Dissertacao leonardodorneles, última
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UNIVERSIDADE FEEVALE
MESTRADO EM PROCESSOS E MANIFESTAÇÕES CULTURAIS
LEONARDO CASTRO DORNELES
OS DIÁLOGOS INTERCULTURAIS A PARTIR DA MÚSICA M’BYA-
GUARANI
Novo Hamburgo
2011
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Universidade Feevale
Mestrado em Processos e Manifestações Culturais
LEONARDO CASTRO DORNELES
OS DIÁLOGOS INTERCULTURAIS A PARTIR DA MÚSICA M’BYÁ-GUARANI
Trabalho de Conclusão apresentado ao
Mestrado em Processos e Manifestações
Culturais como requisito para a obtenção
do título de mestre em Processos e
Manifestações Culturais.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Lurdi Blauth
Co-orientadora: Prof.ª Dr.ª Magali Mendes de Menezes
Novo Hamburgo
2011
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
Bibliotecária responsável: Elena da Costa Plümer – CRB 10/1349
Dorneles, Leonardo Castro
Os diálogos interculturais a partir da música M‟Byá-Guarani
/ Leonardo Castro Dorneles. – 2011.
98 f.: il.; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Processos e Manifestações Culturais) –
Feevale, Novo Hamburgo-RS, 2011.
Inclui bibliografia.
“Orientadora: Profª. Drª. Lurdi Blauth “ ; “Co-Orientadora: Profª.
Drª Magali Mendes de Menezes”.
1. Interculturalidade – Índios – M‟Byá-Guarani. 2. Música –Índios
– M‟Byá-Guarani. 3. Etnomusicologia . I. Título.
CDU 316.722(=981):78
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Universidade Feevale
Mestrado em Processos e Manifestações Culturais
LEONARDO CASTRO DORNELES
OS DIÁLOGOS INTERCULTURAIS A PARTIR DA MÚSICA M’BYÁ-GUARANI
Trabalho de Conclusão de mestrado aprovado pela banca examinadora em nove de
janeiro de 2012, conferindo ao autor o título de mestre em Processos e Manifestações
Culturais.
Componentes da Banca Examinadora:
Profª Drª Lurdi Blauth
Universidade Feevale
Prof. Dr. Antonio Sidekum
Universidade do Oeste de Santa Catarina
Prof. Dr. Valdir Pedde
Universidade Feevale
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos que tornaram o mestrado uma experiência instigante e desafiadora.
À professora Magali Mendes de Menezes, pela dedicação, sensibilidade e orientação
incomparáveis. À professora Lurdi Blauth, pela orientação e cordialidade. Aos professores do
mestrado, pelo incentivo e apoio na elaboração e organização das primeiras ideias sobre o
tema de pesquisa. Ao professor João Alcione Figueiredo pelo apoio e estimulo no início dos
estudos.
Aos colegas do mestrado, pela companhia amorosa e partilha de ideias.
Ao José Cirilo Morinico, pela interlocução e convivência que possibilitaram minhas
reflexões. Aos M‟byá-Guarani, que encontrei nesses últimos anos, e que deram sentido ao
estudo.
Pelos comentários valiosos dos professores Antonio Sidekum e Valdir Pedde, na
qualificação do projeto de pesquisa. À Rosane Maria Maitelli pela correção e diálogo.
Aos professores Raúl Fornet Betancourt, Ricardo Salas e Neusa Vaz, pela cordialidade
e palavras de incentivo.
Ao Fabiano Castro e à Altamira Castro, pela companhia silenciosa nos momentos de
estudo. À Caroline Faria, pela dedicação e amor que tornaram mais leves os dias e noites de
estudo.
A todos que acreditam na música humana.
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“Hoje nos encontramos numa fase nova na
humanidade. Todos estamos regressando à Casa Comum, à
Terra: os povos, as sociedades, as culturas e as religiões.
Todos trocamos experiências e valores. Todos nos
enriquecemos e nos completamos mutuamente (...)"
Leonardo Boff
“É interessante tua pesquisa, eu vou falar com
liberdade, e tu vai falar com liberdade, então é um momento
intercultural. Nós estamos conversando e seria interessante
saber qual caminho poderia tomar junto.”
Cirilo Kuaray
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RESUMO
Este estudo analisou a relação entre Interculturalidade e música a partir do encontro entre
indígenas e não-indígenas. Nosso principal interlocutor foi o representante dos M‟byá-
Guarani, no Rio Grande do Sul, Cirilo Kuaray, residente na aldeia Anhetenguá. Buscou-se
compreender os elementos que estruturaram esse encontro, e de que maneira a música tornou-
se importante para um possível processo de reconhecimento e de diálogo intercultural. Esta
perspectiva foi fundamental para a defesa de uma reflexão sobre a Ética, desde a necessidade
dos diálogos interculturais. Para tanto, o principal embasamento teórico desta analise foi a
Filosofia Intercultural, tendo como referência o pensamento de Raúl Fornet-Betancourt e
Ricardo Salas, bem como os estudos sobre Etnomusicologia realizados por Deise Lucy
Oliveira Montardo, Maria Elizabeth Lucas e Marília Stein. A metodologia utilizada foi o
estudo de caso, através da aproximação com a aldeia e, em especial, com nosso interlocutor e
a Etnopesquisa, compreendida como uma vivência que permite tanto pesquisador como
sujeitos da pesquisa interagirem, fazendo desse modo, que a interculturalidade não surja
apenas como um elemento teórico, mas como uma compreensão investigativa.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia Intercultural; M’byá-Guarani; Música; Ética
Intercultural.
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ABSTRACT
This study examined the relationship between Intercultural and music from the encounter
between Indians and non-Indians. Our main speaker was the representative of M‟byá-Guarani
in Rio Grande do Sul, Cirilo Kuaray, resident in the village Anhetenguá. We sought to
understand the elements that structured this meeting, and how music has become important
for a possible process of recognition and intercultural dialogue. This perspective has been
fundamental to the defense of a reflection on ethics from the need for intercultural dialogue.
To this end, the main theoretical basis of this analysis was the Intercultural Philosophy, with
reference to the thought of Raúl Fornet-Betancourt and Ricardo Salas, as well as studies
conducted by Etno-musicology Montardo Deise Lucy Oliveira, Maria Elizabeth Lucas and
Marilia Stein. The methodology used was a case study, by bringing to the village, and in
particular with our interlocutor, and Etno-research understood as an experience that allows
both researcher and research subjects interact, thereby making that inter-culturality not to
arise only as a theoretical element, but as an investigative understanding.
KEYWORDS: Intercultural Philosophy; M´byá-Guarani; Music; Intercultural Ethic.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................9
I REFLEXÕES SOBRE INTERCULTURALIDADE E FILOSOFIA ............................ 13
1.1 Pensamento colonizador e interculturalidade: Edward Said .............................................14
1.2 Filosofia Latino-americana e Filosofia Intercultural: Raúl Fornet-Betancourt ................ 17
II INTERCULTURALIDADE E SUA DIMENSÃO ÉTICA COMO UMA NOVA
PERSPECTIVA EPISTEMOLÓGICA .............................................................................. 31
2.1 Ética Intercultural................................................................................................................32
2.2 Etnopesquisa: uma metodologia tecida pela interculturalidade .........................................38
III ETNOMUSICOLOGIA: OS M’BYÁ-GUARANI E SUA MÚSICA ......................... 42
3.1 Localização e população M‟byá-Guarani ......................................................................... 42
3.2 A música Guarani a partir da Etnomusicologia ................................................................ 47
IV A MÚSICA NA EXPERIÊNCIA DE DIÁLOGO INTERCULTURAL A PARTIR
DO PENSAMENTO M’BYÁ-GUARANI .......................................................................... 54
4.1 O encontro com os M‟byá-Guarani: refletindo a trajetória ............................................... 55
4.2 Aproximações do entendimento de Mba‟epú ................................................................... 71
4.3 Considerações sobre o Aete Guarani: principio fundamentador da
interculturalidade..................................................................................................................... 82
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 87
REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 93
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INTRODUÇÃO
Nossa discussão surge em um cenário histórico, de colonização e barbárie contra a
cultura indígena latino-americana, que foi permeado por situações de crueldade e negação da
dignidade dessa etnia, desde a chegada de europeus ao Brasil. Para tais colonizadores, os
indígenas ora aparecem como desconhecidos e diferentes, ora como sujeitos fáceis de
compreender, em sua forma de atuar e desejar. Esses dois entendimentos resultam na
legitimação da violência, para humilhar e tornar os nativos obedientes.
No entanto, percebemos que esta história não faz parte apenas de um passado. A
violência contra as populações indígenas vem, ao longo de nossa história, assumindo muitas
faces. Recentemente, testemunhamos um encontro com fundamentos semelhantes, que ficou
conhecido como indigenismo no Brasil. Comumente ligado à demarcação de terras e criação
de reservas indígenas, gerou prejuízos relevantes a uma série de comunidades indígenas.
Embora pareça ter um menor impacto nessas comunidades, pois havia um inicio de
reconhecimento das necessidades indígenas, o indigenismo tratava o tema indígena, a partir
da ótica dos não-indígenas, desprezando aspectos relevantes dessa cultura, para efetivar ações
sob a perspectiva ocidental-capitalista.
Nossas interrogações emergem imbuídas deste cenário de exploração e violência que
permeou o contato das culturas indígenas com não-indígenas. Essa situação, na atualidade,
gera a angústia e a miséria de uma parte significativa dos M‟byá-Guarani. A consciência
dessas injustiças é fundamental para o reconhecimento de uma dignidade inviolável -
expressão utilizada por Fornet-Betancourt (2001) - que portam nossos interlocutores
indígenas.
Os M‟byá-Guarani são um subgrupo indígena Guarani, de idioma guarani da família
linguística tupi-guarani, de tronco tupi. Junto com os Kaiová, Nhandeva e Chiriguano formam
o grande grupo Guarani, com provável origem amazônica, de há mais de 3.000 anos.
