seguindo um padro estabelecido a partir das relaes de xnia (amizade-hospitalidade).

    O primeiro mecanismo comercial de um emporion residia na troca de produtos locais pelos produtos estrangeiros35. Desta forma, a Emporion catal seria um local que transmitiria a

    30 No que se refere a emporia, podemos assinalar que se trata de uma forma de comercializar que os foceus

    praticavam desde antes do incio de sua aventura colonial. Assim, Aristteles refere-se em sua Constituio dos Massaliotas, que os foceus praticavam a emporia na Jnia. Tratava-se de uma forma de comrcio desempenhada por uma populao que no podia, ou no queria, contar exclusivamente com seu prprio territrio para viver, e que via no mar um meio para sua subsistncia. IN: SANMART_GREGO, E. Novos datos sobre Emporion. In: CHAVES TRISTN, F.(ed.) Griegos en Occidente. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1992.pp.175. 31GRAS, Michel. Georges Vallet et le commerce. In: Centre Jean-Brard (org.) La colonisation grecque en Mditerrane Occidentale. Roma: cole Franaise de Rome, 1999. pp. 7-22. 32

    MONTENEGRO,A., BLSQUEZ, J.M. et all. Historia de Espaa II: Colonizaciones y formacin de los pueblos prerromanos (1200-218 a.C.). Madrid: Gredos, 1998. p. 180. 33

    MELE apud: DOMINGUEZ MONEDERO, A. Los mecanismos del emporion en la prctica comercial de los foceos y otros griegos del Este. Monografies Emporitanes, 11, 2000. p. 37. 34

    HAHN, Istvn. Foreign Trade and Foreign Policy in Archaic Greece. IN: GARNSEY, F. & WHITTAKER, C. R. (eds.) Trade and Famine in Classical Antiquity. Cambridge: Cambridge Philological Society, 1983. (Supplementary, vol.8) pp.30-36.; DOMINGUEZ MONEDERO, A. Los mecanismos del Emporion en la prctica comercial de los foceos y otros griegos del Este. Monografies Emporitanes, 11, 2000. pp. 27-45. 35

    Idem. p.31.

  • 23

    mentalidade grega, j que as fontes antigas notaram a proximidade dos colonos que habitavam este estabelecimento, com os nativos, o que parece iluminar o por qu da denominao Emporion dada cidade. De fato, no momento que os emporoi estabeleceram-se nas terras prximas ao interior , onde as comunicaes terrestres, lacustre e fluvial eram confortveis, estes passaram a ter um contato dirio e de coabitao com os nativos. Os gregos que residiam em um emporion e que atuavam no mesmo, se aproveitam para lograr uma melhor insero

    dentro das estruturas nativas36. As relaes entre gregos e nativos neste momento estariam marcadas pelo interesse

    dos gregos em atrair a amizade dos nativos como meio de garantir zonas tranqilas para o estabelecimento de pontos para paradas, prprios do tipo de navegao realizada no Perodo Arcaico, a navegao de cabotagem. As tcnicas diplomticas seriam prxis dos colonizadores foceus, como eram dos fencios e etruscos37. Esse era, na verdade, o ideal de comrcio no Perodo Arcaico, porque para ser empreendido dependia da oferta de presentes e no de mercadorias, conforme apontam os modelos ideais de encontro e contato presentes na Odissia e nos mitos de fundao de colnias gregas38.

    Segundo Dominguez Monedero39, muitas eram as variantes implcitas nesse processo. Poderamos destacar a concesso de autorizao, por parte das autoridades dos nativos, para desembarcar e para permanecer no local, j que era necessrio ter facilidades para o armazenamento de produtos e a eventual residncia de um ncleo mais ou menos reduzido de gregos, principalmente devido s condies da navegao arcaica40. Assim, ao necessitarem

    36 ETIENNE, R. Idem. pp. 23 34.

    37 DOMINGUEZ MONEDERO, A. Los mecanismos del Emporion en la prctica comercial de los foceos y

    otros griegos del Este. Monografies Emporitanes, 11, 2000. p. 41. 38

    MORRIS, I. Gift and commodity in archaic Greece. Man, 1986: 1-17. 39

    DOMIGUEZ MONEDERO, A. Los griegos de Occidente y sus diferentes modos de contacto con las poblaciones nativos. I. Los contactos en los momentos precoloniales (previos a la fundacin de colonias, o en ausencia de las mismas). In: CABRERA BONET, P. (ed.) Griegos y Iberos: Lecturas desde la diversidad. Huelva Arqueolgica, XII, 1990. pp.21-48. p.41. 40

    As travessias para o Mediterrneo ocidental eram longas, e demasiadamente arriscadas. Assim, os navegadores foceus necessitavam do apoio das vrias plataformas estabelecidas pelo caminho, para suprimentos e reparos. Os gregos no navegavam em alto-mar, mantendo-se sempre prximos costa. Alm disso, somente navegavam pela manh, atracando a noite em terra firme para pernoitar e se alimentar, visto que o espao para armazenar os suprimentos de gua e alimento para a tripulao era muito escasso nos navios gregos. A navegao na Antiguidade era uma arte pautada na habilidade de interpretar fenmenos naturais. Baseada quase que exclusivamente nas particularidades geogrficas do Mediterrneo, as quais se tornaram inalteradas por toda a Antiguidade. Conhecimentos baseados na experincia, que passavam de gerao em gerao, primeiro oralmente,

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    de pontos de contatos em vrios territrios, os emporoi gregos tornavam-se amigos-hspedes das comunidades nativos que os acolhiam, consolidando alianas polticas com as chefias locais, a partir da criao de laos atravs de instituies tradicionais. As criaes de tais laos de amizade-hospitalidade com as elites nativos, baseavam-se na oferta de presentes e, algumas vezes, nos casamentos41 entre mulheres das elites nativas e os emporoi.

    Muitos desses casos de contatos pr-coloniais evoluram, acarretando a formao de novos estabelecimentos, alguns at de longa durao. Massalia, por exemplo, fundada em 600 a.C. pelos foceus, encontrava-se em um local que comportava as principais caractersticas de uma plis costeira acrpole, pequena plancie costeira e um porto protegido, como tambm, possua muitas semelhanas com o territrio da sua Metrpole, a Focia. Sanmart-Grego42 fala de um modo foceu de ocupao do territrio, que seria do interesse daqueles na explorao dos recursos do mar e do comrcio martimo, voltado, sobretudo, ao estabelecimento em locais de fcil defesa e com bons portos. Dessa forma, haveria uma certa reproduo do espao fsico da Focia.

