Dissertação Doutoramento Coimbra Claudio Pedrosa Nunes§ão... · havia realizado um estudo tão...

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FACULDADE DE DIREITO DOUTORAMENTO EM DIREITO UMA REFLEXÃO CONCEITUAL-JURÍDICO-CRISTÃ DE JUSTIÇA EM TOMÁS DE AQUINO Claudio Pedrosa Nunes Coimbra, Abril de 2011

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  • FACULDADE DE DIREITO

    DOUTORAMENTO EM DIREITO

    UMA REFLEXO CONCEITUAL-JURDICO-CRIST DE JUSTIA EM TOMS

    DE AQUINO

    Claudio Pedrosa Nunes

    Coimbra, Abril de 2011

  • II

    UMA REFLEXO CONCEITUAL-JURDICO-CRIST DE JUSTIA EM TOMS

    DE AQUINO

    Claudio Pedrosa Nunes

    Dissertao apresentada ao Curso de

    Doutoramento em Cincias Jurdico-Filosficas

    como requisito para acesso s provas de obteno

    do grau de Doutor.

    Orientador: Professor-Doutor Mrio Alberto

    Pedrosa dos Reis Marques

    JURI CONSTITUDO

    _______________________________________________________________

    Professor-Doutor

    ______________________________________________________________

    Professor-Doutor

    _______________________________________________________________

    Professor-Doutor

    ______________________________________________________________

    Professor-Doutor

    ______________________________________________________________

    Professor-Doutor

    Coimbra, Abril de 2011

  • III

    DEDICATRIA

    Dedico este estudo minha querida me CREUSA

    PEDROSA NUNES, exemplo singular de dignidade,

    honradez e aguado senso de Justia. Sua elevada

    envergadura tico-moral me renova e inspira a

    convico de que, na cidade dos homens, nem tudo

    est perdido.

  • IV

    AGRADECIMENTOS

    A Deus Criador, a Nossa Senhora de Ftima

    (Portugal) e a Santo Toms de Aquino, razes de

    vida, inestimveis na devoo, fonte de sabedoria e

    de inspirao no meu espinhoso ministrio de julgar.

    Ao digno e culto Professor MRIO ALBERTO

    PEDROSA DOS REIS MARQUES, cuja firmeza de

    concepes e admirvel saber jusfilosfico elevaram

    sobremaneira meu aprendizado e a qualidade da

    pesquisa, inserindo-me, com incomensurvel

    proveito, no fascinante mundo do saber jurdico-

    filosfico.

  • V

    RESUMO

    O presente estudo objetiva oferecer uma reflexo originria do mundo medieval capaz de

    demonstrar a singular significncia, importncia e conceituao da virtude da Justia a partir

    do pensamento jurdico-filosfico de Santo Toms de Aquino. Volta-se o estudo para uma

    poca mpar da histria da humanidade, capitaneada pelo pensamento cristo, mas, tambm,

    envolta em um espao e tempo de grandes transformaes geradas pelo saber acadmico-

    formal e pelo desenvolvimento das cincias, particularmente das cincias humanas. Nessa

    dimenso, eclode o surgimento e apogeu das universidades, onde a escolstica tomista triunfa

    soberana, inaugurando e fincando os fundamentos da universalizao do conhecimento. Junto

    a isso, categorias jurdico-filosficas como a lei e o Direito auferem nova dinmica,

    designadamente por conduto do novel sistema jurdico-religioso tomista, dotando a virtude da

    Justia de instrumentais que a elevam a categoria central promotora da legitimidade e

    estabilidade das relaes humanas. A Justia em Toms de Aquino salta, destarte, de um

    domnio puramente abstrato para avanar como padro tico-moral de sensvel e palpvel

    aplicao no mundo emprico dos homens, sempre sob orientao e ordenao filosfica e

    jurdico-crist. Embora complexa, a ideia de Justia em Toms de Aquino coesa,

    sistemtica, cientfica e, diante disso, utilizvel para o bem e a felicidade dos homens,

    conferindo o devido e necessrio norte para alcance da pacificao social. A diviso didtica

    da Justia segundo Toms deriva do cuidado do preclaro medieval em conferir-lhe uma

    configurao de aplicao concreta no ambiente da razo, munindo-a de densidade tico-

    jurdica sugestiva de sua assimilao pelos homens no mundo real que o circunda. dizer que

    a Justia geral e a especial refletem um dualismo peculiar de legitimao para as variaes das

    relaes humanas, pblicas e particulares, com potencial para socorrer os protagonistas dos

    mais elevados e dos mais simplrios pactos, numa dosagem de igualdade que nem sempre

    expurga os extremos. Por fim, entendemos admissvel uma reflexo conceitual e jurdico-

    crist da Justia tomista como elemento de insero interpretativa que pode auxiliar na

    compreenso e aplicao do Direito do nosso tempo, especialmente pelo mrito de conferir a

    ele, o Direito, a condio de objeto da Justia, e, com isso, consumando-o como categoria

    indissocivel do ideal de dar a cada um o que seu. Palavras-chave: Conceituao. Justia.

    Jurdico-crist. Santo Toms de Aquino. Escolstica tomista. Direito natural. Direito

    medieval.

  • VI

    ABSTRACT

    This study seeks to offer an originating reflection about the medieval world able to

    demonstrate the particular significance, importance and concept of the virtue of Justice from

    the legal-philosophical thought of St. Thomas Aquinas. It turns to the study of a unique era in

    human history, led by Christian thought, but also wrapped in a space and time of huge

    transformations generated by the formal-academic knowledge and the development of

    science, particularly the humanities. In this dimension, the rise and heyday of the universities

    hatch, where the Thomist scholasticism triumphs sovereign, opening and digging the

    foundations of universal knowledge. Besides this, the legal-philosophical categories such as

    law and Law Studies receive new impetus, particularly because of the new legal and religious

    Thomist system, giving the virtue of Justice the instruments which elevate it to the central

    category promoter of legitimacy and stability of human relationships. Justice in Aquinas

    jumps, thus, from a purely abstract field to an advance one as an ethical and moral standard of

    sensitive and tangible application in the empirical world of men, always under the

    philosophical and legal-Christian guidance and ordering. Although the idea of Justice in

    Thomas Aquinas is complex, it is cohesive, systematic, scientific and, before that, usable for

    the welfare and happiness of men, giving necessary and due north to reach the social

    pacification. The didactic division of Justice according to Thomas Aquinas comes from the

    illustrious medieval care to give it a setting of concrete application on the environment of

    reason, arming it of legal and ethical density suggestive of its assimilation by men in the real

    world that surrounds them. It is said that the general and particular justice reflect a peculiar

    dualism of legitimation for the variations of human, public and private relationships, with a

    potential to help the protagonists of the highest and the most simplistic pacts, with a dose of

    equality which does not always purge the extremes. Finally, we consider that it is acceptable a

    conceptual and legal-Christian reflection of Thomist Justice as an element of interpretative

    insertion that can assist in understanding and applying the Law of our time, especially in the

    merit of giving it, the Law, the condition of object of Justice and, with it, consuming it as

    inseparable category from the ideal category to give each person what is his/her own.

    Keywords: Conceptualization. Justice. Legal-Christian. St. Thomas Aquinas. Thomist

    scholasticism. Natural right. Medieval Law.

  • VII

    SUMRIO

    INTRODUO ..................................................................................................................... 11

    CAPTULO 1. APROXIMAO AO PERSONAGEM EM ESTUDO: SANTO TOMS

    DE AQUINO ...........................................................................................................................27

    1.1. Lugar de nascimento, famlia e vocao .......................................................................... 27

    1.2. Atrado pela vida religiosa ............................................................................................... 31

    1.3. Oposio da famlia e sequestro ....................................................................................... 35

    1.4. Fuga para dedicao a Deus ............................................................................................. 39

    1.5. Formao acadmica e produo cientfica ..................................................................... 45

    1.5.1. Paris e Colnia ........................................................................................................ 48

    1.5.2. Iniciao docncia ................................................................................................ 56

    1.5.3. Os mestres seculares ............................................................................................... 58

    1.6. Enfermidade, ltimos dias e canonizao ........................................................................ 60

    1.7. Um instigante ressurgimento ........................................................................................... 65

    CAPTULO 2. AVATARES DO SABER JUSFILOSFICO CRISTO: A

    ESCOLSTICA TOMISTA ................................................................................................ 73

    2.1. Surgimento e apogeu das universidades .......................................................................... 73

    2.2. Escolstica tomista e suas caractersticas ......................................................................... 99

    2.3. Resgate de Aristteles e o racionalismo teolgico-filosfico medieval ........................ 108

    2.4. Ainda sobre a metafsica aristotlica: alma e corpo; f e razo ..................................... 130

    2.5. Cincia terica e cincia prtica ..................................................................................... 142

    2.6. F e razo na Summa Contra Gentiles ........................................................................... 146

    2.7. A verdade ....................................................................................................................... 153

    2.8. O intelecto ...................................................................................................................... 158

    2.9. F, razo e virtude da Justia em Santo Toms: um cone da escolstica ..................... 160

  • VIII

    2.10. O classicismo, ecletismo e formalismo de Santo Toms ............................................. 164

    2.11. Os novos rumos do tomismo ........................................................................................ 174

    CAPTULO 3. PERFIL DA FILOSOFIA JUSPOLTICA TOMISTA ........................ 181

    3.1. Estado, virtudes e ideais polticos: entre Aristteles e Toms de Aquino ..................... 181

    3.2. Uma fonte juspoltica de excelncia: Aristteles ........................................................... 189

    3.3. Uma fonte juspoltica de autoridade: Santo Agostinho ................................................. 207

    3.4. O direito-lei sob a tica juspoltica tomista ................................................................... 229

    3.5. Precedente aristotlico da Justia tomista: a tica a Nicmaco ..................................... 241

    CAPTULO 4. A LEI NA SUMA TEOLGICA E SUA RELAO COM A JUSTIA

    .................................................................................................................................................253

    4.1. O sistema jurdico-religioso tomista .............................................................................. 253

    4.2. O Direito Natural no sistema jurdico-religioso tomista ................................................ 291

    4.3. Importncia do sistema jurdico-religioso tomista na atualidade ................................... 307

    4.4. O sistema tico-jurdico tomista .................................................................................... 313

    4.5. Metodologia positivista e a tica tomista dos valores .................................................... 324

    4.6. Inspirao tomista da lei moderna ................................................................................. 335

    4.7. O racionalismo jurdico medieval-tomista como elemento hermenutico ..................... 341

    CAPTULO 5. CONCEITUAO DE JUSTIA NA SUMA TEOLGICA ............. 351

    5.1. Intrito ............................................................................................................................ 351

