Dissertação Doutoramento Coimbra Claudio Pedrosa Nunes§ão... · havia realizado um estudo tão...
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FACULDADE DE DIREITO
DOUTORAMENTO EM DIREITO
UMA REFLEXO CONCEITUAL-JURDICO-CRIST DE JUSTIA EM TOMS
DE AQUINO
Claudio Pedrosa Nunes
Coimbra, Abril de 2011
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II
UMA REFLEXO CONCEITUAL-JURDICO-CRIST DE JUSTIA EM TOMS
DE AQUINO
Claudio Pedrosa Nunes
Dissertao apresentada ao Curso de
Doutoramento em Cincias Jurdico-Filosficas
como requisito para acesso s provas de obteno
do grau de Doutor.
Orientador: Professor-Doutor Mrio Alberto
Pedrosa dos Reis Marques
JURI CONSTITUDO
_______________________________________________________________
Professor-Doutor
______________________________________________________________
Professor-Doutor
_______________________________________________________________
Professor-Doutor
______________________________________________________________
Professor-Doutor
______________________________________________________________
Professor-Doutor
Coimbra, Abril de 2011
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III
DEDICATRIA
Dedico este estudo minha querida me CREUSA
PEDROSA NUNES, exemplo singular de dignidade,
honradez e aguado senso de Justia. Sua elevada
envergadura tico-moral me renova e inspira a
convico de que, na cidade dos homens, nem tudo
est perdido.
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IV
AGRADECIMENTOS
A Deus Criador, a Nossa Senhora de Ftima
(Portugal) e a Santo Toms de Aquino, razes de
vida, inestimveis na devoo, fonte de sabedoria e
de inspirao no meu espinhoso ministrio de julgar.
Ao digno e culto Professor MRIO ALBERTO
PEDROSA DOS REIS MARQUES, cuja firmeza de
concepes e admirvel saber jusfilosfico elevaram
sobremaneira meu aprendizado e a qualidade da
pesquisa, inserindo-me, com incomensurvel
proveito, no fascinante mundo do saber jurdico-
filosfico.
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V
RESUMO
O presente estudo objetiva oferecer uma reflexo originria do mundo medieval capaz de
demonstrar a singular significncia, importncia e conceituao da virtude da Justia a partir
do pensamento jurdico-filosfico de Santo Toms de Aquino. Volta-se o estudo para uma
poca mpar da histria da humanidade, capitaneada pelo pensamento cristo, mas, tambm,
envolta em um espao e tempo de grandes transformaes geradas pelo saber acadmico-
formal e pelo desenvolvimento das cincias, particularmente das cincias humanas. Nessa
dimenso, eclode o surgimento e apogeu das universidades, onde a escolstica tomista triunfa
soberana, inaugurando e fincando os fundamentos da universalizao do conhecimento. Junto
a isso, categorias jurdico-filosficas como a lei e o Direito auferem nova dinmica,
designadamente por conduto do novel sistema jurdico-religioso tomista, dotando a virtude da
Justia de instrumentais que a elevam a categoria central promotora da legitimidade e
estabilidade das relaes humanas. A Justia em Toms de Aquino salta, destarte, de um
domnio puramente abstrato para avanar como padro tico-moral de sensvel e palpvel
aplicao no mundo emprico dos homens, sempre sob orientao e ordenao filosfica e
jurdico-crist. Embora complexa, a ideia de Justia em Toms de Aquino coesa,
sistemtica, cientfica e, diante disso, utilizvel para o bem e a felicidade dos homens,
conferindo o devido e necessrio norte para alcance da pacificao social. A diviso didtica
da Justia segundo Toms deriva do cuidado do preclaro medieval em conferir-lhe uma
configurao de aplicao concreta no ambiente da razo, munindo-a de densidade tico-
jurdica sugestiva de sua assimilao pelos homens no mundo real que o circunda. dizer que
a Justia geral e a especial refletem um dualismo peculiar de legitimao para as variaes das
relaes humanas, pblicas e particulares, com potencial para socorrer os protagonistas dos
mais elevados e dos mais simplrios pactos, numa dosagem de igualdade que nem sempre
expurga os extremos. Por fim, entendemos admissvel uma reflexo conceitual e jurdico-
crist da Justia tomista como elemento de insero interpretativa que pode auxiliar na
compreenso e aplicao do Direito do nosso tempo, especialmente pelo mrito de conferir a
ele, o Direito, a condio de objeto da Justia, e, com isso, consumando-o como categoria
indissocivel do ideal de dar a cada um o que seu. Palavras-chave: Conceituao. Justia.
Jurdico-crist. Santo Toms de Aquino. Escolstica tomista. Direito natural. Direito
medieval.
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VI
ABSTRACT
This study seeks to offer an originating reflection about the medieval world able to
demonstrate the particular significance, importance and concept of the virtue of Justice from
the legal-philosophical thought of St. Thomas Aquinas. It turns to the study of a unique era in
human history, led by Christian thought, but also wrapped in a space and time of huge
transformations generated by the formal-academic knowledge and the development of
science, particularly the humanities. In this dimension, the rise and heyday of the universities
hatch, where the Thomist scholasticism triumphs sovereign, opening and digging the
foundations of universal knowledge. Besides this, the legal-philosophical categories such as
law and Law Studies receive new impetus, particularly because of the new legal and religious
Thomist system, giving the virtue of Justice the instruments which elevate it to the central
category promoter of legitimacy and stability of human relationships. Justice in Aquinas
jumps, thus, from a purely abstract field to an advance one as an ethical and moral standard of
sensitive and tangible application in the empirical world of men, always under the
philosophical and legal-Christian guidance and ordering. Although the idea of Justice in
Thomas Aquinas is complex, it is cohesive, systematic, scientific and, before that, usable for
the welfare and happiness of men, giving necessary and due north to reach the social
pacification. The didactic division of Justice according to Thomas Aquinas comes from the
illustrious medieval care to give it a setting of concrete application on the environment of
reason, arming it of legal and ethical density suggestive of its assimilation by men in the real
world that surrounds them. It is said that the general and particular justice reflect a peculiar
dualism of legitimation for the variations of human, public and private relationships, with a
potential to help the protagonists of the highest and the most simplistic pacts, with a dose of
equality which does not always purge the extremes. Finally, we consider that it is acceptable a
conceptual and legal-Christian reflection of Thomist Justice as an element of interpretative
insertion that can assist in understanding and applying the Law of our time, especially in the
merit of giving it, the Law, the condition of object of Justice and, with it, consuming it as
inseparable category from the ideal category to give each person what is his/her own.
Keywords: Conceptualization. Justice. Legal-Christian. St. Thomas Aquinas. Thomist
scholasticism. Natural right. Medieval Law.
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VII
SUMRIO
INTRODUO ..................................................................................................................... 11
CAPTULO 1. APROXIMAO AO PERSONAGEM EM ESTUDO: SANTO TOMS
DE AQUINO ...........................................................................................................................27
1.1. Lugar de nascimento, famlia e vocao .......................................................................... 27
1.2. Atrado pela vida religiosa ............................................................................................... 31
1.3. Oposio da famlia e sequestro ....................................................................................... 35
1.4. Fuga para dedicao a Deus ............................................................................................. 39
1.5. Formao acadmica e produo cientfica ..................................................................... 45
1.5.1. Paris e Colnia ........................................................................................................ 48
1.5.2. Iniciao docncia ................................................................................................ 56
1.5.3. Os mestres seculares ............................................................................................... 58
1.6. Enfermidade, ltimos dias e canonizao ........................................................................ 60
1.7. Um instigante ressurgimento ........................................................................................... 65
CAPTULO 2. AVATARES DO SABER JUSFILOSFICO CRISTO: A
ESCOLSTICA TOMISTA ................................................................................................ 73
2.1. Surgimento e apogeu das universidades .......................................................................... 73
2.2. Escolstica tomista e suas caractersticas ......................................................................... 99
2.3. Resgate de Aristteles e o racionalismo teolgico-filosfico medieval ........................ 108
2.4. Ainda sobre a metafsica aristotlica: alma e corpo; f e razo ..................................... 130
2.5. Cincia terica e cincia prtica ..................................................................................... 142
2.6. F e razo na Summa Contra Gentiles ........................................................................... 146
2.7. A verdade ....................................................................................................................... 153
2.8. O intelecto ...................................................................................................................... 158
2.9. F, razo e virtude da Justia em Santo Toms: um cone da escolstica ..................... 160
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VIII
2.10. O classicismo, ecletismo e formalismo de Santo Toms ............................................. 164
2.11. Os novos rumos do tomismo ........................................................................................ 174
CAPTULO 3. PERFIL DA FILOSOFIA JUSPOLTICA TOMISTA ........................ 181
3.1. Estado, virtudes e ideais polticos: entre Aristteles e Toms de Aquino ..................... 181
3.2. Uma fonte juspoltica de excelncia: Aristteles ........................................................... 189
3.3. Uma fonte juspoltica de autoridade: Santo Agostinho ................................................. 207
3.4. O direito-lei sob a tica juspoltica tomista ................................................................... 229
3.5. Precedente aristotlico da Justia tomista: a tica a Nicmaco ..................................... 241
CAPTULO 4. A LEI NA SUMA TEOLGICA E SUA RELAO COM A JUSTIA
.................................................................................................................................................253
4.1. O sistema jurdico-religioso tomista .............................................................................. 253
4.2. O Direito Natural no sistema jurdico-religioso tomista ................................................ 291
4.3. Importncia do sistema jurdico-religioso tomista na atualidade ................................... 307
4.4. O sistema tico-jurdico tomista .................................................................................... 313
4.5. Metodologia positivista e a tica tomista dos valores .................................................... 324
4.6. Inspirao tomista da lei moderna ................................................................................. 335
4.7. O racionalismo jurdico medieval-tomista como elemento hermenutico ..................... 341
CAPTULO 5. CONCEITUAO DE JUSTIA NA SUMA TEOLGICA ............. 351
5.1. Intrito ............................................................................................................................ 351
5.2. A Justia e suas caractersticas fundamentais ................................................................ 353
5.2.1. A Justia e o bem comum .................................................................................... 355
5.2.2. Justia como virtude mais elevada ...................................................................... 361
5.2.3. Justia como inverso de injustia ........................................................................ 368
5.3. A Justia e os juzes ....................................................................................................... 376
5.4. Diviso da Justia ........................................................................................................... 394
5.4.1. Prolegmenos ...................................................................................................... 394
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IX
5.4.2. Perfil divisrio da Justia tomista na Suma Teolgica ........................................ 395
5.4.3. Uma sntese ......................................................................................................... 429
CAPTULO 6. COMPLEXO CONCEITUAL TOMISTA DE JUSTIA .................... 435
6.1. Excelncia da Justia ..................................................................................................... 435
6.2. Justia e cincia .............................................................................................................. 448
6.3. Justia na atual tradio filosfica ocidental .................................................................. 458
6.4. Justia Direito Natural ................................................................................................. 467
6.5. Justia virtude moral ................................................................................................... 488
6.6. Justia habito e vontade ............................................................................................... 501
6.7. Justia igualdade (moderao) .................................................................................... 505
6.8. Justia Deus ................................................................................................................. 519
6.8.1. Deus como qualificao da conceituao tomista de Justia .............................. 524
6.8.2. Concepes tomistas acerca da existncia de Deus ............................................ 530
6.8.3. Provas racionais da existncia de Deus ............................................................... 538
6.9. Justia consequncia da razo prtica ......................................................................... 545
6.10. Justia o objeto da jurisdio .................................................................................... 555
6.11. Justia evitar ou desfazer injustias .......................................................................... 566
6.12. Justia promover o bem comum ............................................................................... 571
CONCLUSES ................................................................................................................... 583
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 595
ANEXOS .............................................................................................................................. 613
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INTRODUO
O estudo do pensamento filosfico-cristo de Toms de Aquino constitui o marco
exuberante de toda a Filosofia Medieval. At o advento da Alta Idade Mdia nenhum telogo
havia realizado um estudo to apurado, sistemtico e til das Sagradas Escrituras como o fez
Toms de Aquino, com o emprego de conceitos, categorias, caractersticas e institutos da
Filosofia e do Direito.
