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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS UFAM INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E LETRAS ICHL
PROGRAMA DE PSGRADUAO EM SOCIEDADE E CULTURA NA AMAZNIA PPGSCA
TRABALHADORES DA MALVA (Re)produo material e simblica da vida no Baixo rio Solimes
ALDENOR DA SILVA FERREIRA
MANAUS 2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS UFAM INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E LETRAS ICHL
PROGRAMA DE PSGRADUAO EM SOCIEDADE E CULTURA NA AMAZNIA PPGSCA
ALDENOR DA SILVA FERREIRA
TRABALHADORES DA MALVA
(Re)produo material e simblica da vida no Baixo rio Solimes
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao Sociedade e Cultura na Amaznia PPGSCA da Universidade Federal do Amazonas UFAM como requisito para obteno do Ttulo de Mestre em Sociedade e Cultura na Amaznia.
Orientador: Prof. Dr. Antnio Carlos Witkoski Ficha Catalogrfica
F383t
Ferreira, Aldenor da Silva
Trabalhadores da malva: (re) produo material e simblica da vida no Baixo rio Solimes / Aldenor da Silva Ferreira. - Manaus: UFAM, 2009.
104 f.; il. color. Dissertao (Mestrado em Sociedade e Cultura na
Amaznia) Universidade Federal do Amazonas, 2009. Orientador: Prof. D. Antnio Carlos Witkoski 1. Juta Malva Amazonas Aspectos sociais 2. Camponeses
Amaznia 3. Trabalho campons Aspectos sociais I. Witkoski, Antnio Carlos II. Universidade Federal do Amazonas III. Ttulo
CDU 331:582. 795//. 796(811.3)(043.3)
MANAUS 2009
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ALDENOR DA SILVA FERREIRA
TRABALHADORES DA MALVA (Re)produo material e simblica da vida no Baixo rio Solimes
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao Sociedade Cultura na Amaznia PPGSCA da Universidade Federal do Amazonas UFAM como requisito para obteno do Ttulo de Mestre em Sociedade e Cultura na Amaznia.
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________________________________
Prof. Dr. Antnio Carlos Witkoski Orientador Universidade Federal do Amazonas
______________________________________________________________________________
Prof. Dr. Manoel de Jesus Masulo da Cruz Universidade Federal do Amazonas
______________________________________________________________________________
Prof. Dr. Ernesto Renan Melo de Freitas Pinto Universidade Federal do Amazonas
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Dedico a Antnio Lopez Ferreira dos Santos in memorian e Raimunda da Silva Santos, camponeses amaznicos que com esforo gigantesco conseguiram educar todos os seus filhos. A Isaac Ferreira, filho da minha alma que me trouxe sorte. Aos trabalhadores da malva, amazonenses que constroem a cada dia um captulo de suas histrias.
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AGRADECIMENTOS A todos que de maneira direta ou indireta contriburam para a realizao desse trabalho, em
especial coordenao do Ncleo de Socioeconomia da Universidade Federal do Amazonas,
na pessoa da Profa. Dra. Therezinha de Jesus Pinto Fraxe, pessoa que verdadeiramente me
mostrou os caminhos da pesquisa social, introduzindo-me no universo da cincia de maneira
singular.
Ao Prof. Dr. Antnio Carlos Witkoski, que foi mais que um orientador, mais que um
professor, um amigo. Sua proposta de empreendermos uma anlise sobre a vida dos
trabalhadores da malva em todos os seus aspectos foi contagiante. A construo do objeto de
pesquisa foi feito sem dvida a quatro mos.
Ao programa de Ps-Graduao Sociedade e Cultura na Amaznia, professores e funcionrios
como um todo. Orgulho-me de ter sido aluno do primeiro Programa de Ps-Graduao do
Instituto de Cincias Humanas e Letras da Universidade Federal do Amazonas, que
completou sua primeira dcada.
Aos coordenadores do Projeto Piatam Prof. Dr. Alexandre Rivas e Prof. Dr. Carlos Edward,
pois sem a infra-estrutura e logstica desse projeto, bem como a bolsa de estudo, essa pesquisa
no seria possvel.
Aos colegas socilogos Pedro Henrique C. Rapozo e Elder Monteiro de Arajo pelas
importantes dicas quando estivemos em campo. Seus conhecimentos acerca dos informantes
foram fundamentais para a aplicao dos questionrios e, tambm, suas contribuies acerca
das relaes de poder na comunidade Bom Jesus foram relevantes.
Aos professores doutores Manoel Masulo e Iraldes Caldas Torres, pelas importantes
observaes feitas ao trabalho no exame de qualificao.
A Ktia Cavalcante e Edileuza Melo pelo mapa das comunidades.
Ao companheiro de mestrado Neuton Corra, meu conterrneo e parceiro na elaborao dos
artigos para as disciplinas.
Ao Dr. Jlio Rabelo pela sua alegria e incentivo ao me ver aprovado em um curso de Ps-
Graduao.
A Luciane Salorte pelas constantes colaboraes tcnicas e correes de meus textos com
eficincia e dedicao.
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Aos meus irmos Antenor, Antnio, Marizlia e Ana Anglica Ferreira, pelas incontveis
ajudas que me possibilitaram a permanncia aqui nessa cidade e na Universidade desde a
graduao.
A companheira eterna e amada Luciana Raffi Menegaldo, pela presena doce e constante
madrugada a fora, tabulando dados, discutindo interpretaes e metodologias, compartilhando
textos e imagens, vivenciando frustraes e alegrias. Seu conhecimento na rea de animais
silvestres foi fundamental para a seo sobre caa e pesca nesta pesquisa. Sua dedicao para
comigo revelam a natureza de um amor puro, que almeja a plenitude de minhas realizaes
profissionais e afetivas.
A Yeshua Hamashia, o Cristo que me protege e me mantm vivo. Debaixo de suas asas meu
abrigo, o lugar secreto e cuja presena meu prazer.
Aos olhos do animal laborans, a natureza a grande provedora de todas as boas coisas, que pertencem igualmente a todos os seus filhos, que as tomam de suas mos e se misturam com elas no labor e no consumo [...]. Sem tomar as coisas das mos da natureza e consumi-las, e sem se defender contra os processos naturais de crescimento e declnio, o animal laborans jamais poderia sobreviver. (ARENDT, 2007).
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RESUMO
Esta pesquisa trata do modo de vida do campons varzeano, trabalhador da malva, nas
comunidades rurais de N.S.das Graas, Municpio de Manacapuru; Bom Jesus, Municpio de
Anam; e Santo Antnio, Municpio de Anori, todas localizadas no Baixo rio Solimes. O
processo de trabalho na agricultura de malva continua o mesmo desde a introduo dessa
atividade na regio a partir da dcada de 1930. O campons nessa fase do processo produtivo
expe seu corpo aos riscos de acidentes com animais e, tambm, est sujeito a contrair
doenas, uma vez que permanece dentro dgua em mdia 10 horas por dia. Alm dos
processos de trabalho na produo de malva, a pesquisa abordar mais dois aspectos que
compem a vida material e simblica desses sujeitos sociais. Trata-se da questo do labor e
da vida activa. O primeiro est ligado questo objetiva e subjetiva da sobrevivncia,
primeiramente fsica e depois simblica do campons varzeano, ou seja, o uso que eles fazem
dos recursos naturais visando primeiramente manuteno da vida e posteriormente,
eventualmente, comercializao. O ltimo aspecto est ligado esfera da comercializao
do produto final as fibras de malva. Nesse momento, ocorre a extenso da degradao,
iniciada durante o processo de desfibramento dentro dgua, o momento da subalternizao
dos trabalhadores da malva dinmica do capital comercial. tambm a extenso da
degradao porque esses sujeitos sociais so os elos mais fracos de uma cadeia produtiva que
tem como caracterstica principal o monoplio das aes. A degradao deixa de ser fsica
para ser moral. Essa situao poderia melhorar a partir da introduo de tecnologias sociais
que eliminassem a insalubridade do processo de obteno das fibras e, tambm, a partir de
polticas pblicas que regulassem o processo de comercializao e de preos, pois a fibra de
malva um produto que tem potencial para ser socialmente vivel e economicamente
sustentvel. Numa poca em que mundo busca alternativas econmicas sustentveis, uma
produo agrcola baseada na extrao de fibras vegetais, cujo impacto ambiental mnimo e
que se assenta na estrutura familiar de produo, uma atividade que se aproxima muito dos
critrios da sustentabilidade.
Palavras-chave: labor; trabalho; ao; malva
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ABSTRACT
This research is about the varzeano peasant, malva workers way of life, in N.S. das Graas
rural communities, Municipality of Manacapuru; Bom Jesus, Municipality of Anam; and
Santos Antnio, Municipality of Anori, all located in Baixo Solimes River. The work
process in malva agriculture continues the same since the introduction of this activities in the
region from 30`s on. The peasant who is in this stage of production process expose his body
to the accident risks with animal and, also, is subject to contract illnesses, since he keeps
inside the water about 10 hours per day. Besides the labor process in the malva production,
this research is going to deal with others two aspects which compose this social individuals`
symbolic and material life. It is about the labor and active life matter. The first is linked to the
surviving objective and subjective matter, firstly physical and then symbolic of the varzeano
peasant, that is, their usage of the natural resources aiming firstly the life maintenance and
subsequently, eventually to trading. The last aspect is linked to the final product the malva
fiber trading sphere. At this moment, the degradation extension takes place, initialized during
the desfibrilation process inside the water, directetd to the malva workers subalternation to the
trading capital dynamic. It is the extension of the degradation because these social individuals
are the weakest link of a productive chain which has as main characteristic the monopoly of
the actions. The degradation stops being physical and become moral. This situation could
increase from the social technologies introduction on which eliminate the insaltness of the
fiber obtaining process, and also, from the public politics on which rule the trading and price
process, because the malva fiber is a product which has potential to be socially accessible and
economically supportive. In a period when the world seeks for supportively economical
alternatives, an agricultural production based in vegetable fibers extraction, whose
environment impact is minimum and lays on the family production structure, is an activity
which approaches pretty much to the maintenance criteria.