Atualmente, possuem uma população aproximada de 34.000 indivíduos, com cerca de 2.000
no Rio Grande do Sul, alojados em 20 aldeias (LUCAS, STEIN, 2009, p. 21).
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A temática central desta pesquisa será a possibilidade de uma relação intercultural
entre indígenas e não-indígenas, tendo a música como um elemento fundamental desse
encontro. Desde esta perspectiva, pretendemos pensar uma Ética Intercultural permeada,
fundamentalmente, pela musicalidade indígena, buscando responder a seguinte questão:
podemos pensar o encontro entre indígenas e não-indígenas, através da música como
experiência de diálogo intercultural?
Para darmos conta desta problemática, necessitávamos compreender o caminho que
iriamos percorrer na própria elaboração e configuração deste diálogo com os indígenas. A
questão metodológica sempre se apresentou como um desafio, pois pensar o caminho era, de
alguma forma, pensar a pesquisa e seus diferentes resultados e implicações. Havia, por isso,
uma opção prévia, necessária a todo aquele que inicia um processo investigativo: a
Etnopesquisa. A possibilidade de abertura, presente nesta metodologia, nos fornecia as
condições, para que pudéssemos viver este diálogo, aproveitando seus “imprevistos”, aqueles
acontecimentos que são fundamentais e que nós, enquanto pesquisadores, não poderíamos
deixar passar despercebidos. Tudo, de alguma forma, falava (mesmo que fosse o silêncio) e
nos fornecia elementos para que, cada vez mais, pudéssemos compreender a dimensão
profunda que assume a música nesta cultura. Foi, desse modo, que a pesquisa assumiu
caminhos desenhados, no exato momento do diálogo. Assim, foi configurando-se como
principal interlocutor desta pesquisa, o cacique Cirilo Kuaray, representante dos M‟byá-
Guarani no Rio Grande do Sul. Na compreensão das propostas da escolha metodológica
presentes na Etnopesquisa, percebíamos que se fazia necessário pensar, também, os
instrumentos de coleta de dados que nos aproximariam daquele que se tornou a fonte central
desta investigação. As observações, resultantes de várias visitações à aldeia Guarani e as
entrevistas gravadas com o cacique foram, aos poucos, incorporando elementos de um Estudo
de Caso. Esta forma de inserção no campo trouxe, juntamente com a Etnopesquisa, uma
abertura fundamental para compreendermos, de forma mais profunda, a realidade desta
comunidade. Através dos depoimentos desta importante representação da cultura Guarani,
buscou-se compreender o contexto de uma realidade que atravessa a leitura de um sujeito,
mas que ao mesmo tempo, nos fornece elementos ricos para pensarmos esta realidade como
um todo.
A música foi o elemento fundamental da investigação, ressaltando, assim, a
importância da arte na cosmovisão desses indígenas. Buscaremos compreender os elementos
que estruturaram esse encontro e, de que maneira a música tornou-se importante em um
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possível processo de reconhecimento e de diálogo intercultural. Para tanto, o principal
embasamento teórico desta analise foi a Filosofia Intercultural, tendo como referência o
pensamento de Raúl Fornet-Betancourt (2001 e 2004), Ricardo Salas (2003 e 2007). No que
tange aos aspectos referentes à importância da música na cultura M´byá-Guarani, tomamos
como referências principais, as investigações de Deise Lucy Montardo (2002), Maria
Elizabeth Lucas e Marília Stein (2009).
A reflexão sobre esse tema é relevante, na medida em que ainda vivemos um profundo
desrespeito e desconhecimento da cultura indígena. Ao refletir sobre uma pesquisa que
expressa o diálogo da Universidade com as comunidades indígenas, destacamos o
compromisso que a Academia deve ter com as problemáticas de nosso tempo. Esta pesquisa,
ao pensar o encontro a partir da música, propõe um elemento novo dentro do debate sobre a
interculturalidade, principalmente da Filosofia Intercultural. É desse modo, que fazemos a
defesa da dimensão ética permeada, fundamentalmente, por uma dimensão estética presente
na cultura. E foi essa reflexão que nos ajudou a pensar os diálogos interculturais a partir de
novos elementos.
Desse modo, enfatizamos que, com essa pesquisa, buscamos compreender os
elementos que estruturaram o encontro do pensamento M‟byá-Guarani, a partir do exercício
do diálogo de um indígena, com um pesquisador. Ou seja, a reflexão sobre todo o processo de
pensar a problemática, desde o dialogo com esse indígena, foi uma importante fonte da
investigação. Mais do que pensarmos um resultado ou uma resposta à problemática, queremos
entender como respondermos a nossa pergunta essencial, desde esse diálogo entre duas
culturas, que foi permeado por tensões, negociações e traduções.
Destacamos, também, que a proposta da pesquisa, embora fosse interdisciplinar
(princípio importante para pensarmos a interculturalidade), está essencialmente localizada no
campo filosófico. Buscou-se constituir considerações conjuntas que respeitassem as
identidades envolvidas e que originassem um pensamento intercultural fundamentado na
parceria fraterna, entre pesquisador e interlocutor.
Para o desenvolvimento da investigação, elencamos os seguintes objetivos: reconhecer
os princípios que permeiam e fundamentam a Filosofia Intercultural; analisar a concepção e
significado da música, na cosmologia M‟Byá-Guarani; identificar as percepções e
ressignificações culturais produzidas nas relações entre os indígenas, a partir da construção e
efetivação de nossa proposta de refletir as implicações da música, no cotidiano desses
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Guarani; e por último, analisar o entendimento e a importância para os indígenas do encontro
gerado pela pesquisa.
Nossa investigação foi construída, a partir dos pressupostos da Filosofia Intercultural e
Etnopesquisa que, em nosso ponto de vista, possibilitaram uma epistemologia legitimadora da
forma do Outro atuar, bem como de todo encontro gerado pela presente pesquisa. Tecemos
nossas considerações, na busca dos objetivos citados, imbuídos dessa perspectiva que
detalhamos, nos primeiros capítulos, através de subsídios da Filosofia Intercultural para, desse
modo, enfrentarmos as problemáticas que surgiram, no decorrer de nossa trajetória, com o
intuito de responder nossa questão central. Nosso desafio foi o de conviver com os M‟byá,
pensando profundamente as ações geradas, nesse encontro, seus significados e a forma como
foi construído o diálogo.
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I REFLEXÕES SOBRE INTERCULTURALIDADE E FILOSOFIA
A Interculturalidade é um elemento fundamental nesta investigação. Mas, ao
trazermos o debate sobre a interculturalidade, não pretendemos abarcar a imensa bibliografia,
existente sobre este tema, que emerge de diferentes campos, como a Antropologia,
Sociologia, Educação, entre outros. Trazemos aqui, para pensar a interculturalidade, os
estudos realizados pela Filosofia Intercultural. Tal opção teórica parte da necessidade de
pensarmos a interculturalidade, desde a perspectiva Ética. Nesse sentido, acreditamos que a
Filosofia Intercultural traz importantes contribuições para essa reflexão. Para tanto, faz-se
importante compreendermos de que maneira surge a reflexão sobre a interculturalidade dentro
da Filosofia.
A interculturalidade surge como um elemento problematizador e de análise da própria
história do pensamento latino-americano, referência importante para pensarmos a Filosofia
Intercultural. A filosofia latino-americana assume novos questionamentos a partir da
interculturalidade, que passa a repensar em sua origem, o pensamento desde o contexto
cultural, possibilitando a reflexão sobre novas racionalidades e perspectivas éticas.
Buscaremos, desse modo, explicitar e problematizar a seguinte questão: de que maneira a
interculturalidade possibilita repensar o sentido da Filosofia, compreendida aqui, como uma
reflexão que emerge desde uma cultura ocidental? Para isso, desenvolveremos, também,
algumas considerações sobre as compreensões da filosofia e a necessidade de uma filosofia
latino-americana, que reconheça a diversidade e singularidade de nossos povos. Mostraremos
que o discurso sobre a Filosofia Intercultural surge da constatação de um caráter intercultural,
como elemento fundamental e necessário para pensarmos uma filosofia libertadora latino-
americana. Posteriormente, analisaremos os pressupostos da filosofia intercultural e a
proposta de uma Ética intercultural que serão, mais adiante, pontos fundamentais para a
análise do encontro intercultural.
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1.1 Pensamento colonizador e a interculturalidade: Edward Said
É importante tratar, primeiramente, de compreendermos uma visão de cultura que se
afirma a partir de uma ideia de superioridade cultural, visando subjugar o outro. Tomaremos
como referência, neste momento, a investigação de Edward Said (2007), na obra
Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, na qual o autor elabora uma análise da
superioridade cultural do ocidente, representada na ação européia no Egito. Partimos desse
estudo para compreendermos a problemática da interculturalidade, pois essa obra, ao mesmo
tempo em que descreve um pensamento colonizador – denominado orientalismo - elabora
uma crítica a esse pensamento, afirmando ser o orientalismo uma invenção do ocidente que
despreza a perspectiva dos nativos. Dessa forma, seus postulados estão imbuídos de questões
interculturais que explicitam a distância entre uma perspectiva colonizadora e a possibilidade
de diálogos interculturais.
Said define o Orientalismo como o conhecimento do Oriente, constituído a partir do
imaginário de estudiosos ocidentais. Formalmente surgido em 1312, e, embora os traços dessa
perspectiva sejam encontrados no pensamento mítico grego, sobretudo nas obras de Homero,
seu desenvolvimento efetivo ocorre durante o século XIX. O Orientalismo é uma perspectiva
política que discrimina o Oriente do Ocidente, sendo o primeiro inferior ao último. Esse
conhecimento atinge seu auge pela metade do século XIX, quando é concebido como um
vasto tesouro da erudição, tendo assim, assumido o status de disciplina acadêmica.