    Fruto da fundao de Massala, no final do sculo VI a.C. e conforme j mencionado, o gegrafo grego Estrabo, na passagem 4.8 no livro III de sua Geografia, menciona os dois momentos da fundao de Emporion: 1 - o momento do assentamento em uma ilhota prxima ao continente (que esse autor chama de Palaia Polis, cidade antiga); 2 - a expanso para o continente, onde os colonos se estabeleceram em um novo assentamento (denominada Neaplis43 pelos arquelogos). Os vestgios materiais encontrados nas runas de Amprias44 confirmam a existncia dos dois assentamentos emporitanos.

    depois na forma dos famosos peripli, que podem ser comparados aos atuais livros de pilotos. No sabemos se os primeiros viajantes gregos se beneficiaram de tais obras, mas muito provvel que tenham sido informados por outros que empreenderam as viagens antes deles. In: POMEY, Patrice. Navigation and Ships in the Age of Greek colonization. pp. 133 138. 41

    Ver VAN COMPEROLLE. Femmes indignes et colonisateurs. In: MARCHEGAY, S. , LE DINAHET, M-T. et SALLES, J-F. (eds.) Ncropoles et Povoir Idologies, Pratiques et Interprtations. Paris: Diffusion de Boccard, 1998, pp.38-60. 42

    SANMART_GREGO, E. Novos datos sobre Emporion. In: CHAVES TRISTN, F.(ed.) Griegos en Occidente. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1992. p.174. 43

    Esta denominao foi elaborada pelo arquelogo, e na poca Diretor do Museu De Arqueologia de Empries, J. Puig i Cadafalch, em contraposio ao termo Palaiapolis. 44

    As runas de Empries o nome, em catalo, dado ao complexo arqueolgico onde se encontram reunidas: a Palaia Polis, no povoado de Sant Mart de Amprias; a Neapolis de Emporion; e a cidade romana de Emporiae.

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    Mapa 03: O assentamento de Amprias

    Fonte: FERNNDEZ NIETO, Javier. Los Griegos en Espaa. In: AAVV. Histria de Espaa Antigua I. Protohistria. Madrid: Catedra, 1999. p.584.

    Os primeiros anos de existncia de Emporion foram o de um pequeno enclave comercial, ou mesmo de ponto de escala e apoio s navegaes gregas que dirigiam-se a Gades (Cdiz)45, no sudeste peninsular. Tambm conforme j mencionado, por sua funo comercial, tal estabelecimento deveria contar com a proximidade do elemento nativo e a facilidade de convergncia dos produtos aportados por estes.46 Assim partimos do pressuposto que foram justamente as relaes estabelecidas com os nativos, chamados pelas fontes antigas de indigetes47, que favoreceram o desenvolvimento do estabelecimento de Emporion.

    45 Gades, atual Cdiz, no Sul da Espanha, foi fundada pelos fencios em 1100 a.C.

    46 DOMIGUEZ MONEDERO, A. Introduccin al problema de la colonizacin griega en la Pennsula Ibrica.

    In: Colonizacin Griega en Occidente. Vol. II. Madrid: Tesis Doctrales de la Universidad Complutense de Madrid, 1989. p.1704. 47

    Estrabo. Geografia. III, 4, 8.

    Cidade Romana

    Port

    Palaia Plis Neaplis

  • 26

    Com isso, pretendemos nos distanciar da idia de que as relaes entre os emporoi foceu-massaliotas e os nativos poderiam perpassar por um exemplo de relaes entre Centro-Periferia. B. Cunliffe48 aplicou o modelo de comrcio centro-periferia regio do Mediterrneo ocidental, considerando o Golfo de Lyon como o centro, e a costa da Ibria, de Amprias a Huelva, sendo a interface, e o interior peninsular, a periferia. P. Cabrera49 contesta as idias deste autor, j que, em sua opinio a Catalunha, o Levante e o sudeste peninsular no desempenhavam um papel importante no sistema foceu, pelo menos durante a primeira metade do sculo VI a.C., j que durante este perodo, o Sudeste e o Levante peninsulares contavam com a existncia de colnias fencio-pnicas em seus territrios.

    O comrcio inter-regional que acontecia em territrio peninsular durante os sculos VII e VI a.C. no apresentava uma delimitao em reas restritas, no sendo estas zonas exclusivas da relao entre colonizadores/nativos locais, como podem confirmar os inmeros enfrentamentos entre as sociedades mediterrneas por reas de influncia50. Alm disso, no devemos esquecer de contar com a participao do elemento nativo, que no estava passivo no processo, e tambm circulava e realizava trocas comerciais em territrio peninsular. A prpria existncia de trocas comerciais no implica, necessariamente, que um parceiro comercial domine o outro51.

    Tradicionalmente, foi atribuda ao estabelecimento de Emporion a disseminao das influncias culturais gregas, a partir do comrcio, implicando em um processo de aculturao, ou helenizao, dos nativos peninsulares, acarretando no fenmeno da "iberizao. Assim, aliando tal premissa colocao de B. Cunliffe52, a Pennsula Ibrica faria parte de um sistema centro-periferia foceu-massaliota, que teve efeito estrutural no desenvolvimento scio-econmico peninsular como uma periferia do sistema. Contudo, no concordamos com tal quadro.

    48 CUNLIFFE, B. Greeks, Romans and Barbarians. London: Bastford, 1998. P. 251-256.

    49 CABRERA, Paloma. Greek Trade in Iberia: The Extent of Interaction, Oxford Journal of Archeology, n.17

    (2), 1998. p.191-206. p.196. 50

    Idem. 51

    STEIN, Gil J. Rethinking world-Systems. Tucson: The university of Arizona Press:1991. p.23. 52

    Ver nota 48.

  • 27

    Ao nosso ver, a fundao de colnia, assentamento estabelecido por uma sociedade no territrio de outra, no pressupe controle territorial da populao nativa local53. Antes de tudo, a fundao de uma colnia uma das formas de evidncia mais fortes para a interao direta entre dois grupos... envolve o movimento tanto de produtos quanto de pessoas54.

    As colnias fundadas por motivos comerciais podem ser consideradas um tipo particular e territorializado de dispora comercial55: ambas compartilham o foco nas trocas comerciais e apresentam variedades nas formas de relacionamento tanto com suas comunidades anfitris, como com suas metrpoles. O conceito de dispora comercial nos liberta da bagagem conceitual inerente ao emprego moderno do termo colnia, baseado na expanso europia ocorrida entre os sculos XVI e XIIX, na qual todas as colnias dominavam suas comunidades anfitris. Assim, ao percebermos as colnias comerciais como disporas comerciais, nos desvinculamos de modelos generalizantes e totalizantes, percebendo a variedade de relaes que podem ser estabelecidas entre metrpoles, estrangeiros, e comunidades anfitris.