    5.2. A Justia e suas caractersticas fundamentais ................................................................ 353

    5.2.1. A Justia e o bem comum .................................................................................... 355

    5.2.2. Justia como virtude mais elevada ...................................................................... 361

    5.2.3. Justia como inverso de injustia ........................................................................ 368

    5.3. A Justia e os juzes ....................................................................................................... 376

    5.4. Diviso da Justia ........................................................................................................... 394

    5.4.1. Prolegmenos ...................................................................................................... 394

  • IX

    5.4.2. Perfil divisrio da Justia tomista na Suma Teolgica ........................................ 395

    5.4.3. Uma sntese ......................................................................................................... 429

    CAPTULO 6. COMPLEXO CONCEITUAL TOMISTA DE JUSTIA .................... 435

    6.1. Excelncia da Justia ..................................................................................................... 435

    6.2. Justia e cincia .............................................................................................................. 448

    6.3. Justia na atual tradio filosfica ocidental .................................................................. 458

    6.4. Justia Direito Natural ................................................................................................. 467

    6.5. Justia virtude moral ................................................................................................... 488

    6.6. Justia habito e vontade ............................................................................................... 501

    6.7. Justia igualdade (moderao) .................................................................................... 505

    6.8. Justia Deus ................................................................................................................. 519

    6.8.1. Deus como qualificao da conceituao tomista de Justia .............................. 524

    6.8.2. Concepes tomistas acerca da existncia de Deus ............................................ 530

    6.8.3. Provas racionais da existncia de Deus ............................................................... 538

    6.9. Justia consequncia da razo prtica ......................................................................... 545

    6.10. Justia o objeto da jurisdio .................................................................................... 555

    6.11. Justia evitar ou desfazer injustias .......................................................................... 566

    6.12. Justia promover o bem comum ............................................................................... 571

    CONCLUSES ................................................................................................................... 583

    BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 595

    ANEXOS .............................................................................................................................. 613

  • 11

    INTRODUO

    O estudo do pensamento filosfico-cristo de Toms de Aquino constitui o marco

    exuberante de toda a Filosofia Medieval. At o advento da Alta Idade Mdia nenhum telogo

    havia realizado um estudo to apurado, sistemtico e til das Sagradas Escrituras como o fez

    Toms de Aquino, com o emprego de conceitos, categorias, caractersticas e institutos da

    Filosofia e do Direito.

    A doutrina tomista consistente na congeminao da f com a razo representou, por

    outro lado, a essncia da evoluo, desenvolvimento e enriquecimento da doutrina da Igreja

    Catlica. A propriedade, organizao e sistematicidade cientfica da doutrina de Santo Toms

    permitiram uma espcie de reedio de seus ensinos por sucessivas encclicas papais,

    especificamente a partir da Rerum Novarum de Leo XIII.

    Os padres religiosos catlicos que entornavam a ideia da existncia e da essncia

    de Deus deixaram de constituir algo precipuamente potico, transcendental e inalcanvel

    para transformar-se em categorias palpveis, sensveis e humanas, caractersticas do

    enfoque lgico-racional que informa toda a doutrina cientfica do Santo Doutor.

    O ensino e o desenvolvimento de categorias jurdicas como a lei e a Justia no se

    divorciaram dessa perspectiva. Significa que os institutos jurdicos mereceram de Toms de

    Aquino um cuidado especial, de modo a revelar grande utilidade para a realidade emprica,

    ultrapassando a concepo abstrata alheia ao dia a dia da convivncia social. Trata-se de

    conceber o Direito (em que se inclui a lei humana) como objeto da Justia e de devotar

    virtude da Justia uma dimenso de elevada envergadura moral, incorporando-a a todos os

    atos interpessoais, especialmente s relaes jurdicas, com vista ao bem-estar comum dos

    homens.

    A amplitude do ou dos conceitos de Justia, segundo o pensamento filosfico-

    cristo de Santo Toms de Aquino, confere a ela (Justia) uma espcie de espectro sensvel da

    presena e da vontade de Deus sobre as aes humanas, particularmente sobre as autoridades

    incumbidas de governar, legislar e de julgar.

    Por estas consideraes, sensvel a constatao de que a concepo de Justia em

    Santo Toms multiforme e complexa, no obstante possa ser devidamente compreendida

  • 12

    diante de sua histria de vida e de suas obras, sem, contudo, desmerecer o emprego de outras

    fontes dogmticas e epistemolgicas.

    A formao acadmica e religiosa do Santo Doutor j nos permite perceber que

    todas as suas aes so voltadas para o estabelecimento do equilbrio das coisas. Ao

    verificarmos que Santo Toms no se furta a quaisquer questiones disputatio, temos nisso a

    certeza de que o equilbrio de seu pensamento e de sua doutrina filosfico-crist perpassa pela

    ateno acentuada que conferiu s ideias de seus opositores. Em outras palavras, quando

    Aquino adota posio inequvoca de extrair de seus opositores ideias que podero ser

    aproveitadas para confirmao da verdade de sua doutrina, est a indicar claramente que o

    fundamental para encontro da Justia e do bem o anseio de busca incessante do equilbrio

    que deve mover as aes e as concepes do homem, como a operar um meio-termo entre

    posies extremadas.

    O radicalismo e a intolerncia definitivamente no encontram qualquer utilidade e

    proveito na conceituao tomista de Justia, seno na medida em que concentram a convico

    de que devem ser desprezados. Nessa dimenso, mister concluir, num primeiro momento,

    que a moderao um marco substancial na doutrina tomista de Justia, consequncia no

    menos cintilante de seu comportamento pessoal e particular como homem de bem. A

    serenidade e a resignao integram o perfil do grande estudioso medieval, gerando impacto

    quase automtico no contedo de suas obras filosficas, entre as quais a concepo de Justia.

    Com efeito, tais qualidades intrnsecas ao Santo Doutor permitem observar que mesmo entre

    os adversrios o respeito de suas construes ostenta a devida reverncia.

    No transcorrer do Sculo XX, especialmente aps a ecloso da Segunda Grande

    Guerra, procurou-se resgatar a doutrina do Direito Natural, idealizando-a inclusive sob novas

    denominaes (jusnaturalismo, questo social, direitos humanos, direitos sociais etc.), numa

    evidente confisso de sua propriedade em tudo o que se refere natureza humana. Viu-se,

    assim, uma tentativa vociferante, seno desesperada, de superar e corrigir os flagrantes

    equvocos que se cometeram a partir da admisso da hipertrofia do direito positivo ou direito

    fundado na norma pura, infenso de valores, na forma preconizada sobretudo pelos aderentes

    do ento nacional-socialismo alemo, no obstante inadvertidamente em muitos casos. Porm,

    aqui ou acol sensvel o desconhecimento dos postulados fundamentais da doutrina do

    Direito Natural, especialmente porque a um nmero notvel de estudiosos contemporneos

    sucede a insuficincia de domnio da filosofia crist e a adequada compreenso humanstica

  • 13

    do jusnaturalismo resultante em grande monta dos ensinos de Toms de Aquino. Noutro dizer,

    de fundamental importncia que as diversas concepes dogmticas, epistemolgicas,

    axiolgicas e principiolgicas do Direito Natural tambm observem e sucedam do cotejo,

    ainda que apenas bsico, dos postulados filosficos construdos no auge da escolstica

    tomista. Em tema de Direito Natural, destarte, a doutrina tomista tem especial e obrigatrio

    assento.

    A assimilao cognoscitiva relativa ao Direito Natural, construda e difundida no

    Medievo tomista, a premissa bsica que norteia todo e qualquer estudo do Direito Natural

    que se pretenda digno de autoridade. No estamos a dizer com isso ser impossvel aplicar-se

    uma doutrina do Direito Natural adaptvel aos tempos modernos. No. Mas no podemos

    reputar suficiente e proveitosa qualquer iniciativa deste ou daquele estudioso que despreze os

    princpios e ensinos tomistas bsicos nesse particular. Faltar, no caso, a necessria autoridade

    dogmtica para definir e caracterizar com inteireza, mesmo na modernidade, o que seja

    Direito Natural e, a partir dele, a compreenso adequada de Justia segundo Toms de

    Aquino.

    A conceituao tomista de Justia no se limita somente a concepes teolgico-

    filosficas, embora nelas tenha sua fonte primordial de inspirao. perfeitamente possvel

    vislumbrar certas projees de natureza marcantemente jurdica, com inegvel proveito para o

    Direito do nosso tempo. A importncia da igualdade, claramente adotada pelo aquinatense

    como norte de sua concepo de Justia, o ponto central que projeta essa mesma concepo

    de Justia tambm para a seara jurdica, dando a entender que em razo dela que o Direito se

    destaca como objeto fundamental da Justia.

    sob essas premissas bsicas que procuramos desenvolver uma reflexo

    conceitual-jurdico-crist de Justia segundo o pensamento tomista. Para isso, utilizamo-nos

    principalmente das prescries de suas obras mais conhecidas e destacadas: a Suma Teolgica

    e a Suma Contra os Infiis, esta ltima mais conhecida como Summa Contra Gentiles. O

    propsito demonstrar, sob uma especfica reflexo, que o Direito e a Justia no so

    categorias ou institutos visceralmente alheios aos valores do Direito Natural, bem como a

    valores de ndole filosfica e mesmo teolgico-crist, cujas premissas bsicas foram h muito

    elaboradas com grande maestria pelo Santo Doutor. Nesse contexto, pensamos ser

    conveniente esclarecer o porqu dessa reflexo conceitual-jurdico-crist de Justia em Toms

  • 14

    de Aquino, isto , em que consiste ou o que consubstancia tal reflexo, de modo a facilitar,

    como esperamos, o entendimento do leitor.

    De incio, nossas observaes permitem concluir que Santo Toms utiliza a teologia

    como fator de aperfeioamento da filosofia, esta encerrada em seu preparo acadmico puro.