O Orientalismo tem como característica relevante, o pensamento binário, que
diferencia os orientais - tidos como portadores de mente imprecisa e carente de simetria,
raciocínio descuidado, sem energia e iniciativa - dos europeus, possuidores de um raciocínio
lógico natural, cético, de inteligência treinada. Apesar de se autodenominarem conhecedores
do oriente, notamos que tais considerações evidenciam um pensamento que não investiga as
perspectivas dos nativos e suas formas de compreender o mundo; ao contrário, constroem tal
conhecimento sem dialogar com esses sujeitos. Said critica essa postura a partir da atuação de
um dos representantes do Orientalismo afirmando que:
Não ocorre a Balfour, entretanto, deixar que o egípcio fale por si mesmo, já que é
mais provável que qualquer egípcio disposto a falar seja „o agitador que quer criar
dificuldades‟, e não o bom nativo que faz vista grossa às „dificuldades‟ da
dominação estrangeira (SAID, 2007, p. 64).
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A possibilidade de dialogar com o outro, postulada por Said, expressa a
interculturalidade enquanto ação que busca reconhecer a existência de outra perspectiva
legítima, nesse caso, a dos nativos egípcios. É a partir de sua crítica às iniciativas culturais
europeias, no Egito, que percebemos traços fundamentais para pensarmos a interculturalidade
que se expressam: no reconhecimento da validade da perspectiva do outro, na incontestável
existência da tradução, no reconhecimento da dignidade intocável dos diferentes, na
preservação das identidades e da humanidade que participam de um encontro intercultural.
Said elabora a seguinte questão sobre a possibilidade de preservar o sentido de
humanidade, na relação entre oriente e ocidente:
Será possível dividir a realidade humana, assim como a realidade humana parece
ser dividida, em culturas, histórias, tradições, sociedades, até raças claramente
diferentes, e sobreviver humanamente às consequências? Será possível evitar a
hostilidade expressa pela divisão dos homens em ocidentais e orientais? (SAID,
2007, p. 80)
Estas questões, elaboradas por Said, declaram oposições e antagonismos encontrados
na concepção do Orientalismo, elementos que impossibilitam uma relação humana –
portadora de justiça – e constituem a hostilidade que se expressa em uma relação de
exploração e, consequente, coisificação dos egípcios. Portanto, não é possível fazer a defesa
de um sentido de humanidade, a partir de uma abordagem que tem como fundamento utilizar
o conhecimento (Orientalismo) para dominar, explorar e reduzir o outro a objeto gerador de
lucro.
Na perspectiva orientalista, o conhecimento é o pressuposto para a dominação do
nativo. Ele é constituído pelo exame de uma civilização, desde as suas origens ao seu apogeu
e declínio, e é gerador de supremacia, possibilitando o domínio e autoridade sobre o objeto e a
negação da autonomia. Assim, segundo Said, os países orientais existem, num certo sentido,
como o ocidente os conhece, sendo o Orientalismo “o conhecimento do Oriente, que coloca as
coisas orientais na aula, no tribunal, na prisão ou no manual, para escrutínio, estudo,
julgamento, disciplina ou governo” (SAID, 2007, p. 74).
Analisando este conhecimento que sustenta um processo de dominação, podemos
verificar a negação ou distanciamento de uma abordagem que considere e reconheça a
existência de um conhecimento nativo fundamentado em outra perspectiva, capaz de produzir
outra cosmologia, concepção de mundo, de humanidade, de natureza. Essas diferenças
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somente são valorizadas, na medida em que alimentam o mercado de consumo com novos
„produtos‟, provenientes deste território „exótico‟ que, muitas vezes, representa o Oriente.
Não interessa aos colonizadores (e aqui podemos falar de novos processos de colonização)
qualquer manifestação contrária ao movimento colonizador (civilizador). Estas manifestações
são vistas como uma expressão inconveniente, ofensiva e atrasada em relação à ideia de
progresso contida nesse processo.
Os colonizadores europeus causaram prejuízos relevantes aos nativos, a partir de suas
certezas absolutas, subjugando aqueles que discordavam de sua leitura minuciosa do oriente.
Said afirma que: “A verdade, em suma, torna-se uma função do julgamento erudito e não do
próprio material que com o tempo parece dever até a sua existência ao orientalista” (Said,
2007, p.107). As codificações orientalistas convencem o leitor ocidental não iniciado
(consumidor do Orientalismo como conhecimento institucionalizado do Oriente) e, assim, a
própria concepção do Oriente é propriedade do Orientalismo. O termo material utilizado por
Said se refere ao Oriente, que deve sua própria existência àquele que o descreve, o
orientalista.
Consideramos que o pensamento colonizador se constitui, dentro dessa perspectiva,
num movimento de expansão do pensamento próprio de um local, que se torna hegemônico,
em vista da dominação de outros grupos humanos portadores de pensamentos distintos.
A interculturalidade vai de encontro a essa visão e postula a existência de outras
perspectivas legítimas de pensar o mundo. A ausência de reconhecimento constatada por Said
evidencia o desprezo à forma de agir dos nativos egípcios por parte dos europeus. A
investigação desenvolvida por este autor – especialmente sua crítica ao orientalismo – já
anuncia alternativas que podemos chamar de interculturais, pois problematiza a postura
etnocêntrica e dominadora do Ocidente sobre o Oriente.
Esta analise, realizada por Said, pode ser transposta para pensarmos a própria historia
da Filosofia. É possível percebermos que o pensamento ocidental sempre foi um exercício que
teve como característica marcante a hegemonização de um modo de ver o mundo. É sobre
esta história que buscaremos agora tecer algumas análises.
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1. 2 Filosofia Latino-americana e Filosofia Intercultural: Raúl Fornet-
Betancourt
A universalidade – que marca o pensamento (logos) grego – é um elemento relevante
na constituição da reflexão da cultura ocidental. Este aspecto delineou fundamentos que
serviriam para o entendimento de qualquer comunidade, tendo assim, em sua essência, a
imposição de uma forma de conceber o mundo, desprezando outras cosmologias e formas de
pensar e constituir suas práticas cotidianas. Neste sentido Leopoldo Zea (2005, p.51) nos diz
que o logos grego introduz um modo de pensar e organizar o mundo, em que tudo que escapa
a esta ordem passa a ser considerado bárbaro.
Donos do logos, é esta a única expressão possível da ordem. Qualquer outra
expressão resulta bárbara, isto é, balbuciante, mal dita, mal expressa [...]. Centros
de poder e, à margem, homens ou povos que não sabem ou não podem se expressar
em um logos que não lhe seja próprio. Os outros são os mal falantes e, portanto,
entes que devem ser submetidos. (ZEA, 2005, p. 51)
Assim, esses pressupostos ocidentais, não reconhecem diferentes percepções de
mundo, como dotadas de racionalidade, de expressão, uma vez que estas não sustentam uma
percepção legítima do viver humano. Toda e qualquer outra percepção apenas balbucia ideias.
Trataremos de aprofundar a crítica a esse entendimento, no âmbito filosófico, a partir da
compreensão da necessidade em pensarmos uma Filosofia latino-americana e, posteriormente,
intercultural. Os filósofos latino-americanos que traremos para nossa discussão partem da
indagação sobre até que ponto a historia da Filosofia não se traduziu em um pensamento
eurocêntrico e hegemônico.
Compreende-se por América Latina o conjunto de países onde se fala português,
espanhol e francês e que abriga uma imensa diversidade de pensamentos, cosmologias e
formas de atuar no mundo. No entanto, mesmo diante desta diversidade cultural,
corroboramos com a perspectiva da filosofia intercultural, que afirma o desprezo dos
pensamentos nativos e, o não reconhecimento destes, como formas legítimas de racionalidade.
Mesmo na busca da constituição de um pensamento legítimo latino-americano, a diversidade
de concepções e lógicas nativas não foram consideradas nos estudos filosóficos latino-
americanos. Buscaremos explicitar, neste momento, essa problemática tomando como
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referência as obras Interculturalidade: críticas, diálogos e perspectivas (2004) e
Transformación Intercultural de la Filosofía (2001) de Raúl Fornet-Betancourt, na qual
encontramos uma descrição crítica de elementos e fatos fundamentais da história da filosofia
latino-americana e da importância da interculturalidade nessa Filosofia.
A Filosofia latino-americana buscou a constituição de um pensamento próprio que se
tornasse cada vez mais independente dos fundamentos do pensamento europeu e colonizador.
Portanto, é constante nessa Filosofia a real conquista pela independência através da
valorização de um pensamento latino-americano, ou seja, a necessidade de uma
descolonização do próprio pensar. Para tanto, buscou-se a compreensão sobre a forma de ser
latino-americana, que tornasse possível o projeto de libertação da América Latina, que
necessariamente necessitava passar por uma libertação do próprio pensamento, na relação
com o Outro.
Destacamos que, embora o início desta Filosofia seja marcado por traços da Filosofia
européia e inexista o diálogo com as culturas autóctones, percebemos que este pensamento
será fundamental para o desenvolvimento de uma reflexão sobre interculturalidade no âmbito
da Filosofia. É desse modo, que se verificará, nas investigações posteriores (analise que será
desenvolvida mais adiante) de pensadores fundamentais para a América Latina, uma “guinada
para a interculturalização da Filosofia”, como denomina Fornet-Betancourt (2004).
Um pensador importante que reflete a Filosofia a partir do reconhecimento da
diversidade da América foi José Martí, postulando uma América Latina de todos, incluindo
ameríndios e afro-americanos. Raúl Fornet-Betancourt (2004), ao referir-se a José Martí,
enfatiza o pensamento desse autor como fundamental na constituição de uma filosofia latino-
americana.
O termo “Nossa América”, utilizado por José Martí, expressava a ideia de
transformação social, política e econômica, que postulava a possibilidade de autonomia dos
povos oprimidos e sua consequente libertação cultural. “La universidad europea ha de ceder a
la universidad americana. La historia de América, de los incas acá, ha de ensiñarse al dedillo,
aunque no se enseñe la de los arcontes de Grecia. Nuestra Grecia es preferible a la Grecia que
no es nuestra”(MARTÍ, 1891).