    Para o caso de Emporion, o fato deste ser um pequeno entreposto, distante de sua metrpole, de dimenses restritas, tanto dimensionais quanto populacionais, totalmente sujeito s incurses nativas, quaisquer tentativas de domnio poltico pela fora militar, por exemplo, seriam infrutferas. Acreditamos que as interaes tenham se processado por motivos de natureza comercial para os foceu-massaliotas, o que implicaria na tentativa de uma poltica de coabitao pacfica com os nativos. Tentativa esta que foi frutfera, j que os nativos aceitaram a presena estrangeira em seu territrio. O que devemos nos interrogar, e que

    53 STEIN, Gil J. Rethinking world-Systems. Tucson: The university of Arizona Press:1991. p.71.

    54 Idem. pp.71-72.

    55 O conceito de dispora comercial foi formulado por A. Cohen. Esta seria uma rede de comerciantes

    estrangeiros que poderiam viver rapidamente, ou por muitas geraes, no meio de uma sociedade estrangeira, chamada de anfitri. Na maioria dos casos, os colonos que viviam nesses estabelecimentos vivam segregados fisicamente da populao autctone, e geralmente distinguiam-se pelo idioma, religio, etnicidade ou raa. Apesar de tal atitude variar muito de acordo com a relao entre esses estabelecimentos e as suas sociedades anfitris, os estabelecimentos de tipo dispora-comercial eram considerados como locais de quebra inter-cultural, na medida que colocavam duas sociedades diferenciadas em contato. Ver: COHEN, A. Cultural Strategies in the Organization of Trade Diasporas In: MEILLASOUX, C. The Development of Indigenous Trade and Markets in West Africa. London: Oxford University Press, 1971. pp. 266 281. Assim, h o contato de dois sistemas culturais diferenciados, em um mesmo espao

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    tambm ser um de nossos objetivos neste trabalho, sobre quais seriam os possveis motivos pelos quais estes nativos teriam aceitado a presena dos foceu-massaliotas em seu territrio.

    Nossa percepo de contato entre sociedades de complexidades diferenciadas no parte do pressuposto que as sociedades reconhecidas como mais simples estejam passivas no processo de interao. Acreditamos que, uma situao de contato propicia uma relao bilateral, cujas repercusses se do em ambas as partes envolvidas no processo.

    Dentro de tal perspectiva, nos desvincularemos da perspectiva historiogrfica tradicional que atribui a Emporion um papel de centro / redistribuidor para uma periferia / nativa peninsular. Partiremos do pressuposto que desde a sua implantao at a transferncia para terra firme, foram as relaes desenvolvidas com os nativos que moldaram a trajetria de Emporion. Ao nosso ver, a presena de indivduos de tradio cultural grega no pressups a helenizao dos nativos que vivam prximos a Emporion, como veremos adiante.

    Alm disso, procuraremos nos desvincular das perspectivas historiogrficas que tratam o assentamento de Ullastret como uma rea de influncia do comrcio emporitano, demonstrando que as relaes desenvolvidas entre ambos os assentamentos estavam mais relacionadas a um tipo de acordo, interessante para ambas as partes, como se esses fossem estabelecimentos aliados, pelo menos durante o perodo do presente trabalho.

    J no centro urbano emporitano, houve outro tipo de interao entre os colonos helenos e alguns nativos, at porqu havia a necessidade de dar uma resposta a uma marcante presena nativa, criada tanto por ocasio do acirramento dos contatos comerciais, quanto pela provvel situao de uma populao composta de elementos que eram fruto de casamentos mistos, entre colonos e mulheres nativas. Assim, nossa hiptese principal versa sobre o fato de que foi atravs da interao com os nativos do Ampurdn que pde ser constituda a plis dos emporitanos, uma plis mista, j que dependia das boas relaes entre colonos foceu-massaliotas e nativos, apresentando momentos diferenciados no tocante a tais relaes.

    Assim, no Captulo I, apresentaremos algumas caractersticas da colonizao focia no Ocidente, discutindo o conceito de emporion para o contexto do sc. VI a.C., momento que Emporion fundado. Ao nosso ver, a natureza de emporion massaliota em terras peninsulares propiciou, deste os primeiros momentos de Emporion, um maior contato com os nativos locais. Caracterstica esta, que determinou toda a trajetria deste estabelecimento.

  • 29

    Ainda, apresentaremos as fontes textuais que abordam fatos ou caractersticas de Emporion, para ento compara-las s notcias fornecidas pelo estudo do espao fsico da colnia emporitana, bem como, com documentao epigrfica relevante para o tema pretendido. Uma breve discusso historiogrfica sobre os pontos mais relevantes, tambm ser realizada. Pretendemos, assim, apresentar a trajetria de Emporion, desde sua fundao at o sculo V a.C., sua relao com Massala, e com os nativos locais. Sendo esta ltima, objeto de muita discusso, na medida que no h uma unanimidade entre os pesquisadores sobre qual relao haveria entre os emporitanos e os nativos que foram sepultados nas necrpoles emporitanas. No entanto, no h dvidas sobre a relao de Emporion com o assentamento nativo mais prximo, Ullastret.

    Sendo assim, no Captulo II, apresentaremos um breve panorama sobre como as fontes textuais, seguidas pela historiografia especializada, caracteriza os indigetes. Ainda, haver uma discusso terica sobre como os emproi mantiveram contatos com Ullastret, baseando-nos nas evidncias apresentadas pela cultura material, como as cermicas e a organizao deste ltimo assentamento. Para tanto, utilizaremos alguns conceitos sobre a relao entre comrcio e colonizao, consumo em sociedades tribais e contatos intertnicos.

    Ao nosso ver, a compreenso da relao entre Emporion e Ullastret contribui para entendermos qual seria a relao de Emporion com o resto do Ampurdn, e mesmo, com os nativos que supostamente habitariam as proximidades da sty emporitana.

    No Captulo III, voltaremos Neaplis, a partir de uma anlise das necrpoles emporitanas; documentao esta que, ao nosso ver, o maior indcio das interaes entre as duas sociedades. Partiremos do pressuposto que um estudo do espao funerrio, pode nos proporcionar indcios de transformaes, disputas, conflitos, complexidade social e hierarquizao, em uma determinada poca56.

    Assim, pretendemos apresentar nossa perspectiva dos contatos entre os colonos foceu-massaliotas e os nativos locais, tentando nos desvincular de perspectivas que valorizem percepes unilaterais sobre os contatos entre gregos e nativos, em situaes de

    56 TAINTER, J. R. Mortuary practices and the study of prehistoric social systems. Advances in

    Archaeological method and theory, 1, 1978: 105-41. p. 109

  • 30

    colonizao. Procuraremos tentar entender os dois lados do contato, os meios pelos quais se processaram, e o posicionamento de ambas as sociedades envolvidas no processo.

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    Captulo 1

    O que a documentao fala sobre Emporion

    1.1) A Fundao de Emporion de Acordo com as Fontes Clssicas

    Para Estrabo57, Massalia seria uma apoikia fundada por emporoi foceus, cuja base econmica residia no comrcio, principalmente devido inadequao de seu territrio para a atividade agrcola. Emporion foi uma fundao massaliota no Golfo de Rosas, em 575 a.C., que teve duas etapas em sua fundao: a Palaia Plis e um assentamento posterior, em terra firme58.