    Distingue-se, pois, a filosofia como ramo especfico e com qualidades prprias, no que o

    pensamento cristo-catlico (teologia) ir depur-la no melhor sentido dogmtico. dizer que

    a filosofia, por si s, bastante como segmento do conhecimento apto a conferir uma

    conceituao aceitvel de Justia, cuja base a lgica emergente do sistema de exposio e

    explicao dos institutos e categorias do conhecimento adotados pelo aquinatense. Porm,

    embora tcnica e cientificamente correta uma conceituao de Justia por conduto do

    conhecimento filosfico, esta no se mostra ideal e idnea sem o concurso da doutrina e do

    conhecimento teolgico-cristo, especialmente porque, no sentimento do Santo Doutor, o

    teolgico superior ao filosfico. Sendo, pois, a teologia o segmento do conhecimento que

    confere perfeio a tudo o quanto se pretenda estudar ou descobrir, no se poderia deixar de

    refletir a filosofia sob a orbe teolgica, designadamente porque esta necessria para conferir

    idoneidade e inteireza quela.

    certo que a filosofia tem sua configurao e sua autonomia como cincia e

    segmento indispensvel do conhecimento e intelecto humanos. Contudo, no capaz de

    exaurir tudo o que se pode dizer, assimilar, executar e construir a respeito da Justia, no que

    reclama o auxlio da teologia. Assim, preciso integrar o pensamento filosfico acerca da

    virtude da Justia aos dogmas e tradies da sacra doutrina de Deus, ento enraizadas

    doutrina da Igreja Catlica Apostlica Romana. Afinal, ao que se dessume do pensar do Santo

    Doutor, a virtude da Justia sugere um ideal de perfeio que s alcanvel com o concurso

    das premissas teolgico-crists.

    A diferena entre a teologia e a filosofia no est no fato de que uma trata das

    coisas de Deus e a outra das coisas do homem e do mundo; ambas tratam de Deus, do homem

    e do mundo. A diferena essencial est em que a filosofia oferece um conhecimento

    imperfeito das coisas de Deus, do homem e do mundo, no obstante corretas sob o ponto de

    vista emprico. Cabe teologia, nesse aspecto da imperfeio da filosofia, dar o suporte

    necessrio para corrigir todos os eventuais defeitos, equvocos, incompletitudes e

    incompatibilidades daquela cincia, dotando-a de qualidades suficientes para a construo de

    uma reflexo um tanto mais perfeita de Justia. Significa dizer que a teologia oferece as

  • 15

    qualidades indispensveis ao aperfeioamento do conhecimento filosfico, cuja base

    fundamental , segundo Aquino, a sacra doutrina crist catlica, e, em ltima anlise, Deus.

    Portanto, a conciliao entre a f e a razo conveniente (seno necessria) porque a f

    melhora a razo, assim como a teologia melhora a filosofia. A graa divina aperfeioa a

    Natureza, o homem e as suas aes e descobertas. A teologia, assim, retifica a filosofia,

    embora no a substitua ou a desautorize; antes, confirma-a. A f orienta, ordena e integra a

    razo e, com isso, torna-a mais perfeita, com efeitos sempre positivos e benfazejos. So estas

    as justificativas primrias que nos conduzem a realizar uma reflexo conceitual-jurdico-crist

    de Justia, unindo em Santo Toms esses dois segmentos do conhecimento que constituram a

    motivao inarredvel de toda a sua vida, obra e crena. F e razo, portanto, formam o

    blsamo que aperfeioa e confere autoridade filosofia medieval-tomista.

    A ideia de Justia, na reflexo que propomos neste estudo, encerra uma via de mo

    dupla. Vemos que em Santo Toms a concepo de Justia no pode deixar de ostentar

    segmentos de natureza puramente racional, isto , visvel, palpvel e sensvel ao homem. O

    emprico no pode nem deve abstrair-se da conceituao tomista de Justia. Isto quer

    significar que a compreenso de Justia h de partir de verdades racionais, conquanto a razo

    seja o elemento de interseo entre todos os homens que habitam este mundo. necessrio

    que nos condicionemos por uma razo constituda pelo assentimento de todos os homens em

    relao a determinada coisa. sob tal concepo que podemos obter os primeiros resultados

    acerca de uma verdade, ou seja, da verdade aceita e pronta a ser praticada por todos. Disso

    deflui que a nica f em Deus, o amparo que se nos dado pela teologia, tambm no

    suficiente e conveniente para chegarmos compreenso ideal de Justia. O sentido da razo

    caracterstica inarredvel entre os homens, razo esta que no seno resultado da vontade de

    Deus ao criar o homem. Deixar de utilizar o racional por conta da concepo de uma luz

    superior que a tudo ordena em perfeio seria renegar uma exigncia primordial e natural

    imanente ao homem enquanto criatura de Deus. Por isso, a Justia em Santo Toms

    resultado de sua convico de que o homem e o mundo gozam de indispensvel autonomia,

    possuem suas prprias singularidades, no obstante reconhea e proclame uma conveniente

    dependncia disso em relao a Deus.

    O homem possui potencial, preparo e capacidade cognoscitivos para responder

    sua vocao de criatura destinada a conhecer e dominar o mundo, conforme se dessume do

    livro do Gnesis, 1, 27- 28: Deus criou o ser humano sua imagem, imagem de Deus o

  • 16

    criou. Homem e mulher Ele os criou. E Deus os abenoou e lhes disse: Sede fecundos e

    multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a! Dominai sobre os peixes do mar, as aves do cu e

    todos os animais que se movem pelo cho. O saber teolgico-cristo, portanto, no suplanta

    o saber filosfico, assim com a f no suplanta a razo. Os elementos teolgico e filosfico

    so, assim, necessrios e interdependentes para se chegar a uma adequada conceituao de

    Justia segundo o pensamento de Santo Toms de Aquino, conquanto suas propriedades

    especficas concentrem os ingredientes e os instrumentos racionais e transcendentais que a

    consolidam adequadamente. Tais observaes preliminares e justificativas perfazem a

    sensao que possumos e que reputamos importante no sentido de nos permitir formular uma

    reflexo conceitual-jurdico-crist de Justia segundo o pensamento de Santo Toms de

    Aquino.

    Cumpre registrar, doutra parte, a significativa importncia da Filosofia Medieval

    para o estudo do Direito e da Justia desde aquela poca (Idade Mdia) at os dias que

    correm. No h razo, portanto, para que as escolas jurdicas, designadamente universidades,

    olvidem de dar o devido lugar de destaque que ela merece. No por outra razo que Bryan

    Magee denuncia, com muita propriedade, a injustia que se tem feito com a Filosofia

    Medieval; acusa os estudiosos de t-la relegado a plano secundrio como se no tivesse

    contribudo para o desenvolvimento da Filosofia e da teoria geral do Direito (vide Los

    grandes filsofos, Madrid: Ediciones Ctedra, 1990, trad. de Amaia Brcena, p. 62). correto e

    justo o protesto do nominado autor, especialmente se considerarmos que a filosofia medieval

    rene mais de mil anos de efervescncia intelectual. Com efeito, o Medievo culto tem sido

    vtima de uma negligncia descabida durante muitos anos pelas geraes recentes, mais pelo

    apego inadvertido destas a um enganoso progresso das frmulas cientficas (que ofusca,

    propositadamente, os alvissareiros valores da religio crist e da Igreja Romana), que

    propriamente pela constatao efetiva de um suposto obscurantismo medieval. Os grandes

    filsofos medievais foram, em verdade, gigantes maestros do saber teolgico-filosfico;

    fizeram verdadeira filosofia tal e qual entendemos nos dias que correm. Vero seus crticos, se

    se dispensarem de preconcepes parciais, que a cultura medieval tem muito ainda a ensinar.

    Talvez em razo da propalao enganosa do indevidamente chamado obscurantismo

    medieval que se observa atualmente uma espcie de divrcio declarado do direito medieval

    e da filosofia medieval nas escolas de humanidades. Nesse sentido, sensvel a deficincia

    que hoje se verifica nas escolas jurdicas quanto a uma adequada formao jurdico-filosfica,

  • 17

    o que interfere negativamente na excelncia do ensino da teoria geral do direito e/ou da tica

    jurdica, designadamente porque omite aquilo que lhe mais caro e natural: o desgnio de

    fazer Justia. A filosofia de Santo Toms, por sua notria propriedade dogmtica e

    acadmica, seria, como , de grande contribuio para a complementao eficiente do ensino

    do Direito, da tica e da Moral. Afinal, no se pode divorciar o Direito da Justia nem se pode

    conceber um autntico Direito sem o ideal da Justia. E, em matria de compreenso da

    Justia, Toms de Aquino revelou-se inolvidvel, desde quando conduziu a filosofia

    aristotlica da Justia ao desejvel aperfeioamento, tornando-a uma virtude inseparvel de

    todos os que pretendem utilizar o Direito como instrumento de pacificao social e realizao

    do homem no justo e em Deus.

    Na verdade, a filosofia da Idade Mdia, destacando-se nela o pensamento de Toms

    de Aquino, revela grande diversidade de discusses sobre os mais variados temas. certo que

    todos ou quase todos os embates so caracterizados pela influncia do pensamento religioso,

    seja cristo, seja, secundariamente, judaico ou islmico. Essas caractersticas, entretanto, no

    desautorizam o reconhecimento da contribuio ao estudo da filosofia, mesmo arraigada

    teologia, porque elas so reveladoras de um modo de agir e pensar peculiar, onde as escolas e

    as universidades constituram-se na arena por excelncia da intelectualidade de ento. Por

    isso, no se pode subtrair da filosofia medieval o carter cientfico que lhe estava afeto,

    designadamente em razo do domnio universitrio em que as questes, religiosas ou no,

    aportavam. J ao tempo do Medievo, como hoje, a filosofia no apenas um modo de pensar

    por pensar. Ela uma cincia do pensar. Esta peculiaridade da filosofia medieval tem em

    Santo Toms de Aquino seu cientista fundamental, o qual, mais que qualquer outro telogo ou

    filsofo da poca, deu fisionomia e contedo cientfico sua doutrina, consequncia de uma

    vida inteira dedicada ao estudo do Cristianismo.

    Da mesma forma que a filosofia moderna e a contempornea conservaram suas

    caractersticas de desapego a teorias metafsicas (excetuando uma minoria dileta, como

    Giorgio del Vecchio), e, nem por isso, se lhas negaram a condio de filosofia, tambm o

    pensamento medieval primou pela filosofia crist. Diga-se, em acrscimo, que inegvel a

    contribuio da filosofia de Santo Toms para as doutrinas sociais e polticas dos nossos

    tempos. Especialmente no tocante aos desdobramentos scio-poltico-jurdicos consequentes

    sua formulao conceitual de Justia, a filosofia tomista no deixa de estar presente em

    discusses correlatas nos tempos que correm. Os sentidos de tica, igualdade, hierarquia de

  • 18

    normas, noo de bem comum e responsabilidade de autoridades pblicas, induvidosamente

    presentes em debates envolvendo Direito Constitucional e Administrativo (organizao de

    poderes, competncias, atribuies e responsabilidades de autoridades, conceito,

    caractersticas, requisitos e efeitos de atos administrativos de autoridades etc.), no escapam

    s prelees pertinentes do Santo Doutor.