Oposta ao colonialismo, essa perspectiva compreendia “Nossa América” como “[...]
novedad histórica; novedad a fraguar en su perfil concreto en la lucha histórica por la
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emancipacíon política y económica, así como por la liberación cultural de los pueblos todos
que la componen” (FORNET-BETANCOURT, 2001, p. 74,75).
José Martí vislumbrava um horizonte, onde os povos latino-americanos, convictos de
sua autonomia cultural, dialogassem entre si, na construção de uma unidade latino-americana.
Fornet–Betancourt afirma a importância do trabalho de José Martí, como propulsor do desafio
de buscarmos novos caminhos, no âmbito cultural e filosófico da história da América Latina e
destaca, assim, a necessidade de repensarmos a história do pensamento latino-americano,
superando a visão monocultural que sustentou a Filosofia clássica.
Fornet-Betancourt (2004) vem, ao longo de sua reflexão, mostrando de que maneira a
discussão sobre interculturalidade atravessa a Filosofia latino-americana, a partir do momento
em que esta, busca pensar outra relação entre dois mundos, que não a do colonizador e
colonizado. Desse modo, faz referência a uma série de pensadores que afirmam essa ideia:
[...] Francisco Bilbao (1823-1865) que opõe à “unidade da conquista” um novo
tipo de unidade que deverá estar baseado no respeito às diferenças e conduzir assim
a consecução da “fraternidade universal” [Bilbao, 1993, p.55]; de Eugenio Maria
de Hostos (1839-1903) que denuncia o crime que dignifica fazer o índio, o africano
ou o chinês, solidários de “uma civilização que não compreendem”, de Pedro
Henriquez Ureña (1884-1946) que, desde sua visão de uma universalidade
(REVER) não desgastada, propõe como ideia-força para a criação da cultura
latino-americana esta norma:” Nunca a uniformidade, ideal de imperialismos
estéreis; sim a unidade, como harmonia das multiples vozes dos povos”; ou de José
Martí (1853-1895) que acaso com mais clarividência que nenhum outro soube
articular em sua obra o apelo de compreender e reorganizar a América Latina
desde sua real constituição intercultural (FORNET-BETANCOURT, 2004, p.
19,20).
Uma marca fundamental de avanço significativo da Filosofia latino-americana é a não
aceitação do entendimento de um encontro natural entre europeus e latino-americanos; ao
contrário, afirma a barbárie como meio de impor uma forma de pensar e agir legitimadora da
exploração, por parte dos europeus. Sobre isso, o filósofo faz referência ao pensamento de
Enrique Dussel:
Digo que falar sobre „encontros‟ é um eufemismo [...] porque oculta a violência e a
destruição do mundo do outro, e da outra cultura, foi um „choque‟ e um choque
devastador, genocida, absolutamente destruidor do mundo indígena. (DUSSEL,
1992, p.75 apud FORNET-BETANCOURT, 2004, p. 53).
Essa ideia também está presente no pensamento de Arturo A. Roig:
20
Assim, nem „encontro de dois mundos‟, nem „encontro de duas culturas‟ resultam
ser expressões aceitáveis, em particular se tem presente a desigualdade de relação
entre os pretendidos „mundos‟ e „culturas‟, submetidos ao contrário do que se quer
significar, a saber, a „aculturação‟, fenômeno que em suas formas extremas chegou
aos limites de „morte cultural‟ e, em tal sentido, de etnocídio (ROIG, 1994, p.15
apud FORNET-BETANCOURT, 2004, p. 39).
Não é suficiente, então, pensarmos o encontro entre culturas, mas fundamentalmente,
o que caracteriza um verdadeiro encontro.
Enrique Dussel, expoente importante deste pensamento, propõe uma nova relação
entre América Latina e Europa. Para tal, explicita a necessidade de uma “reação da filosofia
latino-americana, ante o desafio da conjuntura histórica, criada pelos 1992”, como comenta
Fornet-Betancourt (2004, p. 50). Data essa que marca, o que autor afirma, ao referir-se à
interculturalidade emergente: “[...] emergencia consciente de tradiciones de pensamiento que
han sido sepultadas o marginadas por la dinámica de expansión imperial de un logos
monocultural que há tratado de uniformar la historia de la filosofía (2001, p. 57).
Enrique Dussel é o precursor de uma importante virada da filosofia latino-americana,
pois sua proposta defende um pensamento genuinamente próprio. Essa proposta tratou de
afirmar a necessidade do reconhecimento e desenvolvimento de pressupostos filosóficos
latino-americanos.
No entanto, segundo Fornet-Betancourt (2004), Dussel não pensa a interculturalidade
entre os latino-americanos, constituindo assim, uma proposta singularizante e homogênea dos
povos que habitam este território. É inegável a importância de seus estudos que constituem a
Filosofia da Libertação, pois sua investigação é o primeiro movimento, de tomada de
consciência, de uma filosofia que deve acompanhar o processo de libertação dos povos latino-
americanos. Dussel defende uma América ameríndia que deve sair do encobrimento
eurocêntrico (FORNET-BETANCOURT, 2004, p. 57). Porém, na visão de Fornet-
Betancourt, Dussel não relativiza a própria noção de racionalidade européia e a possibilidade
de outras racionalidades, como a ameríndia, mantendo-se dentro de uma perspectiva filosófica
tradicional. É o que podemos perceber na afirmação de Dussel, ao referir-se aos ameríndios:
O que não tinham, de maneira explicita e „técnica‟, era filosofia. Se por filosofia se
entende o discurso metódico que se iniciou historicamente com o povo grego e cuja
estrutura intrínseca vem definida pelo uso de instrumentos lógicos, ou mediações
metódicas perfeitamente reconhecíveis, no que explicitamente se denomina história
21
da filosofia, não houve filosofia ameríndia (Dussel, 1994, p.27 apud FORNET-
BETANCOURT, 2004, p. 62).
Fornet-Betancourt considera, finalmente, que Dussel, embora mais tarde realize uma
autocrítica a esse seu argumento, olha as culturas ameríndias a partir de pressupostos da
filosofia eurocêntrica. Para o autor, cada grupo tem sua cosmologia e autodeterminação, o que
possibilita pensarmos outras concepções de Filosofia e, consequentemente, a necessidade da
interculturalidade na Filosofia.
Seguindo a análise da obra de Fornet-Betancourt, encontraremos pensadores que têm a
interculturalidade como marca relevante em seus estudos.
As perspectivas mais recentes da Filosofia, que enfatizam a interculturalidade, são
representadas por filósofos ainda pouco conhecidos (principalmente no Brasil). Esses
constituem uma corrente de pensamento, que expressa pressupostos fundamentais da Filosofia
Intercultural e nos dão aporte para pensarmos uma Filosofia que contempla a diversidade e
reconhece os pensamentos nativos como dotados de potencial para determinarem sua ação no
mundo e seu “que fazer filosófico”, conforme comenta Fornet-Betancourt (2004). É
importante destacar que Fornet-Betancourt, compreende a cultura como algo que:
[...] não significa uma esfera abstrata, reservada à criação de valores espirituais, e
sim o concreto pelo qual uma comunidade humana determinada organiza sua
materialidade com base nos fins e valores que quer realizar. Em outras palavras, o
autor nos diz que não há cultura sem materialidade interpretada ou organizada por
fins e valores representativos e específicos de uma sociedade ou etnia humana. Nos
grupos humanos em que as metas e os valores, pelos quais se define essa
comunidade, tem incidência na organização social do grupo, manifestos no contexto
material próprio. Nesse grupo, há uma cultura própria. A cultura abrange mais do
que os “nobres valores” do saber teórico, da religião e da arte, como
equivocadamente alguns creem [sic] (VAZ E SILVA, 2009, p. 47/48).
Esse entendimento de cultura é essencial para compreendermos um ponto fundamental
da filosofia intercultural: os contextos, com suas práticas que constituem o sentido do viver
em comunidade, expressando formas diversas de pensar, e estas não são desveladas apenas
por uma única ideia de cultura. Essas práticas cotidianas constituem a realização concerta de
uma comunidade e formam uma cultura, vista aqui não mais como representação homogênea
de um coletivo, mas como composta por uma diversidade. A complexidade dessas lógicas
está na sua materialidade, na concretização de seus projetos de vida, constituídos na esfera
coletiva. Mesmo postulando os pressupostos universais, a partir dos diálogos interculturais, a
interculturalidade reconhece a limitação epistemológica que caracteriza uma cultura, pois esta
22
não consegue conhecer outras culturas completamente, a partir de seus pressupostos, nenhuma
cultura tem essa capacidade e isso exige uma postura humilde diante do outro. A
universalização é possível no intercâmbio, que prioriza a preservação das identidades
envolvidas e reconhece o histórico de exploração dos povos latino-americanos. Poderíamos
desse modo, diferenciarmos dois movimentos de um processo de universalização: uma
universalidade hegemônica, que se afirma no desprezo violento ao Outro, e uma
universalidade sempre negociada, que se fundamenta em condições necessárias para o diálogo
intercultural . Portanto, a universalização surge na instância intersubjetiva, não é propriedade
de uma cultura. Fornet-Betancurt nomeia esse movimento de “[...] un nuevo saber, un saber
intercultural del mundo y de la historia que sabe aprender de nuevo, y que, por ello aprende,
entre otras cosas, que universalizar no es expandir lo proprio sino dialogar con las otras
tradiciones [...]” (FORNET-BETANCOURT, 2001, p. 17).
A Filosofia contextualizada intercultural critica a Filosofia profissionalizada, que é
concebida como propriedade da academia e dos filósofos profissionais. Esta concepção de
Filosofia é distorcida e exclui outras formas de entendimento do que é Filosofia. Propõe
então, um fazer filosófico intercultural, que surge da reflexão crítica de nossos tempos em
parceria com o Outro. Esta se configura, na ausência de expansão de um único pensamento,
na cooperação mútua das racionalidades autônomas e no reconhecimento da dignidade
inviolável que constitui cada cultura.