    Segundo a interpretao dada pelos arquelogos que trabalham no stio arqueolgico de Amprias, a presena grega na Palaia Plis limitou-se aos primeiros momentos do sc VI a.C., j que na metade desse sculo ocorreria a transferncia para a Neaplis. Esta ltima, que recebeu o nome de Emporion. Tal transferncia foi acarretada pelos seguintes motivos: 1) a invaso da Focia pela Prsia, que forou um xodo de populao focia para as colnias mais ocidentais; 2) o fortalecimento das relaes dos foceu-massaliotas com as populaes nativas mais prximas; 3) o fortalecimento comercial de Emporion.

    Tal fato relacionado dupla fundao de Emporion instalao provisria em uma ilha ou zona de fcil defesa prxima costa, seguida de estabelecimento de uma colnia nas proximidades apresentou outros paralelos na histria da colonizao grega. Para citar alguns, na Itlia Partnope e Neapolis, Silaris e Poseidnia; na Lbia, Platea e Cirene; e no Mar Negro, Beresan e lbia59.

    O primeiro estabelecimento, pequeno e afastado, tinha a misso de assegurar os contatos com o interior da regio. Apenas quando tais contatos eram estabelecidos, que os

    57 Geografia. IV, 1, 5.

    58 Estrabo. Geografia, III, 4, 8.

    59 DOMIGUEZ MONEDERO, A. Los griegos de Occidente y sus diferentes modos de contacto con las

    poblaciones indgenas. I. Los contactos en los momentos precoloniales (previos a la fundacin de colonias, o en ausencia de las mismas). In: CABRERA BONET, P. (ed.) Griegos y Iberos: Lecturas desde la diversidad. Huelva Arqueolgica, XII, 1990. pp.21-48.

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    colonos passavam a terra firme, ou adentravam um pouco mais o territrio para fundar definitivamente um novo estabelecimento, este de dimenses maiores. Caso contrrio, o primeiro estabelecimento tambm era abandonado, mas os colonos partiam em busca de outras terras. Geralmente aps a fundao do segundo assentamento, a sede original ficava reservada como centro de culto ou atuava como santurio da divindade protetora de uma metrpole60. Talvez a Palaia Plis tenha sido destinada a tal fim, j que Estrabo61 fala que o templo mais importante de Emporion foi o de rtemis Efsia, cujo culto foi propagado pelos foceus. Como na Neaplis emporitana, at o presente momento, no foi encontrado nenhum vestgio material da existncia de tal santurio, muito provvel que os restos arquitetnicos62 encontrados em Sant Martn pertencessem ao dito lugar de culto.

    A localizao da Palaia Plis tambm indica a facilidade com que se poderia defender a nova instalao frente a futuros ataques hostis das populaes nativas. Ainda, h o fato de que aquela se localizava prxima nascente de um rio, que alm de ser utilizado como porto, providenciaria gua potvel para os habitantes do estabelecimento. Por ltimo, essa fundao, ao Sul do golfo de Rosas, constitua-se em um local de excelente refgio para os navegantes vindos do Norte, pelo Golfo de Lyon.

    Nos primeiros momentos da Palaia Plis, durante a primeira metade do sculo VI a.C., a presena de produtos gregos se limitava ao seu territrio, j que a contabilidade dos materiais gregos encontrados nos assentamentos do nordeste catalo nesse mesmo momento (quatro taas e trs nforas) espalhados por assentamentos como Penya Del Moro, Mauss de Mussols, Les Massiens de S. Miquel, ou Alorda Park63, no so o bastante para confirmar a presena de atividade comercial. Tal perspectiva nos mostra que o raio de penetrao do comrcio grego nesse momento era quase nulo, alm de demonstrar a fluidez dos contatos entre os foceu-massaliotas e nativos que habitavam as regies mais prximas a Emporion. Tal

    60 FERNNDEZ NIETO, F. J. Economa de la colonizacin fencia y griega en la Pennsula Ibrica. Studia

    Historica. Historia Antigua, 17, 1999.pp. 25-58. 61

    Geografia, III, 4,8. 62

    Tais restos arquitetnicos referem-se a um frizo, com decorao de um grifo, datado do sculo VI a.C., encontrado sob as fundaes de uma igreja medieval. 63

    CABRERA BONET, P. Emporion y el comercio griego arcaico en el NE de la Pennsula Ibrica. In: OLMOS, R & ROUILLARD, P. Formes archaiques et arts ibriques. Madrid: Casa de Velzquez, 1996. Collection de la Casa de Vlazquez, n.59. pp.43-54. p.53.

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    situao, no entanto, mudar a partir da segunda metade do sculo VI a.C., conforme veremos no decorrer do presente trabalho.

    Muitos pesquisadores questionam se as primeiras atividades comerciais gregas na rea emporitana estariam vinculadas diretamente focia ou se, apenas relacionavam-se ao mbito massaliota. De acordo com Dominguez Monedero64, tal dicotomia seria artificial ao menos durante o amplo perodo de tempo no qual a cidade da Focia, antes desta ter sido conquistada pelos persas, empreendia seu projeto colonial pelo Mediterrneo Ocidental. O autor coloca que a grande presena de cermica massaliota no assentamento da Palaia Plis (que foi o primeiro assentamento emporitano) pode ser vista como a criao de uma rea de influncia comercial de Massalia, onde Emporion integraria os mbitos que eram de interesse desta e, indiretamente, da metrpole focia.

    Durante os sculos VI e V a.C. a chora massaliota era reduzida, mas sua explorao agrcola proporcionava vinho, azeite e cereais. No entanto, desde sua fundao foi o comrcio o fator bsico de seu desenvolvimento. As trocas comerciais com o Mediterrneo Ocidental e com a Glia abrangeram todos aqueles que pudessem servir como intermedirios. Desta maneira, Massala desenvolveu, entre os sculos VI e IV a.C., uma rede de assentamentos que ocupava todo o sul da Frana e chegava, por um lado, Itlia, e por outro, Espanha: Olbia, Atenopolis, Antipolis e Nicaia, na Frana; e Emporion e Rosas, na Espanha.

    As fontes antigas falam desses assentamentos como pleis, polichnia ou polsmata. De acordo com Fernandez-Nieto65, o emprego de tais denominaes pelas fontes s poderia fazer referncia a duas realidades: a primeira de que se tratava de uma colnia ou cidade dos massaliotas, ou seja, de um assentamento de cidados massaliotas; ou que tal cidade ou colnia estaria em possesso jurdica dos massaliotas, dentro de um territrio de propriedade de Massala. Ainda dentro da perspectiva do mesmo autor, a segunda possibilidade parece mais vlida do que a primeira, j que seria mais provvel que todo o territrio sob o controle de Massala possusse a mesma qualificao jurdica.