Key-words: labor; work; action; malva
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Fenmenos das terras cadas 29
Figura 2 Quintal na Comunidade N. S. das Graas 46
Figura 3 Troca-de-dia e ajuri na comunidade Bom Jesus 48
Figura 4 Almoo no roado de malva na comunidade Bom Jesus 49
Figura 5 Ncleo central da comunidade N. S. das Graas 56
Figura 6 Ncleo central da comunidade Bom Jesus 60
Figura 7 Igrejas Evanglicas nas comunidades Bom Jesus e Vila Sio 62
Figura 8 Novas escolas da comunidade Bom Jesus 65
Figura 9 Ncleo central da comunidade Santo Antnio 67
Figura 10 Celebrao de batismo e primeira comunho 68
Figura 11 Localizao da rea de estudo 70
Figura 12 Espcies encontradas e caadas pelos trabalhadores da malva 82
Figura 13 Os diversos usos a madeira nas comunidades 85
Figura 14 Amndoas da andiroba e cacho de aa 86
Figura 15 Cuia como recipiente para armazenamento de gua 87
Figura 16 Diversas formas de uso das palhas pelos camponeses 88
Figura 17 Plantas medicinais utilizadas pelos trabalhadores da malva 93
Figura 18 Ambientes de pesca das comunidades 104
Figura 19 Pesca artesanal comercial com redes de arrasto na boca do Lago do Anori 105
Figura 20 O etnoconhecimento subsidiando o mundo do labor 120
Figura 21 Hortalias mais cultivadas nas comunidades 126
Figura 22 Exemplos de criaes de animais domsticos dos trabalhadores da malva 130
Figura 23 Atividades nas terras, floretas e guas o mundo do labor 131
Figura 24 Urena lobata L. e Corchoros capsularis 149
Figura 25 Produtos base de fibras de juta e malva 167
Figura 26 Plantao de malva na lama e em terra seca 169
Figura 27 Feixes cortados ficam secando as folhas para perder peso 171
Figura 28 Varais com fibras secando nos varais 173
Figura 29 Fardos prontos para a comercializao 174
Figura 30 Degradao objetiva do corpo 178
Figura 31 Prottipo da mquina descortiadora de malva e/ou juta 186
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Figura 32 Treinamento para utilizao correta da mquina descortiadora 190
Figura 33 Mundo do trabalho na malva. 191
Figura 34 Barcos de agentes da comercializao na Comunidade Bom Jesus 196
Figura 35 Organograma a condio humana 197
Figura 36 Organograma: cadeia produtiva da malva no Amazonas 206
Figura 37 Comercializao de fibras de malva na comunidade Bom Jesus 210
Figura 38 Comercializao da malva: mundo da ao 226
Figura 39 Alguns trabalhadores da malva das trs comunidades pesquisadas 227
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LISTA DE GRFICOS
Grfico 1 Animais silvestres mais capturados pelos trabalhadores da malva 79
Grfico 2 Espcies florestais mais utilizadas pelos trabalhadores da malva 83
Grfico 3 Finalidade da extrao de madeiras 84
Grfico 4 Espcies de peixes mais consumidos pelos trabalhadores da malva 107
Grfico 5 Peixes mais comercializados sazonalmente nas comunidades 108
Grfico 6 Grficos comparativos do objetivo da atividade pesqueira 109
Grfico 7 Ambientes mais visitados pelos pescadores 111
Grfico 8 Embarcaes mais utilizadas na atividade pesqueira nas comunidades 112
Grfico 9 Apetrechos de pesca mais utilizados pelos trabalhadores da malva 114
Grfico 10 Melhor perodo para pesca de acordo com os trabalhadores da malva 114
Grfico 11 Principais cultivos das comunidades 123
Grfico 12 Hortalias mais consumidas pelos trabalhadores da malva 125
Grfico 13 Principais criaes de animais domsticos dos trabalhadores da malva 128
Grfico 14 Finalidade das criaes dos animais domsticos 129
Grfico 15 Problemas de sade mais citados pelos trabalhadores da malva 176
Grfico 16 Formas de tratamento mais utilizadas nas enfermidades 177
Grfico 17 Compradores de malva das comunidades 199
Grfico 18 Dificuldades relativas ao crdito rural 200
Grfico 19 Destino da produo de malva das comunidades 206
Grfico 20 Importncia do cultivo da malva para as comunidades 214
Grfico 21 Principais doenas encontradas nas comunidades 215
Grfico 22 Escolaridades nas comunidades da rea focal do Projeto Piatam 216
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LISTA DE QUADROS
Quadro 1 Possveis ambientes de caa 80
Quadro 2 Plantas medicinais encontradas nas comunidades 94
Quadro 3 Espcies agroflorestais usadas como remdios 95
Quadro 4 Espcies de peixes mais capturadas nas comunidades 106
Quadro 5 Instrumentos e perodos de captura 119
Quadro 6 Frutas de maior freqncia nas comunidades 124
Quadro 7 Algumas empresas de beneficiamento de juta em 1950/60 152
Quadro 8 Custos diretos da produo nas comunidades 213
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LISTA DE SIGLAS
ACAR Associao de Crdito e Assistncia Rural
BASA Banco da Amaznia S/A
CEAP Centro de Excelncia Ambiental da Petrobrs
CIA Companhia Industrial Amazonense
CFP Comisso de Financiamento da Produo
CODEAMA Comisso de Desenvolvimento Econmico do Amazonas
CONAB Companhia Nacional de Abastecimento
EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecurias
FMP Federao dos Municpios Paraenses
IBGE Instituo Brasileiro de Geografia e Estatstica
IDAM Instituto de Desenvolvimento Agropecurio do Amazonas
IAC Instituo Agronmico de Campinas
IPT Instituto de Pesquisas Tecnolgicas
IEADAM Igreja Assemblia de Deus no Amazonas
IEADB Igreja Assemblia de Deus Unidas do Brasil
IFIBRAM Instituto de Fomento a Produo de Fibras da Amaznia
INPA Instituo de Pesquisa da Amaznia
NUSEC Ncleo de Socioeconomia
PIATAM Inteligncia Socioambiental Estratgica da Ind. do Petrleo e do Gs no Amazonas
SAT Servio de Apoio ao Trabalhador
SGP Sistema Geral de Preferncia
SEPLAN Secretaria Estadual de Planejamento
SEPROR Secretaria Estadual de Produo Rural
SPEVEA Superintendncia do Plano de Valorizao da Amaznia
SUDAM Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia
SUFRAMA Superintendncia da Zona Franca de Manaus
UFAM Universidade Federal do Amazonas
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LISTA DE TABELAS Tabela 1 Densidade demogrfica da Amaznia Legal 38
Tabela 2 rea de produo de juta e malva no Amazonas em 1980 153
Tabela 3 Microrregies produtoras de juta e malva no Amazonas em 2007/08 159
Tabela 4 Produo de sementes de juta 163
Tabela 5 Produo de sementes de malva 163
Tabela 6 Custo diretos da produo nas comunidades 209
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SUMRIO
1 INTRODUO 17
2 VRZEA AMAZNICA: O LUGAR DA VIDA 25
2.1 Panorama da dinmica da vrzea 25
2.2 A dialtica homem/natureza na Amaznia adaptabilidade pretrita 33
2.3 O campons varzeano 40
2.4 O sistema agroflorestal o quintal e o stio 44
2.5 As prticas de ajuda mtua no cultivo de malva 47
2.6 Comunidades amaznicas: espao da sociabilidade e manuteno da vida 53
2.7 Comunidade N. S. das Graas surgimento e aspectos sociopolticos 56
2.8 Bom Jesus surgimento e aspectos sociopolticos 59
2.8.1 Bom Jesus e a relao de poder 62
2.9 Comunidade Santo Antnio surgimento e aspectos sociopolticos 65
3 O LABOR E OS DIAS: VIVER PRECISO 71
3.1 A condio humana do labor 71
3.2 O mundo vivido dos camponeses varzeanos atividades de labor 77
3.2.1 A caa 77
3.2.2 As espcies florestais 82
3.2.3 Os frutos e produtos da floresta 86
3.2.4 As plantas medicinais 89
3.2.5 O etnoconhecimento nas atividades pesqueiras 96
3.2.5.1 Os apetrechos 110
3.2.6 Outros cultivos agrcolas 121
3.2.7 As hortalias 125
3.2.8 As criaes 126
4 TRABALHO E AMBIENTE 132
4.1 A condio humana do trabalho 132
4.2 Trabalho e ambiente 137
4.3 Origens da produo de fibras no Amazonas 141
4.3.1 A malva 141
4.3.2 A juta 146
4.4 O apogeu e o declnio 150
4.5 A problemtica das sementes 160
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4.6 A revitalizao? 165
4.7 O processo de trabalho degradao objetiva do corpo 168
4.8 Ecotecnologia e a produo de fibras 183
4.8.1 O projeto Nova Forma de Processamento da Malva e/ou Juta 183
4.8.2 A estrutura da mquina descortiadora de malva e/ou juta 185
4.8.3 A funcionabilidade da mquina descortiadora 187
5 A COMERCIALIZAO E SEUS AGENTES 192
5.1 A esfera da ao 192
5.2 Os agentes da comercializao e suas formas de atuao 198
5.3 Os entraves da cadeia produtiva da malva e/ou juta 205
5.4 A tragdia das atividades monoespecficas 211
5.5 Malva e Juta: sementes de uma nova racionalidade ambiental? 217
5.5.1 Ecodesenvolvimento uma alternativa? 219
5.5.2 Fibras vegetais: produtos do futuro? 222
6 CONSIDERAES FINAIS 228
REFERNCIAS 233
ANEXOS 241
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1 INTRODUO
Pode-se dizer que o modo de vida do campons amaznico a expresso de um
elevado grau de adaptabilidade a esse ecossistema. A diversidade e a configurao
geomorfolgica da vrzea do rio Solimes/Amazonas lhe permite desenvolver polivalncia,
ou seja, um conjunto de atividades no mundo do trabalho servindo-se dos ambientes terras,
florestas e guas. Ao se relacionar com esses ambientes e extrair dos mesmos os recursos
necessrios sua (re)produo material e/ou simblica, os camponeses do Baixo Solimes
realizam atividades que conceituamos como labor, trabalho e ao. Sua organizao de
trabalho tende a revelar isso, pois nas terras de vrzea baixa e/ou alta, eles praticam
agricultura de subsistncia, comercializando seus excedentes, e criando principalmente
pequenos animais. Nesse contexto, o subsistema stio e quintal so importantes no s para a
complementao alimentar, mas, tambm, eventualmente, como gerao de renda para a
famlia camponesa; na floresta de vrzea e/ou terra firme eles praticam o extrativismo
vegetal (lenha, madeira, frutos, plantas medicinais, etc.) e animal a caa fundamentalmente,
objetivando complementar e variar a dieta alimentar protica; no ambiente gua, praticam o
extrativismo animal pesca e caa. Portanto, esses sujeitos sociais mantm com a natureza
uma relao simbintica, na qual o trabalho em suas mltiplas formas ainda ocupa lugar de
centralidade. O trabalho comparece como um ato de mediao entre os homens e a natureza
e o resultado do trabalho a transformao da natureza e a transformao do prprio homem
(WITKOSKI, 2007 p.131). Nesse sentido, o campons amaznico portador de
singularidades que o diferencia de outros, no Brasil. A exigncia de ter que trabalhar nas
terras, florestas e nas guas um imperativo categrico prtica polivalente. Assim, a
polivalncia nas atividades camponesas relaciona-se com a necessidade do trabalho agrcola,
a criao de animais, o extrativismo vegetal e/ou animal todas elas ligadas diretamente
unidade de produo familiar. Segundo Witkoski (2007, p.183).