A doutrina tomista consistente na congeminao da f com a razo representou, por
outro lado, a essncia da evoluo, desenvolvimento e enriquecimento da doutrina da Igreja
Catlica. A propriedade, organizao e sistematicidade cientfica da doutrina de Santo Toms
permitiram uma espcie de reedio de seus ensinos por sucessivas encclicas papais,
especificamente a partir da Rerum Novarum de Leo XIII.
Os padres religiosos catlicos que entornavam a ideia da existncia e da essncia
de Deus deixaram de constituir algo precipuamente potico, transcendental e inalcanvel
para transformar-se em categorias palpveis, sensveis e humanas, caractersticas do
enfoque lgico-racional que informa toda a doutrina cientfica do Santo Doutor.
O ensino e o desenvolvimento de categorias jurdicas como a lei e a Justia no se
divorciaram dessa perspectiva. Significa que os institutos jurdicos mereceram de Toms de
Aquino um cuidado especial, de modo a revelar grande utilidade para a realidade emprica,
ultrapassando a concepo abstrata alheia ao dia a dia da convivncia social. Trata-se de
conceber o Direito (em que se inclui a lei humana) como objeto da Justia e de devotar
virtude da Justia uma dimenso de elevada envergadura moral, incorporando-a a todos os
atos interpessoais, especialmente s relaes jurdicas, com vista ao bem-estar comum dos
homens.
A amplitude do ou dos conceitos de Justia, segundo o pensamento filosfico-
cristo de Santo Toms de Aquino, confere a ela (Justia) uma espcie de espectro sensvel da
presena e da vontade de Deus sobre as aes humanas, particularmente sobre as autoridades
incumbidas de governar, legislar e de julgar.
Por estas consideraes, sensvel a constatao de que a concepo de Justia em
Santo Toms multiforme e complexa, no obstante possa ser devidamente compreendida
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diante de sua histria de vida e de suas obras, sem, contudo, desmerecer o emprego de outras
fontes dogmticas e epistemolgicas.
A formao acadmica e religiosa do Santo Doutor j nos permite perceber que
todas as suas aes so voltadas para o estabelecimento do equilbrio das coisas. Ao
verificarmos que Santo Toms no se furta a quaisquer questiones disputatio, temos nisso a
certeza de que o equilbrio de seu pensamento e de sua doutrina filosfico-crist perpassa pela
ateno acentuada que conferiu s ideias de seus opositores. Em outras palavras, quando
Aquino adota posio inequvoca de extrair de seus opositores ideias que podero ser
aproveitadas para confirmao da verdade de sua doutrina, est a indicar claramente que o
fundamental para encontro da Justia e do bem o anseio de busca incessante do equilbrio
que deve mover as aes e as concepes do homem, como a operar um meio-termo entre
posies extremadas.
O radicalismo e a intolerncia definitivamente no encontram qualquer utilidade e
proveito na conceituao tomista de Justia, seno na medida em que concentram a convico
de que devem ser desprezados. Nessa dimenso, mister concluir, num primeiro momento,
que a moderao um marco substancial na doutrina tomista de Justia, consequncia no
menos cintilante de seu comportamento pessoal e particular como homem de bem. A
serenidade e a resignao integram o perfil do grande estudioso medieval, gerando impacto
quase automtico no contedo de suas obras filosficas, entre as quais a concepo de Justia.
Com efeito, tais qualidades intrnsecas ao Santo Doutor permitem observar que mesmo entre
os adversrios o respeito de suas construes ostenta a devida reverncia.
No transcorrer do Sculo XX, especialmente aps a ecloso da Segunda Grande
Guerra, procurou-se resgatar a doutrina do Direito Natural, idealizando-a inclusive sob novas
denominaes (jusnaturalismo, questo social, direitos humanos, direitos sociais etc.), numa
evidente confisso de sua propriedade em tudo o que se refere natureza humana. Viu-se,
assim, uma tentativa vociferante, seno desesperada, de superar e corrigir os flagrantes
equvocos que se cometeram a partir da admisso da hipertrofia do direito positivo ou direito
fundado na norma pura, infenso de valores, na forma preconizada sobretudo pelos aderentes
do ento nacional-socialismo alemo, no obstante inadvertidamente em muitos casos. Porm,
aqui ou acol sensvel o desconhecimento dos postulados fundamentais da doutrina do
Direito Natural, especialmente porque a um nmero notvel de estudiosos contemporneos
sucede a insuficincia de domnio da filosofia crist e a adequada compreenso humanstica
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do jusnaturalismo resultante em grande monta dos ensinos de Toms de Aquino. Noutro dizer,
de fundamental importncia que as diversas concepes dogmticas, epistemolgicas,
axiolgicas e principiolgicas do Direito Natural tambm observem e sucedam do cotejo,
ainda que apenas bsico, dos postulados filosficos construdos no auge da escolstica
tomista. Em tema de Direito Natural, destarte, a doutrina tomista tem especial e obrigatrio
assento.
A assimilao cognoscitiva relativa ao Direito Natural, construda e difundida no
Medievo tomista, a premissa bsica que norteia todo e qualquer estudo do Direito Natural
que se pretenda digno de autoridade. No estamos a dizer com isso ser impossvel aplicar-se
uma doutrina do Direito Natural adaptvel aos tempos modernos. No. Mas no podemos
reputar suficiente e proveitosa qualquer iniciativa deste ou daquele estudioso que despreze os
princpios e ensinos tomistas bsicos nesse particular. Faltar, no caso, a necessria autoridade
dogmtica para definir e caracterizar com inteireza, mesmo na modernidade, o que seja
Direito Natural e, a partir dele, a compreenso adequada de Justia segundo Toms de
Aquino.
A conceituao tomista de Justia no se limita somente a concepes teolgico-
filosficas, embora nelas tenha sua fonte primordial de inspirao. perfeitamente possvel
vislumbrar certas projees de natureza marcantemente jurdica, com inegvel proveito para o
Direito do nosso tempo. A importncia da igualdade, claramente adotada pelo aquinatense
como norte de sua concepo de Justia, o ponto central que projeta essa mesma concepo
de Justia tambm para a seara jurdica, dando a entender que em razo dela que o Direito se
destaca como objeto fundamental da Justia.
sob essas premissas bsicas que procuramos desenvolver uma reflexo
conceitual-jurdico-crist de Justia segundo o pensamento tomista. Para isso, utilizamo-nos
principalmente das prescries de suas obras mais conhecidas e destacadas: a Suma Teolgica
e a Suma Contra os Infiis, esta ltima mais conhecida como Summa Contra Gentiles. O
propsito demonstrar, sob uma especfica reflexo, que o Direito e a Justia no so
categorias ou institutos visceralmente alheios aos valores do Direito Natural, bem como a
valores de ndole filosfica e mesmo teolgico-crist, cujas premissas bsicas foram h muito
elaboradas com grande maestria pelo Santo Doutor. Nesse contexto, pensamos ser
conveniente esclarecer o porqu dessa reflexo conceitual-jurdico-crist de Justia em Toms
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de Aquino, isto , em que consiste ou o que consubstancia tal reflexo, de modo a facilitar,
como esperamos, o entendimento do leitor.
De incio, nossas observaes permitem concluir que Santo Toms utiliza a teologia
como fator de aperfeioamento da filosofia, esta encerrada em seu preparo acadmico puro.
Distingue-se, pois, a filosofia como ramo especfico e com qualidades prprias, no que o
pensamento cristo-catlico (teologia) ir depur-la no melhor sentido dogmtico. dizer que
a filosofia, por si s, bastante como segmento do conhecimento apto a conferir uma
conceituao aceitvel de Justia, cuja base a lgica emergente do sistema de exposio e
explicao dos institutos e categorias do conhecimento adotados pelo aquinatense. Porm,
embora tcnica e cientificamente correta uma conceituao de Justia por conduto do
conhecimento filosfico, esta no se mostra ideal e idnea sem o concurso da doutrina e do
conhecimento teolgico-cristo, especialmente porque, no sentimento do Santo Doutor, o
teolgico superior ao filosfico. Sendo, pois, a teologia o segmento do conhecimento que
confere perfeio a tudo o quanto se pretenda estudar ou descobrir, no se poderia deixar de
refletir a filosofia sob a orbe teolgica, designadamente porque esta necessria para conferir
idoneidade e inteireza quela.
certo que a filosofia tem sua configurao e sua autonomia como cincia e
segmento indispensvel do conhecimento e intelecto humanos. Contudo, no capaz de
exaurir tudo o que se pode dizer, assimilar, executar e construir a respeito da Justia, no que
reclama o auxlio da teologia. Assim, preciso integrar o pensamento filosfico acerca da
virtude da Justia aos dogmas e tradies da sacra doutrina de Deus, ento enraizadas
doutrina da Igreja Catlica Apostlica Romana. Afinal, ao que se dessume do pensar do Santo
Doutor, a virtude da Justia sugere um ideal de perfeio que s alcanvel com o concurso
das premissas teolgico-crists.
