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-UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARABA CENTRO DE EDUCAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA E INTERCULTURALIDADE MESTRADO EM LITERATURA E INTERCULTURALIDADE

ANA CAROLINA SOUZA DA SILVA

PALAVRA, VOZ E IMAGEM: A REPRESENTAO FEMININA EM MAFALDA, DE QUINO

CAMPINA GRANDE - PB 2011

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ANA CAROLINA SOUZA DA SILVA

PALAVRA, VOZ E IMAGEM: A REPRESENTAO FEMININA EM MAFALDA, DE QUINO

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraba, rea de concentrao Literatura e Estudos Interculturais, na linha de pesquisa Estudos Socioculturais pela Literatura, em cumprimento exigncia parcial para obteno do grau de mestre.

Orientadora: Prof. Dra. Rosngela Maria Soares de Queiroz.

CAMPINA GRANDE 2011

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expressamente proibida a comercializao deste documento, tanto na sua forma impressa como eletrnica. Sua reproduo total ou parcial permitida exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, desde que na reproduo figure a identificao do autor, ttulo, instituio e ano da dissertao.

FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL UEPB S586p Silva, Ana Carolina Souza da. Palavra, voz e imagem [manuscrito]: a representao feminina em Mafalda, de Quino / Ana Carolina Souza da Silva 2011. 123 f. : il. color. Digitado. Dissertao (Mestrado em Literatura e Interculturalidade) Universidade Estadual da Paraba, Pr-Reitoria de Ps-Graduao, 2011. Orientao: Profa. Dra. Rosngela Maria Soares de Queiroz., Departamento de Letras.

1. Anlise literria. 2. Identidade feminina. 3. Histrias em quadrinhos. I. Ttulo.

21. ed. CDD 801.95

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ANA CAROLINA SOUZA DA SILVA

PALAVRA, VOZ E IMAGEM: A REPRESENTAO FEMININA EM MAFALDA, DE QUINO

Aprovada em ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________ Prof Dra. Rosngela Maria Soares de Queiroz (UEPB) Orientadora

__________________________________________________ Prof. Dr. Sbastien Joachin (UEPB) Examinador Membro Interno

_________________________________________________ Prof. Dra. Marta Maria Nbrega (UFCG) Examinadora Membro Externo

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Ao amor manifesto de trs maneiras na minha vida: Minha me, Maria Santana Souza da Silva (in Memorian), chama infinita de ternura e sabedoria na minha vida. Minha filha, Mariana, expresso maior de carinho. Jeferson, companheiro leal nas minhas andanas. Dedico.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por toda fora e coragem necessria vida. minha me, pelo exemplo de mulher, pelo carinho e sabedoria. Nunca esquecerei. Ao meu pai, que do alto de sua ilusria indiferena sei que se orgulha de mim. Aos meus irmos, Renan, Jnior e Larissa, pedacinhos de mim, pelo apoio, carinho e compreenso. A Jeferson, por entender minhas ausncias, pelo carinho dedicado e o amor paciente. Mariana, meu pequenino raio de sol, por todos os sorrisos e encantos de seu primeiro ano de vida que embalaram essa escrita. Aos meus amigos, Fbio Rolim, Ranieri Mello, Silvana Neves, Marlia Vras, Cristina Borges, Michelle Rocha, pelos abraos e palavras fundamentais a essa caminhada. Lcia Monteiro, companheira de viagem e amiga estimada, pelos conselhos valiosos que contriburam para essa escrita e para a formao de minha humanitas. A Rodrigo Vieira, por todas as sugestes bem-vindas ao meu trabalho. Maria Gorette, querida amiga, por todos os incentivos, mais uma herana valiosa da turma de mestrado. Ktia Flix e ris Barreto, sem a compreenso de vocs esse sonho estaria mais distante. Rosngela Queiroz, minha estimada orientadora, pelas possibilidades de dilogo, por acreditar no meu potencial e por se dispor a me auxiliar nessa rdua tarefa. professora Rosngela Melo, pela bondade infinita e o apoio fundamental nos momentos decisivos da minha vida acadmica. Aos meus colegas de mestrado, Zuilla, rica, Fabrcia, Severino (Lep), Andrea, Flvio, Rodrigo Apolinrio, Juviniano, Anna Giovanna, Ediliane, Carlos, Luciana, Josenildo, Weber, Leandro, Raquel, Rafael, Danielle, Ana Paula, pela partilha das angstias e do conhecimento. Aos professores Luciano Justino e Marta Nbrega pelas contribuies significativas a esse trabalho quando da qualificao.

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Ao corpo docente do MLI, em especial, os professores Sebastien Joachim, Geralda Nbrega, Rosilda Bezerra e Eli Brando, pela colaborao mais direta e indispensvel para a escrita dessa dissertao. professora Ivone Lucena, responsvel por me cativar ao mundo foucaultiano, pela predisposio para a leitura dessa pesquisa e pelo acolhimento pessoal e intelectual.

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RESUMO O sculo XX inaugurou um perodo de rupturas e profundas transformaes nas relaes entre as geraes e na constituio das identidades dos sujeitos, em especial o feminino. Reflexos dessas mudanas so percebidos nas manifestaes da linguagem que so um amplo campo de conhecimento no que diz respeito formao humana e atravs dela que observamos de maneira mais latente o processo de subjetivao e constituio do ser. Sob essa tica, essa dissertao elege como corpus de pesquisa as histrias em quadrinhos de Mafalda, de Quino, visto que essa narrativa traz a escrita, o som e a imagem numa nica e plural linguagem (verbo-sonora-visual) e, portanto, recupera de modo mais evidente as representaes dos sujeitos e do sistema cultural. Nesse contexto, analisamos nas histrias em quadrinhos de Mafalda os dilogos travados entre tal personagem e outras femininas como sua me e Susanita, tendo como foco a primeira. Alm da palavra, contemplada em nossa anlise a representao dos sons, as imagens e os demais elementos da narrativa grfica que colaboram na construo de sentidos. Essas anlises objetivam avaliar como os questionamentos dos antigos valores e as inquietaes do mundo de Mafalda se confrontam ao do mundo representado por sua me (e Susanita) e contribuem para a formao/firmao da identidade feminina da infante. Para a anlise do feminino representado na narrativa, resgatamos os conceitos de identidade, de Hall, Bauman, Zinani e de representao, de Chartier, dentre outros tericos. Alm disso, as imagens bem como a escrita so analisadas a partir dos fundamentos sobre a linguagem, de Bakthin e de Vygotsky e da teoria de uma linguagem prpria dos quadrinhos proposta por McCloud, Eisner, Ramos, Cirne. Por se tratar de uma linguagem mltipla, contaremos com o auxlio de alguns conceitos da Semitica e da Anlise do Discurso de modo a reconstruir o sistema cultural e ideolgico representado nessas histrias. Diante do corpus escolhido, pudemos analisar como as representaes femininas foram caracterizadas, a partir dos discursos sobre a identidade e seus papis sociais. Nesse tentame, construmos leituras que nos permitiram interpretar como os quadrinhos trazem, atravs de sua linguagem caracterstica, referentes culturais correspondentes as formas de pensar, comportar, ser e agir e subsidiam relaes densas e complexas da formao e interao humana.

Palavras-chave: Mafalda. Identidade feminina. Literatura e histrias em quadrinhos. Imaginrio cultural. Anlise do discurso.

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RESUMEN El siglo XX inaugur un perodo de trastornos y cambios profundos en las relaciones entre generaciones y la constitucin de las identidades de los individuos, especialmente en las mujeres. Reflexiones de estos cambios se perciben en el lenguaje que son un amplio campo de conocimiento con respecto al desarrollo humano ya travs de ella podemos ver ms imgenes del proceso y la constitucin de la subjetividad. Bajo este punto de vista, esta tesis se elige como un corpus, las historietas de Mafalda, de Quino, ya que esta historia lleva la imagen, el sonido y por escrito en un idioma y plural (verbo-auditivo-visual) y, por lo tanto, se recupera representaciones ms evidentes de los sujetos y el sistema cultural. En este contexto, se discute en las tiras cmicas de Mafalda los dilogos entre esta personaje y otras mujeres como su madre y Susanita, con un enfoque en primer lugar. Adems de la palabra est incluido en nuestro anlisis de la representacin de sonidos, imgenes y otros elementos grficos de la narracin que colaboran en la construccin del significado. Estas pruebas tienen por objeto evaluar la forma en que el cuestionamiento de los viejos valores y preocupaciones del mundo de Mafalda en el mundo representado por su madre (y Susanita) y contribuir a la formacin / confirmacin de la identidad de la mujer. Para el anlisis de la representacin en la narrativa, que rescat a los conceptos de identidad, Hall, Bauman, Zinani y representacin de Chartier, entre otros tericos. Por otra parte, las imgenes y la escritura son analizados desde los conceptos bsicos del lenguaje, la teora de Bakthin y Vygotsky y un lenguaje propio del cmic propuesto por McCloud, Eisner, Ramos, Cirne. Debido a que es un lenguaje mltiple, contar con la ayuda de la Semitica y Anlisis del Discurso con el fin de reconstruir el sistema cultural e ideolgico representado en estas historias. Teniendo en cuenta el corpus elegido, se analiza cmo las representaciones de las mujeres se han caracterizado, desde el discurso sobre la identidad y sus representaciones sociales. En ello se pretende, que la construccin de lecturas que nos permite interpretar cmo llevar los cmics, atravs de su lenguaje caracterstico, las referencias culturales correspondientes formas de pensar, de actuar y ser y subvencionar las relaciones denso y complejo de la formacin y la interaccin humana. Palabras Clave: Mafalda. La identidad femenina. La literatura y los comics. El cultural imaginrio. El Anlisis del discurso.