    64 DOMINGUEZ MONEDERO, A. Los mecanismos del Emporion en la prctica comercial de los foceos y

    otros griegos del Este. Monografies Emporitanes, 11, 2000. pp. 27-45. p. 28 65

    FERNNDEZ NIETO, Javier. Los Griegos en Espaa. In: AAVV. Histria de Espaa Antigua I. Protohistria. Madrid: Catedra, 1999. p. 564

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    Estrabo66 menciona que Antipolis recebia os mandados de Massala, e que esta era um territrio sdito (hypekoos). Quando este autor menciona o poderio de Massala, costuma citar a expresso os massaliotas e todos seus hypkooi. Desta ltima, entende-se todas as tribos submetidas, assim como todos os estabelecimentos ligados Massala. A expresso grega hypkoos apresenta mltiplos significados, porm est sempre oposta noo de autnomo, j que sinnimo de hypotels , que significa sujeito a taxas ou tributos. Do mesmo valor tem a expresso hyp tois Massaliotais, ou sob o domnio dos Massaliotas, que foi empregada para definir a situao de Nicaia. Sobre esta ltima, Fernandez-Nieto67 remeteu-se a uma inscrio da poca Imperial, que honrava uma personagem que ocupou, dentre alguns cargos pblicos de Massala, o posto de episcopus Nicaensium (Bispo de Nicaia)68. De acordo com o autor, ainda que esta fosse uma inscrio tardia, o fato da utilizao da denominao grega epskopos, mostra que esta se tratava de uma instituio antiga. Na opinio do autor, se em Nicaia existia um epskopos que procedia de Massala, poderia significar que neste mesmo estabelecimento poderia tambm existir um magistrado massaliota, constituindo-se Nicaia uma comunidade dependente de Massala.

    A maioria das fontes textuais aponta para o fato de que Emporion foi uma criao massaliota, mas no h nada que mencione como os dois estabelecimentos se relacionavam, ao contrrio do caso da relao Massala-Nicaia, exposta anteriormente.

    A referncia mais antiga a Emporion que chegou at ns foi atribuda a Clax de Carianda69. Tal informao encontra-se na obra Priplous.ts Thalasses, que uma compilao de diversos peripoli anteriores, datada do sc. IV a.C. :

    . = )/pi ) pi= , ( + , pi [...], pi/, ) /= = +pi. /pi = / (pi (= (pi =.

    66 Geografia. IV, I, 5.

    67 FERNNDEZ NIETO. Op. cit. p. 565.

    68 O que isso?

    69 Gegrafo grego que viveu entre o final do sc. VI a.C.

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    IBEROS. Na Europa em primeiro lugar h os iberos, povo da Iberia, e o rio Ibero [...], logo, Emporion, e estes so colonos de Massalia. A travessia martima da Iberia de sete dias e sete noites..

    No trecho acima h a idia de que Emporion seria povoado por colonos (apoikoi) de Massalia, denotando uma certa relao de dependncia entre os dois assentamentos. A meno feita a Emporion breve, j que o autor estava mais preocupado em descrever as populaes da Ibria. A prxima meno a ser analisada, devemos a Cimno de Quos, autor grego do final do sculo II e incio do sculo I a.C., compilador do gegrafo grego foro (405 340 a.C.), que por sua vez utilizou muitos priplos e autores jnios mais antigos:

    f., , . = pi %= pi/ / )= ?/ , ) / )pi/ /. = ( / / /. =) ( pi=. pi/ / = = /pi / , )/pi pi/ / / )/ pi/ /, (/ = = )pi%/, pi/ pi/ , / /, / pi = = )/ / ?...

    Ef., I, II. Nas costas do mar Sardo habitam em primeiro lugar os Libifencios, colonos Cartagineses; depois, segundo dizem, esto os Tartsios; a seu lado esto os Iberos. Mais acima dessas paragens esto os Beribraces. Mais abaixo, seguindo pelo mar, esto os ligures e as cidades Gregas, povoadas por Foceus de Massalia; a primeira Emporion e a segunda Rode. Essa foi fundada pelos Rdios que j tiveram um grande poder naval. 70

    Tal fragmento possui relao com o fragmento anterior, j que tambm atribui o povoamento de Emporion aos colonos de Massalia, reiterando a informao de que estes so originrios da Focia (Massaliotai phoocaeis apooikisan). Ainda esse autor classifica Emporion e Rosas como pleis helenides, de uma forma genrica. No h um intuito de

    70 Texto em grego, traduzido para o espanhol, encontrado em ALMAGRO BASCH, M. Las fuentes escritas

    referentes a Ampurias. Barcelona: Instituto de Pre historia Mediterrnea y la Seccin de Arqueologa del Instituto Diego Velzquez, 1951.(Monografias Ampuritanas, I). p.26. A traduo do espanhol para o portugus nossa.

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    determinar a situao poltica de Emporion, nem mesmo o tipo de relao que havia com Massala, alm do fato j mencionado de que foram os habitantes desta ltima, que fundaram Emporion.

    As referncias mais significativas a Emporion podem ser encontradas na obra Geografia, do gegrafo grego Estrabo71, escrita no sculo I a.C. Apesar de estarem contidas em um breve relato, trazem informaes vitais sobre a histria do estabelecimento. Estrabo72 definia Emporion como Massalioton ktsma, ou seja, fundao massaliota (outro fragmento que atribui a Massala a criao de Emporion). O termo ktsma tambm aparece na obra Ethnica, escrita pelo gegrafo greco-bizantino Estevo de Bizncio, que viveu no sculo IV d.C.73:

    pi/, pi/ / , / =.

    Emporion, cidade cltica, fundao dos massaliotas.

    De acordo com P. Rouillard74, o termo ktsma seria utilizado para indicar a origem dos habitantes do estabelecimento, no implicando em nenhum termo de determinao de categoria poltica do local. Por exemplo, em uma passagem sobre Cartago Nova, Estrabo75 a nomeia ktsma Asdrbal, ou seja, fundada ou criada por Asdrbal.

    H uma referncia organizao poltica de Emporion, quando Estrabo a caracteriza como dipolis; assim caracterizada, por estar dividia em duas pleis, separando por uma muralha os foceu-massaliotas dos nativos locais, que este autor, por sua vez, nomeia de indigetes:

    71 Texto em grego, traduzido para o espanhol, encontrado em ALMAGRO BASCH, M. Las fuentes escritas

    referentes a Ampurias. Barcelona: Instituto de Pre historia Mediterrnea y la Seccin de Arqueologa del Instituto Diego Velzquez, 1951.(Monografias Ampuritanas, I). p.77. A traduo do espanhol para o portugus nossa. 72

    Geografia, III, 4,8. 73

    Texto em grego, traduzido para o espanhol, encontrado em ALMAGRO BASCH, M. Las fuentes escritas referentes a Ampurias. Barcelona: Instituto de Pre historia Mediterrnea y la Seccin de Arqueologa del Instituto Diego Velzquez, 1951.(Monografias Ampuritanas, I). p.92. A traduo do espanhol para o portugus nossa. 74

    ROUILLARD, P. LEmporion chez Strabon. In: BRESSON, A . et ROILLARD, P. (org.) LEmporion. Paris: Diffusion De Boccard, Publications du Centre Pierre Paris 26(URA991), 1993. pp. 35-46. p.42. 75

    Geografia, III, 4, 6.