A diferena entre a teologia e a filosofia no est no fato de que uma trata das
coisas de Deus e a outra das coisas do homem e do mundo; ambas tratam de Deus, do homem
e do mundo. A diferena essencial est em que a filosofia oferece um conhecimento
imperfeito das coisas de Deus, do homem e do mundo, no obstante corretas sob o ponto de
vista emprico. Cabe teologia, nesse aspecto da imperfeio da filosofia, dar o suporte
necessrio para corrigir todos os eventuais defeitos, equvocos, incompletitudes e
incompatibilidades daquela cincia, dotando-a de qualidades suficientes para a construo de
uma reflexo um tanto mais perfeita de Justia. Significa dizer que a teologia oferece as
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qualidades indispensveis ao aperfeioamento do conhecimento filosfico, cuja base
fundamental , segundo Aquino, a sacra doutrina crist catlica, e, em ltima anlise, Deus.
Portanto, a conciliao entre a f e a razo conveniente (seno necessria) porque a f
melhora a razo, assim como a teologia melhora a filosofia. A graa divina aperfeioa a
Natureza, o homem e as suas aes e descobertas. A teologia, assim, retifica a filosofia,
embora no a substitua ou a desautorize; antes, confirma-a. A f orienta, ordena e integra a
razo e, com isso, torna-a mais perfeita, com efeitos sempre positivos e benfazejos. So estas
as justificativas primrias que nos conduzem a realizar uma reflexo conceitual-jurdico-crist
de Justia, unindo em Santo Toms esses dois segmentos do conhecimento que constituram a
motivao inarredvel de toda a sua vida, obra e crena. F e razo, portanto, formam o
blsamo que aperfeioa e confere autoridade filosofia medieval-tomista.
A ideia de Justia, na reflexo que propomos neste estudo, encerra uma via de mo
dupla. Vemos que em Santo Toms a concepo de Justia no pode deixar de ostentar
segmentos de natureza puramente racional, isto , visvel, palpvel e sensvel ao homem. O
emprico no pode nem deve abstrair-se da conceituao tomista de Justia. Isto quer
significar que a compreenso de Justia h de partir de verdades racionais, conquanto a razo
seja o elemento de interseo entre todos os homens que habitam este mundo. necessrio
que nos condicionemos por uma razo constituda pelo assentimento de todos os homens em
relao a determinada coisa. sob tal concepo que podemos obter os primeiros resultados
acerca de uma verdade, ou seja, da verdade aceita e pronta a ser praticada por todos. Disso
deflui que a nica f em Deus, o amparo que se nos dado pela teologia, tambm no
suficiente e conveniente para chegarmos compreenso ideal de Justia. O sentido da razo
caracterstica inarredvel entre os homens, razo esta que no seno resultado da vontade de
Deus ao criar o homem. Deixar de utilizar o racional por conta da concepo de uma luz
superior que a tudo ordena em perfeio seria renegar uma exigncia primordial e natural
imanente ao homem enquanto criatura de Deus. Por isso, a Justia em Santo Toms
resultado de sua convico de que o homem e o mundo gozam de indispensvel autonomia,
possuem suas prprias singularidades, no obstante reconhea e proclame uma conveniente
dependncia disso em relao a Deus.
O homem possui potencial, preparo e capacidade cognoscitivos para responder
sua vocao de criatura destinada a conhecer e dominar o mundo, conforme se dessume do
livro do Gnesis, 1, 27- 28: Deus criou o ser humano sua imagem, imagem de Deus o
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criou. Homem e mulher Ele os criou. E Deus os abenoou e lhes disse: Sede fecundos e
multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a! Dominai sobre os peixes do mar, as aves do cu e
todos os animais que se movem pelo cho. O saber teolgico-cristo, portanto, no suplanta
o saber filosfico, assim com a f no suplanta a razo. Os elementos teolgico e filosfico
so, assim, necessrios e interdependentes para se chegar a uma adequada conceituao de
Justia segundo o pensamento de Santo Toms de Aquino, conquanto suas propriedades
especficas concentrem os ingredientes e os instrumentos racionais e transcendentais que a
consolidam adequadamente. Tais observaes preliminares e justificativas perfazem a
sensao que possumos e que reputamos importante no sentido de nos permitir formular uma
reflexo conceitual-jurdico-crist de Justia segundo o pensamento de Santo Toms de
Aquino.
Cumpre registrar, doutra parte, a significativa importncia da Filosofia Medieval
para o estudo do Direito e da Justia desde aquela poca (Idade Mdia) at os dias que
correm. No h razo, portanto, para que as escolas jurdicas, designadamente universidades,
olvidem de dar o devido lugar de destaque que ela merece. No por outra razo que Bryan
Magee denuncia, com muita propriedade, a injustia que se tem feito com a Filosofia
Medieval; acusa os estudiosos de t-la relegado a plano secundrio como se no tivesse
contribudo para o desenvolvimento da Filosofia e da teoria geral do Direito (vide Los
grandes filsofos, Madrid: Ediciones Ctedra, 1990, trad. de Amaia Brcena, p. 62). correto e
justo o protesto do nominado autor, especialmente se considerarmos que a filosofia medieval
rene mais de mil anos de efervescncia intelectual. Com efeito, o Medievo culto tem sido
vtima de uma negligncia descabida durante muitos anos pelas geraes recentes, mais pelo
apego inadvertido destas a um enganoso progresso das frmulas cientficas (que ofusca,
propositadamente, os alvissareiros valores da religio crist e da Igreja Romana), que
propriamente pela constatao efetiva de um suposto obscurantismo medieval. Os grandes
filsofos medievais foram, em verdade, gigantes maestros do saber teolgico-filosfico;
fizeram verdadeira filosofia tal e qual entendemos nos dias que correm. Vero seus crticos, se
se dispensarem de preconcepes parciais, que a cultura medieval tem muito ainda a ensinar.
Talvez em razo da propalao enganosa do indevidamente chamado obscurantismo
medieval que se observa atualmente uma espcie de divrcio declarado do direito medieval
e da filosofia medieval nas escolas de humanidades. Nesse sentido, sensvel a deficincia
que hoje se verifica nas escolas jurdicas quanto a uma adequada formao jurdico-filosfica,
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o que interfere negativamente na excelncia do ensino da teoria geral do direito e/ou da tica
jurdica, designadamente porque omite aquilo que lhe mais caro e natural: o desgnio de
fazer Justia. A filosofia de Santo Toms, por sua notria propriedade dogmtica e
acadmica, seria, como , de grande contribuio para a complementao eficiente do ensino
do Direito, da tica e da Moral. Afinal, no se pode divorciar o Direito da Justia nem se pode
conceber um autntico Direito sem o ideal da Justia. E, em matria de compreenso da
Justia, Toms de Aquino revelou-se inolvidvel, desde quando conduziu a filosofia
aristotlica da Justia ao desejvel aperfeioamento, tornando-a uma virtude inseparvel de
todos os que pretendem utilizar o Direito como instrumento de pacificao social e realizao
do homem no justo e em Deus.
Na verdade, a filosofia da Idade Mdia, destacando-se nela o pensamento de Toms
de Aquino, revela grande diversidade de discusses sobre os mais variados temas. certo que
todos ou quase todos os embates so caracterizados pela influncia do pensamento religioso,
seja cristo, seja, secundariamente, judaico ou islmico. Essas caractersticas, entretanto, no
desautorizam o reconhecimento da contribuio ao estudo da filosofia, mesmo arraigada
teologia, porque elas so reveladoras de um modo de agir e pensar peculiar, onde as escolas e
as universidades constituram-se na arena por excelncia da intelectualidade de ento. Por
isso, no se pode subtrair da filosofia medieval o carter cientfico que lhe estava afeto,
designadamente em razo do domnio universitrio em que as questes, religiosas ou no,
aportavam. J ao tempo do Medievo, como hoje, a filosofia no apenas um modo de pensar
por pensar. Ela uma cincia do pensar. Esta peculiaridade da filosofia medieval tem em
Santo Toms de Aquino seu cientista fundamental, o qual, mais que qualquer outro telogo ou
filsofo da poca, deu fisionomia e contedo cientfico sua doutrina, consequncia de uma
vida inteira dedicada ao estudo do Cristianismo.
Da mesma forma que a filosofia moderna e a contempornea conservaram suas
caractersticas de desapego a teorias metafsicas (excetuando uma minoria dileta, como
Giorgio del Vecchio), e, nem por isso, se lhas negaram a condio de filosofia, tambm o
pensamento medieval primou pela filosofia crist. Diga-se, em acrscimo, que inegvel a
contribuio da filosofia de Santo Toms para as doutrinas sociais e polticas dos nossos
tempos. Especialmente no tocante aos desdobramentos scio-poltico-jurdicos consequentes
sua formulao conceitual de Justia, a filosofia tomista no deixa de estar presente em
discusses correlatas nos tempos que correm. Os sentidos de tica, igualdade, hierarquia de
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normas, noo de bem comum e responsabilidade de autoridades pblicas, induvidosamente
presentes em debates envolvendo Direito Constitucional e Administrativo (organizao de
poderes, competncias, atribuies e responsabilidades de autoridades, conceito,
caractersticas, requisitos e efeitos de atos administrativos de autoridades etc.), no escapam
s prelees pertinentes do Santo Doutor.