    O pensamento filosfico-cristo medieval, portanto, teve o condo de elevar alguns

    temas at ento informados por ndole precipuamente metafsica para ambiente de notrio

    cotejo cientfico. E foi em consequncia da induvidosa influncia da razo e dos conceitos

    dela emergentes que tal evoluo foi possvel. Veja-se, como anota Paul Vignaux, os tratados

    de lgica que si aparecer nas discusses e estudos filosficos das academias e universidades

    de hoje (vide El pensamiento en la edad media, trad. de Tomas Segovia, Mxico: Fondo de

    Cultura Econmica, 1954, p. 10), exemplo singular, segundo entendemos, da evoluo e bom

    proveito do pensamento filosfico-cristo de Santo Toms de Aquino.

    na Idade Mdia que se trata o homem em funo de Deus e precisamente nisso

    que est sua singular nobreza cognoscitiva e intelectual. Deus no o fardo do homem e da

    filosofia medieval; antes, o pensar filosfico-cristo medieval apangio de que talvez a

    cultura moderna ainda no se apercebera integralmente. Na Idade Mdia tem incio o

    alvorecer do conhecimento cientfico-formal consubstanciado na universitas e nesse cenrio

    profundamente acadmico-cientfico que exsurgem os principais dogmas religiosos e

    jurdicos, muitos dos quais persistem como verdades relativas ou absolutas at os dias de hoje.

    A Idade Mdia representa, assim, um universo de conhecimento acadmico-cientfico, cuja

    propriedade comprovada com a acentuao desse cenrio cultural pelo Renascimento. O

    Renascimento, destarte, no seno uma espcie de continuidade do conhecimento

    acadmico-cientfico desenvolvido durante a Idade Mdia, especialmente nos Sculos XIII e

    XIV, com a influncia decisiva da escolstica. Por isso mesmo que o termo Renascimento

    talvez merea reparo, por imprprio. No se trata propriamente de renascimento da cultura

    e/ou do saber, mas sensvel to-s uma espcie de aprofundamento do saber e do conhecer.

    engano (seno preconceito) desestimar a descoberta do saber e da cultura formal ocorrida

    durante o Medievo. Nessa perspectiva, o Direito e a noo de Justia se desenvolvem como

    categorias ontolgicas mas no incomunicveis. A difuso cultural e a dinmica cientfica

    permitem especular um sem-nmero de fontes dessas categorias, tais como o Estado, a Igreja,

    os sditos, Deus etc.

  • 19

    Coube ao Santo Doutor dar estrutura, sistematicidade e logicidade ao Direito e

    Justia, utilizando as fabulosas Sumas, ou seja, resumos de determinadas abordagens de

    carter acadmico-cientfico. Com isso, logrou o Doutor de Aquino criar um mtodo tanto

    formal-conceitual quanto extremamente didtico de abordagem de temas filosfico-cristos

    controvertidos. Isto no quer significar desprezo multiplicidade de fontes conceituais do

    Direito e da Justia. Ecltico e clssico que era, Toms de Aquino rene o melhor de todas as

    outras categorias para formular seus conceitos e demonstrar a verdade de suas ilaes. No

    por outra razo que sua obra mxima, a Suma Teolgica, concentra verdadeiro conhecimento

    enciclopdico.

    No obstante, dentre as mltiplas fontes do Direito e da Justia segundo o

    pensamento tomista, uma emerge com induvidosa autoridade: Deus. Em Deus est o

    fundamento ltimo da compreenso e mesmo conceituao do Direito e da Justia. E o

    tambm em Santo Toms como no poderia deixar de ser porque em Deus est a verdade

    absoluta. No se pode chegar verdade absoluta de Deus, certo. As limitaes da criatura

    humana impedem chegar-se essncia da verdade divina. No obstante, possvel aproximar-

    se dela (da verdade divina) e nesse trilho que o Doutor de Aquino fustiga a propriedade do

    intelecto de Deus no atinente ao Direito e Justia.

    Fonte importante de compreenso da Justia em Santo Toms a lei, que se

    ombreia, segundo pensamos, ao Direito. Desde a definio do Direito-lei, j possvel

    identificar algo de justo. Sendo a lei o mecanismo sobre o qual se deve promover o bem

    comum, conforme a Questo 90, Artigo 2, da Suma, prima secundae, no h como negar-lhe

    um prognstico de Justia. A concepo da diviso da lei (ou Direito) em eterna (ou divina),

    natural e positiva ou humana compe, assim, a base da teoria tico-jurdico-religiosa tomista

    da lei. Como bem iremos retratar no Captulo 4, a lei natural, porque segmento do direito

    divino aplicvel ao homem, revela o sentido verdadeiro (ou mais prximo do verdadeiro) a

    partir do qual se deve conceber a ideia do Direito.

    Nos tratados da lei e da Justia possvel identificar tambm o comportamento

    clssico e ecltico de Toms. No se trata de um comportamento enraizado poca da edio

    da Suma. Tal proceder do aquinatense tem permeado toda ao considerada correta e legtima

    para o homem das cincias em todos os tempos. Isto porque a partir da propriedade dos

    argumentos das antteses que o cientista constri mais adequadamente suas teses. Ao mesmo

    tempo, a propriedade das refutaes s antteses que o cientista melhor convence ou

  • 20

    desautoriza seus opositores. Em tema de Direito-lei e Justia, tal conjuntura, bem assimilada e

    aplicada pelo aquinatense, a base da propriedade de qualquer teoria jusfilosfica.

    Quando Santo Toms considera o Direito como objeto da Justia est a indicar

    certamente o Direito Natural, de um modo geral. Se dentro dele est o direito positivo ou

    direito humano, dessume-se que o Direito Natural j contempla o direito positivo numa

    relao de criador e criatura e, portanto, de superior para inferior. Demonstramos, assim, que

    o objeto da Justia o Direito Natural, sendo que entre tais categorias h, ainda que

    parcialmente, uma unidade. O Direito Natural integra a compreenso da Justia porque aquele

    o objeto desta. Afinal, no se pode oferecer a compreenso de uma determinada categoria

    jurdico-filosfica sem atentar para o seu objeto.

    A diviso do Direito idealizada por Santo Toms no conduz negao da sua

    unidade. Trata-se de mais uma estruturao construda pelo Anglico com finalidade

    acentuadamente didtica. Nesse sentido, o aquinatense no deixa de revelar sua vocao assaz

    acadmica mais que propriamente religiosa. O Direito um s e, embora podendo ocupar

    determinadas fisionomias, no se desintegra como o objeto por excelncia da Justia. O

    Direito medieval, diante de suas inmeras fontes, no se confunde com o Direito do Estado ou

    Direito oficial. Mais que isso, incorpora princpios autnomos e informado por prticas

    particulares de inegvel origem germnico-romana. Por esses pormenores, o Direito como

    objeto da Justia tomista complexo, reunindo elementos de natureza tico-jurdica e moral-

    religiosa. Disso deflui que complexa tambm a concepo da Justia segundo o aquinatense,

    porque integrada na exigncia de uma compreenso filosfico-crist, sem, entretanto,

    desprezar elementos de natureza jurdica.

    Ao mencionarmos que as elaboraes tomistas a respeito da Justia incorporam

    elementos e institutos teolgicos, filosficos e jurdicos, no olvidamos de apresentar os

    problemas e embates da emergentes. Com efeito, a formulao de uma reflexo dogmtica e

    axiolgica de Justia na forma que estamos a propor exige a exibio de problemas de

    pluralismo social e poltico e de evoluo histrica que muitas vezes invadem as discusses

    jurdico-filosficas. Nesse contexto, as reinvenes do tomismo elaboradas por autores como

    John Finnis (vide Lei natural e direitos naturais, trad. Leila Mendes, So Leopoldo: Editora

    Unisinos, 2006) e Alasdair MacIntyre (Justia de quem? Qual racionalidade?, trad. de

    Marcelo. P. Marques, So Paulo: Edies Loyola, 1991), certamente contribuem para o debate

    que relaciona a doutrina tomista do Direito e da Justia com os avanos e retrocessos jurdico-

  • 21

    legais e jurdico-morais do nosso tempo. Entretanto, no nosso propsito central oferecer

    um conceito fechado de Direito e de Justia a partir da autoridade da filosofia jurdico-crist

    do Santo Doutor. Pretendemos apenas fincar uma reflexo que encerre uma contribuio

    adicional de auxlio interpretao de casos e normas jurdicos em voga na atualidade, cujo

    apego a premissas filosfico-crists medievais converge mais como um elemento de

    autoridade terica que propriamente como uma definida fonte hermenutica.

    Perfilhamos, assim, as diversas premissas filosfico-crists medievais e as

    invocamos como um adicional elemento de auxlio para compreenso e soluo de problemas

    do nosso tempo, a exemplo do que escrevemos nos Captulos 3, 4, 5 e 6, sem pretender elevar

    essas premissas a uma fonte metodolgica por excelncia do Direito ou do pensamento

    jurdico contemporneo. No se pode, portanto, segundo pensamos, olvidar das utilidades de

    uma conceituao tomista de Justia nessa perspectiva, sobretudo por conduto da

    sistematicidade, organizao e didtica que bem podem auxiliar at como elementos de

    organizao teortica dos problemas (vide a sistematizao constante na Suma Teolgica,

    muito til para organizar as diversas faces dos problemas jurdicos e iniciar uma seleo de

    respostas as mais adequadas). A vocao acentuadamente acadmica do Santo Doutor no

    deixa de revelar uma sua intensa preocupao com a boa didtica de suas prelees, o que nos

    inegavelmente proveitoso.

    A leitura que se extrai dos escritos e ensinos do Doutor de Aquino nos conduz

    constatao, seno certeza, de que estamos diante de um cientista, de um puro acadmico,

    mais que de um telogo. O apego a conceitos, alegorias, sistematicidade, didtica e

    comprovao racional de suas teses revela, claramente, o vis marcantemente acadmico-

    cientfico de Santo Toms. Ao mesmo tempo, mas em nvel secundrio, o aquinatense no

    poderia renegar ou olvidar sua origem religiosa. Santo Toms no deixa de revelar sua

    gratido pela Igreja Catlica Romana e pela Ordem que o abraou no incio de sua meterica

    carreira acadmico-cientfica.