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LISTA DE FIGURASFigura 01 -................................................................................................................ Figura 02 - ............................................................................................................... Figura 03 - Mafalda.................................................................................................. Figura 04 - Felipe..................................................................................................... Figura 05 - Manolito................................................................................................. Figura 06 - Susanita................................................................................................ Figura 07 - Miguelito................................................................................................ Figura 08 - Guille..................................................................................................... Figura 09 - Libertad................................................................................................. Figura 10 - Pais de Mafalda..................................................................................... Figura 11 - ............................................................................................................... Figura 12 - ............................................................................................................... Figura 13 - ............................................................................................................... Figura 14 - ............................................................................................................... Figura 15 - ............................................................................................................... Figura 16 - ............................................................................................................... Figura 17 - ............................................................................................................... Figura 18 - ............................................................................................................... Figura 19 - ............................................................................................................... Figura 20 - ............................................................................................................... Figura 21 - ............................................................................................................... Figura 22 - ............................................................................................................... Figura 23 - ............................................................................................................... Figura 24 - ............................................................................................................... Figura 25 - ............................................................................................................... Figura 26 - ............................................................................................................... Figura 27 - ............................................................................................................... Figura 28 - ............................................................................................................... 20 50 52 54 54 54 55 55 56 56 61 62 62 63 66 67 79 82 84 87 89 92 95 98 100 103 105 106

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SUMRIO

INTRODUO

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CAPTULO I 1 EM BUSCA DE SI: POR UMA IDENTIDADE FEMININA.............................. 1.1 A NOVA PERCEPO SOBRE A IDENTIDADE CULTURAL DO SUJEITO............................................................................................................ 1.2 A (DES) CONSTRUO DE UMA IDENTIDADE FEMININA...................... 1.3 A PRIMEIRA E SEGUNDA ONDA: O DESPERTAR DO FEMINISMO NA ARGENTINA...................................................................................................... 1.4 O PROCESSO DE SUBJETIVAO E A REPRESENTAO DO SUJEITO NAS NARRATIVAS GRFICAS........................................................ 31 29 18 22 18

CAPTULO II 2 COM A PALAVRA, A IMAGEM: POR UM ESTUDO DA LINGUAGEM DOS QUADRINHOS.......................................................................................... 2.1 LINGUAGEM, PODER E IDEOLOGIA NAS NARRATIVAS GRFICAS..... 2.2 CULTURA DE MASSA: O ESPAO DAS HISTRIAS EM 42 47 37 37

QUADRINHOS................................................................................................... 2.2.1 A literatura e as histrias em quadrinhos............................................. 2.3 SOBRE AS HISTRIAS EM QUADRINHOS DE MAFALDA, DE QUINO............................................................................................................... . 2.4 LEITURA E PERCEPO DE DOS QUADRINHOS: NAS ELEMENTOS NARRATIVAS

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CONSTITUINTES GRFICAS....................

SENTIDO

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CAPTULO III CONSTRUO DISCURSO DA IDENTIDADE EM DE MAFALDA: ANLISE DO 69

DUAS

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GERAES.................................................................. 3.1 O PODER DO DISCURSO E SUAS IMPLICAES NO PROCESSO DE SUBJETIVAO: ALGUMAS CONSIDERAES............................................ 3.2 MAFALDA: IMAGEM, IMAGINRIO E CRTICA NOS 75 78 69

QUADRINHOS................................................................................................... 3.2.1 Conflito entre geraes: entre a reproduo cultural e a vontade de saber............................................................................................................ 3.2.2 Constituindo identidades, afirmando diferenas: distncias

ideolgicas numa mesma gerao.................................................................

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CONSIDERAES FINAIS..............................................................................

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REFERNCIAS................................................................................................. .

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ANEXOS............................................................................................................

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INTRODUO

Um dos estudos sobre grupos humanos que tem tomado papel de destaque dentre as pesquisas interdisciplinares e interculturais sobre o gnero, particularmente, o feminino. Ao longo da histria da humanidade, as mulheres tiveram suas vozes silenciadas e poucos so os registros de sua identidade e histria. Como a linguagem uma fonte inesgotvel de conhecimento sobre a formao e a constituio humana e histrica, nela que encontramos reflexos desse processo de construo do ser mulher e nela que observaremos de maneira mais latente o rumo da formao de uma identidade feminina. O sculo XX, em plena modernidade, o contexto de produo de Mafalda, de Joaquim Lavado Salvador (Quino), e o momento em que surgem as histrias em quadrinhos atendendo s perspectivas histricas e culturais do momento, sendo a principal fonte dos grandes heris da comunicao visual. Como o consumo dos comics est relacionado a um grande pblico, caracterizando-se no que denominamos de cultura de massa, suas narrativas possibilitam que os seus criadores questionem as realidades contempladas e que esses questionamentos sejam absorvidos por um nmero maior de leitores. Desse modo, seus idealizadores podem construir crticas sobre os mltiplos discursos que constituem uma sociedade e a partir da sugerir que o leitor perceba tais situaes incentivando-o a formar uma opinio ou conduzindo-o at uma. Apesar dessa constatao, infelizmente ainda comum a ideia de que a leitura e a interpretao dos quadrinhos devem se restringir ao universo infantil ou simplesmente servir como mero entretenimento e esse pensamento acaba ofuscando obras fascinantes como a Mafalda, de Quino. Sem nenhuma dvida, a profundidade das questes abordadas pelo autor nas histrias em quadrinhos atravs dessa menina perspicaz - considerada por crticos como Umberto Eco enquanto questionadora e ainda herona enraivecida que recusa o mundo tal qual ele no pode ser relacionada a uma leitura de poucas significaes, a uma linguagem simples ou ainda a uma literatura menor. A discusso aqui proposta sobre a representao feminina no imaginrio da personagem Mafalda, do cartunista e desenhista Quino, alinha-se com a perspectiva desse mestrado porque repensa no somente o que se entende e se considera

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como produo literria como tambm reflete sobre o lugar do sujeito num momento de construo de uma nova identidade que fruto de um imaginrio cultural que emergia nessa sociedade ps-moderna. Alm disso, o gnero feminino, que sabemos ser socialmente marcado, vivia, quando da produo da obra, um momento singular de manifestao em prol de seus direitos e de mais espao para sua representao. Observando a narrativa dos quadrinhos do ponto de vista sociocultural, partimos do pressuposto que a materialidade discursiva da HQ histrica e, portanto, carrega e propaga marcas identitrias alm de revelar valores e referncias multiculturais expostas e contempladas tanto no contexto nacional quanto no internacional. Assim, a relevncia dessa temtica se explica pelo fato de as histrias em quadrinhos de Mafalda se constiturem enquanto bem cultural dotado de referncias sociais, culturais, histricas e discursivas. A partir dessa considerao inicial de que Mafalda e as demais personagens representam as vozes femininas e, consequentemente, refletem as construes do imaginrio cultural, os discursos e as imagens presentes nas narrativas se configuram enquanto nosso objeto de estudo, j que a partir da (re) construo de seus sentidos que respondemos a seguinte questo norteadora de nossa pesquisa: como se d a representao da voz e da identidade feminina refletidas no imaginrio de Mafalda, de Quino? Posto a problemtica, estabelecemos as seguintes hipteses para realizao desse estudo: 1. As histrias em quadrinhos, assim como outras manifestaes da linguagem, recuperam e refletem em suas imagens, sons e escrita a memria sciocultural individual e coletiva de um dado contexto histrico. 2. Quino resgata os valores e os espaos sociais da mulher permitindo em suas tiras o dilogo1 e o confronto de ideologias entre representaes femininas diferentes. 3. A partir dos discursos velados e expostos, as histrias em quadrinhos de Mafalda veiculam ideologias, formas de pensar e agir que contribuem para a formao de sua identidade feminina. Tendo como ponto de partida essas hipteses de trabalho, elegemos como corpus os livros Toda Mafalda e Mafalda Indita, de Quino, que renem

Utilizaremos o conceito de dilogo que o considera como o momento de interao sociocomunicacional entre duas ou mais pessoas em que se produz algum efeito de sentido, seja o dilogo caracterizado atravs de gestos, silncios, silenciamentos, palavras, expresses ou outras formas de manifestao dialgica.

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conjuntamente todas as publicaes com essa personagem. O recorte para anlise (12 tiras) foi realizado levando-se em considerao a relao interdiscursiva entre imagem e escrita, buscando eleger quais atendiam mais significativamente ao objetivo geral de nosso trabalho em observar as formas das representaes femininas. Por tudo isso, foi ainda objetivo nessa pesquisa entender como os quadrinhos foram institudos socialmente e culturalmente alm de buscar ressignificar o seu espao dentro das produes e das prticas de linguagem e das artes. Procuramos tambm analisar os discursos e as imagens em Mafalda buscando (re)conhecer como a voz feminina (des)vela sua identidade cultural no contexto ps-moderno. Para tanto, o foco desse estudo incidiu sobre os dilogos das personagens femininas supramencionadas observando a inter-comunicao entre som, imagem e escrita na busca de uma compreenso de como os elementos culturais so recuperados no seu imaginrio. Essa dissertao desenvolve-se, organizados da seguinte forma: No primeiro captulo de nossa pesquisa, Em busca de si: por uma identidade feminina, contextualizamos o surgimento da ps-modernidade, da nova percepo sobre a identidade cultural do sujeito, do aparecimento de uma nova identidade cultural feminina. Alm disso, fez-se necessrio uma breve ilustrao da situao da mulher ao longo da histria, em especial na Argentina, lcus da produo da obra. Tambm procuramos compreender como e por que o grupo das mulheres, na psmodernidade, surge em manifestaes por seus direitos, questiona antigos valores e busca ganhar espao na sociedade a fim de expressar suas inquietaes acerca da mesma. Para fomentar as discusses sobre a questo da identidade, recorremos s teorias de Hall, Bauman, Zinani, Butler, Louro, dentre outros tericos. Em um ltimo momento, analisamos o processo de subjetivao do sujeito e sua respectiva representao nas narrativas aliando as duas concepes a subjetivao e a representao em prol de uma aproximao conceitual que atente para a revelao do sujeito feminino na linguagem em Mafalda. No segundo captulo, Com a palavra, a imagem: por um estudo da linguagem dos quadrinhos, ocorre uma verticalizao sobre a ordem, a estrutura, a linguagem prpria e a tcnica de produo das narrativas grficas e seus efeitos de sentido. A fim de iniciar uma discusso sobre as relaes entre linguagem, poder e ideologia ento, em trs distintos captulos,