Essa Filosofia critica a hegemonia e postula uma nova forma de constituir a Filosofia,
a partir de duas dimensões: metodológica e hermenêutica; e a transformação libertadora do
mundo histórico latino-americano. Há, nesse entendimento, a substituição da ideia de
Filosofia unilateral, que estabelece critérios próprios e fechados a partir de um ponto de vista,
pela Filosofia contextual e intercultural, que se constitui no diálogo que atinge os povos
excluídos e reconhece estes como diferentes, com os mesmos direitos que têm todas as
culturas. Assim, a própria diversidade é uma propagadora da universalização – instância
importante para o estabelecimento de uma ética intercultural que não privilegia uma cultura.
Essa postura impede o encontro violento e não se constitui como ação de vingar a barbárie
perpetrada em nossa América Latina, ao contrário, postula uma Filosofia para todos, que se
fundamenta numa proximidade fraterna. Contudo, não dá as costas para situações de
exploração e para a realidade de um mundo globalizado e neoliberal, que privilegia os
poderosos, as grandes corporações e os governos injustos e corruptos. Portanto, a filosofia
contextualizada intercultural é,
23
[...] una propuesta que invita a transformar la filosofía que hacemos en un saber
que sepa ejercerse como teoría y prática de proximidad entre los seres humanos y
sus culturas en el mundo de hoy, para que ése nuestro sea realmente nuestro mundo,
un mundo del nosotros. (FORNET-BETANCOURT, 2001, p. 20).
A capacidade dos latino-americanos, em pensar a diversidade de suas realidades
culturais, deve ser percebida a partir do reconhecimento do Outro, que representa tanto a
alteridade de sujeitos de uma mesma cultura, como de culturas distintas que compõem a
America Latina. Assim, a interculturalidade fundamenta-se na alteridade e reconhece a
diferença e dignidade daqueles que são próximos e distantes de seu contexto e história. Nessa
perspectiva configura-se outro pensar:
Pensar seria, assim, um ato de comunhão, e não de objetivação nem de definição,
que leva a cabo, por certo, não o famoso sujeito cartesiano dominador e possuidor
da natureza, senão justamente um “sujeito comunitário” [Picotti, 1990, p.15] que
conhece em e desde a memória histórica da comunidade. Mais ainda, trata-se de um
pensar que atualiza o comunitário e se configura como consciência histórica da
comunidade, que faz e funda a comunidade (FORNET-BETANCOURT, 2004, p.
99).
O contexto e o arraigo de uma comunidade constituem e são constituídos pelo pensar,
que, na investigação de Dina Picotti - expressiva filósofa citada por Fornet-Betancourt (2004)
na guinada para a interculturalização da Filosofia - afeta a instância comunitária e produz uma
tomada de consciência da legitimidade de sua história. A troca dessas experiências é um
fenômeno que ocorre no espaço interlógico, que seria “o âmbito da comunicação intercultural,
do intercâmbio entre as muitas expressões contextuais do filosofar ou do pensar” (FORNET-
BETANCOURT, 2004, p. 102). Portanto, nessa concepção, a mestiçagem não é controlada
pelas elites ocidentalizadoras, mas é entendida como unidade na alteridade que assimila
termos diferentes.
Compreendemos que o desafio de investigar uma cultura, a partir de sua própria forma
de ser, é constituído por uma complexa junção de elementos que exigem a constante revisão
da forma de agir, diante das descobertas e considerações oriundas do encontro de culturas
distintas. A interculturalidade configura-se, assim, como um aporte teórico para a discussão
sobre as possibilidades de uma relação justa entre seres humanos e, ao mesmo tempo,
problematiza, radicalmente, encontros que, aparentemente, parecem interculturais, mas, na
24
verdade, fundamentam-se em premissas colonizadoras, defensoras de uma única ideia de
cultura. Assim, Fornet-Betancourt afirma como um dos fundamentos da interculturalidade a
consciência de que existe, no Outro, uma forma de compreensão e atuação no mundo, que nos
desafia e aponta diferenças. Ao contrário de uma perspectiva colonizadora, deve haver o
reconhecimento recíproco entre os sujeitos de cada cultura.
Povos que defendem sua diferença, que mobilizam a vitalidade de suas tradições e
afirmam a diversidade, são povos que demonstram, com sua simples presença, que
na América Latina, história e cultura se gestam no plural e que, por consequência,
há que contar com eles tanto na interpretação como no desenho da América Latina
(FORNET-BETANCOURT, 2004, p. 29).
É necessário enfatizar que o encontro intercultural pressupõe a legitimação de todas as
identidades envolvidas, ou seja, um pesquisador, ao encontrar-se com um nativo ameríndio,
por exemplo, não incorpora a cultura ameríndia para facilitar sua aproximação e
compreensão. Ao contrário, conserva sua forma de pensar e atuar, ao mesmo tempo em que
busca dialogar com a ótica do Outro. Não há aculturação de nenhuma das partes, mas sim, a
afirmação da diferença, como pressuposto da convivência pacífica e cooperativa, que preserva
essas culturas que se encontram e não aceitam qualquer tipo de violência. Sobre o encontro
entre indígenas e não-indígenas e a possibilidade de estabelecer uma parceria igualitária – que
em nosso entendimento, constitui-se por elementos semelhantes aos pressupostos da Filosofia
Intercultural -, nosso interlocutor, M‟byá-guarani, afirma que: “É interessante tua pesquisa, eu
vou falar com liberdade e tu vai falar com liberdade, então é um momento intercultural. Nós
estamos conversando e seria interessante saber qual caminho poderia tomar junto” (CIRILO,
Entrevista, 18.07.2011). O argumento do Cirilo revela a vontade de pensar coletivamente, a
partir da liberdade recíproca, a constituição de uma ação prática que beneficie a comunidade
Guarani, da qual é representante. No entanto, esse indígena tem consciência da importância de
suas informações, para a pesquisa, e que esta trará benefícios para o pesquisador Juruá (não-
indígena). Esta percepção, sobre o diálogo intercultural, se dá no exercício deste diálogo.
Portanto, a negação da superioridade entre culturas é uma marca fundamental da
interculturalidade. Há a preservação das formas de pensar e agir no mundo e o
reconhecimento da impossibilidade de um pensamento único que une duas ou mais culturas.
Este não é o pressuposto de uma convivência pacífica, uma vez que gerá-lo é abrir mão de sua
25
cosmologia, ou impor sua lógica ao outro. Portanto, o fundamento do viver juntos é a
afirmação da própria diferença.
No entanto, é nesta afirmação que se encontra nosso desafio, ou seja: como o diálogo
intercultural afirma as diferenças e cria, ao mesmo tempo, uma instância neste diálogo que
seja comum e que, justamente, possibilite a compreensão?
Há, na interculturalidade, a consciência de um histórico de primazia do pensamento,
calcado numa lógica ocidental capitalista, que se autolegitima e julga-se superior. Essa
postura, eurocêntrica, considera as formas de pensar e agir dos povos nativos, como menores
e deficientes. Pensar, a partir da interculturalidade, as formas de ser latino-americanas é,
também, buscar a transgressão do pensamento etnocêntrico, adotando uma postura que vai à
contramão do pensamento hegemônico e europeu. Ao mesmo tempo - sobretudo quando se
refere ao campo da ética - a interculturalidade reconhece um histórico de racionalidades
diversas e autônomas, latino-americanas, que constituem sua realização nas práticas geradoras
de formas de convívio entre os sujeitos comunitários e entre estes e o mundo. E, nesse
sentido, a análise e constituição de uma ética intercultural partem, de dentro dessas lógicas,
para pensar pressupostos universais de uma proposta de liberação dos pensamentos que, até
então, ficaram de fora da Filosofia tradicional. Assim, no desenvolvimento desses
pressupostos, surge outra ideia de filosofia e do próprio pensar.
Outro desafio da interculturalidade é refutar o discurso das concepções ocidentais e
etnocêntricas e postular a investigação e legitimação de pensamentos dos povos nativos e
populares latino-americanos, enfatizando a necessidade do diálogo intercultural no interior da
própria América Latina. Simultaneamente, à busca em fundamentar essa crítica do
pensamento etnocêntrico, defende a superação das limitações de um pensamento autêntico,
que se sustentou, sem levar em conta a diversidade cultural latino-americana. Portanto, não há
um só pensamento latino-americano, mas pensamentos latino-americanos plurais,
caracterizados por tensões e busca de diálogos.
É, dessa maneira, que Raúl Fournet-Betancourt aponta uma limitação da Filosofia
latino-americana, afirmando que “[...] se desenvolveu em suas linhas dominantes de costas ao
desafio da interculturalidade em seu próprio contexto. Seu desenvolvimento não responde ao
apelo da justiça cultural articulado nas lutas sociais e nos testemunhos intelectuais [...]”
(FORNET-BETANCOURT, 2004, p.22). E acrescenta: “[...] a filosofia latino-americana não
26
soube levar o processo de contextualização e de diálogo com “a história e a cultura latino-
americanas” a suas últimas consequências.” (Id. Ibid., p. 22).
Ressaltamos que os estudos sobre interculturalidade, no campo da Filosofia, assumem
concepções e propostas variadas, porém há, neste debate, elementos importantes para a
discussão que pretendemos desenvolver. Um desses elementos é a “[...] recuperação de
tradições marginalizadas pela filosofia acadêmica (eurocêntrica), na América Latina”
(FORNET-BETANCOURT, 2004, p. 44). Assim, a Filosofia Intercultural reconhece o
histórico de exploração e etnocídio dos ameríndios e afro-americanos, constituindo-se como
perspectiva que abre o campo para a investigação do pensamento indígena.
Outro elemento que destacamos na Filosofia Intercultural é a constituição de relações
humanas em vista de pressupostos que sustentem formas justas de convivência entre os seres
humanos. A própria ideia de justiça, nesse contexto, se redimensiona, constituindo-se, a partir
da alteridade, em que há um apelo à dignidade do Outro.
Nesse sentido, a discussão acerca de formas justas de convivência evidencia,
primeiramente, as limitações e, ao mesmo tempo, a necessidade de práticas de tradução entre
culturas, relativizando a convicção de um entendimento pleno acerca do Outro.