    A vida e a obra de Toms do-nos exatamente a convico de que se trata mais de

    um acadmico que de telogo, no obstante a condio de telogo tenha influenciado no s a

    doutrina mas tambm o prprio comportamento do Doutor de Aquino. Os tratados da lei e da

    Justia repita-se revelam a veracidade do que estamos a afirmar. Cuidando dos fatos e

    coisas reais ocorrentes no panorama complexo das relaes sociais, a o aquinatense parece

    haver dedicado esforo adicional, ocupando toda uma parte da Suma Teolgica, qual seja, a

  • 22

    secunda secundae. Certo que o mago dos fundamentos jurdico-legais empregados na

    secunda secundae tm origem teolgico-filosfica; porm, temos verificado que tal

    conjuntura representa mais uma qualidade, um plus, da obra cientfica de Santo Toms que

    propriamente uma concepo puramente teolgica. Isto no quer significar reiteramos que

    o sentido teolgico-cristo no tenha permeado as construes cientficas do aquinatense. Na

    verdade, Toms de Aquino jamais olvidou de sua formao e educao sacras. Queremos

    indicar apenas que a prpria evoluo da doutrina acadmica do Anglico conduziu-o

    naturalmente adeso aos elementos e instrumentos reveladamente cientficos. Tal fisionomia

    encontrvel, decididamente, nas teorias tomistas da Justia, tudo caminhando para o que

    imaginamos ser uma compreenso terica de Justia. As caractersticas da igualdade e

    comunicabilidade da propriedade da terra, por exemplo, retrata certamente essa conjugao do

    teolgico ao acadmico-cientfico, na medida em que, sob premissa divina, a terra deve

    possuir relevante funo social.

    A constatao da evoluo da doutrina do aquinatense, no sentido de caminhar de

    concepes teolgicas para teorias e temas acentuadamente acadmicos, pode ser extrada

    tambm da percepo da doutrina contida na Summa Contra Gentiles em relao da Suma

    Teolgica. Aquela consubstancia a propagao da doutrina crist catlica entre os

    muulmanos, gregos e judeus, considerados infiis, no que se elevam as construes e

    fundamentos puramente teolgico-cristos. Esta, por outro lado, vem caracterizada pela

    conjugao da f razo, onde o teolgico-cristo d lugar, de certa forma, ao que se conhece

    na Idade Mdia por filosfico e/ou cientfico. A concepo de Justia de Santo Toms

    mergulha profundamente nessa dinmica. E tal performance acabou por conferir no s

    perfeio ao tratado da Justia lastreado na Suma Teolgica, mas ofereceu um dado

    filosfico-religioso que preserva sua integridade, propriedade e utilidade at os dias de hoje.

    Com efeito, quando falamos ou tratamos da Justia no seu cerne, nas suas entranhas e nas

    suas consequncias, no nos distanciamos da ideia de inteireza, de uma configurao

    transcendental e dotada de grande bondade, numa perspectiva comparvel ao divino. Este

    perfil perfeitamente identificvel na obra mxima de Aquino, irradiando-se sobre o tratado

    da lei e da Justia. Decisivamente, a Justia tomista no poderia estar fincada em melhor

    alicerce.

    Ao que percebemos de sua personalidade e comportamento, bem retratados no

    Captulo 1 deste estudo, Santo Toms sente-se no dever moral de consolidar, com emprego de

  • 23

    conceitos e preceitos racionais, as propriedades, verdades e benemerncia da f crist catlica.

    F-lo no s para cumprir seu dever de cristo catlico para com a Igreja, mas sobretudo por

    acreditar na bondade e perfeio divinas, razo de tudo e de todos. Nesse particular,

    sintomtica a pronta aceitao em escrever a Summa Contra Gentiles, em atendimento a

    pedido, seno convocao, de So Raimundo de Penaforte para lanar substancial estudo da

    sabedoria da f crist catlica em revide s heresias dos averrostas latinos. A Summa Contra

    Gentiles , por assim dizer, uma ntida manifestao de Santo Toms em defesa da f crist

    catlica como forma de, a um s tempo, demonstrar seu esforo de gratido Igreja e realizar

    a comprovao do que acreditava ser a verdade racional dos dogmas cristos.

    possvel mesmo especular uma certa parcimnia de Santo Toms em relao aos

    chefes da Igreja. Prximo aos Papas e Gerais da Ordem Dominicana que estava, lcito

    antever sua vinculao ideolgico-religiosa com o Pontificado e Priores. No se trata,

    entretanto, de submisso ou prevaricao. Longe disso. Em verdade, o comportamento do

    aquinatense revela, como dito, um misto de gratido e crena na religio de seu tempo. E sua

    insurreio contra certos atos e prticas levados a efeito durante a Inquisio comprova a sua

    concepo na bondade e benemerncia que permeia toda a doutrina crist catlica. Todas

    essas observaes a respeito da vocao acadmico-cientfica de Santo Toms e seu

    compromisso com a verdade da f crist catlica vm dissecadas no Captulo 1 deste estudo.

    A vida, obra e canonizao de Toms de Aquino no so seno o espectro de sua

    personalidade e temperamento j predestinados ao saber e santificao.

    Importa realar, ainda, o momento em que Santo Toms atua como cientista e

    telogo. O Sculo XIII marcado por espinhosas disputas no campo da cincia e da religio.

    O movimento efervescente redundante no surgimento das universidades intensificou a

    responsabilidade e exigibilidade de rigor e apuro na demonstrao do saber e das construes

    teolgico-filosficas. O intenso ambiente de controvrsia entre os filsofos, doutores e

    autoridades da Igreja impe um esforo hercleo de elaborao de solues concentradoras de

    inequvoco poder de convencimento e converso. E, nesse particular, em toda a Idade Mdia,

    talvez Santo Toms no tenha sido superado por qualquer de seus pares ou algozes.

    Categorias como o Estado, o Direito e a Justia, substrato de uma teoria poltica de Santo

    Toms, no deixaram de merecer ateno redobrada do aquinatense, cnscio de que o

    reconhecimento de sua doutrina estava a depender diretamente da autoridade filosfico-crist

    de suas construes.

  • 24

    No contexto de sua teoria poltica, em face do que travou memorveis disputas com

    os mestres de seu tempo, Santo Toms elaborou substancioso estudo sobre o Estado, a Igreja e

    a monarquia. Nomeadamente no tocante monarquia, que considera a forma adequada de

    governar, Toms de Aquino revela uma de suas poucas divergncias com Aristteles. A

    monarquia, ao tempo de Aquino, no tinha o perfil nem trilhava o modelo autoritrio

    preconizado pelo estagirita. Ao monarca incumbia promover o bem comum do povo, seja no

    mbito do processo de elaborao da lei, seja na distribuio dos bens sociais, condio

    mesma de sua legitimidade e obedincia. Assim, a monarquia, no Medievo, no estava

    contaminada por concepes predominantemente absolutistas. A adeso monarquia, para

    Santo Toms, representou tambm o oferecimento de subsdios elaborao de uma

    concepo filosfica (racional) de Justia. Vemos, assim, que a preocupao do Anglico com

    a diviso da Justia (comutativa e distributiva) no seno efeito do modo monrquico de

    governar, com as devidas adaptaes.

    A questo do Estado e de sua configurao terica no esto desalinhadas do mago

    das concepes tomistas a respeito da monarquia. Trilhando integralmente os ensinos de

    Aristteles, Santo Toms via no Estado uma necessidade para o desenvolvimento do homem e

    concretizao da Justia. Exceto por uma peculiaridade: o Estado deve solicitudes e

    vassalagem Igreja, porquanto o poder temporal no pode prevalecer sobre o poder espiritual.

    O Estado sem norte na Igreja Estado defeituoso e, portanto, inexistente para os sditos.

    Nesse particular, sobressai o apego do aquinatense hierarquia das coisas e a uma fonte de

    autoridade concentrada na obra de Santo Agostinho. Nesse aspecto, o Estado e suas normas,

    enquanto dispostos em composies hierrquicas, tambm integram, na devida medida, a

    Justia tomista, designadamente quando se trata de efetivao da distribuio proporcional de

    bens e mritos entre autoridades e sditos.

    Exibidas todas essas nossas manifestaes, conclumos que a conjugao de

    fenmenos e categorias cognoscitivos como a Escolstica, o Direito, o Estado e a Suma

    Teolgica, dentre outros, que amalgamam os elementos substanciais e fundamentais da

    compreenso da Justia segundo o pensamento jurdico-filosfico-cristo de Santo Toms de

    Aquino. Inspira-nos dizer, com isso, que tal reflexo de Justia por ns proposta exsurge de

    uma tica resultante da concepo do amplo saber dogmtico e epistemolgico (e, portanto,

    cientfico), de Toms de Aquino, com construes, certificaes e sugestes que se mostram

    assaz teis ao menos em termos de plus ao pensamento jurdico contemporneo.

  • 25

    Por fim, no nossa inteno desautorizar o entendimento de outros autores,

    telogos, filsofos e juristas a respeito das concepes da doutrina juspoltica e social

    (incluindo as noes de Direito e Justia) de Toms de Aquino, mormente de tomistas e

    neotomistas. Nossa proposta dirigida, ressaltamos, a acrescentar um novo olhar reflexivo

    doutrina tomista de Justia, com preocupaes voltadas essencialmente a conceber o Direito

    como categoria tico-jurdico-filosfica, tornando-o um instrumento moral que conduza ao

    mais prximo do ideal de dar a cada um o que seu.

  • 27

    CAPTULO 1

    APROXIMAO AO PERSONAGEM EM ESTUDO: SANTO TOMS DE AQUINO

    1.1. Lugar de nascimento, famlia e vocao

    Santo Toms de Aquino nasceu no antigo Reino da Siclia, na fortaleza de

    Roccasecca, situada no pequeno condado (e no cidade) de Aquino, provncia de Npoles,

    hoje Itlia1. No h registro da data precisa de seu nascimento. Estima-se que tenha nascido

    alguns anos depois da coroao de Frederico II, Rei da Siclia, entre os finais do Ano Santo de

    1224 e princpios de 1225. Tal impreciso no deixa de ser um pecado para a histria da

    Cristandade.

    O local de nascimento de Santo Toms s o separava de Roma por uns 125

    quilmetros. A proximidade com Roma permitiria Santo Toms aceder quela cidade muito

    breve para ingressar na ordem dos mendicantes (tecnicamente chamada ordem dos

    predicadores) e iniciar sua trajetria teolgico-filosfica e intelectual.