O pensamento filosfico-cristo medieval, portanto, teve o condo de elevar alguns
temas at ento informados por ndole precipuamente metafsica para ambiente de notrio
cotejo cientfico. E foi em consequncia da induvidosa influncia da razo e dos conceitos
dela emergentes que tal evoluo foi possvel. Veja-se, como anota Paul Vignaux, os tratados
de lgica que si aparecer nas discusses e estudos filosficos das academias e universidades
de hoje (vide El pensamiento en la edad media, trad. de Tomas Segovia, Mxico: Fondo de
Cultura Econmica, 1954, p. 10), exemplo singular, segundo entendemos, da evoluo e bom
proveito do pensamento filosfico-cristo de Santo Toms de Aquino.
na Idade Mdia que se trata o homem em funo de Deus e precisamente nisso
que est sua singular nobreza cognoscitiva e intelectual. Deus no o fardo do homem e da
filosofia medieval; antes, o pensar filosfico-cristo medieval apangio de que talvez a
cultura moderna ainda no se apercebera integralmente. Na Idade Mdia tem incio o
alvorecer do conhecimento cientfico-formal consubstanciado na universitas e nesse cenrio
profundamente acadmico-cientfico que exsurgem os principais dogmas religiosos e
jurdicos, muitos dos quais persistem como verdades relativas ou absolutas at os dias de hoje.
A Idade Mdia representa, assim, um universo de conhecimento acadmico-cientfico, cuja
propriedade comprovada com a acentuao desse cenrio cultural pelo Renascimento. O
Renascimento, destarte, no seno uma espcie de continuidade do conhecimento
acadmico-cientfico desenvolvido durante a Idade Mdia, especialmente nos Sculos XIII e
XIV, com a influncia decisiva da escolstica. Por isso mesmo que o termo Renascimento
talvez merea reparo, por imprprio. No se trata propriamente de renascimento da cultura
e/ou do saber, mas sensvel to-s uma espcie de aprofundamento do saber e do conhecer.
engano (seno preconceito) desestimar a descoberta do saber e da cultura formal ocorrida
durante o Medievo. Nessa perspectiva, o Direito e a noo de Justia se desenvolvem como
categorias ontolgicas mas no incomunicveis. A difuso cultural e a dinmica cientfica
permitem especular um sem-nmero de fontes dessas categorias, tais como o Estado, a Igreja,
os sditos, Deus etc.
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Coube ao Santo Doutor dar estrutura, sistematicidade e logicidade ao Direito e
Justia, utilizando as fabulosas Sumas, ou seja, resumos de determinadas abordagens de
carter acadmico-cientfico. Com isso, logrou o Doutor de Aquino criar um mtodo tanto
formal-conceitual quanto extremamente didtico de abordagem de temas filosfico-cristos
controvertidos. Isto no quer significar desprezo multiplicidade de fontes conceituais do
Direito e da Justia. Ecltico e clssico que era, Toms de Aquino rene o melhor de todas as
outras categorias para formular seus conceitos e demonstrar a verdade de suas ilaes. No
por outra razo que sua obra mxima, a Suma Teolgica, concentra verdadeiro conhecimento
enciclopdico.
No obstante, dentre as mltiplas fontes do Direito e da Justia segundo o
pensamento tomista, uma emerge com induvidosa autoridade: Deus. Em Deus est o
fundamento ltimo da compreenso e mesmo conceituao do Direito e da Justia. E o
tambm em Santo Toms como no poderia deixar de ser porque em Deus est a verdade
absoluta. No se pode chegar verdade absoluta de Deus, certo. As limitaes da criatura
humana impedem chegar-se essncia da verdade divina. No obstante, possvel aproximar-
se dela (da verdade divina) e nesse trilho que o Doutor de Aquino fustiga a propriedade do
intelecto de Deus no atinente ao Direito e Justia.
Fonte importante de compreenso da Justia em Santo Toms a lei, que se
ombreia, segundo pensamos, ao Direito. Desde a definio do Direito-lei, j possvel
identificar algo de justo. Sendo a lei o mecanismo sobre o qual se deve promover o bem
comum, conforme a Questo 90, Artigo 2, da Suma, prima secundae, no h como negar-lhe
um prognstico de Justia. A concepo da diviso da lei (ou Direito) em eterna (ou divina),
natural e positiva ou humana compe, assim, a base da teoria tico-jurdico-religiosa tomista
da lei. Como bem iremos retratar no Captulo 4, a lei natural, porque segmento do direito
divino aplicvel ao homem, revela o sentido verdadeiro (ou mais prximo do verdadeiro) a
partir do qual se deve conceber a ideia do Direito.
Nos tratados da lei e da Justia possvel identificar tambm o comportamento
clssico e ecltico de Toms. No se trata de um comportamento enraizado poca da edio
da Suma. Tal proceder do aquinatense tem permeado toda ao considerada correta e legtima
para o homem das cincias em todos os tempos. Isto porque a partir da propriedade dos
argumentos das antteses que o cientista constri mais adequadamente suas teses. Ao mesmo
tempo, a propriedade das refutaes s antteses que o cientista melhor convence ou
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desautoriza seus opositores. Em tema de Direito-lei e Justia, tal conjuntura, bem assimilada e
aplicada pelo aquinatense, a base da propriedade de qualquer teoria jusfilosfica.
Quando Santo Toms considera o Direito como objeto da Justia est a indicar
certamente o Direito Natural, de um modo geral. Se dentro dele est o direito positivo ou
direito humano, dessume-se que o Direito Natural j contempla o direito positivo numa
relao de criador e criatura e, portanto, de superior para inferior. Demonstramos, assim, que
o objeto da Justia o Direito Natural, sendo que entre tais categorias h, ainda que
parcialmente, uma unidade. O Direito Natural integra a compreenso da Justia porque aquele
o objeto desta. Afinal, no se pode oferecer a compreenso de uma determinada categoria
jurdico-filosfica sem atentar para o seu objeto.
A diviso do Direito idealizada por Santo Toms no conduz negao da sua
unidade. Trata-se de mais uma estruturao construda pelo Anglico com finalidade
acentuadamente didtica. Nesse sentido, o aquinatense no deixa de revelar sua vocao assaz
acadmica mais que propriamente religiosa. O Direito um s e, embora podendo ocupar
determinadas fisionomias, no se desintegra como o objeto por excelncia da Justia. O
Direito medieval, diante de suas inmeras fontes, no se confunde com o Direito do Estado ou
Direito oficial. Mais que isso, incorpora princpios autnomos e informado por prticas
particulares de inegvel origem germnico-romana. Por esses pormenores, o Direito como
objeto da Justia tomista complexo, reunindo elementos de natureza tico-jurdica e moral-
religiosa. Disso deflui que complexa tambm a concepo da Justia segundo o aquinatense,
porque integrada na exigncia de uma compreenso filosfico-crist, sem, entretanto,
desprezar elementos de natureza jurdica.
Ao mencionarmos que as elaboraes tomistas a respeito da Justia incorporam
elementos e institutos teolgicos, filosficos e jurdicos, no olvidamos de apresentar os
problemas e embates da emergentes. Com efeito, a formulao de uma reflexo dogmtica e
axiolgica de Justia na forma que estamos a propor exige a exibio de problemas de
pluralismo social e poltico e de evoluo histrica que muitas vezes invadem as discusses
jurdico-filosficas. Nesse contexto, as reinvenes do tomismo elaboradas por autores como
John Finnis (vide Lei natural e direitos naturais, trad. Leila Mendes, So Leopoldo: Editora
Unisinos, 2006) e Alasdair MacIntyre (Justia de quem? Qual racionalidade?, trad. de
Marcelo. P. Marques, So Paulo: Edies Loyola, 1991), certamente contribuem para o debate
que relaciona a doutrina tomista do Direito e da Justia com os avanos e retrocessos jurdico-
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legais e jurdico-morais do nosso tempo. Entretanto, no nosso propsito central oferecer
um conceito fechado de Direito e de Justia a partir da autoridade da filosofia jurdico-crist
do Santo Doutor. Pretendemos apenas fincar uma reflexo que encerre uma contribuio
adicional de auxlio interpretao de casos e normas jurdicos em voga na atualidade, cujo
apego a premissas filosfico-crists medievais converge mais como um elemento de
autoridade terica que propriamente como uma definida fonte hermenutica.
Perfilhamos, assim, as diversas premissas filosfico-crists medievais e as
invocamos como um adicional elemento de auxlio para compreenso e soluo de problemas
do nosso tempo, a exemplo do que escrevemos nos Captulos 3, 4, 5 e 6, sem pretender elevar
essas premissas a uma fonte metodolgica por excelncia do Direito ou do pensamento
jurdico contemporneo. No se pode, portanto, segundo pensamos, olvidar das utilidades de
uma conceituao tomista de Justia nessa perspectiva, sobretudo por conduto da
sistematicidade, organizao e didtica que bem podem auxiliar at como elementos de
organizao teortica dos problemas (vide a sistematizao constante na Suma Teolgica,
muito til para organizar as diversas faces dos problemas jurdicos e iniciar uma seleo de
respostas as mais adequadas). A vocao acentuadamente acadmica do Santo Doutor no
deixa de revelar uma sua intensa preocupao com a boa didtica de suas prelees, o que nos
inegavelmente proveitoso.
A leitura que se extrai dos escritos e ensinos do Doutor de Aquino nos conduz
constatao, seno certeza, de que estamos diante de um cientista, de um puro acadmico,
mais que de um telogo. O apego a conceitos, alegorias, sistematicidade, didtica e
comprovao racional de suas teses revela, claramente, o vis marcantemente acadmico-
cientfico de Santo Toms. Ao mesmo tempo, mas em nvel secundrio, o aquinatense no
poderia renegar ou olvidar sua origem religiosa. Santo Toms no deixa de revelar sua
gratido pela Igreja Catlica Romana e pela Ordem que o abraou no incio de sua meterica
carreira acadmico-cientfica.
A vida e a obra de Toms do-nos exatamente a convico de que se trata mais de
um acadmico que de telogo, no obstante a condio de telogo tenha influenciado no s a
doutrina mas tambm o prprio comportamento do Doutor de Aquino. Os tratados da lei e da
Justia repita-se revelam a veracidade do que estamos a afirmar. Cuidando dos fatos e
coisas reais ocorrentes no panorama complexo das relaes sociais, a o aquinatense parece
haver dedicado esforo adicional, ocupando toda uma parte da Suma Teolgica, qual seja, a
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secunda secundae. Certo que o mago dos fundamentos jurdico-legais empregados na
secunda secundae tm origem teolgico-filosfica; porm, temos verificado que tal
conjuntura representa mais uma qualidade, um plus, da obra cientfica de Santo Toms que
propriamente uma concepo puramente teolgica. Isto no quer significar reiteramos que
o sentido teolgico-cristo no tenha permeado as construes cientficas do aquinatense. Na
verdade, Toms de Aquino jamais olvidou de sua formao e educao sacras. Queremos
indicar apenas que a prpria evoluo da doutrina acadmica do Anglico conduziu-o
naturalmente adeso aos elementos e instrumentos reveladamente cientficos. Tal fisionomia
encontrvel, decididamente, nas teorias tomistas da Justia, tudo caminhando para o que
imaginamos ser uma compreenso terica de Justia. As caractersticas da igualdade e
comunicabilidade da propriedade da terra, por exemplo, retrata certamente essa conjugao do
teolgico ao acadmico-cientfico, na medida em que, sob premissa divina, a terra deve
possuir relevante funo social.