A estrutura organizacional da famlia camponesa decisiva para a obteno dos meios de vida, pois, quem produz a unidade de produo familiar, como se fosse um trabalhador coletivo: sem famlia no h produo e sem produo no h famlia. A famlia no s reproduz biologicamente seus membros, como tem que educ-los para a vida e o mundo do trabalho.
As modalidades de trabalho, no interior da unidade de produo familiar, giram em
torno do sistema agroflorestal que de certa forma guia a vida socioeconmica camponesa.
Nesse sentido, esse tipo de manejo, que se relaciona diretamente com a natureza e dela
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depende, implica produzir com tecnologias de baixo impacto ambiental e com um fim
especfico a sobrevivncia. Isto se d devido integrao entre os cultivos agrcolas, criao
de animais, extrativismo vegetal e animal que tem por objetivo incrementar a produtividade.
Pode-se afirmar que o modo de vida do campons varzeano do Baixo rio Solimes representa
um modo especfico de organizao social, de tentativa de autonomia e de sobrevivncia que
se contrape ao modo de vida capitalista de outros contextos. Trata-se de uma outra lgica de
relaes sociais de produo, a reclamar o direito de um outro modo de trabalho; que
comandado pelo tempo ecolgico, implica reconhecer e respeitar o ciclo das guas numa
constante dinmica de adaptabilidade. Nesse sentido, a definio Bottomore (1988), que
define a figura socioantropolgica do campons como todo indivduo que vive na e da
terra, isto , que possui seus meios de produo, instrumentos de trabalho e opera, na grande
maioria das vezes, com fora de trabalho familiar pertinente e enquadra-se perfeitamente em
nosso esquema de interpretao desse modo de vida.
O campons amaznico a representao do sujeito social possuidor de capital
simblico, de um saber e de uma organizao poltica muito peculiar. Representa o agente
direto na relao com a natureza e num possvel projeto de sustentabilidade para a Amaznia.
Eles apresentam grande responsabilidade na relao com a natureza. A luta pela sobrevivncia
desses sujeitos sociais que se organizam em torno das terras, florestas e guas, rompe com o
paradigma do sujeito pacato e passivo a que fora submetida representao do
caboclo/ribeirinho campons amaznico em outras pocas.
Sem a pretenso de esgotar o tema, analisaremos no decorrer deste trabalho a vida dos
trabalhadores da malva, pois antes de serem trabalhadores rurais malveiros eles so
homens, sujeitos sociais que devem ser compreendidos na plenitude de suas vidas. Eis,
portanto, os motivos de abordarmos trs dimenses do mundo vivido desse campons: o
labor, o trabalho e a ao. Essas so as categorias estruturantes propostas para o trabalho.
Definitivamente os camponeses da vrzea do rio Solimes/Amazonas, trabalhadores
da malva, possuem um modo de vida marcado por singularidades e especificidades. Desse
modo, a orientao de Chayanov (1974, apud FRAXE 2000, p. 46) pertinente: no se pode
compreender o campesinato imputando-lhe categorias econmicas, sociolgicas e/ou
antropolgicas, a priori, que no correspondam s suas particulares formas de vida. Nesse
sentido, a investigao do objeto proposto no poderia ser contemplada satisfatoriamente se
no fossem articulados fatores qualitativos (dimenso simblica) e quantitativos (dimenso
material) dentro da pesquisa de campo. Por qu? Devido ao fato de os trabalhadores da malva
serem sujeitos sociais que desenvolvem vrias atividades no mundo do trabalho que tambm
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so fundamentais para a manuteno de suas vidas. A partir da idia de empreendermos uma
anlise sociolgica dos meios de vida, no poderamos analisar apenas uma produo
agrcola, ou seja, direcionarmos a pesquisa para anlise puramente econmica, quantitativa
da atividade, isso seria um reducionismo. Era preciso analisar a vida desses sujeitos sociais
como um todo, pois nem s de malva vivem os trabalhadores da malva, portanto, o contato
direto com a realidade desses trabalhadores seria essencial. O mtodo etnogrfico e a tcnica
da pesquisa de campo seriam imprescindveis. Nesse sentido, um exerccio de imaginao
sociolgica foi deveras necessrio para o estabelecimento de novas abordagens sobre a vida
desses sujeitos sociais. Todavia, ainda que fosse possvel a tentativa de superao de uma
anlise economicista e quantitativa, por se tratar de uma produo agrcola anual, isso no
seria totalmente possvel. Esse aspecto foi contemplado a partir da manipulao de dados
secundrios oficiais, sendo necessrio construo de grficos, tabelas e planilhas.
Contriburam para a quantificao a Secretaria de Produo Rural do Amazonas (SEPROR),
Instituto de Desenvolvimento Agropecurio do Amazonas, (IDAM), Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatstica (IBGE), Inteligncia Socioambiental Estratgica da Indstria do
Petrleo Amaznia (PIATAM) e o Ncleo de Socioeconomia da Universidade federal do
Amazonas (NUSEC), cujo banco de imagens e de dados, relatrios e apoio logstico foram
determinantes para a execuo da pesquisa.
A coleta dos dados primrios foi feita no decorrer de cinco viagens a campo, durante
os meses de maro, maio, junho, julho e dezembro de 2008. Essas viagens s foram possveis
devido minha insero como pesquisador bolsista do Ncleo de Socioeconomia da Faculdade
de Cincias Agrrias da Universidade Federal do Amazonas. Esse ncleo de pesquisa
responsvel pela rea socioeconmica do Projeto Piatam. Se por um lado o acesso a
informaes do Banco de Dados do Projeto Piatam possibilitou uma anlise efetiva das
comunidades da rea de estudo, por outro, o trabalho de campo foi dobrado, pois era preciso
executar a pesquisa inerente rea de socioeconomia do referido Projeto (aplicao de
questionrios) e ainda aplicar os questionrios especficos relacionados dissertao, isso
tudo em apenas um dia em cada comunidade. Da o trabalho de campo ter sido feito em cinco
viagens. Outra dificuldade foi o fato de ser frequentemente confundido e identificado por
parte de alguns trabalhadores da malva, como representante de um rgo oficial (Idam), pelo
fato de trabalharmos com a distribuio de sementes de malva para os mesmos. s vezes, essa
identificao ajudava no sentido de que se tornava mais fcil a aplicao de questionrios,
noutros casos o inverso tambm era verdadeiro.
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Foram aplicados 36 questionrios, cujas perguntas abertas e fechadas versavam sobre
cinco questes estruturais da pesquisa. Dados da comunidade (dados pessoais, mobilidade,
migrao, formao); dados de propriedade (rea plantada tanto de malva, como outros
cultivos); dados do processo produtivo (plantio, colheita, processo de trabalho); dados de
comercializao (preo, produo em 2007/08, sementes e relao com os agentes da
comercializao) e, por fim, dados relacionados ao labor (outros cultivos agrcolas, caa,
pesca, extrativismo, e criao de pequenos animais).
Os questionrios aplicados foram divididos para as trs comunidades, sendo oito em
N. S. das Graas, 18 em Bom Jesus e 10 em Santo Antnio. Foram entrevistados por amostra
10 trabalhadores da malva, sendo dois em N. S. das Graas, oito em Bom Jesus e dois em
Santo Antnio. Essa tcnica foi importante, pois com o gravador, os trabalhadores da malva
discorreram livremente sobre seu modo de vida. Essas entrevistas nos permitiram obter
informaes relacionadas ao ecossistema da vrzea, a formao das comunidades e as
subjetividades do trabalho na malva e, tambm, questes simblicas ligadas
fundamentalmente ao labor. Portanto, mantivemos contato com 46 trabalhadores da malva
nas trs comunidades, o que perfaz um total 43,9% do universo de trabalhadores.
No tocante s delimitaes e escolhas dos atores sociais que foram entrevistados e
observados, no foram selecionados de maneira aleatria, mas sim fazendo uso de critrios de
prioridade com relao de pertinncia pesquisa. De acordo com (HAGUETTE 1992 p. 96):
A escolha dos entrevistados no pode ser aleatria, ou seja, no pode obedecer aos parmetros da amostragem probabilstica. Embora a montagem do universo listagem dos atores que podero fornecer contribuies teis ao desenvolvimento de certo tema seja fundamental, sempre existem alguns personagens cuja contribuio imprescindvel, da porque sua incluso na lista de entrevistados seja intencional.
A soma das famlias das trs comunidades de aproximadamente 120. Sendo 38
famlias em Bom Jesus, 65 famlias em N.S. das Graas e 17 famlias em Santo Antnio, e o
nmero de trabalhadores da malva, foco da pesquisa foi de 82 trabalhadores. vlido
ressaltar que esse nmero corresponde safra 2007/08, perodo eleito para a investigao e
execuo da pesquisa. A partir da safra 2008/09, houve mudanas no nmero de
trabalhadores, mas no foram cobertas pela investigao. Tentando dar conta de todos os
aspectos que envolvem a vida dos trabalhadores da malva estruturamos a pesquisa em quatro
captulos.
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O primeiro captulo, Vrzea Amaznica: o lugar da vida ser analisado um pouco a
dinmica da vrzea, o lcus dos camponeses, trabalhadores da malva. A vrzea, como terra de
trabalho, anualmente fertilizada por sedimentos trazidos pelos rios Solimes/Amazonas, so
terras propcias para o cultivo de muitos produtos que podem ser comercializados nos
mercados locais e regionais, a malva um deles. A vrzea concebida aqui como o lugar da
vida, no sentido de um processo de construo de relaes sociais, de organizao poltica,
econmica e territorial de seus habitantes, onde as condies de apropriao do espao, de
adaptabilidade e, sobretudo, de subsuno da natureza, refletem a percepo de um espao
fsico e simblico. o lugar da vida no contexto onde se do as relaes, ou seja, no cotidiano
dialtico entre homem e natureza e, principalmente, entre os prprios homens no sentido de
suas prticas socioculturais.