    Santo Toms nasceu de famlia nobre. Por determinao desta, estava predestinado

    a investir-se de Abade da Abadia de Montecassino, integrando a ordem dos beneditinos,

    smbolo da nobreza. Relata Gabriel Chalmeta que Santo Toms, j na juventude, demonstrava

    personalidade que o situava como pensador alm de seu tempo2. Porm, Toms de Aquino

    viu-se atrado pela ordem de Domingo de Guzmn (ordem dos mendicantes dominicanos),

    1 JEAN-PIERRE TORRELL escreve que Quanto ao lugar de nascimento de Toms, se outrora suscitou algumas dificuldades diversas localidades disputando a honra hoje os historiadores concordam em se referir ao castelo familiar de Roccasecca, na Itlia meridional. Ento situado no condado de Aquino e no Reino das Duas-Siclias, encontra-se nos confins do Lcio e da Campnia, aproximadamente a meio caminho de Roma a Npoles, a igual distncia de Frosinone (ao Norte) e de Cassino (ao Sul), um pouco a leste da estrada do interior (antiga via Latina), que conduz de Roma a Npoles (Cf. Iniciao a Santo Toms de Aquino: sua pessoa e obra, trad. de Luiz Paulo Rouanet, 2 ed., So Paulo: Edies Loyola, 2004, p. 2). 2 CHALMETA, Gabriel. La justicia poltica en Toms de Aquino. Una interpretacin del bien comun poltico, Pamplona: EUNSA, 2002, p. 67. Assim escreve o autor: Toms de Aquino ha sido presentado (por lo general, con buena intencin!) como un pensador fuera del mundo y del tiempo. De acuerdo con este esteretipo nos encontramos, por tanto, ante una espcie de meteorito intelectual, cado del cielo en uno de los periodos ms oscuros de la cultura occidental.

  • 28

    esta que se devotava pobreza e, por isso, tinha a resistncia da Igreja nos seus primrdios,

    assim como da famlia de Toms de Aquino, como relata Hermann Pesch3.

    Seus pais, Landolfo de Aquino e Dona Teodora de Teate, constituram uma famlia

    numerosa de doze filhos, sendo Toms de Aquino o mais jovem dos homens do segundo

    matrimnio de Landolfo. Seus irmos eram Santiago, Felipo e Adenolfo (primeiro casamento

    de Landolfo de Aquino) e Aimn, Reinaldo, Landulfo, Marotta, Maria, Teodora, Adelsia e

    uma outra irm cujo nome desconhecido e que morreu em tenra idade4.

    De origem normanda, Teodora de Teate era a segunda esposa de Landolfo, este

    descendente de lombardos. Portanto, como reala Pedro Santidrin, Toms de Aquino tinha

    sangue conjugado de guerreiros e cavaleiros5. O mesmo Santidrin, entretanto, duvida que o

    pai de Santo Toms fosse conde, como se especulava, no obstante reconhea que o foram

    seus antepassados. Sustenta que apenas tenha utilizado o ttulo informalmente at 1130.

    Assim, Toms de Aquino era italiano pelo pai e normando pelo lado da me. Teve sua

    educao primria na Abadia de Montecassino, para onde foi levado na esperana de que

    contribusse para a preservao da autoridade e do prestgio do nome da famlia. Com efeito,

    o abade de Montecassino era um poderoso feudatrio, o que obviamente estimulava a cobia

    dos Aquino. Porm, em razo das contnuas guerras entre o Papa e o Imperador, a Abadia foi

    reduzida ao abandono e desprezo, obrigando Toms, por iniciativa do pai, a tomar novo rumo

    para a sua educao. Os pais de Aquino, partidrios que eram do Imperador, compunham o

    partido dos gibelinos, contrapondo-se aos guelfos alinhados ao Papado. Entretanto, no se

    empenharam na contenda entre os partidrios de Frederico II e de Gregrio IX. A

    proximidade com o Papa posteriormente, aceitando o ingresso de Aquino entre os

    dominicanos, amenizaram-lhes as inimizades. Ao ser conduzido Abadia de Montecassino,

    Aquino ficou sob os cuidados dos monges beneditinos, que lhe ministraram os primeiros

    ensinos de teologia, especialmente a leitura.

    3 HERMANN PESCH, Otto. Toms de Aquino. Lmite y grandeza de una teologa medieval, Barcelona: Editorial Herder, 1992, p. 55. Tecendo observaes sobre a inovao promovida pela ordem dos dominicanos em meio tradio da Igreja, o estudioso escreve que el que estaba destinado a llegar a ser abad de Monte Cassino, contra la oposicin de su muy noble familia, entr en la orden de los predicadores de Domingo de Guzmn, que era una orden antifeudalista e nada burguesa, salida del movimiento de pobreza, mal visto en la Iglesia de aquel tiempo tanto como hoy, orden que en este ao no contaba ms de 28 aos de edad, y si lo contamos con ms precisin, a decir verdad no tena ms de 22. 4 Cf. TORRELL, in Iniciao a Santo Toms de Aquino: sua pessoa e obra, op. cit., p. 4. 5 SANTIDRIN, Pedro. Toms de Aquino, Madrid: Editorial Labor, 1991, p. 28. Sobre a ascendncia do aquinatense, escreve o autor: Por su madre, Teodora de Teate, descenda de los condes de Chieti, de origen normando. Por su padre, Landolfo de Aquino, seor de Roccasecca, de los Aquinos de Lombarda. En su sangre se mezclaban los guerreros y los caballeros.

  • 29

    Dotado de esprito e estilo metdico, no foi difcil ao aquinatense enveredar pelos

    estudos de seu tempo, especialmente teologia e filosofia. No obstante, o aquinatense no

    dominava o hebraico, o grego ou o rabe. Assim, as tradues de obras e autores orientais

    eram de grande necessidade para Toms, o que efetivamente ocorreu a partir de sua

    convivncia com Alberto Magno e, posteriormente, com Guilherme de Moerbeke.

    Mesmo adotando, por convico, a crena crist catlica, Aquino no deixara de

    consultar autores considerados pagos. Afora o mais influente deles, Aristteles, utilizou-se

    em suas pesquisas de obras de autores judeus e rabes como Al Farabi, Avempare, Al

    Ghazali, Avicebrom, Avicena, Averris e Israeli. Tambm estudou Ptolomeu, Euclides,

    Eudxio, Hipcrates e Galeno. Certamente que a o aquinatense j exibia sua vocao

    acadmica e sua agudeza filosfica, confrontando autores no religiosos para formao de sua

    convico a respeito da verdade e da inverdade das coisas.

    Pelos seus avs paternos, Toms era sobrinho de Frederico Barbarroja ou Frederico

    II. Pelos avs maternos, ligava-se aos chefes normandos tornados ilustres pelos Guiscard, os

    Tancredos, os Bohemond6. Em Npoles, dos dez aos dezoito anos, inicia seus primeiros

    estudos de dialtica, metafsica e moral. nessa fase de seus estudos em Npoles que o

    aquinatense sente-se atrado pela ordem dos irmos pregadores, tomando, em 1244, o hbito

    dominicano7.

    Com cinco anos de idade, Toms foi conduzido aos estudos primrios em

    Montecassino, custando a seus pais cerca de trinta libras de ouro8. Sua educao inicial ficou

    a cargo de Landolfo de Sinibaldi, ento abade de Montecassino. Toms de Aquino

    permaneceu na Abadia de Montecassino por cerca de nove anos. Nesse perodo aprendeu

    latim elementar, sua lngua ptria. Estudou ainda msica e poesia, disciplinas estas integrantes

    do programa escolar das abadias. A formao moral e religiosa tinha a preferncia dos

    programas escolares das abadias. No foi difcil para o aquinatense adaptar-se a tal formao.

    Era menino calmo, recolhido e, como no poderia deixar de ser, muito estudioso, cuja

    aguada curiosidade lhe estimulavam freqentes indagaes. Viam-se-o sempre com suas

    6 F. J. THONNARD assim define o perfil comportamental de Toms de Aquino: ...encontrava-se nele a pacincia e a tenacidade germnicas, o ardor cavalheiresco dos franceses do norte; a facilidade do esprito latino e, para completar as riquezas de seu temperamento, tambm a sua educao foi latina no Monte Cassino, alem em Colnia e francesa em Paris (Cf. Compndio de histria da filosofia, trad. de Valente Pombo, 1 vol., So Paulo: Editora Helder, 1968, p. 323). 7 THONNARD comenta: Assim, desde o incio de sua formao, pelo seu zelo para o estudo e pela fidelidade sua vocao, se prepara para o seu papel doutrinrio e religioso (Cf. Compndio de histria da filosofia, op. cit., p. 324).

  • 30

    cartilhas e em leitura silenciosa. Como registra Santidrin, logo assimilava as lies, sendo

    que suas principais ocupaes eram a orao e a leitura9.

    A famlia de Toms de Aquino no se opunha a que ele se tornasse eclesistico.

    Alis, no Sculo XIII, era comum e at uma espcie de privilgio para as famlias nobres

    destinar seus filhos vida religiosa, o que demonstra a grande importncia da religio catlica

    naquele tempo10. A ferrenha oposio da famlia de Toms de Aquino surgiu em razo de sua

    inteno em ingressar na ordem dos mendicantes dominicanos, que escolheu seja por absoluta

    vocao, seja por humildade de esprito, ordem essa alheia a privilgios e devotada ao

    sacrifcio.

    Toms de Aquino era homem imenso, slido, gordo, lento e de comportamento

    moderado. Era tambm bondoso e magnnimo. No era, porm, socivel. Sua vida de

    clausura e recolhimento talvez tenha sido essencial para possibilitar o grandioso acervo de

    obras que escreveu. possvel especular que o Anglico era to compenetrado que seus pares,

    professores ou alunos, no raro o julgavam tolo. Este contraste entre sua personalidade e seu

    perfil exterior alcana quase todas as atividades de que se dedicou. O que havia de comum

    entre suas faces interna e externa era, entretanto, a leitura e os estudos.

    Toms de Aquino era, definitivamente, um homem predestinado ao saber. Mas no

    qualquer saber. O rigor dogmtico e o interesse pelas revelaes racionais eram uma sua

    marca inolvidvel, o que talvez explique a cumplicidade com a filosofia de Aristteles. Conta-

    se que certa vez lhe perguntaram o que mais tinha a agradecer a Deus, ao que respondera ser a

    graa de compreender as lies do estagirita11.

    Santo Toms dedicou toda a sua vida a formular o que entendemos como sistemas

    inteiros de literatura teolgico-filosfica, inclusive pag. Nas horas vagas (se possvel

    admitir tal eventualidade), escrevia at hinos, o que no de estranhar diante de sua

    conhecida simpatia por homilias. Tinha o dom mpar de conseguir ver um mesmo problema

    por ngulos diferentes, no sem certa sutileza, mas com a necessria seriedade. Toms no se

    furtava ao exame de todo tipo de distino e deduo, considerando o absoluto e o acidental,

    8 Cf. SANTIDRIN, Toms de Aquino, op. cit., p. 30. 9 Assim escreve o autor: Santo Toms fue un nio piadoso, recogido, muy estudioso. Se le vea siempre con su cartilla y en silencio. No participaba en los juegos de sus compaeros. Tena una curiosidad inmensa, que le llevaba a preguntar con frecuencia a su maestro: Quid est Deus? (Cf. Toms de Aquino, op. cit., p. 30). 10 Cf. TORRELL, in Iniciao a Santo Toms de Aquino: sua pessoa e obra, op. cit., p. 5. 11 Entendi todas as pginas que li (Cf. GILBERT KEITH CHESTERTON, in So Toms de Aquino e So Francisco de Assis, trad. de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonalves, Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 192.