A constatao da evoluo da doutrina do aquinatense, no sentido de caminhar de
concepes teolgicas para teorias e temas acentuadamente acadmicos, pode ser extrada
tambm da percepo da doutrina contida na Summa Contra Gentiles em relao da Suma
Teolgica. Aquela consubstancia a propagao da doutrina crist catlica entre os
muulmanos, gregos e judeus, considerados infiis, no que se elevam as construes e
fundamentos puramente teolgico-cristos. Esta, por outro lado, vem caracterizada pela
conjugao da f razo, onde o teolgico-cristo d lugar, de certa forma, ao que se conhece
na Idade Mdia por filosfico e/ou cientfico. A concepo de Justia de Santo Toms
mergulha profundamente nessa dinmica. E tal performance acabou por conferir no s
perfeio ao tratado da Justia lastreado na Suma Teolgica, mas ofereceu um dado
filosfico-religioso que preserva sua integridade, propriedade e utilidade at os dias de hoje.
Com efeito, quando falamos ou tratamos da Justia no seu cerne, nas suas entranhas e nas
suas consequncias, no nos distanciamos da ideia de inteireza, de uma configurao
transcendental e dotada de grande bondade, numa perspectiva comparvel ao divino. Este
perfil perfeitamente identificvel na obra mxima de Aquino, irradiando-se sobre o tratado
da lei e da Justia. Decisivamente, a Justia tomista no poderia estar fincada em melhor
alicerce.
Ao que percebemos de sua personalidade e comportamento, bem retratados no
Captulo 1 deste estudo, Santo Toms sente-se no dever moral de consolidar, com emprego de
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conceitos e preceitos racionais, as propriedades, verdades e benemerncia da f crist catlica.
F-lo no s para cumprir seu dever de cristo catlico para com a Igreja, mas sobretudo por
acreditar na bondade e perfeio divinas, razo de tudo e de todos. Nesse particular,
sintomtica a pronta aceitao em escrever a Summa Contra Gentiles, em atendimento a
pedido, seno convocao, de So Raimundo de Penaforte para lanar substancial estudo da
sabedoria da f crist catlica em revide s heresias dos averrostas latinos. A Summa Contra
Gentiles , por assim dizer, uma ntida manifestao de Santo Toms em defesa da f crist
catlica como forma de, a um s tempo, demonstrar seu esforo de gratido Igreja e realizar
a comprovao do que acreditava ser a verdade racional dos dogmas cristos.
possvel mesmo especular uma certa parcimnia de Santo Toms em relao aos
chefes da Igreja. Prximo aos Papas e Gerais da Ordem Dominicana que estava, lcito
antever sua vinculao ideolgico-religiosa com o Pontificado e Priores. No se trata,
entretanto, de submisso ou prevaricao. Longe disso. Em verdade, o comportamento do
aquinatense revela, como dito, um misto de gratido e crena na religio de seu tempo. E sua
insurreio contra certos atos e prticas levados a efeito durante a Inquisio comprova a sua
concepo na bondade e benemerncia que permeia toda a doutrina crist catlica. Todas
essas observaes a respeito da vocao acadmico-cientfica de Santo Toms e seu
compromisso com a verdade da f crist catlica vm dissecadas no Captulo 1 deste estudo.
A vida, obra e canonizao de Toms de Aquino no so seno o espectro de sua
personalidade e temperamento j predestinados ao saber e santificao.
Importa realar, ainda, o momento em que Santo Toms atua como cientista e
telogo. O Sculo XIII marcado por espinhosas disputas no campo da cincia e da religio.
O movimento efervescente redundante no surgimento das universidades intensificou a
responsabilidade e exigibilidade de rigor e apuro na demonstrao do saber e das construes
teolgico-filosficas. O intenso ambiente de controvrsia entre os filsofos, doutores e
autoridades da Igreja impe um esforo hercleo de elaborao de solues concentradoras de
inequvoco poder de convencimento e converso. E, nesse particular, em toda a Idade Mdia,
talvez Santo Toms no tenha sido superado por qualquer de seus pares ou algozes.
Categorias como o Estado, o Direito e a Justia, substrato de uma teoria poltica de Santo
Toms, no deixaram de merecer ateno redobrada do aquinatense, cnscio de que o
reconhecimento de sua doutrina estava a depender diretamente da autoridade filosfico-crist
de suas construes.
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No contexto de sua teoria poltica, em face do que travou memorveis disputas com
os mestres de seu tempo, Santo Toms elaborou substancioso estudo sobre o Estado, a Igreja e
a monarquia. Nomeadamente no tocante monarquia, que considera a forma adequada de
governar, Toms de Aquino revela uma de suas poucas divergncias com Aristteles. A
monarquia, ao tempo de Aquino, no tinha o perfil nem trilhava o modelo autoritrio
preconizado pelo estagirita. Ao monarca incumbia promover o bem comum do povo, seja no
mbito do processo de elaborao da lei, seja na distribuio dos bens sociais, condio
mesma de sua legitimidade e obedincia. Assim, a monarquia, no Medievo, no estava
contaminada por concepes predominantemente absolutistas. A adeso monarquia, para
Santo Toms, representou tambm o oferecimento de subsdios elaborao de uma
concepo filosfica (racional) de Justia. Vemos, assim, que a preocupao do Anglico com
a diviso da Justia (comutativa e distributiva) no seno efeito do modo monrquico de
governar, com as devidas adaptaes.
A questo do Estado e de sua configurao terica no esto desalinhadas do mago
das concepes tomistas a respeito da monarquia. Trilhando integralmente os ensinos de
Aristteles, Santo Toms via no Estado uma necessidade para o desenvolvimento do homem e
concretizao da Justia. Exceto por uma peculiaridade: o Estado deve solicitudes e
vassalagem Igreja, porquanto o poder temporal no pode prevalecer sobre o poder espiritual.
O Estado sem norte na Igreja Estado defeituoso e, portanto, inexistente para os sditos.
Nesse particular, sobressai o apego do aquinatense hierarquia das coisas e a uma fonte de
autoridade concentrada na obra de Santo Agostinho. Nesse aspecto, o Estado e suas normas,
enquanto dispostos em composies hierrquicas, tambm integram, na devida medida, a
Justia tomista, designadamente quando se trata de efetivao da distribuio proporcional de
bens e mritos entre autoridades e sditos.
Exibidas todas essas nossas manifestaes, conclumos que a conjugao de
fenmenos e categorias cognoscitivos como a Escolstica, o Direito, o Estado e a Suma
Teolgica, dentre outros, que amalgamam os elementos substanciais e fundamentais da
compreenso da Justia segundo o pensamento jurdico-filosfico-cristo de Santo Toms de
Aquino. Inspira-nos dizer, com isso, que tal reflexo de Justia por ns proposta exsurge de
uma tica resultante da concepo do amplo saber dogmtico e epistemolgico (e, portanto,
cientfico), de Toms de Aquino, com construes, certificaes e sugestes que se mostram
assaz teis ao menos em termos de plus ao pensamento jurdico contemporneo.
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Por fim, no nossa inteno desautorizar o entendimento de outros autores,
telogos, filsofos e juristas a respeito das concepes da doutrina juspoltica e social
(incluindo as noes de Direito e Justia) de Toms de Aquino, mormente de tomistas e
neotomistas. Nossa proposta dirigida, ressaltamos, a acrescentar um novo olhar reflexivo
doutrina tomista de Justia, com preocupaes voltadas essencialmente a conceber o Direito
como categoria tico-jurdico-filosfica, tornando-o um instrumento moral que conduza ao
mais prximo do ideal de dar a cada um o que seu.
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CAPTULO 1
APROXIMAO AO PERSONAGEM EM ESTUDO: SANTO TOMS DE AQUINO
1.1. Lugar de nascimento, famlia e vocao
Santo Toms de Aquino nasceu no antigo Reino da Siclia, na fortaleza de
Roccasecca, situada no pequeno condado (e no cidade) de Aquino, provncia de Npoles,
hoje Itlia1. No h registro da data precisa de seu nascimento. Estima-se que tenha nascido
alguns anos depois da coroao de Frederico II, Rei da Siclia, entre os finais do Ano Santo de
1224 e princpios de 1225. Tal impreciso no deixa de ser um pecado para a histria da
Cristandade.
O local de nascimento de Santo Toms s o separava de Roma por uns 125
quilmetros. A proximidade com Roma permitiria Santo Toms aceder quela cidade muito
breve para ingressar na ordem dos mendicantes (tecnicamente chamada ordem dos
predicadores) e iniciar sua trajetria teolgico-filosfica e intelectual.
Santo Toms nasceu de famlia nobre. Por determinao desta, estava predestinado
a investir-se de Abade da Abadia de Montecassino, integrando a ordem dos beneditinos,
smbolo da nobreza. Relata Gabriel Chalmeta que Santo Toms, j na juventude, demonstrava
personalidade que o situava como pensador alm de seu tempo2. Porm, Toms de Aquino
viu-se atrado pela ordem de Domingo de Guzmn (ordem dos mendicantes dominicanos),
1 JEAN-PIERRE TORRELL escreve que Quanto ao lugar de nascimento de Toms, se outrora suscitou algumas dificuldades diversas localidades disputando a honra hoje os historiadores concordam em se referir ao castelo familiar de Roccasecca, na Itlia meridional. Ento situado no condado de Aquino e no Reino das Duas-Siclias, encontra-se nos confins do Lcio e da Campnia, aproximadamente a meio caminho de Roma a Npoles, a igual distncia de Frosinone (ao Norte) e de Cassino (ao Sul), um pouco a leste da estrada do interior (antiga via Latina), que conduz de Roma a Npoles (Cf. Iniciao a Santo Toms de Aquino: sua pessoa e obra, trad. de Luiz Paulo Rouanet, 2 ed., So Paulo: Edies Loyola, 2004, p. 2). 2 CHALMETA, Gabriel. La justicia poltica en Toms de Aquino. Una interpretacin del bien comun poltico, Pamplona: EUNSA, 2002, p. 67. Assim escreve o autor: Toms de Aquino ha sido presentado (por lo general, con buena intencin!) como un pensador fuera del mundo y del tiempo. De acuerdo con este esteretipo nos encontramos, por tanto, ante una espcie de meteorito intelectual, cado del cielo en uno de los periodos ms oscuros de la cultura occidental.