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    ...[Emporion] /pi / ) / /, pi/ ...

    ... [Emporion] A cidade forma uma cidade dupla, dividida por um muro,...

    Estrabo completa a passagem ressaltando que, quando as comunidades grega e indigete se uniram, viviam sob uma polteuma mikton, mistura de normas gregas e brbaras. Retomando a discusso levantada por Fernandez-Nieto76, este no acredita que tal termo utilizado por Estrabo implicasse uma autonomia de Emporion, que levasse constituio de uma constituio estatal prpria, mas sim a existncia em sua poca de duas comunidades polticas que no excluiriam o estatuto de Emporion como aliada ou submetida, da mesma forma que as demais colnias massaliotas. Dominguez-Monedero77 contesta a colocao de Fernandez-Nieto, afirmando que tal idia de submisso de Emporion Massala poderia at ter ocorrido, mas no nos moldes de Nicaia, por exemplo. Tal fato pode ter ocorrido no Perodo Arcaico (sculos VII VI a.C.), quando a comunidade poltica ainda no havia se constitudo; mas j no Perodo Helenstico (sculos III II a.C.), tal comunidade poltica j estaria integrada em um sistema mais amplo.

    Outras referncias sobre Emporion so encontradas na obra Histria de Roma, de Tito Lvio78:

    ... et deinde Pyrenaei circumvectus promunturium Emporiis, urbe Graeca oriundi et ipsi a Phocaea sunt copias exposuit...

    76 FERNNDEZ NIETO. op. cit. p. 566.

    77 DOMINGUEZ, A.J. "La ciudad griega de Emporion y su organizacin poltica". AEA, 59, 1986. p.5.

    78 Texto em latim, traduzido para o espanhol, encontrado em ALMAGRO BASCH, M. Las fuentes escritas

    referentes a Ampurias. Barcelona: Instituto de Pre historia Mediterrnea y la Seccin de Arqueologa del Instituto Diego Velzquez, 1951.(Monografias Ampuritanas, I). p.88. A traduo do espanhol para o portugus nossa.

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    ... dobrou o promontrio dos Pirineus e desembarcou suas tropas em Emporion, cidade grega, habitada por descendentes da Focia...

    No excerto acima, o autor classifica Emporion como uma urbe Graeca, ou seja, uma cidade grega, oriundi et ipsi a Phocaea sunt, de origem e habitada por descendentes de foceus. Neste fragmento no h a vinculao da criao desta cidade pelos massaliotas. Tal informao, no entanto, apresentada em outra passagem da mesma obra:

    Iam tunc Emporiae duo oppida erant muro divisa. Unum Graeci habebant, a Phocaea, unde Massilienses, oriundi,..

    ... Habitavam em uma os gregos, originrios da Focia, como os massaliotas...

    O fragmento acima tambm apresenta a populao emporitana como descendentes de Massala. No entanto, nada menciona sobre a relao entre os dois estabelecimentos. Na mesma passagem, porm, encontraremos outros dados que, apesar de no esclarecerem sobre a relao de dependncia ou no de Emporion em relao Massala, apresentam algo sobre a organizao poltica de Emporion:

    ... Tertium genus Romani coloni ab divo Caesare post devictos Pompei lberos, adiecti. Nunc in corpus unum confusi omnes Hispanis prius, postremo et Graecis in civitatem Romanam adsciti...

    ...Emporiae recebeu, ademais, uma colnia romana, que o divino Csar estabeleceu depois de vencer aos filhos de Pompeo.Estes trs povos se confundem hoje em dia em um s. Primeiro os hispanos, depois os gregos, chegaram a ser cidados romanos...

    Em primeiro lugar, devemos esclarecer a meno do termo Emporiae, utilizado por Lvio para nomear a cidade.

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    Em 218 a.C., tropas romanas sob o comando de Cneo Cornlio Cipio desembarcaram no porto de Emporion para fazer frente ao expansionismo cartagins na Pennsula Ibrica. A partir de ento Emporion seria a porta de entrada para a romanizao peninsular. Desde 197 a.C., quando as tropas comandadas por Cato desembarcam em Emporion, os romanos construram um acampamento militar permanente junto a Neaplis, demonstrando interesse em controlar definitivamente essas terras, at porque, o domnio poltico, militar e econmico sobre o territrio circundante, asseguraria a manuteno das rotas comerciais entre a Itlia e a Pennsula Ibrica, sobre as quais os foceu-massaliotas desfrutavam de posio privilegiada. Esse estabelecimento constituiria, mais tarde, a base para a construo de uma nova cidade. Tal acampamento militar tornou Emporion um tipo de cidade federada romana, formalmente autnoma, mas com algum tipo de pacto de ajuda militar aos romanos, ou de permisso para que as tropas destes se assentassem em seu territrio79.

    A criao de uma nova cidade, no comeo do sculo I a.C. comportou, precisamente, o desmantelamento de grande parte desse acampamento, acarretando uma efetiva romanizao desta rea80. Nesse contexto, h a criao, junto a Neaplis, de uma cidade de planta nova, configurada de acordo com as linhas que at ento caracterizavam as fundaes urbanas impulsionadas por Roma na Pennsula Itlica. A partir desse momento a Emporion grega, que englobaria tanto a Palaia Plis quanto a Neaplis, sobreviveria apenas como um bairro porturio, favorecido pela vitalidade do comrcio itlico no Mediterrneo Ocidental.

    Na metade do sculo I a.C., a partir do testemunho de Tito Lvio, temos notcia do assentamento na cidade, por parte de Jlio Csar, de um contingente de soldados veteranos, licenciados do exrcito e que havia combatido contra as tropas rebeldes comandadas pelos filhos de Pompeu, derrotadas na batalha de Munda em 45 a.C. Este feito foi a origem de uma srie de transformaes fundamentais que pouco tempo depois se cristalizariam em uma nova realidade jurdico-poltica: a criao do municipium Emporiae e o direito de cidadania romana aos seus habitantes. Com essa nova condio, a cidade se integra dentro de uma nova poltica de reorganizao do territrio provincial, terminada em grande parte durante o principado de Augusto (27 a.C. 14 d.C.). Destarte, h a unio de dois ncleos ento diferenciados: o antigo

    79 MANGA MANJARRS, J. Aldeia e ciudad en la Antigedad hispnica. Madrid: Alianza, 1996. p.35.

    80 AQUILU, X., CASTANYER, P., SANTOS, M., TREMOLEDA, J. Guas del Museu d'Arqueologia de

    Catalunya. Barcelona: Museu de Arqueologa de Catalunya, 2000. pp.64-74

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    estabelecimento grego, que agora perde sua relativa independncia enquanto cidade federada; e a cidade romana criada alguns decnios antes.