No segundo captulo, O labor e os Dias: viver preciso, apresentaremos todas as
atividades dos trabalhadores da malva ligadas fundamentalmente ao labor. Nesse captulo, os
trabalhadores da malva sero analisados como animal laborans. Trabalharemos com a
dimenso material e simblica da vida dos camponeses trabalhadores da malva. Atividades
desenvolvidas por eles nos ambientes terras, florestas e guas, tais como, a manipulao de
produtos da floresta, dos lagos, das roas. Dos produtos obtidos na pesca, na caa, e/ou a
criao de pequenos animais, cuja finalidade fundamental garantir a manuteno da vida
fsica. Essas aes so fisiologicamente necessrias e insubstituveis, e refletem o grau de
organizao desses camponeses na busca da realizao dessas necessidades. Apesar de haver
gasto de energia corporal e racionalidade organizativa na execuo, certas atividades, como,
por exemplo, arrancar mandioca para fazer farinha ou lanar uma tarrafa no rio em frente a
seu porto, no trabalho, e sim labor, enquanto gnese da vida. Essas aes esto ligadas
questo da objetividade e subjetividade da sobrevivncia, primeiramente fsica e depois
simblica, ou seja, o uso que os camponeses fazem dos recursos naturais visando no
comercializao imediata, mas a (re)produo e manuteno da vida. Segundo Hanna Arendt
(2007 p.1598), O labor no deixa nada atrs de si, como tpico de todo labor. O resultado
do seu esforo consumido quase to depressa quanto o esforo despendido. A condio
humana do labor a prpria vida. E, no entanto, esse esforo, a despeito de sua futilidade,
decorre de enorme premncia, motiva-o um impulso mais poderoso que qualquer outro, pois a
prpria vida depende dele. O labor, por exemplo, produz as condies sociais da vida, embora
essas condies produzidas sejam efmeras. A imediatizao das coisas que o homem
produz, por meio do labor, so to vitais s suas condies de vida, que como se os atos de
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produzir e consumir se realizasse ao mesmo tempo produzir consumir! (WITKOSKI,
2000 p. 28).
O terceiro captulo, Trabalho e Ambiente, ser dedicado ao trabalho na lavoura de
malva. Nesse captulo os trabalhadores da malva sero analisados como homo faber,
produtores de artefatos. Entendemos que o trabalho em suas mltiplas formas, ainda ocupa
lugar de centralidade na vida dos camponeses das comunidades estudadas. O trabalho a
atividade responsvel pela criao de um mundo artificial de coisas que difere do mundo
natural e que perpassa o cotidiano do homem. No sentido de transcender a vida de seu
empreendedor, o trabalho e o seu produto, isto o artefato humano, [...] emprestam certa
permanncia e durabilidade futilidade da vida mortal e ao carter efmero do tempo
humano. A condio humana do trabalho a mundanidade (ARENDT, 2007 p.15-16).
O cultivo de malva h mais de quatro dcadas desenvolvido pelo campons
amaznico e sua famlia em vrias comunidades rurais das microrregies localizadas no
Baixo Solimes. O cultivo dessas plantas no se restringe aos rios principais
Solimes/Amazonas , podendo ser encontrada tambm em seus tributrios de gua branca,
principalmente nos parans.
O potencial econmico dessas plantas est na adaptabilidade ao solo frtil das vrzeas
amaznicas; ao seu ciclo de maturao compatvel com o regime das guas, (enchente, cheia,
vazante e seca); por fornecer fibras biodegradveis e gerar renda para os camponeses. Nesse
sentido, seu capital simblico vai alm dos entraves passados e atuais da cadeia produtiva,
pois os produtos oriundos dessas fibras tm potencial para se transformar em mercadorias de
forte apelo ecolgico, o que contribuiria para a agregao de valores e conseqentemente
ampliao de seu valor comercial tanto no mercado nacional, quanto internacional. So
muitos os produtos que podem ser desenvolvidos a partir das fibras de malva, entre eles esto:
sacos para armazenar gros, barbantes, telas, cordas, materiais para estofamento de veculos
dentre outros. Numa poca em que o mundo volta-se para temtica ecolgica e seus
desdobramentos, uma produo agrcola baseada na extrao de fibras vegetais, cujo impacto
ambiental mnimo (quando ocorre), e que tem na estrutura organizacional da famlia sua
maior fora de trabalho, uma atividade que se aproxima muito dos critrios do que se
convencionou chamar de sustentabilidade. Entretanto, o processo de trabalho nessa atividade
ainda bastante degradante e insalubre. Os perigos e o desgaste fsico so uma constante, e na
maioria das vezes no so compensados com o valor que se arrecada ao final da safra. Nesse
sentido, ocorrem em todo o processo dois tipos de degradao, a fsica e a moral. A primeira
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est relacionada diretamente ao processo de obteno das fibras, que realizado totalmente de
maneira manual e dentro da gua degradao objetiva do corpo.
O ltimo captulo, A Comercializao e seus Agentes, fecha a trade arendtiana, pois
entendemos que o momento da comercializao das fibras de malva o da ao. Neste
captulo, objetivamos mostrar os significados da vida activa dos trabalhadores da malva em
razo da comercializao desse produto. Analisaremos a dimenso da ao, do homo faber,
pois entendemos que o momento da comercializao , tambm, o momento da ao, no
sentido de que eles tm que se relacionar com os outsiders os agentes da comercializao no
mercado. Estes so sujeitos sociais que no produzem nenhum tipo de produto seja de
origem agrcola, criao animal ou extrativista apenas apropriam-se dos excedentes da
produo camponesa para vender e revender na cidade. A esfera pblica da comercializao
das fibras de malva revela a dimenso subjetiva do trabalho degradante, ela agora no mais
fsica e sim moral. Segundo Arendt (2007, p. 173):
A esfera pblica do homo faber o mercado de trocas, no qual ele pode exibir os produtos de sua mo e receber a estima que merece. Esta inclinao para a exibio pblica tem haver com a propenso de negociar, permutar e trocar uma coisa pela outra, que segundo Adam Smith, distingue os homens dos animais e de certo no menos arraigada que ela.
Entendemos que os trabalhadores da malva so sujeitos sociais detentores de grande
capacidade de trabalho, desejam apenas relacionar-se na esfera pblica como cidados
completos, no discurso, na ao, situaes que so prprias da esfera pblica, ou seja, o
desejo de estar entre os demais (inter homines esse), no de forma bestializada, com marcas
no corpo e no esprito, como ocorre atualmente, e sim com autonomia e dignidade. Isso se d
devido descapitalizao dos trabalhadores da malva, fato que os impossibilita de comprar
sementes e, por isso, so obrigados a adquirir sementes junto aos patres e marreteiros, numa
relao de aviamento e, tambm, no dispem de meios de transportes prprios para escoar a
sua produo sendo obrigados a vender para os agentes da comercializao que dispem de
tudo aquilo que o campons no dispe capital, meios de transporte e articulao com as
empresas de aniagem do Estado. Estes so os nicos compradores de malva dos beirades do
complexo Solimes/Amazonas.
Portanto, h muitos entraves que precisam ser removidos da cadeia produtiva da malva
no Estado do Amazonas, o acesso a sementes, polticas de preo mnimo contnuo e garantia
de compra da safra, implementao de novos mtodos de obteno das fibras, a abertura de
crdito para os produtores. A estrutura dessa cadeia produtiva deixa os camponeses
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produtores de malva refm dos agentes da comercializao e dependentes das aes dos
governos municipal e estadual.
O cultivo de malva e/ou juta pode contribuir para o estabelecimento de uma nova
racionalidade ambiental. Uma racionalidade que saiba utilizar as potencialidades do ambiente
de vrzea, desde que sejam removidos os entraves do processo produtivo e da
comercializao. Entendo que a vida na vrzea possvel, todavia o carter polivalente de
seus habitantes no pode desaparecer jamais, no pode ser desprezado por nenhuma poltica
pblica, pois os camponeses sabem conjugar como ningum terras, florestas e guas,
extraindo desses ambientes os recursos que demandam sua sobrevivncia.
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2 VRZEA AMAZNICA O LUGAR DA VIDA
2.1 Panorama da dinmica da vrzea
[...] A terra, substrato tanto da floresta como da gua, nunca, ou quase nunca, aparece como mercadoria ou seja, terras para se fazer negcios , mas sempre como terra que tem por destino nela se trabalhar [...] A terra do campons amaznico a terra de vrzea [...]. Sem a enchente e a cheia, que a fertilizam, e sem a vazante e a seca, que propiciam as condies para que a terra seja fecundada, as vrzeas como terras de trabalho no seriam possveis (WITKOSKI, 2007, p. 191).
No constitui objetivo desse estudo, especialmente nessa seo, descrever a vrzea na
sua totalidade, considerando com profundidade aspectos geomoforlgicos, hidrolgicos ou
climticos, para que isso ocorresse seria necessrio um tempo maior de pesquisa e, tambm,
um amplo dilogo com outros campos do saber. preciso considerar ainda, o fato de que
esses aspectos j foram abordados com propriedade por autores como M. Iriondo (1982), W.
Junk (1983), H. Sternberg (1998), E. Moran (1990; 1994) e outros. semelhana de Witkoski
(2007, p. 111) nos propomos abordar a vrzea como lcus dos caboclos-ribeirinhos, ou
melhor, dos camponeses amaznicos, apresentando a vrzea do rio Solimes como paisagem
natural e humanizada, onde habita, trabalha e vive o campons amaznico com sua famlia.
Pretendemos traar nesta seo, um panorama do modo de vida do campons que habita a
vrzea do sistema fluvial Solimes/Amazonas, especificamente das trs comunidades da
stima sub-regio do Estado do Amazonas, que compe a microrregio de Coari e Manaus
nas quais as comunidades se localizam, considerando o ambiente, sua complexidade e a
adaptabilidade desses sujeitos sociais, que tem no cultivo de malva sua maior fonte de renda.
Uma apresentao/descrio, ainda que de forma sintetizada desse ambiente,
importante porque na vrzea que se d o cultivo de malva, tambm na vrzea que os
trabalhadores da malva realizam outras atividades que esto relacionadas diretamente e
especificamente com a manuteno da vida. Atividade realizadas nos stios e quintais,
atividades de pesca, caa, extrativismo, criao de pequenos animais, dentre outros cultivos
agrcolas que tem por fim imediato sobrevivncia fsica e, posteriormente, eventualmente,
comercializao. Esse conjunto de fatores que vai definir o argumento da (re)produo
material e simblica da vida proposto neste estudo.
Nesse sentido, estudar a populao da vrzea conhecer os habitantes das margens
baixas do rio com maior volume de gua do mundo. tambm conhecer a regio de
colonizao mais antiga da Amaznia (LIMA, 2005 p.11). A Amaznia, como complexo de
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terra, floresta e gua, existe indiscutivelmente h muito tempo. Ela cronologicamente muito
mais velha do que a recente experincia do homem (WITKOSKI, 2007 p. 21). Sabe-se que
nessa regio, dois grandes ecossistemas destacam-se, trata-se da terra de vrzea e da terra
firme. De acordo com Lima (2005, p.11):
Ao longo dos 3.000 km de extenso do rio Solimes/Amazonas, em terras brasileiras, ocorrem dois tipos de ambientes: a vrzea, como chamada a rea de plancie inundada anualmente, e a terra firme, terras altas que consistem em extenses do plat do perodo tercirio que alcanam as bordas do rio. Esses dois tipos de ambientes se alternam ao longo das margens do rio, e neles moram populaes ribeirinhas que, embora vizinhas, apresentam modos de vida diferenciados.
importante destacar que a vrzea no apenas uma plancie que fica submersa por
um perodo de aproximadamente seis meses do ano, tambm no algo contnuo e
homogneo, de total fertilidade. Ela possui estruturas que possibilitam ambientes diferentes.