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esta que se devotava pobreza e, por isso, tinha a resistncia da Igreja nos seus primrdios,
assim como da famlia de Toms de Aquino, como relata Hermann Pesch3.
Seus pais, Landolfo de Aquino e Dona Teodora de Teate, constituram uma famlia
numerosa de doze filhos, sendo Toms de Aquino o mais jovem dos homens do segundo
matrimnio de Landolfo. Seus irmos eram Santiago, Felipo e Adenolfo (primeiro casamento
de Landolfo de Aquino) e Aimn, Reinaldo, Landulfo, Marotta, Maria, Teodora, Adelsia e
uma outra irm cujo nome desconhecido e que morreu em tenra idade4.
De origem normanda, Teodora de Teate era a segunda esposa de Landolfo, este
descendente de lombardos. Portanto, como reala Pedro Santidrin, Toms de Aquino tinha
sangue conjugado de guerreiros e cavaleiros5. O mesmo Santidrin, entretanto, duvida que o
pai de Santo Toms fosse conde, como se especulava, no obstante reconhea que o foram
seus antepassados. Sustenta que apenas tenha utilizado o ttulo informalmente at 1130.
Assim, Toms de Aquino era italiano pelo pai e normando pelo lado da me. Teve sua
educao primria na Abadia de Montecassino, para onde foi levado na esperana de que
contribusse para a preservao da autoridade e do prestgio do nome da famlia. Com efeito,
o abade de Montecassino era um poderoso feudatrio, o que obviamente estimulava a cobia
dos Aquino. Porm, em razo das contnuas guerras entre o Papa e o Imperador, a Abadia foi
reduzida ao abandono e desprezo, obrigando Toms, por iniciativa do pai, a tomar novo rumo
para a sua educao. Os pais de Aquino, partidrios que eram do Imperador, compunham o
partido dos gibelinos, contrapondo-se aos guelfos alinhados ao Papado. Entretanto, no se
empenharam na contenda entre os partidrios de Frederico II e de Gregrio IX. A
proximidade com o Papa posteriormente, aceitando o ingresso de Aquino entre os
dominicanos, amenizaram-lhes as inimizades. Ao ser conduzido Abadia de Montecassino,
Aquino ficou sob os cuidados dos monges beneditinos, que lhe ministraram os primeiros
ensinos de teologia, especialmente a leitura.
3 HERMANN PESCH, Otto. Toms de Aquino. Lmite y grandeza de una teologa medieval, Barcelona: Editorial Herder, 1992, p. 55. Tecendo observaes sobre a inovao promovida pela ordem dos dominicanos em meio tradio da Igreja, o estudioso escreve que el que estaba destinado a llegar a ser abad de Monte Cassino, contra la oposicin de su muy noble familia, entr en la orden de los predicadores de Domingo de Guzmn, que era una orden antifeudalista e nada burguesa, salida del movimiento de pobreza, mal visto en la Iglesia de aquel tiempo tanto como hoy, orden que en este ao no contaba ms de 28 aos de edad, y si lo contamos con ms precisin, a decir verdad no tena ms de 22. 4 Cf. TORRELL, in Iniciao a Santo Toms de Aquino: sua pessoa e obra, op. cit., p. 4. 5 SANTIDRIN, Pedro. Toms de Aquino, Madrid: Editorial Labor, 1991, p. 28. Sobre a ascendncia do aquinatense, escreve o autor: Por su madre, Teodora de Teate, descenda de los condes de Chieti, de origen normando. Por su padre, Landolfo de Aquino, seor de Roccasecca, de los Aquinos de Lombarda. En su sangre se mezclaban los guerreros y los caballeros.
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Dotado de esprito e estilo metdico, no foi difcil ao aquinatense enveredar pelos
estudos de seu tempo, especialmente teologia e filosofia. No obstante, o aquinatense no
dominava o hebraico, o grego ou o rabe. Assim, as tradues de obras e autores orientais
eram de grande necessidade para Toms, o que efetivamente ocorreu a partir de sua
convivncia com Alberto Magno e, posteriormente, com Guilherme de Moerbeke.
Mesmo adotando, por convico, a crena crist catlica, Aquino no deixara de
consultar autores considerados pagos. Afora o mais influente deles, Aristteles, utilizou-se
em suas pesquisas de obras de autores judeus e rabes como Al Farabi, Avempare, Al
Ghazali, Avicebrom, Avicena, Averris e Israeli. Tambm estudou Ptolomeu, Euclides,
Eudxio, Hipcrates e Galeno. Certamente que a o aquinatense j exibia sua vocao
acadmica e sua agudeza filosfica, confrontando autores no religiosos para formao de sua
convico a respeito da verdade e da inverdade das coisas.
Pelos seus avs paternos, Toms era sobrinho de Frederico Barbarroja ou Frederico
II. Pelos avs maternos, ligava-se aos chefes normandos tornados ilustres pelos Guiscard, os
Tancredos, os Bohemond6. Em Npoles, dos dez aos dezoito anos, inicia seus primeiros
estudos de dialtica, metafsica e moral. nessa fase de seus estudos em Npoles que o
aquinatense sente-se atrado pela ordem dos irmos pregadores, tomando, em 1244, o hbito
dominicano7.
Com cinco anos de idade, Toms foi conduzido aos estudos primrios em
Montecassino, custando a seus pais cerca de trinta libras de ouro8. Sua educao inicial ficou
a cargo de Landolfo de Sinibaldi, ento abade de Montecassino. Toms de Aquino
permaneceu na Abadia de Montecassino por cerca de nove anos. Nesse perodo aprendeu
latim elementar, sua lngua ptria. Estudou ainda msica e poesia, disciplinas estas integrantes
do programa escolar das abadias. A formao moral e religiosa tinha a preferncia dos
programas escolares das abadias. No foi difcil para o aquinatense adaptar-se a tal formao.
Era menino calmo, recolhido e, como no poderia deixar de ser, muito estudioso, cuja
aguada curiosidade lhe estimulavam freqentes indagaes. Viam-se-o sempre com suas
6 F. J. THONNARD assim define o perfil comportamental de Toms de Aquino: ...encontrava-se nele a pacincia e a tenacidade germnicas, o ardor cavalheiresco dos franceses do norte; a facilidade do esprito latino e, para completar as riquezas de seu temperamento, tambm a sua educao foi latina no Monte Cassino, alem em Colnia e francesa em Paris (Cf. Compndio de histria da filosofia, trad. de Valente Pombo, 1 vol., So Paulo: Editora Helder, 1968, p. 323). 7 THONNARD comenta: Assim, desde o incio de sua formao, pelo seu zelo para o estudo e pela fidelidade sua vocao, se prepara para o seu papel doutrinrio e religioso (Cf. Compndio de histria da filosofia, op. cit., p. 324).
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cartilhas e em leitura silenciosa. Como registra Santidrin, logo assimilava as lies, sendo
que suas principais ocupaes eram a orao e a leitura9.
A famlia de Toms de Aquino no se opunha a que ele se tornasse eclesistico.
Alis, no Sculo XIII, era comum e at uma espcie de privilgio para as famlias nobres
destinar seus filhos vida religiosa, o que demonstra a grande importncia da religio catlica
naquele tempo10. A ferrenha oposio da famlia de Toms de Aquino surgiu em razo de sua
inteno em ingressar na ordem dos mendicantes dominicanos, que escolheu seja por absoluta
vocao, seja por humildade de esprito, ordem essa alheia a privilgios e devotada ao
sacrifcio.
Toms de Aquino era homem imenso, slido, gordo, lento e de comportamento
moderado. Era tambm bondoso e magnnimo. No era, porm, socivel. Sua vida de
clausura e recolhimento talvez tenha sido essencial para possibilitar o grandioso acervo de
obras que escreveu. possvel especular que o Anglico era to compenetrado que seus pares,
professores ou alunos, no raro o julgavam tolo. Este contraste entre sua personalidade e seu
perfil exterior alcana quase todas as atividades de que se dedicou. O que havia de comum
entre suas faces interna e externa era, entretanto, a leitura e os estudos.
Toms de Aquino era, definitivamente, um homem predestinado ao saber. Mas no
qualquer saber. O rigor dogmtico e o interesse pelas revelaes racionais eram uma sua
marca inolvidvel, o que talvez explique a cumplicidade com a filosofia de Aristteles. Conta-
se que certa vez lhe perguntaram o que mais tinha a agradecer a Deus, ao que respondera ser a
graa de compreender as lies do estagirita11.
Santo Toms dedicou toda a sua vida a formular o que entendemos como sistemas
inteiros de literatura teolgico-filosfica, inclusive pag. Nas horas vagas (se possvel
admitir tal eventualidade), escrevia at hinos, o que no de estranhar diante de sua
conhecida simpatia por homilias. Tinha o dom mpar de conseguir ver um mesmo problema
por ngulos diferentes, no sem certa sutileza, mas com a necessria seriedade. Toms no se
furtava ao exame de todo tipo de distino e deduo, considerando o absoluto e o acidental,
8 Cf. SANTIDRIN, Toms de Aquino, op. cit., p. 30. 9 Assim escreve o autor: Santo Toms fue un nio piadoso, recogido, muy estudioso. Se le vea siempre con su cartilla y en silencio. No participaba en los juegos de sus compaeros. Tena una curiosidad inmensa, que le llevaba a preguntar con frecuencia a su maestro: Quid est Deus? (Cf. Toms de Aquino, op. cit., p. 30). 10 Cf. TORRELL, in Iniciao a Santo Toms de Aquino: sua pessoa e obra, op. cit., p. 5. 11 Entendi todas as pginas que li (Cf. GILBERT KEITH CHESTERTON, in So Toms de Aquino e So Francisco de Assis, trad. de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonalves, Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 192.