    No momento em que Tito Lvio escreve, j existe o municipium Emporiae, por isso ele no usa o nome grego, Emporion. Na poca em que o municipium Emporiae formalizado, aparecem as moedas com a legenda EMPORIAE, desaparecendo as anteriores (referentes ao sculo III a.C.) de legenda UNDISCECEN e EMPORITON, o que talvez indicaria a oficializao do nome Emporiae para a poca cesariana. Conseqentemente, o uso de tal nome para retratar uma poca posterior foi um anacronismo de Lvio.

    Alis, as menes realidade poltica emporitana que nos interessam no versam sobre a presena romana na regio, mas sim sobre a presena grega. E apesar do fragmento trabalhado ser referente ao momento do desembarque de M. Prcio Cato, censor romano, em Emporion (197 a.C.), h nesta passagem diferentes planos temporais. No entanto, para o presente trabalho, utilizaremos o plano temporal que ressaltava a situao de Emporion antes do desembarque de Cato:

    ...Partem muri versam in agros egregie munitam habebant, uma tantum in eam regionem porta imposita, cuius adsiduus custos sempler aliquis ex magistratibus erat. Nocte pars tertia civium in muris excubabat; neque moris causa tantum aut legis, sed quanta si hostis ad portas esset et servabant viglias et circumibant cura...

    ...A disciplina era a salvaguarda de sua debilidade, pois o temor, entre outras coisas, a mantinha muito bem. A parte da muralha que dava a terra firme estava bem fortificada e somente tinha uma porta; um magistrado guardava aquela entrada, sem poder abandonar seu posto nem um s momento. Durante a noite, um tero dos cidados vigiavm as muralhas; e nem por costume e nem por respeito lei, deixava de se valer de sentinelas, sendo que vigilavam com tanto cuidado como se o inimigo estivesse s portas...

    Da passagem de Lvio, deduz-se a existncia de um magistratis e a existncia de cives, cidados que constituam o demos. H outras evidncias escritas sobre palavras bem prximas

    ao termo demos, para o caso emporitano. Por exemplo, o termo , que pode ser uma abreviao de demosion ou demosia, encontrado em alguns fragmentos de ladrilho, ou mesmo

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    tijolo, encontrados na rea da Neaplis81. De acordo com A.Balil82 tais objetos pertenciam a uma fbrica de ladrilhos que pertenceria ao aparelho estatal emporitano.

    H uma meno ao termo pi/, referindo-se aos habitantes de Emporion, em uma carta comercial escrita em chumbo, encontrada em Amprias, datada do perodo entre o final do sculo VI e incio do sculo V a.C. O emprego de tal termo, ao nosso ver, tambm apoiaria o fato de que Emporion, na virada do sculo V a.C., j existiria como comunidade autnoma de Massala.

    Voltemos, ento, questo do carter de plis de Emporion, levantada quando mencionamos o texto de Estrabo.

    Para Aristteles83, uma plis era um conjunto de cidados o suficiente, para viver em autarquia. Em Emporion, existiam cidados, desta forma existia uma estrutura poltica, e at uma autarquia possvel. Seria, assim, Emporion uma plis? Em caso afirmativo, sua condio de plis atestaria sua independncia de Massala; ou Emporion poderia ser uma plis, e ao mesmo tempo ser dependente de Massala? Qual o tipo de relao entre Emporion e Massala: poltica, econmica ou ambas? Apenas as fontes escritas so capazes de nos responder tais questes?

    A passagem de Lvio menciona um magistrado que vigiava permanentemente o nico porto da muralha, o qual dividia os recintos grego e nativo. Da podemos dizer que havia um magistrado cuja funo bsica era defender e controlar o acesso cidade. Este poderia ter alguma outra atividade, como por exemplo, de superviso de estruturas ou edifcios pblicos, se levarmos em conta que nas cidades pequenas era inevitvel que muitos cargos sejam reunidos em uma s mo84 a qual, evidentemente, no est se referindo inexistncia de outros magistrados, dada a complexidade da estrutura de governo indispensvel para uma plis85. O magistrado era um funcionrio pblico, o que implica na necessidade de uma organizao burocrtica em Emporion. Porm, ainda nos impossibilita saber sobre qual seria o regime de governo emporitano, pois sabemos que no mundo grego a possibilidade de

    81 ALMAGO, M. Las inscripciones ampuritanas griegas, ibricas y latinas. Barcelona:1952. pp.46-47.

    82 BALIL, A. Uma empresa monopolista em Emporion: la fabricacin de ladrillos. VII CNA, Barcelone 1960,

    pp.46-47. 83

    Poltica, III, 1; 1275b, 20-21. 84

    Aristteles. Poltica, IV, 12, 1299 b, 1-4. 85

    Aristteles. Poltica, VI, 5; 1321 b- 1323 a.

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    elegibilidade dos cargos pblicos no estava to ligado a um tipo ou outro de governo. Atualmente, os cargos elegveis tm que ver com Estados que vivem em regimes democrticos, o que no era uma realidade para a Antiguidade grega.

    Tambm foi mencionado que um tero dos cidados era encarregado da segurana noturna da cidade, no fazendo nenhuma aluso a um exrcito profissional. A Neaplis emporitana tinha uma superfcie de 3,6 Ha. Ou seja, tinha dimenses reduzidas, logo um nmero baixo de cidados. Tambm j falamos do carter comercial desse estabelecimento. Deste modo, relacionando tais informaes ao fragmento de Lvio, podemos deduzir que, talvez, o sistema de segurana emporitano dependesse dos mesmos cidados que desempenhavam as atividades comerciais. Alm disso, retomando a questo das magistraturas em Emporion, fica pendente o real conhecimento sobre a organizao poltica desse estabelecimento. Para o caso de Massala, por exemplo, Estrabo86 fala detalhadamente sobre como estava organizado o seu governo oligrquico, com o poder nas mos de 600 indivduos, chamados timouchi, pertencentes ao grupo mais importante da cidade. Tal nome aparece em outras cidades gregas como Lebedos, Mileto, Erythrai, Thasos, Snope, Naukratis87, etc. Ainda que em cada uma delas tal termo possa ter um significado distinto. Os timouchi teriam a tim ou honra, alem de serem, ou pelo menos se proclamarem, os descendentes dos fundadores da colnia. Evidentemente, at pelo nmero reduzido de cidados, no havia a menor possibilidade de Emporion seguir o quadro massaliota. Alm disso, sabemos que para o contexto trabalhado, o comrcio no era uma funo nobre, e que geralmente, enquanto que atividades polticas eram as mais nobres, desempenhadas por uma aristocracia. O caso de Massala no era exceo. E quanto a Emporion? Uma cidade de tamanho reduzido, de carter comercial e com poucos cidados que deveriam desempenhar tanto as funes pblicas quanto as militares. Lvio menciona que as obrigaes de segurana eram desempenhadas tanto pelo costume, quanto pela lei, o que nos faz supor a possibilidade de haver um tipo de leis normativas em Emporion, embora nada tenha chegado at ns. Desta forma, levantaremos mais uma questo: a simples meno a existncia de uma lei significaria ou no a independncia emporitana de Massala?