Para Moran (1990, p. 219):
Classificar uma rea como vrzea leva freqentemente a uma noo errada de seu potencial biolgico ou agrcola. Qualquer discusso relativa adaptao humana na Amaznia deve considerar pelo menos trs tipos de vrzea: vrzeas altas, vrzeas baixas e as vrzeas do esturio do Amazonas. Existem diferenas significativas entre as floras, as faunas, o aluvio depositado, o declive e a altitude, a acidez do solo e a produo de biomassa nestes trs tipos de ecossistemas amaznicos.
Iriondo (1982, p. 324) percebe bem essa heterogeneidade e afirma que a plancie
amaznica compreende a vrzea ou plancie propriamente dita que a faixa deprimida dentro
da qual corre o rio, constituda por seus depsitos de canal e de inundao. Ele divide a
plancie de inundao em quatro unidades geomoforlgicas diferentes, considerando a idade e
o tipo de influncia do canal do rio na sua construo. Para Iriondo, a vrzea constitui-se de
plancie de bancos de meandros antigos; plancies de bancos de meandros atuais; depsitos de
inundao e depsitos estuarinos. A plancie de bancos e meandros representa a fase atual,
diretamente ligada atividade do canal do rio Amazonas, que se configuram como faixas
estreitas de terras, mais baixas e que sofrem intensos processos de eroso ou colmatao
(PEREIRA, 2007 p. 15). A vrzea baixa, caracterizada mais por oportunidades que por fatores
limitantes com solos de aluvio ricos em nutriente e alta biomassa de peixes (MORAN,
1990). o principal ambiente que o campons utiliza para plantar, apesar da maioria dos
povoados localizarem-se acima das reas de inundao, ou seja, na terra firme ou nas terras
altas conhecidas como (restingas) raramente inundveis (MORAN, 1990 p. 223). Moran
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afirma ainda que a vrzea alta um ecossistema varivel, com reas ricas em nutrientes
provenientes dos Andes e reas cidas e deficientes em nutrientes, contradizendo o senso
comum sobre a fertilidade universal das reas de vrzea (MORAM, 1990 p. 223).
Segundo Pereira (2007 p. 14) [...] autores que estudaram a vrzea Amaznica fazem
referncia a um evento geolgico que separa a histria da construo da plancie de inundao
do rio Amazonas: a transgresso Flandrina durante o mdio Holoceno. Assim explica-se a
existncia de uma vrzea mais antiga (pr-flandrina) e uma vrzea de construo mais recente
(ps-flandrina). Para Ayres (1995, p. 17):
A vrzea pode ser grosso modo, dividida em dois tipos, dependendo de quando os sedimentos foram depositados. A vrzea mais antiga, formada durante os perodos interglaciais primrios, ocorre em reas que foram erodidas completamente e conhecida como vrzea do Pleistoceno. As plancies inundveis mais recentes (Glaciais Ps-Wrm) so chamadas de plancies inundveis do Holoceno.
Numa conceitualizao mais generalizada a vrzea parte do plaino aluvial, uma
forma fundamental produzida pela eroso lateral dos rios, definido como terreno baixo e
plaino bordejando o canal fluvial, e situado entre as paredes do vale (PEREIRA, 2007 p.13).
Ela corresponde aproximadamente 1,5 a 2% do territrio da Amaznia brasileira (75 a 100
mil Km2) (VIEIRA, 1992 p. 39). A extenso de sua largura, no entanto varivel. Segundo
Porro (1995 apud Fraxe 2000, p. 46), geralmente essa largura maior no baixo curso, a leste
de Manaus, onde so comuns larguras de 15 a 50 quilmetros. Essa variao de extenso e de
largura das vrzeas d-se devido ao processo de eroso das margens dos rios
Solimes/Amazonas, fenmeno conhecido como terras cadas e, tambm,
fundamentalmente, pelo maior ou menor aporte de sedimentos acumulados na extenso do
leito do rio principal e de seus afluentes. Segundo Siguio e Bigarella (1993 apud PEREIRA
2007, p. 22), os rios anastomosados caracterizam-se por apresentar canais largos, rpido
transporte de sedimentos e contnuas migraes laterais. Os deslocamentos laterais dos canais
ligam-se s flutuaes na vazo lquida (descarga) dos rios. Pereira (2007, p. 22) afirma que:
No rio Amazonas, em sua fase atual, o movimento de migrao lateral do canal no contnuo, pelo contrrio, intermitente, em funo dos intervalos maiores ou menores e de variao na intensidade da flutuao do nvel da gua. O movimento de migrao do canal o fator determinante na formao da paisagem [...] Estes processos diferem localmente, dependendo da forma da curvatura da margem do canal: na margem cncava predominam os processos de degradao; na margem oposta, de forma convexa predominam os processos de agregao.
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Na margem cncava do canal principal ou paran, em forma de barranco (margem
instvel) predominam os processos erosivos: em contato com um banco ou terrao mais
elevado, a correnteza mais forte do rio erode a margem (PEREIRA, 2007 p. 23).
Na margem convexa do canal ou Paran, predominam os processos construtivos. Com o transbordamento da margem do canal, o rio vai construindo uma espcie de dique. A maior parte da carga de sedimentos transportados pelo rio depositada na parte mais prxima do canal. Os primeiros sedimentos que se depositam nas partes emersas, ainda durante a fase caudal considervel, so os sedimentos mais pesados, a areia grossa, que se precipitam prximo margem do canal transbordado. Por serem partculas mais grossas, mais pesadas (menor rea superficial), o empilhamento mais rpido nessa faixa prxima ao canal. Essa borda que se eleva mais rapidamente acaba por formar um dique paralelo extenso do canal. Continuando o movimento de migrao lateral, a tendncia o isolamento de dique. No dique isolado, passam a predominar perodos de ambiente terrestres, at a perenizao de um ambiente verdadeiramente terrestre (PEREIRA, 2007 p. 23).
Esse fenmeno possui caractersticas prprias, sua dinmica no s transforma a
paisagem, como tambm traz conseqncias que afetam diretamente o modo de vida do
campons varzeano, no sentido de se perder ou ganhar terras. Para Sternberg (1998 apud
WITKOSKI, 2007 p. 117).
A fora da atividade fluvial na produo do solo varzeano to decisiva que condicionar a vida e a morte, por exemplo, do mundo vegetal. As guas ocupam um papel fundamental nos processos de formao dos terrenos aluviais afetando na s as qualidades diferenciais do prprio solo de vrzea, assim como as condies essenciais para a vida de plantas e animais em seu ecossistema O ecossistema da vrzea encontra-se circunscrito pela dinmica das guas.
Os perodos da enchente e da vazante representam dois momentos distintos para o
campons varzeano. Assim como pode haver um acrscimo de solo sua propriedade, pode
haver tambm diminuio. A rea de plantio pode ser favorecida ou prejudicada. De acordo
com Witkoski (2007, p. 122):
O rio no todo o tempo generoso com as populaes que habitam suas margens. O terreno depositado ciclicamente pelas enchentes, numa certa rea, poder desaparecer, com as vazantes, tambm cclicas. Numa palavra, as terras novas possuem a sua anttese as terras cadas.
A dinmica das guas propicia na maioria das vezes a formao de um tipo de solo
favorvel atividade agrcola, mas tambm pode interferir de forma negativa para a
permanncia do campons em um determinado local. A gua o principal fator para o
fenmeno das terras cadas. Segundo Sternberg (1998, p. 63):
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O principal fator responsvel pela aluio dos barrancos e consequentemente recuo das margens o aprofundamento do lveo (leito). O mesmo se d por uma ao vorticosa, gerada na ascenso de uma massa dgua. Trata-se de um dos mais comuns, se bem que mais importantes fenmenos da macroturbulncia nos rios... este fenmeno includo, com outras manifestaes vorticosas, na designao popular rebojo. [...] A escavao pelos kolks1 se verifica, sobretudo quando as guas se encontram em cota elevadas. Mas o efeito sobre as margens ocorre freqentemente na baixada das guas.
Figura 01 Fenmeno das terras cadas. Fonte: Nusec/Ufam e Luciana Menegaldo, 2008.
comum haver deslocamentos simplesmente porque a parte agriculturvel do terreno
acabou, ou diminuiu drasticamente a ponto de no haver mais possibilidades de agricultura ou
de pecuria. Quando isso ocorre o campons varzeano precisa ocupar novas reas, atualmente
nem sempre possvel devido estrutura fundiria desigual da regio. Para Witkoski (2007, p.
205):
A dinmica da vrzea exige adaptabilidade, nesse sentido, o campons varzeano desenvolve suas culturas agrcolas, tendo em suas mentes um mapa claro de suas propriedades e o alcance (altura) que, historicamente, as guas tm em sua unidade de produo; logo, sabendo exatamente onde se deve plantar isso ou aquilo, sempre se adequando s condies topogrficas do lugar onde se desenvolve sua vida.
O calendrio agrcola da vrzea elaborado, na maioria das vezes, levando-se em
considerao o regime fluvial e, tambm o pluvial (inverno e vero). Maio, por exemplo, o
ms que marca uma fase de transio, quando na maioria das vezes ocorre a normalizao das
chuvas e o nvel das guas atinge a cota mxima. Os meses de maio, junho e julho formam o
trimestre da cheia, quando uma grande parte das reas cultivveis fica submersa. O ms de
1 Trabalho executado pelas guas sugando em forma de redemoinho (suco vorticosa).
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julho e agosto marca o incio da vazante, esse perodo propicia rpida reintegrao de reas
submersas atividade agrcola. Sternberg (1998 apud PEREIRA 2007, p. 16) afirma que:
O regime do rio Amazonas apresenta uma caracterstica peculiar e particularmente favorvel ao uso agrcola da plancie de inundao. O ritmo da enchente mais lento que o da vazante. Nesse sentido, o nvel das guas leva cerca de oito meses para atingir o auge e vazam em apenas quatro.
A atividade agrcola do campons varzeano se intensifica de forma significativa a
partir do que conhecido regionalmente como vero. Nesse perodo as condies
edafoclimticas favorecem o desenvolvimento de vrias espcies agrcolas, bem como a
criao de gado utilizando as pastagens naturais das vrzeas emersas. Segundo Pereira (2007,
p. 17).