Sobre isso Fornet-Betancourt postula que a interculturalidade:
É uma atitude que, por nos tirar de nossas seguranças teóricas e práticas, permite-
nos perceber o analfabetismo cultural do qual nos fazemos culpáveis quando
cremos que basta uma cultura, a “própria” para ler e interpretar o mundo.
(FORNET-BETANCOURT, 2004, p. 13).
Segundo Fornet-Betancourt, o pesquisador que busca conhecer a cosmologia e a
forma de agir de uma cultura, será sempre um tradutor consciente de que não basta uma
cultura para interpretar o mundo. Dessa forma, a interculturalidade propõe uma prática
antagônica à objetivação e dominação, caracterizando-se essencialmente pela legitimação do
Outro. Nessa perspectiva, o diferente não é ameaçador ou oprimido, mas é, justamente, um
parceiro que constitui o pensar que aproxima e une culturas.
Nessa postura diante do Outro, o pensamento não é estático, ele funda e constitui a
comunidade, está na ação cotidiana da vida prática, na busca da solução de problemas diários.
Assim, identidade e contexto estão intimamente ligados, formando, com outras instâncias, a
realidade dos coletivos e grupos humanos. Os sujeitos comunitários aparecem numa rede de
27
relações, impulsionados pela comunhão e consciência de seu pertencimento e ligação com a
realidade. Portanto, o sujeito promove a comunhão, não somente com a comunidade, mas com
o mundo da vida, onde se faz necessário à defesa de um sujeito não mais visto como
dominador da natureza, mas pertencente a esta natureza. Neste sentido, as culturas indígenas
têm muito a nos ensinar.
Dina Picotti, citada por Fornet-Betancourt (2004), descreve o pensamento intercultural
como um elemento essencial no impedimento da recolonização, impetrada na sociedade
globalizada, que é sempre a imposição de formas de ser, determinadas por interesses
hegemônicos. Em lugar da colonização surge “o intercâmbio de diferentes modos de vida”
(FORNET-BETANCOURT, 2004, p. 106).
Percebemos então, a partir dessas analises, que a perspectiva intercultural possibilita e
amplia o campo da discussão sobre o encontro entre indígenas e não-indígenas – foco desta
investigação - apontando elementos que delineiam pressupostos de uma relação justa,
antagônicos à postura colonizadora, pois esta é sempre a negação do Outro, que constitui
relações assimétricas legitimadas atualmente pela globalização, representando um novo
processo de colonização.
Sobretudo, a interculturalidade permite e pressupõe formas de agir próprias dos grupos
em relação, ou seja, não determina pressupostos para classificar a postura de uma
comunidade, mas sugere elementos que dão espaço à legitimação dos fundamentos éticos de
cada grupo. Então, é preciso traduzir, cuidadosamente, a expressão desses pressupostos que
fundamentam uma relação entre grupos e, a partir desses elementos, analisar o encontro entre
diferentes culturas. Dessa forma, a interculturalidade afirma a singularidade das culturas e a
necessidade de cuidado, para estabelecer alguns pressupostos universais, na definição do que
chamamos latino-americanos. Esses são elementos necessários para o diálogo entre os povos,
sobretudo os latino-americanos. A interculturalidade é assim:
[...] postura ou disposição pela qual o ser humano se capacita para, e se habitua a
viver “suas” referências identitárias em relação com os chamados “outros”, quer
dizer, compartindo-as em convivência com eles. Daí que se trata de uma atitude que
abre o ser humano e o impulsiona a um processo de reaprendizagem e recolocação
cultural e contextual (FORNET-BETANCOURT, 2004, p. 13).
28
A partir desta contextualização da constituição da Filosofia Intercultural no cenário
latino-americano, buscaremos pensar com os Guaranis suas formas de agir, sobretudo, na
relação e encontro com não-indígenas.
É relevante, desse modo, mencionar a importância da Filosofia contextualizada
intercultural, na reflexão sobre o próprio procedimento metodológico desta pesquisa, que se
faz a partir do encontro de diferentes. Nesse sentido, essa postura deve legitimar os
pressupostos apresentados anteriormente, sobretudo ao constituir o diálogo intercultural. Essa
forma de ação filosófica proposta por Fornet-Betancourt, afirma a necessidade de uma
abertura à crítica, ao confronto de ideias, superando a mera explicação, defensiva e rígida. O
autor nomeia essa postura de “estilo”, necessário para desenvolver uma nova Filosofia.
Dessa forma, a investigação intercultural busca, incansavelmente, o aprofundamento
do pensamento do outro e a exposição e o contraste com outros pontos de vista. Nesse
movimento hermenêutico, a universalidade surge do sentido das racionalidades e não ao
contrário. Assim, há, na Filosofia intercultural, uma mudança radical na compreensão da
universalização dos pressupostos filosóficos de comunidades distintas, pois a universalização
é constituída pelos universais de cada grupo pensante. Uma cultura descreve as condições de
possibilidade da ação humana, não somente de sua cultura, portanto, existe em cada cultura
pressupostos, o que implica em universais multiculturais. Pensar o próprio pensar, movimento
este definidor da filosofia ocidental, sempre teve um alicerce que legitimou ou não o
pensamento local: a universalidade monocultural. Nessa nova proposta de se fazer Filosofia, a
forma de ser do Ocidente, por exemplo, não é imposta ao nativo indígena, mas, ao contrário, o
investigador legitima a cosmologia indígena e busca pensar a partir dos pressupostos dessa
etnia, sem compreendê-la como menor e sem abrir mão de sua identidade. Assim, a
interculturalidade é oposta à colonização e, consequentemente, à imposição de uma forma de
ser única e superior. Aqui evidenciamos o desafio de estabelecer um diálogo intercultural, no
qual é fundamental abrir mão de velhos entendimentos, de formas estagnadas de conceber o
mundo e a vida humana. A convicção, baseada na ciência, não tem a mesma validade, por
exemplo, quando adentramos no pensamento de povos indígenas.
Fornet-Betancourt define a Filosofia contextualizada intercultural, no que tange ao
procedimento, como: “[...] confrontación discursiva con los factores todos que forman y
conforman el horizonte de vida y de pensamiento del tiempo histórico correspondiente.”
(FORNET-BETANCOURT, 2001, p. 56).
29
A crítica desenvolvida pela Filosofia intercultural está diretamente ligada ao histórico
do pensamento dos grupos que o produzem e a situação em um mundo globalizado e
neoliberal. A problematização, decorrente do confronto entre essas instâncias, visa constituir
possibilidades de um mundo que seja para todos, e supere efetivamente situações de
exploração e violência. A interculturalidade configura-se, nesse aspecto, como uma qualidade
indispensável da Filosofia.
A segunda qualidade, dessa Filosofia, é sua interdisciplinaridade, que é “o método de
consulta” (FORNET-BETANCOURT, 2001, p. 57) desses saberes plurais das tradições
latino-americanas que têm racionalidades distintas e conflitivas.
O autor propõe uma compreensão da interdisciplinaridade, a partir de um ponto de
vista problematizador, que repensa o entendimento e a função desta. Uma de suas definições
para interdisciplinaridade é a seguinte: “[...] oportunidad de acceso a una cualificación
epistemológica nueva para cada ciencia” (FORNET-BETANCOURT, 2001, p. 117). Há uma
necessidade de distinguir as racionalidades autônomas vigentes e reelaborar uma nova forma
de entendimento da interdisciplinaridade, abrindo possibilidades para o diálogo. Nesse
sentido, a interdisciplinaridade está intimamente ligada aos fundamentos da própria
interculturalidade, pois a questão central é estabelecer uma troca equânime e recíproca,
baseada na cooperação, entre as distintas racionalidades científicas autônomas.
Percebemos, no entendimento de Fornet-Betancourt sobre interdisciplinaridade, um
caráter irreverente, quando afirma a necessidade de superar o fechamento que caracterizou,
até o momento, as racionalidades disciplinares:
Nuestro esbozo de planteamiento tiende más bien a la visualización de la
interdisciplinariedad en el sentido de una tarea programática que nos desafía a la
con-vocación de las racionalidades disciplinares para que éstas – superando desde
si su “disciplinamiento” interno – se comprometan en la contro-versia
argumentativa [...] (Ibid., p. 118).
Essa perspectiva expressa, também, a necessidade de legitimação das diversas
racionalidades, ao propor a interdisciplinaridade como “[...] una oportunidad metodológico-
epstemológica incomparable para trabajar dialógicamente con otros saberes en el programa
del vivir [...]”(Ibid., p. 123), pois é essencialmente inclusiva.
Pensamos, a partir desses pressupostos, que a interdisciplinaridade, em nosso trabalho,
teve como uma função relevante, colaborar na reflexão a partir das controvérsias e
30
aproximações entre as próprias racionalidades envolvidas na investigação, sejam elas
disciplinas ou provenientes de uma cultura.
Assim, interessa-nos a análise acerca da Filosofia intercultural como “crítica
histórica”, que nos permite uma aproximação da cosmologia M‟byá-Guarani e sua música.
Entendemos que a Filosofia intercultural e sua compreensão sobre a ética dão aporte para
investigações que visam o entendimento da forma de outras etnias pensarem e agirem no
mundo da vida.
31
II INTERCULTURALIDADE E SUA DIMENSÃO ÉTICA COMO
UMA NOVA PERSPECTIVA EPISTEMOLÓGICA
A investigação, que propomos, situa-se no campo da Filosofia, levando em
consideração sua dimensão ética e estética, concepções estas que sofreram mudanças
significativas, ao longo de sua história. Estas duas dimensões e sua inter-relação tornam-se
importantes, porque a música M‟byá-Guarani carrega, em si, a força e a comunicação destes
dois elementos.
Mas de que maneira podemos pensar a relação entre Ética e Estética, e por que esta
questão torna-se importante para este trabalho?