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cujo intuito no era seno a descoberta da verdade. Sua personalidade, portanto, segundo
podemos pressentir, concentrava um homem para o qual o estudo e a investigao das
verdades teolgico-filosficas tm muito da placidez do saber e do concurso do lazer. A
dedicao ostensiva ao trabalho contrasta com a ausncia de pressa, sendo a prpria Suma
Teolgica exemplo cintilante12.
Ao que se percebe da obra teolgico-filosfica de Toms de Aquino, seu trabalho
foi desenvolvido para esgotar toda a doutrina da Igreja, com o compromisso de revelar a
verdade da doutrina crist catlica independentemente dos interesses imediatos dos Pontfices,
designadamente a partir da investigao do contedo das Sagradas Escrituras e do
conhecimento da filosofia pag extrada sobretudo das obras de Aristteles. Porm,
avanando em seus ensinos, seguramente em razo de sua ndole de estudioso acadmico e
cientista social, o aquinatense produzira no s um tratado de teologia, como, nele inclusive,
tratou de questes de filosofia poltica e Direito, revelando sua elevada vocao jusfilosfica.
1.2. Atrado pela vida religiosa
Como ressaltamos em linhas precedentes, Santo Toms sentiu-se atrado pelo modo
de vida de resignao, contemplao e estudo dos dominicanos, bem como pelos respectivos
procedimentos e rituais religiosos, j na altura em que iniciou seus estudos na Universidade de
Npoles.
A investidura de Toms de Aquino na vida religiosa no se deu ao acaso. Conforme
sugere Otto Pesch, tratou-se de uma empatia natural e de intensa vocao resultante da
constatao de que os monges predicadores se dedicavam com apuro ensinana e
pregao13. Portanto, vemos que o que efetivamente seduziu o aquinatense foi a
congeminao de dois aspectos que caracterizavam sua personalidade: a) a consagrao a
Deus; b) a dedicao ao ensino e ao saber. E isso, na ocasio, estava assaz identificado com a
doutrina da recente ordem dos predicadores dominicanos.
12 Bom mencionar que a Suma Teolgica, obra prima de Toms de Aquino, no foi concluda at a sua morte em 1274 (Cf. SANTIDRIN, in Toms de Aquino, op. cit., p. 78). 13 Ressaltando, por um lado, que o aquinatense hall en Aristteles al autor de su vida que ya no abandonara ms e que se ha convertido en un intelectual, o autor acrescenta que o jovem Aquino se vio todava atrapado en otra esfera totalmente distinta: trab conocimiento con los hermanos predicadores y su relacin con ellos se fue haciendo con el tiempo cada vez ms intensa (Cf. Toms de Aquino. Limite y grandeza de una teologa medieval, op. cit., p. 85).
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A ordem dos dominicanos (1217) era uma das duas ordens de mendicantes que
surgiram ao tempo da ecloso das universidades. A outra ordem, a dos franciscanos (1214),
tinha sido fundada pelos seguidores de So Francisco de Assis. Em fins do Sculo XIII, o
estudo da filosofia era desenvolvido sobretudo nas escolas episcopais, de onde surgiram os
mestres das futuras universidades, ou seja, os mestres seculares. At o primeiro quarto do
Sculo XIII somente esses professores lecionavam nas universidades. As ordens mendicantes
ento passaram a interessar-se pelos estudos formais de teologia e filosofia, logo se adaptando
s inovaes intelectuais da poca. Com a evoluo desses estudos pelos mendicantes,
passaram a tomar assento nos principais temas teolgicos e filosficos da poca, aguando a
inveja, segundo Thonnard, dos seculares14.
nesse ambiente de embates que Santo Toms se inicia na ordem dos dominicanos,
o que talvez lhe tenha estimulado o apego aos estudos teolgico-filosficos. Entre os estudos
realizados, a leitura e comentrios s Sagradas Escrituras (teologia) eram obrigatrios, sendo
facultativo o estudo de outras disciplinas. Havia recrutamento de estudantes e at de
professores para a ordem, no que os dominicanos avanaram de forma notvel, a ponto de
fundar escolas prprias15. Eram, portanto, os dominicanos, religiosos apegados aos estudos de
teologia e filosofia, o que representava uma inovao, de certo modo, eis que at ento no
havia preocupao com a formao intelectual de religiosos.
Seguindo aos dominicanos, tambm os franciscanos ingressaram nessa filosofia de
estudos, com as bnos do Pontificado. Com a evoluo dessas escolas, passaram elas a
integrar as universidades, sendo a Universidade de Paris, a mais conceituada da poca, um
exemplo substancial, da gerando os principais embates entre religiosos e seculares16.
A Ordem dos Mendicantes (que abrangia dominicanos e franciscanos) representou
uma novidade em termos de atuao da Igreja Catlica. Destinava-se pregao do
14 Assim se manifesta: V-las-emos dentro em pouco tomar a dianteira do movimento teolgico e filosfico, atacadas pela inveja dos mestres seculares, mas eficazmente defendidas pelas intervenes pontifcias (Cf. Compndio de histria da filosofia, op. cit., p. 306). 15 THONNARD expe que as escolas dos dominicanos distinguiam-se entre: o studium ordinarium, com um mestre e alguns auxiliares; o studium solemne para uma provncia com um mestre e um ou dois bacharis, interpretando a Bblia e as Sentenas e mantendo disputas pblicas; enfim, nos grandes centros o studium generale, com um mestre e dois bacharis; mantinha os mesmos exerccios que os precedentes mas recrutava os seus mestres e os seus alunos em todas as provncias (Cf. Compndio de histria da filosofia, op. cit., p. 307). 16 THONNARD conta: O exemplo das duas grandes ordens arrastou as outras congregaes que, por sua vez, abriram escolas em Paris: os Cistercienses em 1256, os Eremitas de Santo Agostinho em 1287, os Carmelitas em 1295. Os prprios seculares, imitando os conventos, reuniram-se em colgios onde os alunos em teologia se exercitavam nas disputas e na pregao (Cf. Compndio de histria da filosofia, op. cit., p. 307).
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Evangelho (ofcio divino) depois de estudo cuidadoso das escrituras, alm de sua difuso em
pblico e nas universidades, inclusive com aulas oficiais. A inovao consistira em que at
ento essa misso de ensinana e pregao competia exclusivamente aos membros do
chamado episcopado (Alto Clero). Alm disso, nenhuma ordem religiosa anterior se tinha
destinado pregao em pblico nem feito estudo sistemtico e dirio da Bblia. Os votos de
pobreza da ordem de Santo Domingo tambm se destacaram como inovao das prticas
religiosas.
A Ordem dos Dominicanos se distinguia sobretudo em razo da indumentria que
ostentava. Seus membros vestiam uma tnica branca, com escapulrio, capucha e uma capa
negra exterior feita de l. As vestes e os smbolos na Idade Mdia constituam um ritual
identificvel nas instituies, inclusive as religiosas. As universidades, por exemplo, passaram
a adotar e ser identificadas por brases, ritual que se conserva at hoje. Os votos de pobreza
dos dominicanos incluam pedidos de esmolas nas ruas das cidades medievais para o prprio
sustento de seus aderentes. Rezavam em coro no prprio convento e tinham o objetivo central
de converter as almas humanas, especialmente por meio da prtica da vida em pobreza. Entre
os princpios reinantes na ordem dos dominicanos estava a obrigao de dedicao aos
estudos. A abertura e difuso dos chamados estudios generalis por diversos pases da Europa
Ocidental eram o indicativo da formao de uma espcie de infraestrutura para cumprimento
desse dogma dos dominicanos17. Isto talvez tenha sido um motivo importante para adeso de
Santo Toms referida ordem religiosa.
A escolha de Toms pela ordem dos dominicanos no poderia ter ocorrido em
ocasio mais adequada. Com ela, o aquinatense obteve a grande oportunidade de elevar-se nos
estudos de filosofia e teologia, enveredando por estudos dogmticos e conducentes obteno
de graus universitrios. Assim, a religio e a vida acadmica, conjugadas, permitiram ao
Santo Doutor explorar da melhor forma seu instinto acadmico, transformando-o em um dos
grandes expoentes do saber enciclopdico de todos os tempos. A ordem dominicana
17 A propsito, anota LOUIS DE RAEYMAEKER: Las rdenes religiosas fundadas al principio del siglo XIII han desempeado un papel de los ms importantes en el movimiento intelectual de la Edad Media. Este es el caso de la orden de los frailes menores, fundada por San Francisco de Asis (1209) y de la de predicadores, fundada por Santo Domingo (1215). Uno de los artculos fundacionales de la constitucin de los dominicos impone a los frailes la obligacin de dedicarse al estudio. Los predicadores abrieron studia, escuela para los estudios teolgicos (Cf. Introduccin a la filosofa, trad. de Salvador Caballero, Madrid: Editorial Gredos, 1956, p. 120).
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constituiu-se ainda num segmento propcio agudeza literria do aquinatense, instigando-o a
escrever diversas e magistrais obras18.
Sem dvida, o ingresso de Toms de Aquino na Ordem de Santo Domingo decorreu
muito mais de que uma repentina atrao. Razes de natureza intelectual certamente firmaram
a convico do Santo Doutor. Sem as investidas literrias, didticas, acadmicas e intelectuais
dos dominicanos no encontraria o aquinatense atmosfera adequada sua vida. Mais filsofo
que telogo como era (e continua sendo de certo modo), Toms de Aquino encontrou na
ordem dominicana o habitat fundamental que o conduziria elaborao de sua doutrina de
conciliao entre a f e a razo, entre a teologia e a filosofia. No se trata de uma pliade de
coincidncias; trata-se efetivamente de obra da Providncia Divina.
Doutra parte, parece perfeitamente admissvel que a insero de Toms entre os
dominicanos fomentou-lhe o interesse de conciliar a razo com a f. Com efeito, auxiliando a
Alberto Magno, tambm dominicano, Toms de Aquino entrou em contato com o saber
racional aristotlico da poca, movido pela dinmica intelectualista da Ordem de Santo
Domingo19. licito acrescentar que os estudos de teologia desenvolvidos por meio dos
studium inauguraram um intenso ambiente de produo cientfica e de ensino teolgico
cristo, formando poderosas correntes de ideias. Isto comprova a seriedade e grande
importncia das consequncias desses estudos cientficos.