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nos quadrinhos e complementar noo de sujeito construdo no e pelo discurso, resgatamos alguns conceitos essenciais da Anlise do Discurso e da Teoria da Linguagem, principalmente atravs de Foucault, Althusser, Bakthin e Vygotsky. Em conseqncia dessa abordagem dos quadrinhos, foi fundamental relatar questes referentes cultura de massa e sua relao com estas narrativas e, ainda neste contexto, tecemos alguns comentrios a respeito da ligao entre a Literatura e as Histrias em Quadrinhos. Ainda nesse captulo ocorre um debruamento sob o corpus, versando as caractersticas da obra e as principais crticas tecidas a respeito da mesma, alm de conter algumas consideraes pertinentes e recuperadas em posterior anlise. Em alguns momentos dessa escrita, se tornou essencial recorrer a alguns conceitos da Semitica, em especial, quela que se atm s categorias universais de pensamento e experincia (primeridade, secundidade e terceridade). Abraamos, ento, a perspectiva que envolve desde as possibilidades de sentido (ndices e cones) at a representao do fenmeno pela conscincia e sua manifestao por meios de signos2 intelegveis (smbolo). Em se tratando da linguagem quadrinstica, essa tarefa ampla porque existe uma relao intensa e recproca entre os elementos constituintes, fazendo-se necessrio examinar como os aspectos inerentes ao seu discurso e sua imagem dialogam indo alm dos cdigos verbais e no-verbais primeiramente percebidos, criando uma linguagem que chamamos de verbo-sonora-visual. Concluda esta etapa, seguimos com o estudo dos elementos que complementam a anlise do corpus de nossa pesquisa com foco nos dilogos da personagem Mafalda e sua me e da primeira com sua amiga Susanita. Nesse ltimo captulo, Construo da identidade em Mafalda: Anlise do Discurso de duas Geraes, escolhemos como suporte terico indispensvel a teoria de Foucault, buscando analisar, interpretar e "desconstruir" o discurso e a imagem, em contedo e forma, considerando o contexto histrico-social de produo, o autor e o pblicoalvo, com o objetivo de (re)construir os seus mltiplos sentidos sobre a representao das identidades da mulher atravs da voz e do imaginrio de Mafalda e as demais personagens femininas. Alm disso, esse resgate terico dos conceitos

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Vale lembrar que nos quadrinhos, essas relaes do signo com o objeto que representa ocorrem com a evocao ou similitude de qualidades pela imagem, por indcios que a imagem pode representar e, ainda, pelos smbolos como bales, onomatopias, expresses, movimentos exagerados que funcionam como legi-signos etc.

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essenciais AD se fez necessrio visto que tomamos como pressuposto a ideia de que o discurso o instrumento que constri, sustenta, atualiza e impe veracidade s prticas e s representaes humanas de um dado lugar e uma dada poca. Partindo de todos esses pressupostos, num segundo momento deste ltimo captulo, concentramo-nos na anlise das 12 (doze) tiras que constituem nosso corpus, na tentativa de estabelecer como as relaes das personagens Mafalda, Susanita e sua me esto intimamente ligadas aos diferentes papis sociais femininos e s mltiplas vises sobre o ser mulher. As anlises dessas tiras realizaram-se levando em considerao a composio plstica de suas imagens que no incidem em apenas um quadrinho, mas em sua totalidade. Por fim, apontamos os elementos das falas e da imagem que atuam como reveladores e esconderijos de discursos, de ideologias, de formaes discursivas e ideolgicas de carter distintos e conflitantes em Mafalda. As contribuies desse estudo se firmaram pela possibilidade de estreitar a relao entre os sentidos e o sistema cultural, a representao e a palavra, a imagem, o som e a escrita, atravs dos discursos que se cruzam e dialogam nas histrias em quadrinhos. Alm disso, permitiu-nos a realizao de leituras plurais, resgatando e atualizando o j-dito e o no-dito sobre a representao feminina e o seu processo de subjetivao, a partir de uma linguagem normalmente excluda dos debates acadmicos.

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CAPTULO I

1 EM BUSCA DE SI: POR UMA IDENTIDADE FEMININA

Natureza da gente no cabe nenhuma (Guimares Rosa)

em

certeza

1.1 A NOVA PERCEPO SOBRE A IDENTIDADE CULTURAL DO SUJEITO

Quando a ps- modernidade se firma no cenrio mundial ocorre a quebra de velhos estigmas e um deles diz respeito noo de sujeito unificado e fixo. Alm da derrocada dessa concepo, outra ideia adjunta toma espao para novas discusses no mbito dos estudos culturais: a identidade do sujeito, em especial, o moderno. Em relao a esse sujeito, Hall (2006, p.9-10) estabelece dvidas sobre a existncia de fato do seu carter universal que o Iluminismo3 pregoava e acrescenta ainda que o sujeito ps-moderno apresenta mltiplas e inacabadas identidades que interagem com os sistemas culturais com os quais tem contato. Para Hall, novas identidades vm se constituindo em detrimento de velhas que deram sustentao por muito tempo ao mundo. Diante desse conceito de novas identidades e de sujeito fragmentado, a inexistncia de uma concepo nica sobre o indivduo provoca profundas transformaes nos estudos sobre os grupos sociais e culturais visto que o indivduo encarado como sujeito em constante busca por si, e por algo que o defina, o estabelea, por um sentimento de pertencimento. A identidade torna-se um problema ainda mais importante em um contexto onde as identidades no se referem apenas a grupos fechados ou apenas a identidades tnicas, raciais. quando ganham tambm caractersticas da individualidade e carregam consigo o sentimento de (no) pertencimento queles grupos; a partir de ento, os estudos sociais e/ou culturais tambm precisa ser revistos e atualizados. Em uma sociedade instvel, num mundo de risco (BECK, 2003), submerso numa modernidade lquida (BAUMAN, 2001) as identidades tambm se tornam

Hall apresenta esse sujeito como pessoa unificada, estvel, centrada e fixa. O sujeito ainda detinha a razo e nascia com uma identidade pr-fixada e imutvel.

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imprecisas e, desse modo, no so somente determinadas por grupos mas tambm por marcas de individualidade, deixando de ser a base de equilbrio do mundo social. Hall (2006) discute os efeitos da globalizao sobre as populaes na modernidade tardia, assegurando que no existe pureza nas culturas; antes, traduo4 e hibridismo5. Assim, as identidades tambm tornam-se hbridas e perdem a significao de vnculo ou pertencimento local e isso significa que alm do carter coletivo so transformadas tambm em uma atividade pessoal, em um processo de construo e busca incessante e infindvel por si; e no apenas numa atribuio/identificao coletiva que implicava apenas certa conformao s normas sociais e aos discursos dominantes. Sobre essa procura por uma identidade, um pertencimento do indivduo, Bauman diz quequando a identidade perde as ncoras sociais que a faziam parecer natural, predeterminada e inegocivel, a identificao se torna cada vez mais importante para os indivduos que buscam desesperadamente um ns a que possam pedir acesso. (2005, p.30).

Dessa forma, a busca e a afirmao de identidade perpassam por questes como sobre quem pertence ou no a determinados grupos cuja identidade considerada fixa e imutvel. Ainda sobre a noo de identidade, Bauman (2005) afirma que essa concepo foi profundamente abalada pela crise do estado de bemestar social j que a sociedade ps-moderna tornou fluidas, mveis e incertas as identidades sociais, culturais e sexuais, sendo a ps-modernidade marcada pela liquidez de termos como comunidade, pertencimento e identidade6. Qualquer tentativa de tornarem essas identidades fixas ou imutveis foi fracassada e todas as identidades assumidas ou impostas so constantemente modificadas, renovadas, transformadas e liquefeitas nessa perspectiva ps-moderna. Em Mafalda muito comum o sentimento de pertencimento a um grupo fixo e imutvel, ou seja, apesar de a obra situar-se em um perodo de mudanas de todas4

Por traduo cultural entende-se o processo de adaptao de costumes, crenas, valores pertencentes a uma sociedade por uma outra. 5 Entendemos por hibridismo a interpenetrao, o sincretismo das formas culturais de sociedades distintas. 6 BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi/ Zygmunt Bauman. Traduo Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

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essas concepes, o conceito de identidade ainda era quase que totalmente relacionado coletividade, aos grupos sociais. O processo de identificao relacionado a um grupo implicava na adeso aos seus discursos e suas normas sociais. No seu caso em especfico, predominava dois tipos de pertencimento: um diz respeito ao grupo feminino emergente, formado de mulheres vidas por mudanas sociais e culturais e representados pela voz de Mafalda; j o grupo representado pela sua me e Susanita o da categoria de mulheres submissas e silenciadas. No tocante obra, constatamos essa freqncia de representao de categorias definidas e estveis, mas em algumas tiras as mais recentes datadas dos anos 1972 e 73 - j se torna perceptvel a liquidez das identidades e a representao fluida dos indivduos, principalmente na representao de sua me que comea a aparecer cansada das atividades domsticas - que antes a definiam no grupo das mulheres submissas e sem voz - e torna-se reflexiva sobre os rumos que sua vida tomou:

Figura 01: Quino, Toda Mafalda: Martins Fontes, 2006, p.89 .

Ainda sobre o processo de edificao da identidade temos que as relaes estabelecidas durante a vida influenciam e corroboram para a construo dos valores e das identidades, o contexto social, poltico, cultural e econmico possuem essa mesma fora motriz de criao e modelao. A globalizao e consequente modernizao fomenta as discusses sobre a identidade do sujeito que ressignificam as relaes de gnero a partir das mudanas nas funes exercidas pelos homens e pelas mulheres nos mais diversos mbitos. E, a partir da, a concepo do homem sobre o mundo altera-se com as inovaes simblicas, onde a(s) linguagem(ns) ocupa(m) lugar central no pensamento e nas aes dos sujeitos, j que na e pela linguagem que o homem se constri e se projeta no mundo,

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permitindo que se mostre e se esconda, se perca e se encontre. Obviamente com os papis sociais no so diferentes, tambm so transmitidos atravs dessa mesma linguagem e essa transmisso ocorre em moldes antigos, impregnados de aspectos ideolgicos, que se portam enquanto razes justificveis relao de dominao e desigualdade que subsiste entre os sexos (BADINTER, 1992 apud BERNARDO, 1996, p. 30). O ser humano no pode ser considerado como o nico responsvel pela construo de sua prpria identidade e de sua realidade, pelo fato de j ingressarem na estrutura social com modelos pr-determinados dos papis sociais e de gnero. O desenvolvimento dos papis de gnero e de identidade so socialmente construdos e aprendidos desde o nascimento, com base nas relaes sociais e culturais que se estabelecem a partir dos primeiros meses de vida, especialmente no mbito familiar. Sobre essa edificao da identidade, o antroplogo Roberto Da Matta aponta quede todos os seres vivos, o homem o nico que tem a obrigao de fazer-se a si mesmo, de construir-se, de constantemente perguntar quem , e qual o sentido da sua vida. [...] O homem tem de lutar pela vida, como todos os outros seres vivos, mas s pode realizar essa luta se sabe quem : se tem identidade. Os animais no mudam [...]. Mas ns, humanos, vivemos a nossa sociedade e o nosso tempo. Somos acima de tudo maleveis[...]. Por isso, precisamos de valores que nos definam e nos orientem. [...] todos os homens tm uma identidade que recebem dos diversos grupos em que vivem. E cada sociedade busca fora e, sobretudo, dentro de si mesma, (na sua fantasia, nos seus mitos e ritos, crenas e valores) as fontes de sua identidade. (1996, p. 104)

Desse modo, a formao da identidade do ser humano ocorrer mediante as vivncias em determinado espao e tempo alm de ser influenciada pelas trocas culturais com o meio e com as pessoas que convivem com o indivduo sendo, portanto, vulnerveis mudana. As identidades so delineadas, como um conjunto de valores, atitudes e crenas que dentro de um espao-tempo delimitado nos fazser ou, ainda, como o resultado da relao de uma dinmica cultural ao qual pertence aquele integrante da sociedade com seus processos de interao e sociabilidade. Cada sociedade, ento, atravs de seu imaginrio cultural percebido nas mais variadas formas de representao signcas -, estabelece uma complexa rede de informaes que so resgatadas pelos indivduos na medida em que se relacionam e constituem suas formas identitrias.