  • 31

    cujo intuito no era seno a descoberta da verdade. Sua personalidade, portanto, segundo

    podemos pressentir, concentrava um homem para o qual o estudo e a investigao das

    verdades teolgico-filosficas tm muito da placidez do saber e do concurso do lazer. A

    dedicao ostensiva ao trabalho contrasta com a ausncia de pressa, sendo a prpria Suma

    Teolgica exemplo cintilante12.

    Ao que se percebe da obra teolgico-filosfica de Toms de Aquino, seu trabalho

    foi desenvolvido para esgotar toda a doutrina da Igreja, com o compromisso de revelar a

    verdade da doutrina crist catlica independentemente dos interesses imediatos dos Pontfices,

    designadamente a partir da investigao do contedo das Sagradas Escrituras e do

    conhecimento da filosofia pag extrada sobretudo das obras de Aristteles. Porm,

    avanando em seus ensinos, seguramente em razo de sua ndole de estudioso acadmico e

    cientista social, o aquinatense produzira no s um tratado de teologia, como, nele inclusive,

    tratou de questes de filosofia poltica e Direito, revelando sua elevada vocao jusfilosfica.

    1.2. Atrado pela vida religiosa

    Como ressaltamos em linhas precedentes, Santo Toms sentiu-se atrado pelo modo

    de vida de resignao, contemplao e estudo dos dominicanos, bem como pelos respectivos

    procedimentos e rituais religiosos, j na altura em que iniciou seus estudos na Universidade de

    Npoles.

    A investidura de Toms de Aquino na vida religiosa no se deu ao acaso. Conforme

    sugere Otto Pesch, tratou-se de uma empatia natural e de intensa vocao resultante da

    constatao de que os monges predicadores se dedicavam com apuro ensinana e

    pregao13. Portanto, vemos que o que efetivamente seduziu o aquinatense foi a

    congeminao de dois aspectos que caracterizavam sua personalidade: a) a consagrao a

    Deus; b) a dedicao ao ensino e ao saber. E isso, na ocasio, estava assaz identificado com a

    doutrina da recente ordem dos predicadores dominicanos.

    12 Bom mencionar que a Suma Teolgica, obra prima de Toms de Aquino, no foi concluda at a sua morte em 1274 (Cf. SANTIDRIN, in Toms de Aquino, op. cit., p. 78). 13 Ressaltando, por um lado, que o aquinatense hall en Aristteles al autor de su vida que ya no abandonara ms e que se ha convertido en un intelectual, o autor acrescenta que o jovem Aquino se vio todava atrapado en otra esfera totalmente distinta: trab conocimiento con los hermanos predicadores y su relacin con ellos se fue haciendo con el tiempo cada vez ms intensa (Cf. Toms de Aquino. Limite y grandeza de una teologa medieval, op. cit., p. 85).

  • 32

    A ordem dos dominicanos (1217) era uma das duas ordens de mendicantes que

    surgiram ao tempo da ecloso das universidades. A outra ordem, a dos franciscanos (1214),

    tinha sido fundada pelos seguidores de So Francisco de Assis. Em fins do Sculo XIII, o

    estudo da filosofia era desenvolvido sobretudo nas escolas episcopais, de onde surgiram os

    mestres das futuras universidades, ou seja, os mestres seculares. At o primeiro quarto do

    Sculo XIII somente esses professores lecionavam nas universidades. As ordens mendicantes

    ento passaram a interessar-se pelos estudos formais de teologia e filosofia, logo se adaptando

    s inovaes intelectuais da poca. Com a evoluo desses estudos pelos mendicantes,

    passaram a tomar assento nos principais temas teolgicos e filosficos da poca, aguando a

    inveja, segundo Thonnard, dos seculares14.

    nesse ambiente de embates que Santo Toms se inicia na ordem dos dominicanos,

    o que talvez lhe tenha estimulado o apego aos estudos teolgico-filosficos. Entre os estudos

    realizados, a leitura e comentrios s Sagradas Escrituras (teologia) eram obrigatrios, sendo

    facultativo o estudo de outras disciplinas. Havia recrutamento de estudantes e at de

    professores para a ordem, no que os dominicanos avanaram de forma notvel, a ponto de

    fundar escolas prprias15. Eram, portanto, os dominicanos, religiosos apegados aos estudos de

    teologia e filosofia, o que representava uma inovao, de certo modo, eis que at ento no

    havia preocupao com a formao intelectual de religiosos.

    Seguindo aos dominicanos, tambm os franciscanos ingressaram nessa filosofia de

    estudos, com as bnos do Pontificado. Com a evoluo dessas escolas, passaram elas a

    integrar as universidades, sendo a Universidade de Paris, a mais conceituada da poca, um

    exemplo substancial, da gerando os principais embates entre religiosos e seculares16.

    A Ordem dos Mendicantes (que abrangia dominicanos e franciscanos) representou

    uma novidade em termos de atuao da Igreja Catlica. Destinava-se pregao do

    14 Assim se manifesta: V-las-emos dentro em pouco tomar a dianteira do movimento teolgico e filosfico, atacadas pela inveja dos mestres seculares, mas eficazmente defendidas pelas intervenes pontifcias (Cf. Compndio de histria da filosofia, op. cit., p. 306). 15 THONNARD expe que as escolas dos dominicanos distinguiam-se entre: o studium ordinarium, com um mestre e alguns auxiliares; o studium solemne para uma provncia com um mestre e um ou dois bacharis, interpretando a Bblia e as Sentenas e mantendo disputas pblicas; enfim, nos grandes centros o studium generale, com um mestre e dois bacharis; mantinha os mesmos exerccios que os precedentes mas recrutava os seus mestres e os seus alunos em todas as provncias (Cf. Compndio de histria da filosofia, op. cit., p. 307). 16 THONNARD conta: O exemplo das duas grandes ordens arrastou as outras congregaes que, por sua vez, abriram escolas em Paris: os Cistercienses em 1256, os Eremitas de Santo Agostinho em 1287, os Carmelitas em 1295. Os prprios seculares, imitando os conventos, reuniram-se em colgios onde os alunos em teologia se exercitavam nas disputas e na pregao (Cf. Compndio de histria da filosofia, op. cit., p. 307).

  • 33

    Evangelho (ofcio divino) depois de estudo cuidadoso das escrituras, alm de sua difuso em

    pblico e nas universidades, inclusive com aulas oficiais. A inovao consistira em que at

    ento essa misso de ensinana e pregao competia exclusivamente aos membros do

    chamado episcopado (Alto Clero). Alm disso, nenhuma ordem religiosa anterior se tinha

    destinado pregao em pblico nem feito estudo sistemtico e dirio da Bblia. Os votos de

    pobreza da ordem de Santo Domingo tambm se destacaram como inovao das prticas

    religiosas.

    A Ordem dos Dominicanos se distinguia sobretudo em razo da indumentria que

    ostentava. Seus membros vestiam uma tnica branca, com escapulrio, capucha e uma capa

    negra exterior feita de l. As vestes e os smbolos na Idade Mdia constituam um ritual

    identificvel nas instituies, inclusive as religiosas. As universidades, por exemplo, passaram

    a adotar e ser identificadas por brases, ritual que se conserva at hoje. Os votos de pobreza

    dos dominicanos incluam pedidos de esmolas nas ruas das cidades medievais para o prprio

    sustento de seus aderentes. Rezavam em coro no prprio convento e tinham o objetivo central

    de converter as almas humanas, especialmente por meio da prtica da vida em pobreza. Entre

    os princpios reinantes na ordem dos dominicanos estava a obrigao de dedicao aos

    estudos. A abertura e difuso dos chamados estudios generalis por diversos pases da Europa

    Ocidental eram o indicativo da formao de uma espcie de infraestrutura para cumprimento

    desse dogma dos dominicanos17. Isto talvez tenha sido um motivo importante para adeso de

    Santo Toms referida ordem religiosa.

    A escolha de Toms pela ordem dos dominicanos no poderia ter ocorrido em

    ocasio mais adequada. Com ela, o aquinatense obteve a grande oportunidade de elevar-se nos

    estudos de filosofia e teologia, enveredando por estudos dogmticos e conducentes obteno

    de graus universitrios. Assim, a religio e a vida acadmica, conjugadas, permitiram ao

    Santo Doutor explorar da melhor forma seu instinto acadmico, transformando-o em um dos

    grandes expoentes do saber enciclopdico de todos os tempos. A ordem dominicana

    17 A propsito, anota LOUIS DE RAEYMAEKER: Las rdenes religiosas fundadas al principio del siglo XIII han desempeado un papel de los ms importantes en el movimiento intelectual de la Edad Media. Este es el caso de la orden de los frailes menores, fundada por San Francisco de Asis (1209) y de la de predicadores, fundada por Santo Domingo (1215). Uno de los artculos fundacionales de la constitucin de los dominicos impone a los frailes la obligacin de dedicarse al estudio. Los predicadores abrieron studia, escuela para los estudios teolgicos (Cf. Introduccin a la filosofa, trad. de Salvador Caballero, Madrid: Editorial Gredos, 1956, p. 120).

  • 34

    constituiu-se ainda num segmento propcio agudeza literria do aquinatense, instigando-o a

    escrever diversas e magistrais obras18.

    Sem dvida, o ingresso de Toms de Aquino na Ordem de Santo Domingo decorreu

    muito mais de que uma repentina atrao. Razes de natureza intelectual certamente firmaram

    a convico do Santo Doutor. Sem as investidas literrias, didticas, acadmicas e intelectuais

    dos dominicanos no encontraria o aquinatense atmosfera adequada sua vida. Mais filsofo

    que telogo como era (e continua sendo de certo modo), Toms de Aquino encontrou na

    ordem dominicana o habitat fundamental que o conduziria elaborao de sua doutrina de

    conciliao entre a f e a razo, entre a teologia e a filosofia. No se trata de uma pliade de

    coincidncias; trata-se efetivamente de obra da Providncia Divina.

    Doutra parte, parece perfeitamente admissvel que a insero de Toms entre os

    dominicanos fomentou-lhe o interesse de conciliar a razo com a f. Com efeito, auxiliando a

    Alberto Magno, tambm dominicano, Toms de Aquino entrou em contato com o saber

    racional aristotlico da poca, movido pela dinmica intelectualista da Ordem de Santo

    Domingo19. licito acrescentar que os estudos de teologia desenvolvidos por meio dos

    studium inauguraram um intenso ambiente de produo cientfica e de ensino teolgico

    cristo, formando poderosas correntes de ideias. Isto comprova a seriedade e grande

    importncia das consequncias desses estudos cientficos.