A ética como ciência da conduta – definição clássica – também passou por
transformações expressivas. Inicialmente, é compreendida como orientadora da ação humana
nas relações em sociedade, que teria a capacidade de fornecer fundamentos capazes de valer,
em qualquer comunidade. Destaca-se aí seu caráter universal. Contudo, esse entendimento já
é relativizado, a partir da constatação da ambiguidade da noção de bem. Dividida entre o ideal
da essência humana e as causas da conduta do homem, a ética esbarra nas distintas formas de
proceder de cada grupo, dependendo das condições em que vive e de sua cultura. A busca de
determinados pressupostos universais para a ação humana é uma postura marcante, tanto na
Filosofia clássica ocidental, como no pensamento oriental. Deparamo-nos então, com a
problemática de como pensarmos uma ética universal, dentro de contextos culturais tão
diversos.
Da mesma forma, o debate sobre a questão estética, também apresenta, ao longo da
história, uma série de problemas.
32
Ao acompanharmos um pouco esta história, percebemos que no século XVIII, a
estética passa a ser entendida como a ciência da arte e do belo. Será com Immanuel Kant, no
entanto, que encontramos uma reflexão importante sobre a Estética e que, de alguma forma,
até hoje traz importantes implicações a este campo. Kant, em seu livro Crítica da Faculdade
do Juízo (1993), traz a reflexão sobre a importância de pensarmos o espectador muito mais do
que o artista ou a própria obra. Será desse modo, que defenderá a impossibilidade de fazermos
uma ciência sobre o Belo, mas de instaurarmos a critica, ou seja, as condições de
possibilidade para falarmos sobre o Belo. Assim, uma questão fundamental, que emerge do
pensamento kantiano, será a possibilidade universal, de todo ser humano, em sensibilizar-se
com o Belo. Kant não define o que é Belo, mas nos fala da universalidade em sentir e apreciar
o Belo.
Anteriormente, a arte e o belo eram compreendidas como instâncias distintas pelos
gregos antigos, e precisavam do aval da filosofia para se legitimarem. Mas é no século XVIII,
que as noções de belo e arte se vinculam pelo conceito de gosto. Hoje a Estética, enquanto um
conhecimento que buscou autonomia independe de teorias, é entendida como toda a
investigação, que tenha como objetos de estudo, a arte e o belo. (ABBAGNANO, 2000).
Defendemos que a arte, nos contextos latino-americanos, inclusive, toma uma importância
fundamental na composição de pressupostos essenciais da esfera ética, e que seus
entendimentos e importância são diversos e complexos.
É, dentro deste contexto, que os estudos sobre a ética intercultural fundamentarão a
reflexão sobre o possível diálogo intercultural e as condições justas do encontro entre
indígenas e não-indígenas tendo como elo a música.
2.1 Ética intercultural
Antes da apresentação de pressupostos específicos da ética intercultural,
descreveremos, brevemente, sua relação com a Filosofia intercultural, pois esta proposta
filosófica foi o ponto de partida para a investigação sobre ética intercultural, desenvolvida por
Ricardo Salas (2003).
A Filosofia intercultural, ao afirmar o atravessamento da interculturalidade no
pensamento latino-americano e apontar uma dívida deste pensamento com as questões
33
interculturais, estabelece, através de autores que compreendem a interculturalidade como
elemento fundamental, em seus trabalhos, uma nova postura que legitima outras
racionalidades. Portanto, a Filosofia intercultural, ao trazer a reflexão da interculturalidade
para seu campo de investigação, já adentra na esfera ética, inclusive apontando critérios para
o estabelecimento de relações mais justas no interior de nossa América. Nesse sentido a ética
intercultural, a partir do referencial teórico que nos propomos investigar, surge das indagações
sobre interculturalidade da Filosofia. Salas (2003) investiga a possibilidade de se estabelecer
critérios possíveis de universalização, no âmbito ético, postulando a importância da
hermenêutica crítica e de perspectivas pragmáticas para o estabelecimento de uma ética
intercultural.
Trataremos de descrever algumas considerações sobre a Ética Intercultural e a
Etnopesquisa, buscando destacar os pressupostos da Ética Intercultural e a forma de proceder,
sugerido pela Etnopesquisa. Destacamos que se trata de uma teoria filosófica e uma
abordagem metodológica, que, no entanto, têm uma íntima relação no que diz respeito aos
seus fundamentos. É desse modo, que não trataremos a metodologia como um instrumental
para atingirmos determinado resultado. A escolha metodológica tem, aqui, uma profunda
relação com a própria problemática desta investigação. Pensar a interculturalidade como outra
epistemologia nos exige, necessariamente, repensarmos a maneira como construímos o
conhecimento (sobre o Outro) no processo de elaboração deste conhecimento. Isso se dá
porque, quando de alguma forma, lidamos com o humano (e toda a natureza) as
consequências e implicações de nosso conhecimento podem ser irreversíveis.
Antes de seguirmos, faz-se necessário salientar que a interculturalidade, ao propor
uma nova perspectiva intersubjetiva, que seja simétrica e não permita a violência, postula uma
nova epistemologia, pois reconhece a existência de outras racionalidades e as entende como
legítimas. Essa nova forma de conhecer, que passa pelo reconhecimento, exige novas formas
de investigação que legitimem, por exemplo, a forma de atuar no mundo dos indígenas latino-
americanos. Os contextos complexos e por natureza conflitivos, suscitam uma nova postura
do pesquisador, bem como a inserção em áreas do conhecimento que colaborem para pensar
os saberes indígenas, considerando que a postura intercultural prioriza e parte dos
pressupostos de cada grupo social. Assim, não é a área de conhecimento que determina o
procedimento da investigação, mas sim a necessidade apontada por cada sujeito e grupo
investigado, que participa e constitui o diálogo intercultural, gerando inevitavelmente a
34
interdisciplinaridade. Esse pensar passará, indispensavelmente, pela tradução e terá de
alguma maneira, a marca das identidades do próprio pesquisador.
Assim, a própria interculturalidade, reconhecendo que não é possível uma cultura
apenas dar conta de descrever outra cultura, reconhece também sua limitação, na busca de
desenvolver uma leitura fidedigna de outras racionalidades, mesmo imbuída de saberes de
outras áreas. No entanto, este reconhecimento é o que faz da interculturalidade um saber que
está em constante construção, não apresentando uma leitura última e definitiva sobre uma
cultura.
Nossa análise, sobre a música M‟byá-Guarani e suas implicações para pensarmos os
diálogos interculturais em sua dimensão ética e estética terá, como um de seus elementos, essa
postura de reconhecer as limitações de nossas considerações, por estarmos diante de um
pensamento que tem uma diferença epistemológica marcante: a cultura oral. Dessa forma,
nossa investigação exige uma análise atenta e crítica das afirmações acerca da música Guarani
desenvolvidas até então. Confrontaremos tais considerações com as descrições de nosso
interlocutor visando evidenciar pressupostos que escapam a uma analise monocultural e
consequentemente resultam em estudos que se aproximam da perspectiva ameríndia. Esse
procedimento tem a intenção de dar voz a esses indígenas e desenvolver uma postura de
abertura para escutá-los. Mas não qualquer escuta e sim uma abertura que nos provoque olhar
de maneira diversa para a própria pesquisa.
Contudo, nos perguntamos como realizar essa aproximação no âmbito do pensar e da
Filosofia? Como provocar essa abertura? Fornet-Betancourt sustenta que é preciso desconfiar
de nossa instalação e relação com a Filosofia. É preciso, assim, superar a convicção de que os
fundamentos da Filosofia que conhecemos e tratamos em nossos estudos escape da
contingência. A Filosofia é fruto de um pensamento localizado, que surge em uma região, e
por isso, traz perspectivas a partir de um contexto, mas a Filosofia latino-americana - mesmo
sendo contextualizada - desprezou outras racionalidades. Apresentamos, mais
detalhadamente, este postulado de Fornet-Betancourt no capítulo anterior.
O autor afirma que a Filosofia intercultural reconhece a necessidade de dialogo entre
as culturas em vista da legitimação de pensamentos nativos, os quais constituem nossa
América.
Portanto, nossa pesquisa é constituída, sobretudo, pelo desafio de traçar suas
considerações, a partir do contexto histórico dos M‟byá-Guarani, o que exige aventurar-se
35
pela insegurança, pelo novo, pelo Outro, para que assim, as perspectivas envolvidas se
articulem. Sobre esse lugar do filósofo, Fornet-Betancourt afirma,
En efecto, pues es en ese nuevo horizonte de horizontes donde aprendemos a
relativizar nuestra instalacíon en la filosofía y donde nos empezamos a relacionar
con ella, no como con un todo absoluto, sino más bien desde la percepción de la
misma como una “regíon”(FORNET-BETANCOURT, 2001, p.69).
É desse modo, que percebemos que não há como falar de interculturalidade sem nos
remetermos à ética. A ética intercultural, aqui pensada, tem como principal referência os
estudos de Ricardo Salas Astrain (2003 e 2007), proposta constituída desde a Filosofia
Intercultural, que busca olhar para uma cultura a partir dela própria, sem imposições. Por isso,
não pressupõe um encontro de iguais, mas o reconhecimento da dignidade do outro a partir da
diferença. Salas (2007, p.26,27) define interculturalidade como:
[...] una noción indefinible desde los marcos de la perspectiva intercultural, lo que
implica romper con los modos habituales de las ciencias, de las lógicas disciplinarias
y de definiciones teóricas. Ella es mas bien una categoría ético-política inherente a
esta época de globalización, época en que tomamos cada vez mayor conciencia de
vivir e convivir „entre‟ tiempos y espacios que son proprios e ajenos, pero que
requiere generar los caminos de reconocimiento para establecer unos caminos
comunes, si se quiere evitar caer en despeñadero del fundamentalismo y del cierre
cultural, que conduce no solo a la exclusión del outro (xenofobia), sino a veces a la
eliminación del outro, bajo la forma colectiva de etnocidio o individual del
xenocidio.