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Ciente do processo de formao do indivduo, em especial da criana, e das contribuies que o meio social, observemos a representao desse processo principalmente no tocante ao indivduo feminino, percebidas na linguagem, onde encontramos mais evidentemente os reflexos da formao e constituio humana.

1.2 A (DES) CONSTRUO DE UMA IDENTIDADE FEMININANo me venha falar da malcia de toda mulher. Cada um sabe a dor e a delcia de ser o que ... (Caetano Veloso)

As histrias em quadrinhos enquanto manifestao de uma linguagem especfica tambm reflete as questes de gnero que por sua vez traduzem-se em imagens, em representaes elaboradas a partir das experincias e dos discursos percebidos e traduzidos pela subjetividade do escritor/autor. O discurso imposto o patriarcal enraizador de uma ideologia dominante que limita e cria mitos sobre a identidade feminina, ideologia essa impregnada de inventivas e reprodues do feminino escondendo uma escrita masculina sobre as mulheres, j que ao longo da histria da humanidade, as mulheres tiveram suas vozes silenciadas e poucos so os registros sobre sua identidade e histria. A narrativa das mulheres por elas mesmas recente e ainda velada para crtica feminista que apresenta modalidades distintas para o estudo da figura feminina: a mulher enquanto leitora (crtica ideolgica) e a mulher como escritora, a ginocrtica. A primeira modalidade de crtica diz respeito aos textos que veiculam imagens e esteretipos da mulher na literatura e a segunda abordagem consiste na investigao dos aspectos pertinentes produo literria feminina de fato. (SCHOWALTER, 1994, p.24) No nosso caso, a pesquisa desenvolvida se denomina se enquadra na crtica ideolgica por ser nossa abordagem dedicada ao estudo de imagens/esteretipos femininos (Mafalda e sua me, Susanita) percebidos numa escrita de autoria masculina (Joaquin Lavado Salvador). A anlise da situao social e cultural feminina ganha importncia quando se verifica como ela v o outro, como ela vista por si mesma ou pelo grupo dominante, nesse caso os homens. Como ocorre normalmente com as minorias, na maior parte da histria da humanidade, a mulher

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sempre teve sua voz silenciada e manifesta quase que somente pela escrita masculina. O registro quase sempre foi feito indicando a forma como ela era percebida pelo outro, prismada por um olhar de quem vinha de uma cultura dominante. Dessa forma, quando tentamos resgatar uma histria da mulher ou ainda quando tentamos precisar uma identidade feminina encontramos apenas discursos constituintes de suas imagens que apenas arranham a realidade. Schmidt apud Zinani (2006, p.30) afirma queA identidade se organiza nas prticas discursivas subjetivas e tem na memria, mas do que um repositrio de conhecimentos e lembranas, um elemento cognitivo imprescindvel para a formao da identidade. No momento em que a mulher se apropria da narrativa, externando seu ponto de vista, passa a questionar as formas institucionalizadas, promovendo uma reflexo sobre a histria silenciada e instituindo um espao de resistncia contra as formas simblicas de representao por meio da criao de novas formas representacionais. Dessa maneira, as mulheres promovem uma ruptura com a tradio da cultura patriarcal, por meio da utilizao de um discurso do qual emerge um novo sujeito com outras concepes sobre si mesmo e sobre o mundo.

De certo modo, apesar de a escrita na histria da humanidade predominantemente ser de autoria masculina, a mulher representada naquela acaba no s aceitando a condio imposta como tambm reproduzindo os

comportamentos e valores diludos no discurso veiculado. Por isso, mesmo nos casos de uma escrita masculina no podemos excluir a funo primordial da mulher leitora que ora incorpora quelas imagens ora as rejeita. Esses esteretipos sexistas e os modelos sociais impostos mulher so aspectos antigos, que estiveram presentes ao longo da histria e permanecem ainda no contexto social atual. No somente a mulher enquanto indivduo como tambm a categoria mulheres recebeu do grupo dominante imagens, caractersticas e representaes que silenciaram vontades e impuseram modelos de comportamento e pensamento. De acordo com Denise Riley,

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A categoria mulheres histrica e discursivamente construda, sempre em relao a outras categorias que tambm se modificam; mulheres uma coletividade voltil na qual os seres femininos podem estar posicionados de formas bastante diferentes, de modo que no se pode confiar na aparente continuidade do sujeito mulheres; mulheres, como coletividade, uma categoria sincrnica e diacronicamente errante, enquanto que, a nvel individual, ser mulher tambm algo inconstante, que no consegue oferecer uma base ontolgica. Ainda assim, deve ser destacado que essas instabilidades da categoria so o sine qua non do feminismo, que de outra forma se perderia por um objeto, ficando despojado de lutas e, em resumo, sem muita vida. (1988, p.2-3)

Em concomitncia com a ideia de Riley sobre a imagem constituda da categoria mulheres, Perrot (2008) afirma queDe maneira geral, quando as mulheres aparecem no espao pblico, os observadores ficam desconcertados; eles as vem em massa ou em grupo, o que, alis, corresponde quase sempre ao seu modo de interveno coletiva: manifestam-se na qualidade de mes, de donas de casa, de guardis dos vveres etc. Usam-se esteretipos para design-las e qualific-las. (p.21)

Assim no s a identidade feminina construda ao longo do tempo como tambm a categoria mulheres, enquanto grupo social, tambm historicamente construda e percebida. perceptvel a dificuldade de se atribuir um sentido nico, ou ainda, um nico conjunto de caractersticas para uma identidade que se possa denominar de feminina. O ser mulher assim como o ser humano abrange uma srie de questionamentos e reflexes que vo muito alm das atividades coletivas, afinal todo ser nico e marcado pela diferena. Mais do que a prpria ausncia, a diferena que contribui mais diretamente com o projeto poltico do feminismo ao analisar as questes referentes s distines sociais marcadas pela assimetria entre masculino e feminino. Ento, tendo em vista essas consideraes sobre o silenciamento das mulheres e sua representao pelo homem, como chegar a uma s concepo e a uma s identidade feminina? Vejamos, de incio, uma breve abordagem histrica de modo a compreender como a viso sobre a figura feminina foi compreendida e construda pelas mais diversas sociedades. Tomamos como referncia para os fatos histricos abaixo mencionados a leitura de Minha histria das mulheres (2008), de

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Michele Perrot e as entrevistas7 de Isabelle Anchieta sobre as quatro imagens de mulheres e sua tese de doutoramento na USP O poder das imagens na construo do feminino: de Deusa mulher real e interativa. Segundo Perrot (2000), um dos povos que mais exerceu influncia sobre a cultura ocidental foi o hebreu. Uma dessas contribuies ocorreu justamente sobre o julgamento de valor a respeito das mulheres, j que para essa civilizao, as mulheres eram culturalmente consideradas seres inferiores. Em contrapartida, na Europa Antiga, particularmente na regio da Grcia, cujos valores tambm foram expressamente agregados pelos ocidentais, as mulheres no realizavam nenhum trabalho produtivo e por esse motivo eram valorizadas e respeitadas, apesar de no terem nenhuma participao poltica na vida da plis. Em Roma, outro plo cultural da antiguidade, no perodo da decadncia do Imprio, a mulher passa a ter uma vida social mais ativa quando comea a freqentar teatros, circos e fruns alm de visitar as bruxas que prediziam o futuro. A mulher passa a ser temida por agregar a si uma imagem de conhecedora de poderes sobrenaturais (menstruao e reproduo) e suas prticas so atreladas s feitiarias, magia. Na literatura latina, por exemplo, temos na obra O Asno de Ouro, de Lucius Apuleio a imagem feminina dessa mulher temida que a Panflia, conhecida feiticeira que acaba transformando o personagem Lcio em um asno. Conforme Isabelle Anchieta, o temor a essas mulheres materializa-se, mais tarde, nas figuras de Pandora e Eva por serem consideradas responsveis de levar o mal ao mundo. Com a origem e propagao do cristianismo, surge tambm a moral crist que em sua essncia foi responsvel junto com o Islamismo por certa melhoria na vida daquelas mulheres que possuam papis institudos pelos homens. Porm, com as sucessivas guerras, algumas de motivo religioso, houve um enrijecimento e a dogmatizao das interpretaes dos preceitos religiosos que aprisionaram no s o corpo das mulheres, mas todos os seus sentimentos que so emanados na fraternidade e igualdade entre os homens. Assim, a mulher foi elevada categoria de me. a fase de uma segunda mulher em que a mesma rompe com a anterior diabolizao de sua imagem e torna-se o foco contemplativo da beleza, a figura feminina marcada pela idealizao.