As ordens religiosas contavam, muitas vezes, com grande nmero de membros, e
seu modelo de ensino caracterizava-se pela profunda organizao e pelo apego (at autoritrio
segundo alguns) autoridade dos doutores. dizer que as lies dos mestres eram muitas
vezes convertidas em dogmas de elevado valor cientfico, sendo consideradas verdades
incontestveis20. Porm, como sensvel em toda poca de intenso desenvolvimento cultural,
18 THONNARD escreve: Os seus ouvintes, maravilhados da limpidez e da preciso das suas teses metafsicas, pediram-lhe, sem dvida, que delas redigisse um resumo e Santo Toms escreveu o seu primeiro opsculo: De ente et essentia. J ali mostra as suas qualidades mestras: brevidade, preciso, clareza, profundidade; e ali afirma a maior parte das suas doutrinas caractersticas: passividade completa da matria primeira, identidade da unidade individual e da unidade especfica nos anjos e ausncia neles de matria, distino real entre essncia e existncia nas criaturas, de modo a poder dizer-se que, desde o incio, a sntese filosfica est completa no esprito de Santo Toms (Cf. Compndio de histria da filosofia, op. cit., p. 325). 19 MICHELE FEDERICO SCIACCA escreve que En esta obra gigantesca, Alberto prepara el vasto material con parfrasis y comentrios de Aristteles con el objeto de restituir el pensamiento genuino del Estagirita y de hacerlo accesible al mundo latino. Santo Toms, en cambio, dotado de genio especulativo, hace una elaboracin original del aristotelismo construyendo uno de los ms grandes sistemas filosficos de la humanidad, la sntesis ms harmnica entre el pensamiento antiguo y la doctrina cristiana (Cf. Historia de la filosofa, trad. de Adolfo Muoz Alonzo, Barcelona: Editora Luis Miracle, 1950, p. 225). 20 O mesmo LOUIS DE RAEYMAEKER considera que a obedincia aos dogmas emergentes das lies dos doutores escolsticos representava um risco evoluo do conhecimento, o que, felizmente, acabou no se
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os embates pblicos envolvendo lies e ideias dos doutos (cientistas, professores e
religiosos) ofereciam a dimenso das controvrsias e o confronto dos dogmas das vrias
correntes acadmico-cientficas.
nesse ambiente efervescente que Santo Toms teve oportunidade de desenvolver
suas obras, pautadas que foram numa espcie de sntese das principais correntes de ideias,
com apresentao das solues (cientficas) dos confrontos, sem olvidar do respeito que
devotava a todos os opositores e suas concepes. Por isso, entendemos que uma
conceituao de Justia segundo o pensamento filosfico-cristo de Santo Toms de Aquino
dotado de mpar e induvidosa propriedade cientfica, seno perfeio, conquanto
consequncia da sntese de ideias antagnicas a respeito do tema envolvendo a virtude da
Justia.
Toda essa ordem de comportamentos fora o diferencial que conduziu Santo Toms
de Aquino a optar pelo ingresso na Ordem de Domingo de Guzmn. Manifestou essa inteno
sua famlia, durante um perodo de frias em que esteve junto dela, sentindo, desde logo,
forte oposio.
1.3. Oposio da famlia e sequestro
Em 1244, quando contava entre dezenove e vinte anos de idade, Toms admitido
no convento dos dominicanos, sediado na cidade de Npoles. Iniciou seu noviciado como
simples e resignado frei dominicano, no obstante seu elevado preparo intelectual. No
tardou, entretanto, em desenvolver naturalmente suas habilidades intelectuais.
Aps Toms de Aquino formalizar seu ingresso na ordem dos dominicanos, na
condio de simples frei, seus superiores, especialmente o grande prior Juan o Teutnico,
decidiram transferi-lo de Npoles para Roma e, logo em seguida, de Roma para Bolonha.
Temiam aes violentas dos seus familiares nobres, os quais j haviam manifestado grande
oposio ao seu escolhido ofcio de frei mendicante. Tal atitude no logrou xito. Na ocasio
em que Toms de Aquino se deslocava j de Roma para Bolonha, seus irmos, cumprindo
ordens de sua me, o interceptaram, conforme relata Weisheipl21. Toms de Aquino estava na
confirmando. Sua avaliao no sentido de que seguramente esta situacin garantizaba la colaboracin y la continuidad del trabajo cientfico; pero no representaba slo ventajas, pues implicaba un riesgo para el espritu de iniciativa y la originalidad del pensamiento (Cf. Introduccin a la filosofa, op. cit., p. 121). 21 WEISHEIPL, James Atanasius. Toms de Aquino. Vida, obras y doctrina, traduo para o espanhol de Frank Hevia, Pamplona: Eunsa, 1994, p. 41. O autor comenta que o mais provvel parece ser que Juan o
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companhia de mais trs membros dominicanos e do prprio Juan o Teutnico, os quais,
apesar dos protestos que fizeram, viram Toms de Aquino ser levado fora. A inteno da
famlia de Toms era demov-lo da ideia de tornar-se religioso pobre, ainda que para tal
devessem utilizar a fora e medidas como sequestro. No momento do sequestro no houve
resistncia de Toms de Aquino, salvo quando tentaram retirar-lhe a indumentria de frei
dominicano. Consta que Toms de Aquino, ante sua volumosa estatura fsica e fora, deixou
ao cho seus irmos ao resistir ao intento destes em subtrair-lhe as vestes de dominicano.
A ordem de sequestro emanada de sua prpria me, Teodora de Teate, ocorrera
muito provavelmente por instinto de preservao de sua famlia, j que Teodora via em
Toms de Aquino qualidades suficientes para que se tornasse Abade de Montecassino,
aderindo ao mesmo tempo ordem religiosa dos beneditinos22. Nossas convices permitem
observar que o ato de sequestro e clausura forada de Santo Toms, por iniciativa de sua
famlia, no se constituiu necessariamente em uma conduta deplorvel. As crticas que alguns
autores desferem sobre Teodora de Teate nesse particular talvez no reflitam corretamente o
ambiente no qual se desenrolaram os fatos. Na verdade, conforme sugere o prprio Weisheipl,
tratou-se de lcita tentativa da me de Toms de Aquino em preservar a unidade e o conforto
da famlia Aquino, prestando honra ao chefe da famlia recm falecido (Landolfo de Aquino).
ato envolto em desespero de qualquer me responsvel, honrada e fiel segurana e bem-
estar da famlia. A confiana, no sentido de esperana depositada na carreira promissora de
um filho preclaro (Toms de Aquino), viu-se frustrada com a resistncia deste em atender aos
apelos de sua famlia. Santo Toms queria e estava devotado ao caminho vocacional que
Teutnico tenha decidido viajar em companhia de Toms de Aquino at Paris, para evitar confronto dele (Toms) com sua famlia, ante a deciso de ingressar na ordem dos mendicantes dominicanos. Nesta viagem, Juan o Teutnico planejava passar por Roma e Bolonha. No trecho Roma-Bolonha, numa localidade cerca de Acquapendente (um acampamento onde Toms parou para descansar), Reinaldo, irmo de Santo Toms, alcanou e interceptou o grupo de mendicantes, cumprindo ordens de Teodora de Teate. Conta ainda o estudioso canadense que Juan o Teutnico tentou junto ao ento rei Federico II a punio dos sequestradores, sendo ignorado. 22 Segundo ainda WEISHEIPL, ao traduzir a inteno de dona Teodora ao determinar o sequestro de Toms de Aquino, La verdad del asunto es que doa Teodora y su esposo Landulfo haban hecho planes muy cuidadosos para el futuro de la familia, y Toms tena que desempear un papel importante en su realizacin. Segn Mandonnet, el padre de Toms muri el 24 de diciembre de 1243. La evidencia suministrada por Mandonnet es un documento que seala la muerte de Landulfo, indicando el mes y el da, pero no el ao. En todo caso, es muy posible que Landulfo muriese en 1243. De ah que doa Teodora sintiese el deber de procurar que se cumpliera el plan ms ventajoso por el bien de la fortuna familiar. No cabe duda alguna de que doa Teodora quera desesperadamente ver a Toms y tratar el asunto con l. Ella no se opona a que siguiese una vocacin religiosa, pero estaba firmemente en contra de que se hiciera fraile mendicante. Es natural que una madre tan fuertemente motivada quisiera discutir el bien de su hijo as como el futuro de la familia. En este momento el emperador Federico an no haba sido depuesto por el concilio de Lyon y la fortuna de la familia de Aquino
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escolheu. Talvez o aquinatense tenha uma parcela de culpa no episdio relatado, talvez no.
No est ao nosso alcance julgar com preciso. Certo que com tal resistncia de Toms de
Aquino, sua famlia enfrentara privaes. de se indagar se tal contexto demanda ou no
crticas ao Doutor de Aquino.
Aps ser subtrado fora da convivncia da ordem dominicana, diante do
sequestro executado pelo irmo Ricardo, Toms de Aquino mantido encarcerado em uma
torre do castelo de Montesangiovanni, propriedade de sua famlia. A seguir registram-se os
episdios que sucederam em Montesangiovanni.
No castelo de Montesangiovanni, Toms de Aquino enfrenta tentativa de seduo
por parte de uma jovem atraente, de reduzidas prendas de vestir, intencionalmente investida
por seus irmos em seu quarto de crcere com o escopo de fazer desviar os desgnios
religiosos do recalcitrante caula23. Tal episdio considerado pelos estudiosos como um dos
poucos momentos em que Toms de Aquino perdera o equilbrio24. Toms, entretanto, resiste
aos encantos da jovem sedutora que, com escassas prendas de vestir, como dito, adentra
certa vez em seu crcere disposta a levar a termo o ato de seduo. Toms de Aquino,
atordoado, corre em direo mulher e, com uma tocha de fogo s mos, consegue expuls-la
de seu crcere, cerrando, em seguida, fortemente, a porta. Aps isso, o aquinatense desenha o
sinal da cruz na parte interna da porta de seu crcere, utilizando a mesma tocha de fogo. Cai,
em seguida, em profundo sono junto ao solo daquele ambiente de crcere, talvez movido por