    86 Geografia, IV, 1, 5.

    87 L. Robert, Notes de pigraphie hellnistique, BCH, LII, 1928, pp. 165-168.

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    Em Justino88 consta o fato de que havia uma tradio em Massala, na qual se tomavam medidas que consistiam em fechar as portas nos dias de festa, fazer patrulha durante a noite, colocar sentinelas nas muralhas, submeter inspeo os estrangeiros e vigiar tudo, mantendo a cidade em estado de guerra. Assim, vemos que o costume de deixar a cidade em estado de alerta era praticado em Massala tambm.

    E se Emporion tivesse uma constituio prpria, quem desempenharia as principais funes pblicas? Haveria uma aristocracia em Emporion, ou os prprios cidados-comerciantes controlariam o governo da cidade? Na opinio de Dominguez-Monedero89, Emporion apresentava um sistema democrtico baseado no governo dos cidados, sujeitos lei, que se regulava por meio de magistrados. Estes participariam, pelo simples fato de serem cidados, nos trabalhos defensivos, sem haver uma excessiva profissionalizao tanto poltica quanto militar. Este autor caracterizou Emporion como uma democracia das classes mdias, que obtinham seus recursos fundamentalmente da atividade comercial, baseando-se tanto em uma anlise das fontes escritas, como em vestgios materiais: o tamanho reduzido e a simplicidade da rede urbana emporitana, alm de uma anlise dos enterramentos emporitanos, que segundo a sua viso no pareciam demonstrar grandes indcios de diferenciao social. Da mesma forma que o autor, tambm nos utilizaremos um estudo da organizao do assentamento emporitano e de suas necrpoles, para tentarmos resolver as questes propostas. No entanto, no apostamos nas mesmas concluses deste.

    A prpria questo da cidadania emporitana pelo menos para o perodo pr-romano - problemtica, j que nos faz refletir sobre quem seria cidado em um estabelecimento constantemente visitado por indivduos de todas as partes do mundo grego, sem mencionarmos o fato da discusso historiogrfica sobre a presena de nativos no permetro amuralhado da cidade.

    Retomaremos, assim, a questo da dpolis mencionada em Estrabo90. Lvio tambm caracteriza Emporion como uma cidade dupla, onde os gregos eram separados dos nativos por uma muralha, sendo o recinto nativo bem maior que o grego:

    88 XLIII, 4.

    89 DOMINGUEZ, A.J. "La ciudad griega de Emporion y su organizacin poltica". AEA, 59, 1986. p.11.

    90 Geografia, III, 4, 8.

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    Iam tunc Emporiae duo oppida erant muro divisa. Unum Graeci habebant, a Phocaea, unde Massilienses, oriundi,alterum Hispani. Sed Graecum oppidum in mar expositum totum orbem muri minus quadringentos passus patentem habebat, Hispanis retractior a mari trium milium passuum in circuito murus erat...

    ... Naquela poca Emporiae se compunha de duas cidades separadas por uma muralha. Habitavam em uma os gregos, originrios da Focia, como os massaliotas; na outra, os hispanos. Porm a cidade grega, que se estendia at o mar, estava envolta por uma muralha circular de menos de 400 passos; a cidade hispana, mais afastada da praia, estava rodeada por uma muralha de 3.000 passos...

    Outro autor que caracteriza Emporion91 como uma cidade dupla Plnio, o Antigo, em sua Histria Natural92:

    ... Emporiae, geminum hoc veterum incolarum et Graecorum, qui Phocaesium fuere soboles...

    ... Emporiae, esta geminada com os antigos nativos e com os gregos, que descendem dos foceus...

    Conforme as informaes acima, verificamos que apesar da maioria dos autores apontarem para Emporion como um lugar de carter duplo, devido coabitao entre colonos e nativos, apenas Tito Lvio e Estrabo pormenorizam os detalhes das relaes entre as duas sociedades.

    Um primeiro olhar em ambos os fragmentos indica contradio entre o discurso dos autores. Enquanto Estrabo fala de um tipo de interao que levaria a uma integrao, ou a um sinecismo, de uma maneira pacfica. Tito Lvio aponta para uma situao de desconfiana mtua, onde as duas sociedades ocupavam espaos bem demarcados. Este ltimo justificou a

    91 Plnio tambm utiliozou o termo Emporiae, como Tito Lvio. Apesar da denominao Emporiae ser legtima

    para a poca na qual a Histria Natural foi escrita, sculo I d.C., Plnio, como Tito Lvio, tambm equivovou-se ao empregar Emporiae, j que, referia-se a realidade anterior chegada dos romanos. Assim como Estrabo, Plnio no mencionou a presena romana no local, apesar de ter utilizado a denominao romana. 92

    Texto em latim, traduzido para o espanhol, encontrado em ALMAGRO BASCH, M. Las fuentes escritas referentes a Ampurias. Barcelona: Instituto de Pre historia Mediterrnea y la Seccin de Arqueologa del Instituto Diego Velzquez, 1951.(Monografias Ampuritanas, I). p.88. A traduo do espanhol para o portugus nossa.

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    convivncia entre gregos e nativos devido aos interesses comerciais, fazendo com que as duas sociedades convivessem, mas em um clima de desconfiana mtua.

    Lvio escreveu sobre um contexto em que havia muitas insurreies de nativos em mbito peninsular, o que pode ter relao com o fato de, poca, ter ocorrido uma coabitao menos amistosa entre gregos e nativos. Alm disso, concordamos com Dominguez-Monedero93, segundo o qual em uma situao de hostilidade permanente, concebvel a existncia de relaes comerciais. No entanto, como este mesmo autor comenta, em uma situao de guerra declarada, a existncia das atividades comerciais torna-se mais difcil.

    No temos certeza se a descrio de Tito Lvio est correta, mas sabemos que a Neaplis estava cercada por uma muralha bem fortificada, que sofreu alteraes para melhorar o sistema de segurana. Tal fato j denunciou a necessidade de proteo em um territrio hostil. Afinal de contas, a Pennsula Ibrica, na Antigidade, caracterizava-se por um territrio ocupado por uma variada gama de populaes, que lutavam constantemente entre si, apesar de ser um local de intensa atividade comercial. No entanto, no havia a impossibilidade de pequenas alianas locais, at para a sobrevivncia dessas populaes. Assim, para podermos realmente verificar o tipo de relao entre gregos e nativos em territrio emporitano, necessitamos c