Os meses de agosto, setembro e outubro formam o perodo da seca. Nesse perodo a atividade agrcola intensa, so cultivadas as mais variadas espcies, tanto aquelas que so direcionadas para o mercado consumidor, quanto aos que se destinam ao abastecimento exclusivo da unidade familiar. Os meses de novembro, dezembro e janeiro formam o trimestre da estao mais amena, que corresponderia ao outono das regies subtropicais e temperadas, com condies ideais para o desenvolvimento das espcies agrcolas. Em anos normais, com o fim da seca, ocorre a normalizao da precipitao e a recuperao da umidade do solo. O trimestre de fevereiro, maro e abril correspondem enchente (subida das guas) e ao perodo chuvoso superiores a 250 mm mensais, baixa insolao e evapotranspirao.
Para Fraxe (2000, p. 104) nas comunidades rurais amaznicas, em sua grande
maioria, as condies materiais de sobrevivncia so obtidas, a partir da terra seca e da terra
molhada, ou seja, a produo de terra firme e a produo de vrzea. A vrzea, com seus
lagos e igaps, se transforma no mais importante meio de (re)produo da vida material e/ou
simblica dos camponeses varzeanos. Nos dizeres de McGrath et al. (1994, p. 389) os
ambientes utilizados da vrzea so,
[...] Os parans, que cortam a vrzea, formando ilhas; as restingas, que cortam a ilha; os campos alagados, que formam a margem do rio; e os lagos que ocupam o interior das ilhas. Os caboclos ribeirinhos utilizam todos esses ambientes. Os parans so utilizados para o transporte e para a pesca durante as migraes sazonais de algumas espcies de peixes; os ribeirinhos moram e cultivam suas roas nas restingas, a parte mais elevada da vrzea; os campos inundados so utilizados principalmente para a pastagem no vero, enquanto os lagos so unicamente para a pesca.
Todavia, preciso considerar o papel complementador que a terra firme exerce para os
que habitam nas vrzeas amaznicas. A dieta alimentar protica, por exemplo, tambm
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complementada, por exemplo, a partir da carne de caas desse outro ambiente.
Freqentemente eles utilizam essncias oleaginosas, como o pau-rosa (Amiba rosaeodora
ducke), a copaba (Carapa guianensis aubl), plantas ornamentais e medicinais, cascas comuns
na terra firme. Nas comunidades estudadas percebemos uma constante relao, ou melhor,
uma conjugao perfeita desses dois ambientes.
O ambiente de terra firme possui outra complexidade. Aproximadamente 98% da
plancie Amaznica constituem-se destas terras, que possuem uma altitude mdia de dez a
cem metros (SOMBRA, 1994). O destaque desse ambiente a floresta. Segundo Branco
(1989, p. 39) nome hilia proposto por Humboldt para o sistema muito caracterstico
encontrado em toda extenso da plancie amaznica, desde os contrafortes dos Andes at o
oceano Atlntico, tem simplesmente o significado de bosque, ou coleo de matria vegetal.
A floresta essencialmente alimentada no pelos nutrientes do solo, que so escassos, mas
pelo hmus que ela mesma produz por decomposio de suas partes mortas e que protege com
suas copas contra a violncia da chuva e do sol (FRAXE, 2000 p. 39).
A terra firme, apesar da pouca fertilidade de seu solo, fornece aos camponeses
amaznicos vrios produtos de forma gratuita. Na floresta de terra firme, ele encontra palha
branca (Athalea sp) para cobrir o seu tapiri2. Encontra madeiras nobres com elevado grau de
durabilidade, como por exemplo, a itaba (Mezilaurus itauba) e a cupiba (Goupia glabra),
que dependendo das condies em que so utilizadas duram muitos anos. H ainda outras
espcies, como a maaranduba (Manilkara huberi), muiracatiara (Astronium lecointei),
angelim (Dinizia excelsa) etc. No ecossistema de terra firme o campons amaznico obtm
protenas importantes para a complementao de sua dieta. As carnes que mencionei
anteriormente vm de animais como a anta (Tapirus terrestres), cutia (Dasyprocta azarae), tatu (Famlia dasypodida) paca (Agouti paca) e outros. H um nmero considervel de
plantas frutferas de elevado grau vitamnico: o buriti (Mauritia flexuosa), o aa-do-mato
(Euterpe precatria), a bacaba a bacaba (Oenocarpus minori), a castanha da Amaznia
(Bertholletia excelsa), dentre outras. Existem reas de terras pretas que so boas para o plantio de cana-de-acar, macaxeira, guaran, jerimum, batata doce, dentre outras culturas.
Pode se dizer que em muitas localidades desta regio, o campons amaznico conjuga com
habilidade e extrai desses dois ambientes os recursos que demanda a sua sobrevivncia.
A organizao de trabalho do campons amaznico do Baixo Solimes, e de outras
reas confirma os dizeres de McGrath et al. (1994), citado anteriormente, pois nas terras de 2 Barraca coberta de palha branca (Athalea sp), e as de inajaseiro (Maximilliana maripa). Serve principalmente para pernoitar em busca de caa, ou para atividades de curta durao no meio da mata.
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vrzea baixa e/ou alta, eles praticam agricultura de subsistncia, comercializando seus
excedentes, e criando pequenos animais. Nesse contexto, o subsistema stio e quintal so
importantes no s para a complementao alimentar, mas, tambm, eventualmente, como
gerao de renda para a famlia camponesa; na floresta de vrzea e/ou terra firme eles
praticam o extrativismo vegetal (lenha, madeira, frutos, plantas medicinais, etc.) e animal a
caa fundamentalmente, objetivando complementar e variar a dieta alimentar protica; no
ambiente gua, praticam o extrativismo animal pesca e caa. A caa na gua mais uma
singularidade desse campesinato, ela praticada pelo campons na maioria das vezes com
intuito de obter alimento para ele e sua famlia. Espcie como a capivara (Hidrochaeris
hidrochaeris) e o pato do mato (Cairina moschata) so bastante apreciados por eles, e so
caados efetivamente nos corpos dgua.
Mesmo para os camponeses que habitam somente na terra firme a gua tem papel
preponderante no modo de vida, pois como vimos anteriormente, as populaes amaznicas,
devido fertilizao natural dessas terras, utilizam bastante as reas de vrzea, principalmente
s baixas para fazerem plantios de culturas de ciclo curto. , tambm, das guas do ambiente
de vrzea que sai seu principal alimento os peixes e algumas caas. No se trata, entretanto
de uma compreenso do rio como comandante da vida. Apesar de ser quase irresistvel essa
idia, preciso relativis-la. Witkoski et al. (2007, p. 185) ajuda-nos nessa questo:
Ainda que talvez um pouco romntica, a viso de Leandro Tocantins, no deixa de apontar para um dos aspectos essenciais da realidade amaznica a primazia das guas como uma das precondies naturais na formao dos habitantes da vrzea. Ainda que o rio tenha, inquestionavelmente, uma centralidade relevante para uma correta compreenso do homem amaznico, na verdade no Amazonas, como em qualquer outro lugar do mundo a vida comanda a vida.
Se adotssemos o critrio da importncia de ambientes, como pressuposto para
reproduo material, no seria apenas o rio (gua) a comandar a vida, mas tambm, a floresta
e as terras de trabalho. O que ocorre de fato uma compreenso da dinmica da natureza por
meio de um conhecimento tradicional acumulado durante sculos, que permite s populaes
camponesas da Amaznia de maneira geral, e da vrzea especificamente, um modo singular
de relao com a mesma, em que prticas de sustentabilidade no uso dos recursos naturais
refletem a grande capacidade cognitiva dessas populaes em conhecer o seu mundo. Nesse
sentido, esse tipo de manejo, que se relaciona diretamente com a natureza e dela depende,
implica produzir com tecnologias de baixo impacto ambiental e com um fim especfico
primeiramente a sobrevivncia.
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Moran (1990) afirma que o ambiente reconhecido pela percepo do indivduo, mas
somente parte dessa percepo entra na cognio devido s estruturas ecolgicas que derivam
da linguagem e s rotinas passadas do indivduo na sociedade. Segundo ele, tais estruturas
tambm servem para avaliar o que entrou no consciente, a partir da se segue um processo de
deciso no qual interagem avaliao com rotinas culturais baseadas em experincias
anteriores. Para Lvi-Strauss (1989 apud DIEGUES 1996, p. 65):
O simbolismo e as representaes que os povos primitivos ou pr-industriais fazem da natureza constituem uma verdadeira cincia do concreto, um verdadeiro tesouro de conhecimentos da botnica, ictiologia, da famarcologia. [...], a grande dependncia dos recursos naturais, acabando por se obter um profundo conhecimento dos ciclos biolgicos e dos recursos naturais, tecnologias patrimoniais, simbologias, mitos e uma linguagem especfica [...].
Trata-se, portanto, de uma elevada compreenso do movimento cclico de fertilizao
da terra que permite manobrar sua biodiversidade e extrair da mesma os recursos que
demanda sua sobrevivncia. Pois o saber adquirido mediante a observao e a experincia
retida na memria, atravs do tempo, sempre fruto da relao entre os indivduos e a
sociedade e passa constantemente por ajustes culturais (WITKOSKI, 2007 p. 13). Portanto,
pode-se afirmar que o modo de vida do campons amaznico, trabalhador da malva,
representa um modo especfico de organizao social, de tentativa de autonomia e de
sobrevivncia que se contrape ao modo de vida capitalista de outros contextos. Trata-se de
uma outra lgica de relaes sociais de produo, a reclamar o direito de um outro modo de
trabalho, que comandado pelo tempo ecolgico, implica reconhecer e respeitar o ciclo das
guas num constante dilogo entre os ambientes.
2.2 A dialtica homem/natureza na Amaznia adaptabilidade pretrita
Nesta seo, objetivamos fazer algumas referncias, ainda que pormenorizadas ao
perodo de posse e conquista da regio amaznica pelas naes europias a partir do sculo
XVI. Sem enveredar por um assunto espinhoso, que trata das diversas teorias sobre a origem
do homem americano e amaznico, pretendemos falar um pouco de uma adaptabilidade
pretrita que uma marca indelvel das populaes que habitam as margens desse complexo
de terras, florestas e guas. Poderamos especular que a adaptabilidade das populaes
indgenas ao ecossistema amaznico de maneira geral, e da vrzea de maneira especfica,
to antiga quanto sua prpria formao. Entendemos que esse perodo redesenha a histria
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dos povos que habitavam a regio, no sentido da desconstruo de um modo de vida que
possua elevado grau de adaptabilidade ao ecossistema, fruto do conhecimento gestado por
vrias geraes durante sculos e, tambm, da capacidade plstica desses povos de se adaptar
s condies mais hostis da natureza.