7 ANCHIETA, Isabelle. A quarta mulher. Disponvel em: http://quartamulher.blogspot.com/ . Acesso em 22/12/2010.

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Na Idade Mdia, mulheres ultrapassaram os limites impostos pela sociedade patriarcal, chegando a exercer os direitos de senhores feudais quando vivas e tutoras de filhos menores, tornando-se responsveis pela extenso de seus domnios. Porm, no geral, a vida da grande maioria continuava ainda sendo restrita submisso e sujeio ao poder masculino. Quando o sculo XVIII chegou, o glamour das cortes europias remeteu s mulheres da nobreza um forte desejo de repensarem sua posio de meras figurantes e participarem do jogo do poder com seus homens e os alegrar elevando seus egos masculinos. Apesar da estratgia interessante de desenvolver espritos alegres e tornar as noites europias mais atraentes, essas nobres desprezavam as mulheres pertencentes s classes dominadas. A mulher continuava sem se reconhecer e sem ser reconhecida enquanto uma nica classe ou categoria social. O advento da Revoluo Burguesa da Frana (1789) pareceu o momento adequado para a luta do reconhecimento dos direitos das mulheres. Os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade permeavam o imaginrio feminino. Apesar da participao efetiva da mulher neste cenrio da Frana Revolucionria, o seu direito de ser considerada cidad foi negado quando foram proibidas de desempenharem papis na vida pblica. Na segunda metade do sculo XIX, houve a publicao do Manifesto Comunista e o conseqente desenvolvimento do socialismo. Para Marx e Engels, a ideia da libertao da mulher no era considerada enquanto uma luta individual mas sim representativa de uma coletividade, os oprimidos, independentemente do grupo menor a que pertenciam. O Feminismo foi um substrato que fermentou a luta poltica das mulheres e considerado pelos seus seguidores como uma prtica de vida. O termo em si foi impregnado um sculo depois durante um movimento sufragista na Inglaterra e nos Estados Unidos que reivindicava os direitos civis da mulher, como o voto. Para Tomaz Tadeu da Silva as anlises feministas mais recentes enfatizam, de forma crescente, que o mundo social est feito de acordo com os interesses e as formas masculinas de pensamento e conhecimento. (1999, p.93) As dcadas de 60 e 70 apresentaram uma diversidade considervel de conflitos sociais, e alguns grupos sociais, denominados minorias comearam a buscar o direito igualdade, especialmente vivido e percebido por homens de uma classe privilegiada. E um desses grupos que iniciaram uma manifestao bastante

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incisiva, quase que em sintonia no mundo todo, foi o das mulheres, que j possuam alguns direitos como o do voto, mas que deveriam, ainda, conformarem-se com o papel de dona de casa e me dedicada. (ARAJO, 2003). Para Guacira Lopes Louroj se tornou lugar comum referir-se ao ano de 1968 como um marco da rebeldia e da contestao. A referncia til para assinalar, de uma forma muito concreta, a manifestao coletiva da insatisfao e do protesto que j vinham sendo gestados h algum tempo. Frana, Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha so locais especialmente notveis para observarmos intelectuais, estudantes, negros, mulheres, jovens, enfim, diferentes grupos que, de muitos modos, expressam sua inconformidade e desencanto em relao aos tradicionais arranjos sociais e polticos, s grandes teorias universais, ao vazio formalismo acadmico, discriminao, segregao e ao silenciamento. (2001, p.15-6)

A mulher at ento era representada como um indivduo que aceitava com certa resignao o servio domstico, no intuito de conquistar um bom casamento, de ter e cuidar bem dos filhos, assim como agradar o seu marido, seguindo o padro cultural mais comum nesse perodo. Essa insatisfao por sua representao leva crtica ideolgica proposta por Schowalter quando a mulher ocupa o papel de leitora e resiste imagem que a simboliza, propondo novas leituras, novas escritas, assumindo uma nova postura diante dos discursos circulantes que edificaram sua identidade e ditaram comportamentos por muito tempo. Ainda na dcada de 60, foi lanado o livro A mstica da feminilidade, de Betty Fridman (1963), que trata da condio da mulher enquanto indivduo privado de expressar seus desejos numa sociedade industrial cheia de contradies, onde ela executa o seu papel de dona-de-casa sem contestao e vende seu trabalho num esforo de permanecer como mantenedora do seu lar. Em meio a essas

discusses as histrias em quadrinhos de Mafalda surgem dando voz a essas duas representaes femininas, uma ainda presa a essa mulher idealizada como me e esposa dedicada s atividades domsticas (Raquel, a me da personagem) e a outra, a prpria Mafalda que seria essa terceira mulher que surge envolta a um universo feminino e tenta escapar do discurso patriarcalista sobre suas identidades e prticas buscando uma voz prpria.

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Toda a revoluo cultural ocorrida na dcada de 60 colocava em xeque as velhas estruturas tradicionais e impulsionava o aparecimento de novas estruturas mentais. o momento de uma revolta coletiva desencadeada que envolveu camadas da sociedade at ento marginalizadas tanto dos pases desenvolvidos como das naes ditas de Terceiro Mundo. O movimento estudantil, o movimento jovem e o feminino estriam num palco de lutas por espaos e transformaes que no finalizaram, mas que abriram possibilidades de novos questionamentos e de novos valores, verdades e contraste de saberes entre grupos diferentes. Diante desse novo contexto que se abre, surge a quarta mulher quandoPela primeira vez, no sculo XXI, a mulher passa a ter um papel mais ativo na construo de sua imagem social. Agora ela que prope sua imagem (via pesquisas de opinio), j que at ento as mulheres no representavam a si prprias, eram representadas (DUBY p.14, 1992). Essa mulher passa a negar os modelos unitrios de beleza e de comportamento (especialmente o padro associado a magreza e a juventude eterna) alm da crtica da ideia de multifunes eficientes (me, esposa, profissional). Uma mulher mais preocupada com a vida do que com o corpo, afrouxando as cobranas sociais, as representaes e os esteretipos e que pode, enfim, estabelecer uma relao original com a experincia e com um homem. (ANCHIETA, 2009)

Diante dessas escassas aparies, mulher resta pouco vestgios sobre uma histria coletiva feminina e esta quase restrita aos papis sociais impostos pelos discursos e imagens construdas pelo homem. Ou seja, sobre a mulher apenas a viso limitada pela ideologia dominante presentes desde o discurso letrado, o popular como tambm o potico. Sobre a imagem construda mulher nessas pocas antigas, Franoise Frontisi-Ducrox (1998) apud Perrot (2008) diz que praticamente impossvel alcanar o olhar das mulheres, pois elas so a construo do imaginrio do homem.

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1.3 A PRIMEIRA E SEGUNDA ONDA: O DESPERTAR DO FEMINISMO NA ARGENTINA

Nos finais do sculo XIX e comeo do sculo XX, o movimento feminista foi protagonista de rupturas e profundas transformaes nas relaes de gnero em todo o mundo. Alm de ter fomentado essas mudanas, Hall (2006) apresenta o feminismo como um dos cinco eventos responsveis pelo descentramento do sujeito universal estabelecido pelo Iluminismo e que culminou nas identidades flexveis, abertas, contraditrias, inacabadas e fragmentadas do sujeito ps-moderno. Dentre outros grupos, o feminismo, bem como, os movimentos juvenis contraculturais e antibelicistas integralizaram os denominados novos movimentos sociais que emergiram durante os anos de 1960 em todo o mundo e que se opunham aos sistemas de regime vigentes. Mais especificamente na Amrica do Sul, o feminismo foi idealizador de uma reviravolta na funo histrica da mulher e de sua participao na sociedade. Esse movimento esteve presente ativamente desde a luta pelo sufrgio universal at as reivindicaes por polticas pblicas que enxergassem a mulher como integrante da populao economicamente ativa. O movimento conhecido ento por sufragismo passou a ser sinnimo da primeira onda do feminismo e seus objetivos[...] mais imediatos (eventualmente acrescidos de reivindicaes ligadas organizao da famlia, oportunidade de estudo ou acesso a determinadas profisses) estavam, sem dvida, ligados ao interesse das mulheres brancas de classe mdia, e o alcance dessas metas (embora circunscrito a alguns pases) foi seguido de uma certa acomodao do movimento. (LOURO, 2001, p.15)

Na Argentina, palco de produo de nossa obra, o despertar feminista da primeira metade do sculo XX veio acompanhado do anarquismo e socialismo que produziram com seus entrecruzamentos os primeiros projetos de lei vinculados proteo infantil e s mulheres no trabalho. So dessa poca, tambm, os primeiros projetos de lei relativos ao voto feminino (1919, apresentado pelo deputado Radical Rogelio Araya) e ao divrcio (1902). No caso da vinculao dos movimentos anarquista e feminista seu estreitamento se deu principalmente no que concerne aos princpios antipatriarcais e a favor da liberdade das mulheres com relao ao seu

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corpo e ao controle da natalidade. Nesse perodo, emergiram no cenrio argentino os primeiros congressos de feministas a favor da igualdade dos direitos civis e polticos. Barrancos (2007) assinala que durante o perodo em que Pern esteve frente ao poder as mulheres tiveram pela primeira vez a participao poltica no governo e uma entrada bastante expressiva no mundo laboral. Entretanto, os valores peronistas relacionados s mulheres eram muito conservadores e paradoxais. Para reforar o argumento de contrariedade de governo peronista, a autora comenta a postura de Eva Pern que, por um lado, reivindicava o lugar das mulheres no lar, junto aos seus filhos e marido, e, por outro, solicitava apoio poltico para difundir o peronismo, enviando-as pelo interior da Argentina e afastando-as de suas famlias. Por um lado, as associaes femininas conquistaram em 1947 a aprovao do voto para as mulheres e a reformulao do Cdigo Civil. Entretanto, o projeto de divrcio foi rejeitado. A imagem das mulheres refletida em Eva Pern era a de esposa submetida autoridade do homem e a de me por excelncia e natureza. A segunda onda aparece, j no final da dcada de 60, como desdobramento dos movimentos j iniciados e traz, alm das preocupaes sociais e polticas, as construes tericas como foco nos debates, em especial o conceito de gnero (LOURO, 2001). O processo de subjetivao feminino somente ocorre com a ruptura com o modelo pr-estabelecido e a incorporao de novos aspectos. No final da dcada de 70 o movimento feminista perde fora e segundo Noberto Bobbio:[...] com o surgimento da crise econmica e do debate acerca da violncia e do terrorismo, o Feminismo, um movimento pacifista, parece atravessar, desde 1977, um momento de crise, sendo difcil prever sua futura evoluo. Os elementos que haviam determinado seu desenvolvimento, a falta de organizao, a carncia de posies, se revelaram incapazes de lhe assegurar a permanncia num perodo de graves crises. (1997, p.506).