    As ordens religiosas contavam, muitas vezes, com grande nmero de membros, e

    seu modelo de ensino caracterizava-se pela profunda organizao e pelo apego (at autoritrio

    segundo alguns) autoridade dos doutores. dizer que as lies dos mestres eram muitas

    vezes convertidas em dogmas de elevado valor cientfico, sendo consideradas verdades

    incontestveis20. Porm, como sensvel em toda poca de intenso desenvolvimento cultural,

    18 THONNARD escreve: Os seus ouvintes, maravilhados da limpidez e da preciso das suas teses metafsicas, pediram-lhe, sem dvida, que delas redigisse um resumo e Santo Toms escreveu o seu primeiro opsculo: De ente et essentia. J ali mostra as suas qualidades mestras: brevidade, preciso, clareza, profundidade; e ali afirma a maior parte das suas doutrinas caractersticas: passividade completa da matria primeira, identidade da unidade individual e da unidade especfica nos anjos e ausncia neles de matria, distino real entre essncia e existncia nas criaturas, de modo a poder dizer-se que, desde o incio, a sntese filosfica est completa no esprito de Santo Toms (Cf. Compndio de histria da filosofia, op. cit., p. 325). 19 MICHELE FEDERICO SCIACCA escreve que En esta obra gigantesca, Alberto prepara el vasto material con parfrasis y comentrios de Aristteles con el objeto de restituir el pensamiento genuino del Estagirita y de hacerlo accesible al mundo latino. Santo Toms, en cambio, dotado de genio especulativo, hace una elaboracin original del aristotelismo construyendo uno de los ms grandes sistemas filosficos de la humanidad, la sntesis ms harmnica entre el pensamiento antiguo y la doctrina cristiana (Cf. Historia de la filosofa, trad. de Adolfo Muoz Alonzo, Barcelona: Editora Luis Miracle, 1950, p. 225). 20 O mesmo LOUIS DE RAEYMAEKER considera que a obedincia aos dogmas emergentes das lies dos doutores escolsticos representava um risco evoluo do conhecimento, o que, felizmente, acabou no se

  • 35

    os embates pblicos envolvendo lies e ideias dos doutos (cientistas, professores e

    religiosos) ofereciam a dimenso das controvrsias e o confronto dos dogmas das vrias

    correntes acadmico-cientficas.

    nesse ambiente efervescente que Santo Toms teve oportunidade de desenvolver

    suas obras, pautadas que foram numa espcie de sntese das principais correntes de ideias,

    com apresentao das solues (cientficas) dos confrontos, sem olvidar do respeito que

    devotava a todos os opositores e suas concepes. Por isso, entendemos que uma

    conceituao de Justia segundo o pensamento filosfico-cristo de Santo Toms de Aquino

    dotado de mpar e induvidosa propriedade cientfica, seno perfeio, conquanto

    consequncia da sntese de ideias antagnicas a respeito do tema envolvendo a virtude da

    Justia.

    Toda essa ordem de comportamentos fora o diferencial que conduziu Santo Toms

    de Aquino a optar pelo ingresso na Ordem de Domingo de Guzmn. Manifestou essa inteno

    sua famlia, durante um perodo de frias em que esteve junto dela, sentindo, desde logo,

    forte oposio.

    1.3. Oposio da famlia e sequestro

    Em 1244, quando contava entre dezenove e vinte anos de idade, Toms admitido

    no convento dos dominicanos, sediado na cidade de Npoles. Iniciou seu noviciado como

    simples e resignado frei dominicano, no obstante seu elevado preparo intelectual. No

    tardou, entretanto, em desenvolver naturalmente suas habilidades intelectuais.

    Aps Toms de Aquino formalizar seu ingresso na ordem dos dominicanos, na

    condio de simples frei, seus superiores, especialmente o grande prior Juan o Teutnico,

    decidiram transferi-lo de Npoles para Roma e, logo em seguida, de Roma para Bolonha.

    Temiam aes violentas dos seus familiares nobres, os quais j haviam manifestado grande

    oposio ao seu escolhido ofcio de frei mendicante. Tal atitude no logrou xito. Na ocasio

    em que Toms de Aquino se deslocava j de Roma para Bolonha, seus irmos, cumprindo

    ordens de sua me, o interceptaram, conforme relata Weisheipl21. Toms de Aquino estava na

    confirmando. Sua avaliao no sentido de que seguramente esta situacin garantizaba la colaboracin y la continuidad del trabajo cientfico; pero no representaba slo ventajas, pues implicaba un riesgo para el espritu de iniciativa y la originalidad del pensamiento (Cf. Introduccin a la filosofa, op. cit., p. 121). 21 WEISHEIPL, James Atanasius. Toms de Aquino. Vida, obras y doctrina, traduo para o espanhol de Frank Hevia, Pamplona: Eunsa, 1994, p. 41. O autor comenta que o mais provvel parece ser que Juan o

  • 36

    companhia de mais trs membros dominicanos e do prprio Juan o Teutnico, os quais,

    apesar dos protestos que fizeram, viram Toms de Aquino ser levado fora. A inteno da

    famlia de Toms era demov-lo da ideia de tornar-se religioso pobre, ainda que para tal

    devessem utilizar a fora e medidas como sequestro. No momento do sequestro no houve

    resistncia de Toms de Aquino, salvo quando tentaram retirar-lhe a indumentria de frei

    dominicano. Consta que Toms de Aquino, ante sua volumosa estatura fsica e fora, deixou

    ao cho seus irmos ao resistir ao intento destes em subtrair-lhe as vestes de dominicano.

    A ordem de sequestro emanada de sua prpria me, Teodora de Teate, ocorrera

    muito provavelmente por instinto de preservao de sua famlia, j que Teodora via em

    Toms de Aquino qualidades suficientes para que se tornasse Abade de Montecassino,

    aderindo ao mesmo tempo ordem religiosa dos beneditinos22. Nossas convices permitem

    observar que o ato de sequestro e clausura forada de Santo Toms, por iniciativa de sua

    famlia, no se constituiu necessariamente em uma conduta deplorvel. As crticas que alguns

    autores desferem sobre Teodora de Teate nesse particular talvez no reflitam corretamente o

    ambiente no qual se desenrolaram os fatos. Na verdade, conforme sugere o prprio Weisheipl,

    tratou-se de lcita tentativa da me de Toms de Aquino em preservar a unidade e o conforto

    da famlia Aquino, prestando honra ao chefe da famlia recm falecido (Landolfo de Aquino).

    ato envolto em desespero de qualquer me responsvel, honrada e fiel segurana e bem-

    estar da famlia. A confiana, no sentido de esperana depositada na carreira promissora de

    um filho preclaro (Toms de Aquino), viu-se frustrada com a resistncia deste em atender aos

    apelos de sua famlia. Santo Toms queria e estava devotado ao caminho vocacional que

    Teutnico tenha decidido viajar em companhia de Toms de Aquino at Paris, para evitar confronto dele (Toms) com sua famlia, ante a deciso de ingressar na ordem dos mendicantes dominicanos. Nesta viagem, Juan o Teutnico planejava passar por Roma e Bolonha. No trecho Roma-Bolonha, numa localidade cerca de Acquapendente (um acampamento onde Toms parou para descansar), Reinaldo, irmo de Santo Toms, alcanou e interceptou o grupo de mendicantes, cumprindo ordens de Teodora de Teate. Conta ainda o estudioso canadense que Juan o Teutnico tentou junto ao ento rei Federico II a punio dos sequestradores, sendo ignorado. 22 Segundo ainda WEISHEIPL, ao traduzir a inteno de dona Teodora ao determinar o sequestro de Toms de Aquino, La verdad del asunto es que doa Teodora y su esposo Landulfo haban hecho planes muy cuidadosos para el futuro de la familia, y Toms tena que desempear un papel importante en su realizacin. Segn Mandonnet, el padre de Toms muri el 24 de diciembre de 1243. La evidencia suministrada por Mandonnet es un documento que seala la muerte de Landulfo, indicando el mes y el da, pero no el ao. En todo caso, es muy posible que Landulfo muriese en 1243. De ah que doa Teodora sintiese el deber de procurar que se cumpliera el plan ms ventajoso por el bien de la fortuna familiar. No cabe duda alguna de que doa Teodora quera desesperadamente ver a Toms y tratar el asunto con l. Ella no se opona a que siguiese una vocacin religiosa, pero estaba firmemente en contra de que se hiciera fraile mendicante. Es natural que una madre tan fuertemente motivada quisiera discutir el bien de su hijo as como el futuro de la familia. En este momento el emperador Federico an no haba sido depuesto por el concilio de Lyon y la fortuna de la familia de Aquino

  • 37

    escolheu. Talvez o aquinatense tenha uma parcela de culpa no episdio relatado, talvez no.

    No est ao nosso alcance julgar com preciso. Certo que com tal resistncia de Toms de

    Aquino, sua famlia enfrentara privaes. de se indagar se tal contexto demanda ou no

    crticas ao Doutor de Aquino.

    Aps ser subtrado fora da convivncia da ordem dominicana, diante do

    sequestro executado pelo irmo Ricardo, Toms de Aquino mantido encarcerado em uma

    torre do castelo de Montesangiovanni, propriedade de sua famlia. A seguir registram-se os

    episdios que sucederam em Montesangiovanni.

    No castelo de Montesangiovanni, Toms de Aquino enfrenta tentativa de seduo

    por parte de uma jovem atraente, de reduzidas prendas de vestir, intencionalmente investida

    por seus irmos em seu quarto de crcere com o escopo de fazer desviar os desgnios

    religiosos do recalcitrante caula23. Tal episdio considerado pelos estudiosos como um dos

    poucos momentos em que Toms de Aquino perdera o equilbrio24. Toms, entretanto, resiste

    aos encantos da jovem sedutora que, com escassas prendas de vestir, como dito, adentra

    certa vez em seu crcere disposta a levar a termo o ato de seduo. Toms de Aquino,

    atordoado, corre em direo mulher e, com uma tocha de fogo s mos, consegue expuls-la

    de seu crcere, cerrando, em seguida, fortemente, a porta. Aps isso, o aquinatense desenha o

    sinal da cruz na parte interna da porta de seu crcere, utilizando a mesma tocha de fogo. Cai,

    em seguida, em profundo sono junto ao solo daquele ambiente de crcere, talvez movido por