Segundo Freire et al. (1994) quanto ocupao da Amaznia brasileira antes da
chegada do colonizador europeu, existem variadas hipteses dando conta de diferentes ondas
de migraes, apesar das dificuldades encontradas pela pesquisa arqueolgica. Para Porro
(1995 apud WITKOSKI 2007, p. 53):
Todos os povos indgenas da Amrica, desde os Esquims at os Patagnios, passando pelos peles vermelhas, Astecas e Maias (habitantes do Mxico), Incas (habitantes do Peru) e todos os ndios do Brasil, so originrios da sia e, possivelmente, tambm da Oceania. Em poca que ainda desconhecemos, mas que pode ter comeado h mais de 40 mil anos ou 50 mil anos quando a agricultura, a cermica e a tecelagem ainda no haviam sido inventadas e a humanidade vivia no paleoltico comearam as migraes que levaram ao povoamento da Amrica.
Nenhum outro povo pde contemplar e verificar in loco tal capacidade como os
europeus que por aqui passaram a partir do sculo XVI. O processo civilizatrio
implementado por esses povos nas Amricas de maneira geral e na Amaznia de modo
particular, a partir desse sculo, poderia muito bem ser definido como o alvorecer de uma era
de sangue. Poderamos especular e dizer que foi difcil para o ser europeu suportar tamanha
plasticidade e vida com outra perspectiva teleolgica.
So nas margens do rio Solimes/Amazonas que foram formados os primeiros ncleos
de ocupao dos portugueses que vieram para a Amaznia no sculo XVI. Etnocentrismo
parte, eles encontram aqui elevada organizao social, assinaladas por complexos sistemas
polticos, de comrcio relaes intertribais, bem como atividades de subsistncia e
manufaturas, alm de cerimnias e crenas religiosas (PORRO, 1995). Os europeus souberam
compensar muito bem a ausncia, primeira vista, de ouro e prata, e se valeram da enorme
densidade demogrfica da regio, para transformar a fora de trabalho indgena no maior
tesouro encontrado no vale amaznico. Freire et al. (1994, p. 13) afirma que o primeiro
cronista que viajou ao longo da Amaznia foi Gaspar de Carvajal na expedio de Francisco
Orellana, e que em seu relato indica elevada populao nas margens do rio Amazonas.
Vinte anos depois de Carvajal, os cronistas Francisco Vasquez e o Capito Altamirano oferecem dados do que viram dando conta de que toda a vrzea do Amazonas era densamente povoada. J em pleno ano de 1639, o padre Acua confirma: so to seguidas estas Naes, que dos ltimos povoados de umas, em muitas delas, se ouvem lavrar paus nas outras. O prprio Pedro Teixeira, na
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mesma poca, sintetiza: Rios todos muito caudalosos, e com tanto nmero de ndios de diferentes naes, que impossvel poder nome-los. (FREIRE et al., 1994 p. 13)
A respeito da densidade demogrfica na Amaznia no perodo de posse e conquista
Porro (1995, p. 08) afirma que quase tudo que se sabe fruto de pesquisas e reflexes dos
ltimos vinte anos. Segundo ele a postura predominante na antropologia americana, com
relao demografia indgena, caracterizou-se, at a dcada de 1960 pelo conservantismo.
Partia-se quase sempre da premissa de que as estimativas dos primeiros cronistas eram sempre exageradas e, portanto, deviam ser descartadas. Essa postura parece ser resultado da noo geopoltica de que o tamanho da populao um fator determinante do poder nacional ou tribal; constatando-se relativa facilidade com que o indgena foi submetido em todo o continente e a escassez da populao atual, arraigou-se a convico de que a Amrica havia sempre sido um continente pouco povoado. Projetava-se dessa forma, para o passado, uma imagem construda a partir do ndio submetido. Quando havia necessidade de tomar como testemunho dessa imagem a populao original, apresentavam-se os primeiros censos demogrficos da administrao civil missionria. Ocorre que, salvo nas regies onde o sistema colonial se sobreps s civilizaes urbanas Mesoamrica e Andes centrais tais censos foram muito posteriores s vezes em 100 ou 200 anos aos primeiros contatos. Nesse perodo crucial as guerras e as doenas j haviam provocado uma drstica reduo da populao indgena, reduo que em estudos recentes indicam ter sido de propores variveis desde 3 para 1 at 20 e mesmo 25 para 1. Ou seja, tomou-se como populao original aquela que j havia sido dizimada pela conquista. (PORRO, 1995 p. 9-10).
Somente a partir do estabelecimento de novas evidncias arqueolgicas no vale
amaznico e, tambm, sob a influncia de novas metodologias inauguradas, principalmente a
partir da escola de Berkeley vai haver o incio de um longo processo de reviso dessas
teorias. Segundo Porro (1995), Cook, nome de expresso da escola de Berkeley a partir da
dcada de 1970, trabalhando com documentao da Mesoamrica, norte do Mxico e oeste
dos Estados Unidos resgata o valor historiogrfico dos cronistas no tocante demografia
indgena.
Entre suas contribuies deve se destacar a constatao de que as frentes crticas de tendncia ao exagero nos nmeros por parte dos conquistadores e missionrios no tem fundamentao emprica; pelo contrrio, evidenciam casos significativos de subavaliaes da populao, destinadas a permitir a sonegao de tributos ao fisco real por parte dos encomenderos e a no despertar a ganncia desses por parte de misses religiosas indefesas (PORRO, 1995 p. 11).
muito difcil descrever com preciso o nmero exato de amerndios na Amaznia no
incio da colonizao. Em poucas linhas no se pode resumir todas as variantes e a rica
complexidade de centenas de tribos com grande diversidade em suas atividades econmicas,
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na diviso etria e sexual do trabalho, nas formas de chefia, nas normas morais etc..
(FREIRE, 1994, p. 13). Contudo, no se pode menosprezar estudos avanados sobre
adaptabilidade humana e, tambm, sobre a geodiversidade da vrzea dos ltimos tempos.
Moran, (1990 p. 251) afirma que as populaes pr-coloniais da Amaznia parecem ter tido
suas maiores densidades geogrficas nas reas de vrzea baixa e em reas de vrzea alta de
rios brancos como o Solimes, o madeira e o Huallaga. Denevan (1976 apud MORAN 1990,
p. 231) estima que a populao da vrzea baixa teve uma densidade demogrfica de 8,0
hab/km2 em 1651. Corrigindo-a pela taxa de despovoamento nos primeiros 100 anos de
contato ele estima uma densidade de 28,0 hab/km2 em 1500.
A fertilidade do ecossistema de vrzea, anualmente renovadas pelas enchentes dos rios
Solimes/Amazonas, potencializou cultivos agrcolas de extrema importncia que sustentaram
inmeros povos indgenas durante sculos e que estavam em pleno desenvolvimento quando
da chegada do europeu. Povos como Omguas e Tapajs constituam-se em sociedades
hierarquizadas, tais como cacicados hereditrios com grupos de nobres, escravos capturados e
uma classe baixa (MORAN, 1990 p. 231). Carvajal e outros cronistas da poca do
descobrimento indicaram claramente que as populaes na margem das vrzeas eram
numerosas e com povoados que se estendiam por muitas lguas (Ibidem). Um contingente
populacional nesse ambiente s seria possvel se houvesse possibilidades reais de produo de
alimentos. Segundo Freire et al. (1994, p. 14) as populaes que habitavam a vrzea
conheciam a dinmica das guas, (enchente, cheia, vazante e seca), a partir da programavam
a semeadura e a colheita. Eles detinham o conhecimento das tcnicas de armazenamento que
protegiam os alimentos durante a cheia dos rios.
Alm da mandioca, outros produtos agrcolas foram domesticados, como o milho, o algodo, o tabaco e certas rvores frutferas. O aproveitamento da imensa fertilidade da vrzea permitia uma diversificao muito grande de produtos tais como caa (antas, capivaras, jacars, quatis, macacos, etc.), pesca (peixe-boi, tartarugas) e coletas de frutos (abacate, abacaxi, castanha, ing, etc.). Por essas razes, a vrzea era muito mais habitada do que a terra firme, que alm de no ser to frtil, requisitava maiores cuidados, exigindo a derrubada e a queima da mata antes do plantio e, aps duas colheitas, os ndios deslocavam suas roas pra outro local, devido ao rpido esgotamento do solo. (FREIRE et al., 1994, p. 14).
O texto de Freire revela a lgica subjacente ao conhecimento que esses povos tinham
do mundo natural, das taxonomias e classificaes gerais. A adaptabilidade do amerndio aos
ecossistemas, tanto de vrzea quanto da terra firme, revela, em maior ou menor escala, a
grande capacidade desses povos em conjugar com destreza os elementos terras, florestas e
guas. Talvez possa haver questionamentos quanto ao nvel dessa adaptabilidade, no sentido
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dela ser perfeita ou no. Se tivermos como parmetro o estgio atual das populaes
tradicionais indgenas ou no, dizimadas no mais pela fora do arcabuz, mas agora pela
misria, fome, doenas, influncia da sociedade envolvente e desmandos polticos, ou seja, se
projetarmos para o passado imagem presente dessas precarizaes, de fato poderamos no
ter segurana nessa questo. Entretanto, esse no seria o melhor parmetro. Parece ser
consenso tese da adaptabilidade dos amerndios aos ecossistemas amaznicos em estudos
mais recentes (MORAN, 1990; ROOSEVELT, 1991; LATHRAP 1977; PORRO, 1995,
dentre outros). no mnimo intrigante que a densidade demogrfica do incio da colonizao
apontada por estudiosos do assunto se apresente como superior densidade demogrfica da
Amaznia atual. A destruio da floresta, da fauna e da flora parece demonstrar que a
civilizao que se assenta no capital, guiada pela lgica do mercado e que possui uma viso
utilitria da natureza, no consegue sequer gerir os recursos naturais desse ambiente e dar
garantias reais de (re)produo material e simblica das geraes futuras, apesar de todo seu
aparato tecnolgico, argumento que quase sempre utilizado quando se quer distinguir
moderno de primitivo. O relacionamento dessa sociedade com a natureza diametralmente
oposto relao que era mantida pelos amerndios quando da poca da colonizao dessa
regio. A relao dialgica que esses povos mantinham com a natureza nunca ser entendida
pela racionalidade economicista dos conquistadores portugueses e outros europeus
(WITKOSKI, 2007 p. 28). O tempo de produo do sistema dessa sociedade atual
inversamente oposto ao tempo de produo e reproduo da natureza. A verdade que essa
sociedade ainda no se revelou capaz at agora de desenvolver um sistema adaptativo
ajustado s condies da floresta tropical, multiplicvel atravs de um modelo empresarial
que lhe assegure viabilidade econmica (RIBEIRO, 1998). Atualmente a densidade
demogrfica na bacia amaznica cerca de 3,4 habitantes por Km2, com uma populao de
aproximadamente 17 milhes de habitantes, onde 62% da populao vivem na zona urbana e
38% na zona rural3.
3 Fonte: Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia INPA. Disponvel em www.inpa.gov.br. Coordenao de extenso.
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Tabela 01 Densidade demogrfica da Amaznia legal.