Lembramos, contudo, que o fim do movimento no estabeleceu o fim da nova identidade construda pela e para a mulher. O feminismo invocou novas formas subjetivas de representao no universo macropoltico e os caminhos sociais antes traados comeam a ser abandonados ningum mais define o que as mulheres devem ser. A partir de ento, a mulher passa a construir uma identidade exclusiva, de pessoa independente, cidad crtica e atuante e ser humano dotado de desejos e

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vontades, surge uma nova conscincia do ser mulher manifesta em mltiplas identidades. Esse tipo de conscincia e indagao so apontadas por Morais (1988, p.69) como freqentes na contemporaneidade onde o homem nunca contou com tanta informao sobre si mesmo, contudo nunca se viu to incapaz de compreender a si mesmo. Reside aqui a importncia desse estudo sobre essa nova identidade feminina pois apesar de em Mafalda se perceber a representao de identidades femininas fixas, sua escrita ocorre num perodo turbulento, de ruptura, de descoberta e de transio do fixo ao indeterminado, da terceira a uma quarta mulher. Concluindo esse breve percurso da histria das mulheres no mundo e, mais localmente, na Argentina, acreditamos que inegavelmente, o feminismo foi um dos movimentos mais frutferos do sculo XX, sobretudo pelo fato de ter provocado mudanas significativas no comportamento da sociedade e da mulher. importante ainda frisar que essa construo de um novo paradigma se deu no somente por mrito do movimento feminista mas tambm pela relocao dos papis sociais adotados pela mulher quando forada por questes econmicas a assumir um outro espao tanto na esfera privada quanto na social.

1.4 O PROCESSO DE SUBJETIVAO E A REPRESENTAO DO SUJEITO NAS NARRATIVAS

Levando em considerao a firmao de um novo paradigma, observa-se que o estudo de uma obra que apresenta nuances feministas na composio dos seus discursos e de suas imagens fundamenta-se na necessidade de compreender e reconceituar a problemtica da formao da subjetividade feminina como uma produo discursiva circunscrita numa nova realidade (ps-modernidade), j que a representao fica comprometida devido a multiplicidade de discursos que acabam por operar deslocamentos no indivduo e na sua percepo sobre o mundo. Na verdade, essa perspectiva terica que adotamos traduz a concepo de que a linguagem provocada em dadas condies carrega os mais variados sentidos e valores, correspondendo s vises de mundo absorvidas pelo sujeito durante a aquisio e o uso da linguagem. Alm do que essa mesma linguagem produz efeitos

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de significao no sujeito que reformula suas convices e produes de sentido, sendo ao mesmo tempo processo e produto. O que significa dizer que o que falamos, escrevemos e produzimos passa, tambm, a ser fruto do meio: a produo dos textos tambm procede de um contexto scio-histrico, que nos define como sujeitos histricos dos enunciados e nos identifica. Como aponta HallAs identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado histrico com o qual elas continuariam a manter uma certa correspondncia. Elas tm a ver, entretanto, com a questo da utilizao dos recursos da histria, da linguagem e da cultura para a produo no daquilo que ns somos, mas daquilo no qual nos tornamos. (2006, p.109)

Resgatamos aqui essa concepo de sujeito histrico dos enunciados porque entendemos que a representao dessas identidades nas narrativas e o processo de subjetivao refletidos em sua linguagem so resultado de uma (re)construo de sentidos captados a partir do imaginrio cultural da poca de produo da obra em estudo. tambm Sendo dentro desse contexto de efervescncia social e poltica como de contestao e transformao que o movimento feminista

contemporneo ressurge, expressandose no apenas atravs dos grupos de conscientizao, marchas e protestos pblicos, mas tambm atravs de livros, jornais e revistas. (LOURO, 2001, p.16) Alm do que a identidade se organiza dentro de um sistema de significaes, da, portanto, sua relao com o campo simblico. Quando da produo, Quino refletiu nos quadrinhos de Mafalda representaes sociais e culturais,

particularizando o imaginrio e deixando marcas de sua subjetividade atravs de suas percepes e de como as traduziu pela linguagem. Conforme o mencionado, nesse tpico intentamos analisar questes relativas representao do sujeito nas narrativas e sua relao com o processo de subjetivao e conseqente formao de identidades. As personagens femininas em Mafalda, de Quino merecem ateno especial, porque por meio delas que se constituem discursos diferentes sobre o ser mulher e atravs delas que as mltiplas representaes femininas so sugeridas. fazendo uso dos dilogos e de alguns elementos grficos da narrativa quadrinstica que o autor revela discursos dominantes sobre as representaes femininas expondo suas crticas, pensamentos e percepes sobre a realidade.

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Inserido no ambiente fluido da modernidade tal qual propunha Bauman, cabe ao indivduo a tarefa de sua (re) inveno individual e coletiva, claro, condicionada s influncias das relaes de poder8:... a identificao tambm um fator poderoso na estratificao, uma de suas dimenses mais divisivas e fortemente diferenciadoras. Num dos plos da hierarquia global emergente esto aqueles que constituem e desarticulam as suas identidades mais ou menos prpria vontade [...] No outro plo se abarrotam aqueles que tiveram negado o acesso escolha da identidade, que no tm direito de manifestar suas preferncias e que no final se vem oprimidos por identidades aplicadas e impostas por outros [...] Identidades que estereotipam, humilham, desumanizam, estigmatizam... (BAUMAN, 2005, p.44)

Sobre essa constituio identitria do indivduo que trata o polons, existe a ideia de que este sujeito deveria buscar formas de se relacionar consigo mesmo e com o outro e atravs desse duplo processo seria (re)formada sua subjetivao. Foucault complementa essa noo dizendo:Deve-se entender, com isso, prticas refletidas e voluntrias atravs das quais os homens no somente se fixam regras de conduta, como tambm procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estticos e responda a certos critrios de estilo. (1984, p.15)

por via do processo de subjetivao que chegamos a esse conceito de sujeito ps - moderno que est sempre em formao, em busca de si, em busca do outro. Lembrando que, para o nosso corpus, os sujeitos ainda seguiam aqueles moldes pr-determinados, mas j havia nuances da percepo dessa mudana do olhar sobre o sujeito revelados no comportamento de Mafalda quando dialoga com a me sobre a possibilidade de trilhar o seu prprio destino e de realizar sobre suas prprias escolhas. Por isso, importante nesse momento traarmos brevemente algumas consideraes a respeito do conceito de representao defendido por Chartier, de modo a compreender como em lugares e momentos diferentes uma determinada realidade social construda, pensada e levada a entender. Tomando-se como exemplo a vida social, essa rea pode assumir a forma e o motivo em suas representaes na linguagem ficcional e podemos pens-las como anlise do8 As relaes entre linguagem, poder e ideologia sero tratados em um item especfico no segundo captulo desta dissertao.

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trabalho das classificaes e das excluses que incorporam as configuraes sociais e conceituais de um tempo ou de um espao. As representaes podem ser pensadas como [...] esquemas intelectuais, que criam as figuras graas s quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligvel e o espao ser decifrado (CHARTIER, 1998). Chartier nos possibilita ir do discurso ao fato, discutindo o conceito de fonte enquanto simples instrumento que permite o intermdio e o testemunho de uma realidade e levando em considerao as representaes como realidade de significaes mltiplas. Dessa forma, as representaes do mundo social, embora almejem uma universalidade, so sempre determinadas a partir dos interesses do grupo que as criam. Chartier incorporou grandes e diversas contribuies aos seus estudos. Entre essas contribuies, esto as categorias como habitus, encontrada nas teorias de Pierre Bordieu; os termos configurao e processo, contradas em Norbert Elias; o conceito de representao, resgatado de Louis Marin; e, ainda, as concepes controle da difuso e circulao do discurso, apreendidas em Michel Foucault; Paul Ricoeur e a produo do novo tendo como ponto de partida as contribuies existentes; e a apropriao e transformao cultural, proposto por Michel de Certeau. A partir desses conceitos utilizados pelo terico, possvel perceber que ele se preocupa com a forma atravs da qual os indivduos se apropriam de determinados conceitos e assim valorizam as mentalidades coletivas. Conceitos como os de utensilagem mental, viso de mundo e configurao tm importncia fundamental para o estabelecimento de um dilogo com as fontes. Dessa forma, as personagens Mafalda, sua me e Susanita assumem na obra as mentalidades coletivas pelas quais se identificam e so identificadas. Chartier ainda coloca que a representao um instrumento de conhecimento mediato que possibilita a percepo de um objeto ausente, por meio de sua substituio por uma imagem capaz de reconstituir em memria e de o conceber tal qual ele . Assim, a representao permite ver algo ausente, o que supe uma ntida distino entre o que representa e aquilo que de fato representado. Podemos considerar ainda a representao enquanto exposio de uma presena, a apresentao evidente de algo ou de algum. Desse modo, a relao de representao compreendida como conexo de uma imagem presente e de um

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objeto ausente, um valendo pelo outro. Esse terico atenta tambm para a diferena essencial entre representao e representado, ou seja, entre signo e significado. Isto , todas essas representaes possuem a finalidade de fazer com que a identidade do ser no seja outra coisa seno a aparncia da representao. Segundo Stadniky (s/d), o conceito de representao visto por Chartier como a pedra angular de uma abordagem da histria cultural, permitindo articular essas trs modalidades da relao com o mundo social. Em primeiro lugar, o trabalho de classificao e de delimitao que produz as configuraes intelectuais mltiplas, atravs das quais a realidade contraditoriamente construda pelos diferentes grupos. Chartier afirma ainda que as prticas visam o reconhecimento de uma identidade social, a exibio de uma maneira prpria de estar no mundo e ainda de significar simbolicamente um estatuto e uma posio. E sua terceira colocao diz respeito s formas institucionalizadas e objetivadas graas s quais uns representantes (instncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visvel e perpetuada a existncia do grupo, da classe ou da comunidade. Se a noo de representao considerada por Chartier a pedra angular da nova histria cultural, a de apropriao o centro de sua abordagem. Tal reformulao distanciase do sentido empregado por Michel Foucault (que pensava na apropriao como um confisco que colocava os discursos fora do alcance dos que os produziam), pois, Chartier afirma que a apropriao tal como entendemos tem por objetivo uma histria social das interpretaes, remetida s suas determinaes fundamentais, que so sociais, institucionais, culturais e inscritas nas prticas especficas que as produzem. Ao pensar em prticas culturais convm, antes de tudo, ter em vista que esta noo deve ser pensada no apenas em relao s instancias oficiais de produo cultural, mas tambm aos usos e costumes que caracterizam a sociedade in loco. Logo, para esse autor, so prticas culturais no apenas a feitura de um livro, uma tcnica artstica ou uma modalidade de ensino, mas tambm os modos como, em uma determinada sociedade, os homens falam, se calam, comem e bebem, sentam e andam, conversam ou discutem, morrem ou adoecem, solidarizam-se ou hostilizam-se, entre outros. Com relao histria cultural, esse terico afirma que preciso pens-la como a anlise do trabalho das representaes, isto , das classificaes e das excluses que constituem, na sua diferena abismal, as configuraes sociais e conceituais caractersticas de um tempo ou de um espao. Desse modo, as

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estruturas do mundo social no so um dado objetivo nem so as categorias intelectuais e psicolgicas: todas elas so historicamente produzidas pelas prticas articuladas (polticas, sociais, discursivas) que constroem suas figuras. So as demarcaes e esquemas que as modelam, que constituem o objeto de uma histria cultural levada a repensar integrantemente a relao tradicionalmente postulada entre o social, identificado com um real bem real, existindo por si prprio e as representaes supostas, como refletindo-o ou dele desviando. Da mesma forma, esta histria deve ser entendida como o estudo dos processos com os quais se constri um sentido. Da o reconhecimento das prticas de apropriao cultural como formas diferenciadas de interpretao. (STADNIKY, s/d) Nesse prximo captulo, aps apresentar o conceito de cultura de massa e relacion-lo s histrias em quadrinhos, teceremos consideraes sobre a relao entre as HQs e a literatura, com uma abordagem especfica sobre Mafalda, no intuito de nos aprofundar no conhecimento sobre a obra e a crtica produzida a seu respeito. Porm, nosso interesse primordial nesse captulo residir na investigao da estreita relao interdiscursiva entre palavra e imagem, por ser essa a responsvel pelas representaes tratadas aqui, utilizando para esse fim a prpria teoria sobre a linguagem quadrinstica e alguns conceitos da Semitica. Nesse propsito, tentaremos apontar que elementos participam e permitem o reconhecimento das histrias em quadrinhos enquanto suporte que veicula temas estruturantes, formadores, contestadores e constituintes da cultura de uma sociedade.

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CAPTULO II 2 COM A PALAVRA, A IMAGEM: POR UM ESTUDO DA LINGUAGEM DOS QUADRINHOSA imagem tem a opacidade do infinito. (Sartre)

2.1 LINGUAGEM, IDEOLOGIA E PODER NOS QUADRINHOS

Na vida cotidiana, a interao verbal possibilita uma realimentao e um desvelamento de ideologias. Bakhtin (1997) denomina esse conceito de ideologia do cotidiano e diz que ele permite a manifestao de ideologias ou sistemas ideolgicos cristalizados nas mais diversas prticas da linguagem, tais como atos, gestos ou palavras. Ampliando o alcance desse conceito tambm para as imagens9 e, particularmente, ao processo de subjetivao nos quadrinhos de Mafalda, mister um novo olhar sobre sua linguagem levando em considerao essa perspectiva dialgica bakhtiniana e as consideraes sobre a conscincia infantil de Vygotsky visto que a interao entre sistemas ideolgicos e ideologias do cotidiano possui participao efetiva na formao humana. Especialmente no que concerne pequena Mafalda, j que essa interao colabora de forma bastante incisiva com a sua formao identitria e discursiva e os signos ideolgicos percebidos em seus quadrinhos confrontam-se e reconstituem-se ao mesmo tempo em que sua formao desenvolvida. Souza (1994) compartilha dessa ideia na medida em que reconhece o valor da palavra como elemento revelador de uma realidade, de uma fantasia ou ainda de uma idealizao cujo grau de aproximao ou de distanciamento da mesma representada depender da linguagem apresentada:

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Compreendemos as imagens como uma possibilidade real e significativa de linguagem.

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Cada poca e cada grupo social tem seu repertrio de formas de discurso que funciona como um espelho que reflete e refrata o cotidiano. A palavra a revelao de um espao no qual os valores fundamentais de uma dada sociedade se explicitam e se confrontam. O texto da criana nos coloca frente a frente com o mundo tal qual idealizado por ns, quer seja nos seus aspectos perversos ou estigmatizantes quer seja na sua dimenso crtica e transformadora da ordem estabelecida. (Souza, 1994, p.120)

Dessa forma, compreendemos que ao ouvir/interpretar a voz de uma criana estabelecida uma oportunidade de reconstruirmos, a partir de seu ngulo, o imaginrio cultural do contexto scio-cultural em que est inserida ou ainda de ter acesso a um olhar crtico sobre nossa cultura. Essa perspectiva coloca a centralidade da constituio das ideologias, da revelao da conscincia do individuo ou de transformao da ordem na palavra e, ainda, aponta uma nova necessidade em se estudar o signo como um determinante nos sentidos refletidos/refratados da realidade. Sobre isso Bakthin (1997) diz queAs palavras so tecidas a partir de uma multido de fios ideolgicos e servem de trama a todas as relaes sociais em todos os domnios. portanto claro que a palavra sempre ser o indicador mais sensvel de todas as transformaes sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda no tomaram forma, que ainda no abriram caminho para sistemas ideolgicos estruturados e bem formados. A palavra o meio no qual se produzem lentas acumulaes quantitativas de mudanas que ainda no tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideolgica, que ainda no tiveram tempo de engedrar uma forma ideolgica nova e acabada. A palavra capaz de registrar as fases transitrias mais ntimas, mais efmeras das mudanas sociais. (p.41)

Quando o estudioso da linguagem aponta a palavra como indicador mais sensvel de todas as transformaes sociais entendemos mais ainda a importncia desse debruamento sobre as teorias da linguagem e da subjetivao para essa pesquisa. Mafalda uma obra que possibilita um complexo estudo sobre a identidade feminina suas faces, emergncia de novas formas em detrimento queda de antigos valores, uma transformao na forma de pensar e ser mulher que ultrapassa os limites do verbal alcanando outras manifestaes da linguagem (visual, sonora). Alm desse fator, a obra situa-se num contexto de transformaes sociais, culturais e polticas importantes que transformaram a forma de se ver e

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representar o mundo, ela registra o aparecimento e dissemina as novas ideologias que acompanham o movimento feminista, dentre outros. Visto essas consideraes iniciais sobre linguagem e ideologia e levando em considerao sua estreita relao com o processo da formao da subjetividade, exporemos alguns conceitos sobre a formao e a manifestao da conscincia, com especial ateno infncia, Para Vygotsky (1984), o desenvolvimento da conscincia infantil condiciona-se ao uso da linguagem e, assim, a internalizao de contedos e valores historicamente determinados e organizados no sistema cultural se daria, principalmente, por meio da linguagem. Estudar a constituio da conscincia na infncia uma tarefa complexa que vai alm do estudo do mundo interno por si s, uma atividade que busca resgatar o reflexo do mundo externo no mundo interno, isto , o resultado da interao da criana com a realidade. Estudar sua linguagem, ento, ter acesso aos referentes culturais internalizados em sua conscincia. As ideias desses dois estudiosos Vygotsky e Bakthin - centram-se no papel e valor da palavra na interao social, no resgate da memria mas divergem na medida em que o primeiro acredita que a palavra encerra a chave de compreenso da dialtica entre pensamento e linguagem e, por conseqncia, da construo da conscincia e da subjetividade; enquanto o segundo defende a teoria que a palavra extrapola o espao da formao da conscincia e atinge a constituio ideolgica. De um modo geral, entendemos que a anlise profunda e vertical sob a palavra enquanto signo social tal qual prope Bakthin e Vygotsky

fundamental para a compreenso no somente dos aspectos como constituio da conscincia, subjetivao, criao e formao ideolgica mas tambm das relaes de poder que incidem na palavra e a utiliza como meio de imposio/disseminao. Essa relao trade linguagem-ideologia-poder h muito vem sido observada pelos estudiosos das relaes humanas e acreditamos que a contribuio das teorizaes de Michel Foucault sobre os conceitos do discurso e poder vem fomentar o interior dessa pesquisa embora no lhe confira estabilidade, como bem indica a ordem foucaultiana. Conhecer como os discursos funcionam e estabelecem relaes de poder entender que verdades so estabelecidas, cristalizadas e quais aquelas que so levadas ao esquecimento, ruptura. A obra de Foucault, conforme os critrios ontolgicos de Morey, Veiga-Neto (2007) apud Domingos (2009), classificada em Ser-saber, Ser-poder, Ser- consigo

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que so princpios fundadores do sujeito moderno. O discurso e o poder pertencem respectivamente ao primeiro e segundo momento de sua obra, embora essas teorias tocam-se e incorporam-se de modo incontornvel. De acordo com o filsofo, a produo do discurso em sociedade percorre uma sequencia inevitvel de procedimentos de controle, seleo, organizao e redistribuio, no intuito de amenizar sua carga material e dissolver- lhe o perigo de sua produo. Na verdade, o discurso em si no algo que se caracteriza como perigoso, mas os seus interditos mascaram disputas de desejo e de poder. Em suas prprias palavras: o discurso no simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominao, mas aquilo pelo qual e com o qual se luta, o prprio poder de que procuramos assenhorar-nos. (FOUCAULT, 2006, p.10 ). Entendemos tambm que frequente o confronto com o outro e que as mltiplas re-significaes nessas relaes com o diferente que tornam a identidade do sujeito perceptvel. O poder diludo nos discursos circulantes e que institui verdades leva a reflexo dessa relao do homem com a verdade, com o que se dizia verdadeiro em sua poca, j que cada sociedade possui seu prprio regime de verdades. Como aponta Domingos (2009) um sistema que se funda naqueles tipos de discurso que funcionam como verdadeiros em detrimento de outros tidos como falsos. Atravs dos discursos supostamente verdadeiros, constitui-se toda uma cultura de uma poca. uma construo complexa, inclusive paradoxal, pois traz em si modos de separaes e excluses ao naturalizar determinadas prticas. (p.21)

interessante nesse ponto refletir a respeito da imagem e comportamentos ditos como femininos ao longo da histria. Esse sistema de excluso dos e pelos discursos levou ao deslocamento do conceito de verdade e, consequentemente, a uma busca da verdade ou, nas palavras do prprio Foucault, a uma vontade de verdade que foi adotada como base cientfica pelas mais diversas reas do conhecimento e pelas mais diversas esferas da sociedade. As cincias iniciaram buscas por um saber verdadeiro ou ainda por um discurso verdadeiro. No caso das esferas sociais, o grupo feminino tambm entrou na luta contra os discursos e (pre) conceitos que por muito tempo estiveram presentes em sua identidade e em seu modo de vida. Nos quadrinhos de Mafalda perceptvel a representao de alguns ideais femininos que se contrapunham a um discurso antigo e dominantemente masculino. Sendo essa produo parte de uma cultura denominada de massa, como