Estado Populao (hab.) rea
(km) Dens. Demogrfica
(hab./km) Rondnia 1.453.756 237.576,167 6,12Par 7.065.573 1.247.689,515 5,66Tocantins 1.243.627 277.620,914 4,48Acre 655.385 152.581,388 4,29Amap 587.311 142.814,585 4,11Amazonas 3.221.939 1.570.745,680 2,05Roraima 395.725 224.298,980 1,76
Fonte: Contagem populacional do IBGE, maro de 2007.
A adaptabilidade, portanto, no algo gratuito, que est posto, ela o corolrio de
uma relao sincrnica com o ambiente. Marx (1965, p. 15) no texto A Ideologia Alem
afirma que:
A condio essencial de toda histria humana , naturalmente, a existncia de seres humanos vivos [...] Podemos distinguir os homens dos animais pela conscincia, pela religio e por tudo que se desejar. Os prprios homens comeam a se distinguir dos animais a partir do momento em que comeam a produzir seus meios de existncia, passo frente que foi conseqncia mesma de sua organizao fsica. Ao produzirem os seus meios de existncia, os homens produzem indiretamente sua prpria vida material.
Tal processo, afirma ele, consiste numa ao consciente do homem sobre a natureza e
na permanente transformao dessa em bens necessrios manuteno de sua vida. Assim, o
homem realiza trabalho, isto , cria e reproduz sua existncia na prtica diria, e faz isso
atuando na natureza. Essa interao do homem com a natureza , e ao mesmo tempo produz,
evoluo social. Uma comunidade humana, por mais bem sucedida que seja sempre ter
alguma dimenso de sua vida carente de adaptabilidade (WITKOSKI, 2007 p. 55). Para
Moran (1990, p. 31):
Quanto maior for o tempo durante o qual uma populao habita um ambiente estvel, maior ser o grau da adaptao dessa populao s vrias presses ambientais. Igualmente, uma populao deslocada recentemente para uma rea com diferentes caractersticas ambientais mostrar muitas adaptaes desenvolvidas a partir das condies da rea de origem que so inadequadas nova situao. Na nova rea, a populao migrante ter que aprender sobre as novas condies ambientais. Tal processo ser mais rpido se existir uma populao habitando o local anteriormente.
Atravs do ajuste cultural, o homem (re)age rapidamente as mudanas ambientais, a
elas se adaptando (WITKOSKI, 2007). Retirar algo da natureza ou determinar um tipo de uso
http://pt.wikipedia.org/wiki/Rond%C3%B4niahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Par%C3%A1http://pt.wikipedia.org/wiki/Tocantinshttp://pt.wikipedia.org/wiki/Acrehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Amap%C3%A1http://pt.wikipedia.org/wiki/Amazonashttp://pt.wikipedia.org/wiki/Roraima
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para alguma parte da natureza pode ser considerado, e o que acontece na linguagem comum,
uma apropriao, que , pois originalmente, apenas um aspecto de trabalho. O homem,
portanto, no apenas um habitante da natureza, ele se apropria e transforma as riquezas da
natureza em histria e sociedade. Essa relao que se instaura entre homem e natureza
expressa a ao que a natureza sofre das leis do desenvolvimento social e, ao mesmo tempo, o
homem sofre das leis naturais. Para Moran (1990 apud WITKOSKI 2007, p. 55):
O processo de adaptao pode seguir uma srie de caminhos. O mais importante (embora no seja o nico, mas, talvez, o mais importante) a difuso cultural. Contudo, o etnocentrismo inerente a cada cultura constitui-se, s vezes, em obstculo difuso e/ou assimilao de certas idias e prticas [...]. Na ausncia da difuso cultural, os indivduos de uma populao podem desenvolver novas formas de adaptao. O homem uma criatura inovadora, mas a difuso de inovaes dentro de uma populao limitada por inmeras foras que pretendem manter o controle sobre a mudana cultural [...]. (Por outro lado), todo sistema adaptativo caracteriza-se por seu carter conservador, e as sociedades humanas no so excees [...]. O mais comum o esforo de manter os padres culturais, seja qual for o ambiente. Se as prticas obtm resultados aceitveis, possvel que no ocorram mudanas a curto prazo. Contudo, se as prticas levarem a resultados negativos, que ano aps ano coloquem em perigo a sobrevivncia, alguns indivduos na populao tendem a promover mudanas de modo a levar melhor adaptao s novas condies. A difuso de novas prticas facilitada em qualquer populao pela prtica de exogamia e pelo intercambio econmico com outras populaes. Tais processos fazem com que continuamente novos valores e idias sejam incorporados pelas populaes, mantendo o processo de mudana cultural como um elemento fundamental do processo adaptativo.
necessrio compreender que a relao homem e natureza histrica e que, mesmo
com a agressividade ambiental, novos equilbrios podem ser produzidos. O aumento das aes
humanas sobre os ecossistemas provoca uma urgente mudana na forma de pensar e agir
sobre a natureza. Essa nova viso prende-se, sobretudo, ao conceito de interdependncia dos
ecossistemas, estando o homem necessariamente presente como principal sujeito modificador,
cuja atividade pode alterar acelerar e/ou retardar determinados processos.
A vrzea concebida aqui como o lugar da vida, no sentido de um processo de
construo de relaes sociais, de organizao poltica, econmica e territorial de seus
habitantes, onde as condies de apropriao do espao, de adaptabilidade e, sobretudo, de
subsuno da natureza, refletem a percepo de um espao fsico e simblico. o lugar da
vida no contexto onde se do as relaes, ou seja, no cotidiano dialtico entre homem e
natureza e, principalmente, entre os prprios homens no sentido de suas prticas
socioculturais.
2.3 O campons varzeano
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Nessa seo discutiremos sociologicamente o campons. Sem a pretenso de esgotar o
tema, e sem enveredarmos no campo das discusses epistemolgicas dessa categoria,
objetivamos apenas conceituar sociologicamente os trabalhadores da malva. Esses sujeitos
sociais possuem um modo de vida ligado a terra, agricultura, ao mundo rural, enfim,
possuem caractersticas que o enquadram perfeitamente nesse conceito sociolgico, pois
apresentam caractersticas prprias e compatveis aos modelos tericos. No que concerne, por
exemplo, a relao intrnseca com a natureza, uma relao de simbiose refletida nas aes
prticas e cotidianas de comrcio, da relao que o mesmo mantm com o mercado local, sua
sociabilidade presente no dia-a-dia entre vizinhos e as instituies, visando objetivos prprios
alicerados em distintas especificidades. Esta diretriz epistemolgica tem o propsito de
apreender ao mximo uma realidade humana e as necessidades relacionadas aos processos da
vida.
O termo campons pressupe vrias caractersticas que remontam um processo
terico, de acordo com Bottomore (1988), a figura socioantropolgica do campons todo
indivduo que vive na e da terra, isto , possuem seus meios de produo, instrumentos de
trabalho e opera, na grande maioria das vezes, com fora de trabalho familiar.
A categoria campons, etimologicamente vem de campo (campus, no latim), no no
meio rural brasileiro, mais rica em contedo do que lavrador, que contm na raiz a palavra
latina labor; esta no s quer dizer trabalho, mas remete a esforo cansativo, dor e fadiga
(MOURA, 1986 p. 16). Portanto, viver da terra, do que ela lhe oferecer, manter relaes
sociais tanto em sua localidade quanto com a sociedade envolvente, ter profundos
conhecimentos do tempo e do espao, so marcas indelveis desse sujeito social, cujo modo
de vida perpassa os limites geopolticos de uma nao. O modo de vida campons pode ser
observado em vrias regies, tanto no Brasil como em outras partes do mundo.
Chayanov (1974) elabora uma definio de campons cuja base a prpria famlia e
as determinaes que a estrutura familiar impe sobre o comportamento econmico. Sua
definio expressa entre a relao balano do trabalho e consumo da prpria famlia, e
identificado como um indivduo que se relaciona intrinsecamente com o ambiente em que
vive de forma equilibrada. Assim, so os laos comunitrios locais, bem como o conjunto de
regras coletivas, os vnculos de natureza personalizada e o carter extra-econmico das
prprias relaes de dependncia social que explicam as particularidades sociais e culturais do
campons, no podendo de fato ser compreendido apenas por seu comportamento econmico.
Ainda segundo Chayanov (1974), o campesinato no apenas um setor social ou um modo de
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produo especfico; trata-se de um sistema econmico com caractersticas que o diferencia
de outras relaes de trabalho assalariado.
O campesinato varzeano definido aqui como um lugar de singularidades e
especificidades, onde as relaes de trabalho ligadas estrutura organizacional da famlia, a
partilha de bens comuns so definidas principalmente pelas prticas de ajuda mtua a
solidariedade vicinal. O campesinato como problema sociolgico encontra-se presente nas
teorias dos clssicos que estudam a questo agrria. Uma categoria em extino? Esse
questionamento j foi feito algumas vezes no mbito das Cincias Sociais. No interesse
renovado e crescente de conhecer e compreender o que campons, existe algo especialmente
atraente e capaz de suscitar a avidez de respostas que s vezes originam grandes incgnitas
(MOURA, 1986). Se os camponeses continuam existindo nos dias de hoje provvel que
continuem a existir por muito tempo (SHANIN, 1980 apud MOURA, 1986 p. 17). O
campons varzeano do rio Solimes, no caso especfico os trabalhadores da malva, podem ser
considerados como sujeitos sociais possuidores de capital cultural que conseguem a partir
de conhecimentos acumulados, transferidos s geraes futuras por um habitus adaptar-se
dinmica das guas, elemento regulador de suas atividades agrcolas e manterem-se vivos
diante da sempre crescente relao capitalista de produo na regio. fato que o sistema
capitalista dominante, que determina a organizao do trabalho e da apropriao da terra em
muitas formaes sociais espalhadas pelo mundo, no erradicou o campons (MOURA,
1986 p. 17).
Em outras palavras, os processos sociais que viabilizam a existncia do campons tm sido mais expressivos e fortes do que aqueles que o levam extino. mais correto falar em recriao, redefinio e at diversificao do campesinato do que fazer uma afirmao finalista. Se, diferentemente dos demais meios de produo, a terra no reprodutvel, por que ento que o campons permanece nela sem que a lgica capitalista demande sua completa expropriao? Esta questo no se explica quando se diz que o campesinato passa a se articular com o sistema econmico mais forte. Ocorre que o campons desempenha um papel contraditrio que, de um lado, expressa a sua resistncia em desaparecer e, de outro resultado do prprio capitalismo que no o extingue. Este no s extrai sobretrabalho dos operrios, como tambm capta onde possvel. Entre essas possibilidades encontra-se o trabalho campons. nesse contexto de dramticas tenses que o campons vive no meio rural contemporneo. (MOURA, 1986 p. 19).