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discutiremos mais profundamente adiante, ainda maior os resultados alcanados por ser ampla a sua disseminao e consumo. Em outras narrativas grficas, como o Superman, de Joe Shuster e Jerry Siegel, tambm nos revelado certas verdades atravs de suas leituras, como bem afirma Eco (1993)

...os contedos ideolgicos das estrias de Superman [...] sustentam e funcionam comunicativamente graas estrutura da srie narrativa; [....] concorrem para definir a estrutura que os exprime, como uma estrutura circular, esttica, veculo de uma mensagem pedaggica substancialmente imobilista. (p.271)

Considerando o alcance dessas publicaes se entende a preocupao em controlar o que publicado, quem l essas histrias e que efeitos de sentido elas podem produzir, da talvez o mito de que as histrias em quadrinhos so compostas de historietas para crianas e possui uma linguagem ingnua, sem profundas intenes ideolgicas. Chamamos ateno, ento, justamente para algo que se faz presente e manipula as relaes entre as verdades e o poder, sendo necessrio atentar para o fato que envolve a produo dos discursos: o controle por uma srie de mecanismos de poder. Atravs de princpios e valores que excluem determinados discursos na sociedade ou que ainda limitam, manipulam sua circulao, as verdades so controladas, como expe o prprio Foucault no se tem o direito de dizer tudo, que no se pode falar de tudo em qualquer circunstncia, que qualquer um, enfim, no pode falar de qualquer coisa (2006, p.9). Sobre esses mecanismos de poder, Althusser (2007) traz o conceito de Aparelhos Ideolgicos do Estado que so justamente instrumentos de propagao e imposio das verdades daquela sociedade. Com efeito, o terico procura atrelar de modo indissolvel os fenmenos da luta de classes revelao das ideologias presentes na formao humana:Apenas do ponto de vista das classes, isto , da luta de classes, pode-se dar conta das ideologias existentes numa formao social. No apenas a partir da que se pode dar conta da realizao da ideologia dominante nos AIE e das formas da luta de classes das quais os AIE so a sede e o palco. Mas sobretudo, e tambm a partir da que se pode compreender de onde provm as ideologias que se realizam e se confrontam nos AIE. Porque se verdade que os AIE representam a forma pela qual a ideologia da classe dominante deve necessariamente se realizar, e a forma com a qual a ideologia da classe dominada deve necessariamente medir-se e confrontar-se, as ideologias no nascem dos AIE mas das classes

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sociais em luta: de suas condies de existncia, de suas prticas, de suas experincias de luta, etc.(p.107)

Assim, temos a comprovao inicial proposta por Foucault desse domnio das verdades por uma classe em detrimento a uma outra e tambm dessas formas de estabelecimento e controle de poder termos que foram ampliados nessa teoria de Althusser quando sugere em que esferas da sociedade se localizariam esses instrumentos: a famlia, a igreja, sindicatos, escola e direito (estruturas tanto ideolgicas quanto repressivas). Seguindo essa linha de pensamento se compreende bem a questo posta ao feminismo, a estratgia discursiva que disciplinava a vida e os corpos das mulheres durante muito tempo silenciou suas vozes e seus pensamentos, porm com o advento da modernidade os efeitos dos novos discursos postos por e para esse grupo, que de incio chocavam, vo se tornando naturais e vo consolidando novas prticas de conduta e de verdades assumidas por esse sujeitos, que ainda so e sempre sero controladas por mecanismos de poder. A luta pela reproduo da ideologia dominante um combate inacabado que sempre necessita de renovao, pois que sujeito luta incessante de classes encontra espao largo de compartilhamento nas denominadas culturas de massas. pertinente terminar, por ora, essa explicao sobre por que, onde e como o poder se manifesta e quem o controla sem esquecer de suas relaes com a ideologia e a linguagem. Nesse momento, nos deteremos em lanar um olhar mais prximo sobre a relao entre a cultura de massa e as histrias em quadrinhos e seu papel decisivo na disseminao dos discursos e das verdades aqui postas.

2.2 A CULTURA DE MASSA: O ESPAO DAS HISTRIAS EM QUADRINHOS

Presenciamos nos dias atuais um momento indito na histria da humanidade, o homem vive em meio a uma pluralidade extraordinria de linguagens e o mundo foi transformado em uma grande massa de signos. Toda experincia humana traduzida em signos, em um imenso sistema deles: a cultura, que organiza o processo da vida em sociedade estabelecendo as regras imprescindveis traduo de informaes e conhecimentos. Cada signo ou texto que se encontra

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na memria cultural formar o cosmo sgnico de cada grupo, a que Ltman (1996) d o nome de semiosfera. Assim, a semiosfera um conjunto de elementos (cdigos culturais) significantes disponveis para acesso e combinao e que d condies s representaes culturais e simblicas de cada grupo ou comunidade. Em se tratando especificamente dos cdigos e textos j absorvidos pela cultura, ou seja, aqueles que j possuem um sentido para os grupos sociais, podese dizer que esses cdigos/textos se recompem na traduo de novos contedos e que estes novos textos somente podem surgir a partir dos antigos ou daqueles que o sistema cultural reconhece. Trata-se de um movimento de auto-organizao que conforme Ltman (1996) faz com que a cultura produza novas regras de representao. Essa infinidade de linguagens e combinaes signcas provocaram uma diluio de suas fronteiras, cuja delimitao se tornou imperceptvel mas que hoje buscamos estabelecer no relacionamento entre as formas de manifestaes da linguagem (a verbal e a no-verbal). Quando se trata das multiplicidades da linguagem, recorremos semitica e suas contribuies porque ela a "cincia que tem por objeto de investigao todas as linguagens possveis, ou seja, tem por objetivo o exame dos modos de constituio de todo e qualquer fenmeno de produo de significao e de sentido" (SANTAELLA, 1993). Modernamente, o conceito de cultura est relacionado tanto ao conceito de homem quanto ao estudo da constituio significativa e da contextualizao social das mais variadas expresses humanas, levando-se em considerao a produo e a circulao das formas simblicas de carter global. Geertz (1989) diz que a cultura deve ser vista como um conjunto de mecanismos simblicos usados para controle de comportamentos que direcionam o processo de individuao do sujeito. No tocante s histrias em quadrinhos, somado ao conceito de cultura acrescenta-se a ideia de massa, formando uma nova ideia que Morin (1962) apud Hill (2006) diz ser(...) o resultado de uma mistura entre razo e emoo, que vai estruturar, orientar, construir, operar, suprir. Seu campo de ao se estende entre o real e o imaginrio, numa simbiose do instintivo com o representativo. (...) a cultura oferece um apoio concreto ao que imaginrio, e um apoio imaginrio ao que concreto. ............................................................................................................... Quanto a massa,(...) o termo expressa uma ideia de multiplicao ou de difuso macia... (p.34-5)

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Contudo, a definio do que massa, dentro desse contexto, se mostra problemtica como aponta Teixeira Coelho:no se sabe muito bem o que massa. Ora o povo, excluindo-se a classe dominante. Ora so todos. Ou uma entidade digna de exaltao, qual todos querem pertencer; ou um conjunto amorfo de indivduos sem vontade. Pode surgir como um aglomerado heterogneo de indivduos, para alguns autores, ou como entidade absolutamente homognea para outros. O resultado que o termo massa acaba sendo utilizado quase sempre conotativamente (isto , com um segundo sentido) quando deveria s-lo denotativamente, com um sentido fixado, normalizado. (1981, p. 28)

De acordo com as discusses de Morin, essa cultura produzida de acordo com normas macias da fabricao industrial; propagada pelas tcnicas de difuso macia [...]; destinando-se a uma massa social, isto , um aglomerado gigantesco de indivduos compreendidos aqum e alm das estruturas internas da sociedade (classe, famlia, etc.) (idem, op. cit., p. 14). Ento, observar o papel da Indstria Cultural, nesse contexto, faz-se interessante, visto que sua concepo est relacionada s indstrias que (re)produzem de forma massiva bens e imaginrios culturais. Sendo assim, o termo no diz respeito propriamente s empresas produtoras, nem s tcnicas de comunicao. Entendemos que estudar a(s) cultura(s) de um grupo demanda um olhar situado nesse grupo, considerando as diferentes formas de interao dos seus integrantes com os artefatos culturais e ainda consideramos que a cultura de massa est atrelada (re)produo de um imaginrio coletivo permeado de veias simblicas que possui uma vasta difuso e amplo consumo. Alm disso, as expresses usadas para caracterizar um momento em que imagens e conceitos adquirem sentidos especficos e tambm se aplicam ao imaginrio social contemporneo. Segundo Eco (1993, p.48), essa cultura oferece (...) um acervo de informaes e dados acerca do universo sem sugerir critrio de discriminao; mas, indiscutivelmente, sensibilizam o homem contemporneo face ao mundo; (...). Hill (2006) acrescenta outras observaes ao conceito de cultura de massa indicando que se(...) se considerar o agente, o assunto, o objetivo da comunicao no sentido de causar algum efeito, chega-se a um conceito mais abrangente da cultura de massa, que leva em considerao a relao produo-criao (quem), a temtica cultural (que), e, enfim, o pblico, com o universo de consumo cultural e das camadas sociais que realizam este consumo (a quem). (p.37)

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Dentro dessa perspectiva, a cultura de massa enquanto forma de comunicao e de representao do mundo acompanham as transformaes do homem e se constituem a partir de suas aspiraes e dos rumos de sua histria. A cultura de massa, por muitas vezes, possui funo de por em xeque antigos valores e ser instrumento de propagao e discusso de ideias. Com os gneros da linguagem e da literatura que a integram acontece do mesmo modo: nascem conforme as necessidades sociais, histricas e culturais do homem. As histrias em quadrinhos surgem,