Uma postura ou ação intercultural não provoca a perda das identidades culturais, ao
contrário, busca repensar, recontextualizar e ressituar, permanentemente, essas identidades,
tendo, como movimento simultâneo, argumentar e reconstruir valores e normas, que, segundo
Salas (2007), podem gerar uma ética universal. A aproximação dessa universalidade dar-se-ia
a partir da argumentação e reconstrução de valores de cada cultura. Esses valores não serão
em si universais, mas sim os critérios para atingi-los, que pressupõem a necessidade de
realizar justiça e reconhecimento do Outro, como portador de uma dignidade inviolável.
A ética intercultural apresenta o diálogo intercultural - primeiro aspecto relevante que
destacamos - como nova forma de relação entre comunidades. Essas relações serão dialógicas
e nos exigem pensar a própria forma como elaboramos nossas reflexões, organizamos e
formamos conceitos, ou seja, pensar a metodologia do encontro intercultural é nos abrirmos
para novas maneiras de compreender o mundo, o Outro e nós mesmos. Salas (2003, p.27)
denomina este movimento do pensar (que não pode estar descolado do agir) de um “proceder
36
utópico” no próprio método investigativo, que deve reconhecer os discursos narrativos
internos (destas diferentes comunidades) e recuperar o ponto de vista argumentativo expressos
nessas visões de mundo.
Um segundo elemento relevante na proposta de Salas (2003) é o conflito. O conflito é
inerente às sociedades humanas, sendo a conflitividade um fenômeno dinâmico, constituído
por acordos e desacordos, encontros e desencontros em diversos níveis e um orientador da
própria ética, pois é, através dele, que se podem gerar acordos e possibilidades de construção
comunitária. A ética intercultural entende que o dinamismo e a reconstrução dos valores que
orientam a ação deve ser uma marca da compreensão sobre a ética. É preciso, pois, conviver
com a mudança, com a releitura das formas de convívio humano, a partir das atividades
práticas de cada grupo social. Nesse sentido, a ética intercultural opõe-se ao etnocentrismo e a
uma racionalidade monocultural, pois propõe o reconhecimento de outras lógicas. Ao referir-
se à Filosofia contextual e a um projeto de emancipação e libertação, Salas afirma o seguinte:
“[...] exigem o reconhecimento da especificidade dos processos míticos, culturais, narrativos e
discursivos que caracterizam o ethos ou os ethos desta América indígena, africana e mestiça”
(SALAS, 2010, p. 96). Certamente, esses processos aparecerão aleatoriamente, conforme cada
contexto, e resultarão da diversidade latino-americana, contudo o reconhecimento dessas
especificidades será um pressuposto universal, uma forma de proceder que compõe a ética
intercultural.
Conforme destacamos anteriormente, o diálogo intercultural é fundamental no estudo
de Salas. Para compreendermos as possibilidades de praticar este diálogo, é necessário,
primeiramente, tomarmos conhecimento de seus cinco critérios:
Primeiro:
“[...] a regulamentação de todo discurso intercultural exige critérios reguladores derivados, ao
mesmo tempo, de princípios formais e abstratos e das características do próprio contexto, pois a
universalidade ética surge de uma dupla fonte” (SALAS. Ibid. p. 144).
Segundo:
37
[...] aceitar que a comunicação intercultural é sempre um produto inconstante da
inter-conexão de contextos específicos. Eles definem as relações estruturais dos
interlocutores, de modo que, para poder gerar uma verdadeira reciprocidade
discursiva, é necessário partir das formas argumentativas existentes historicamente
de fato, e não dissolvê-las em modelo abstrato, para conseguir um nível comum de
racionalidade discursiva (SALAS. Ibid. p. 145).
Terceiro:
“[...] todo diálogo intercultural deve partir dos interesses dos diversos sujeitos e comunidade
em discrepância em uma escala histórica, de modo a situar sempre os interesses divergentes de todos
os implicados: passados, atuais e potenciais” (SALAS. Ibid. p. 145).
Quarto:
“[...] toda comunicação contextual precisa ser analisada a partir da brecha entre todos os
conflitos existentes e os que podem ser resolvidos entre os sujeitos e comunidades, o que implica
definir como prioritários aqueles conflitos que podem ser resolvidos” (SALAS. Ibid. p. 146).
Quinto:
[...] nega à pretensão intercultural a possibilidade de recorrer a um tipo de resposta
que repudia a compreensão mutua. Assim, o critério regulador decorrente afirma
que, no processo da definição das normas contextuais, fica descartado qualquer
recurso à violência. Isso exige, de todos os interlocutores, um rechaço à violência
para manter suas posições de poder (SALAS. Ibid. p. 147).
O diálogo intercultural surge na convivência entre diferentes que reconhecem a forma
de atuação do Outro e buscam compartilhar suas ações, relevando o histórico das
comunidades envolvidas. O pensar, nesse sentido, está imbricado com a ação histórica, com
as formas de um povo resolver seus conflitos e constituir sua realização no mundo. É desse
modo, que conhecer perpassa, necessariamente, um re-conhecer, ou seja, todo e qualquer
conhecimento sobre Outro deve emergir de um diálogo de re-conhecimento. Nessa
perspectiva, o diálogo é permanente recriação, não é possível determiná-lo a priori, ele é fruto
da relação que prioriza a justiça recíproca.
38
O encontro intercultural, ao compartilhar informações e formas de proceder no mundo,
não pressupõe abrir mão das identidades envolvidas, no entanto, há a inclusão recíproca de
aspectos culturais das cosmologias que dialogam, pois a própria cultura é dinâmica. Essa
transformação pressupõe a mutua compreensão, e dessa forma, a ausência de imposições ou
opressão.
Salas busca as condições do diálogo intercultural, expondo, minuciosamente,
elementos que estruturam formas de proceder, nas esferas pragmática e hermenêutica.
Postula, sobretudo, através dessas duas instâncias, a possibilidade de constituir o diálogo
intercultural. Percebemos em sua exposição, inclusive, a necessidade de estabelecer tal
relação de alteridade, que está intimamente imbricada com o histórico de exploração dos
povos latino-americanos. Sua análise, ao reconhecer o conflito como parte do
desenvolvimento de uma cultura, defende a resolução destes, a partir de acordos que
priorizam a viabilidade de resolvê-los. Essa resolução é essencial para uma “ética comunitária
e axiológica” (SALAS, 2010, p. 96).
As condições de um diálogo intercultural, expostas anteriormente, estão marcadas pela
radicalidade, característica da Filosofia, ou seja, definem, de forma lúcida, elementos que
estruturam essa postura, rejeitam uma leitura que não contempla a raiz da ética e que não faz a
crítica aos procedimentos que, historicamente, vêm causando prejuízos aos latino-americanos.
Assim, Salas afirma a necessidade de reconstituição do sentido do discurso moral, a resolução
de desacordos, de forma justa, e a preservação das igualdades.
Os fundamentos do diálogo intercultural postulados por Fornet-Betancourt e Salas,
orientarão nossa análise das entrevistas com os M‟byá-Guarani, bem como, tada nossa
atuação no campo empírico da pesquisa, pois seria contraditório analisarmos o discurso de
nossos interlocutores, a partir de pressupostos da filosofia e ética intercultural, e atuarmos a
partir de uma ótica monocultural.
Foi, desde essas questões sobre ética e Filosofia intercultural, que percebemos a
importância em pensarmos a metodologia de pesquisa.
2.2 A Etnopesquisa: uma metodologia tecida pela interculturalidade
39
Esta pesquisa tem, como abordagem metodológica, a Etnopesquisa. Essa não se
constitui numa metodologia científica, determinada ou fechada em si mesma. Ao contrário, os
métodos são aplicados, conforme a necessidade de cada situação social. Esta proposta busca
re-significar o rigor científico, ao agregar uma dialética dialógica ao processo investigativo,
de acordo com as evidências e necessidades percebidas pela escuta sensível. Essa, portanto, é
um elemento essencial para alcançar um rigor fecundo nessa análise.
Referindo-se à compreensão dos etnométodos, Macedo afirma que: “[...] a
etnometodologia é uma teoria do social que, ao concentrar-se no interesse em compreender
como a ordem social se realiza, mediante as ações cotidianas, consubstanciou-se numa teoria
dos etnométodos” (MACEDO, 2006, p. 68).
O autor crítica o uso de um método como um “ato simplório de dominar de forma não
reflexiva instrumentos de pesquisa” (Id. Ibid., p. 68), pois a Etnopesquisa enfatiza a
necessidade de reflexão constante sobre o contexto social, que é constituído, cotidianamente,
no plano intersubjetivo, ou seja, na relação entre os autores sociais e o pesquisador. É nessa
compreensão, que a presente pesquisa foi se aproximando dos sujeitos, na busca de locutores
e interlocutores da cultura Guarani. Salientamos, neste momento, a importância de uma
escuta sensível, que passe pela alteridade na constituição da ação do pesquisador, que é
sempre um intérprete. Macedo compreende a interpretação, a partir da perspectiva
fenomenológica e hermenêutica, em que os fatos, as relações e o campo social apresentam
elementos que exigem uma constante ressignificação. É desse modo, que a fenomenologia
diferencia-se de um cientificismo: “De fato, na fenomenologia, a compreensão passa a ser
definida como um mundo de conhecimento predominantemente interpretativo, por oposição
ao modo cientificista, que é o da explicação”. (MACEDO, 2000, p. 14)
A Etnopesquisa busca compreender e explicitar a realidade humana como é vivida
pelos autores sociais. A partir do diálogo, as instâncias teóricas e empíricas vitalizam e
vivificam o conhecimento, que é, predominantemente, interpretativo. Este processo foi
atentamente observado, no decorrer desta investigação, bem como o próprio método, que
pode reconfigurar-se. Essa abertura ao dinamismo e à transformação da pesquisa agrega
atenção ao inesperado.
A hermenêutica crítica é outro pilar importante para a Etnopesquisa, pois possibilita a
aproximação com os sujeitos pesquisados, que se tornam parceiros na compreensão e
transformação das realidades.
40
[...] o círculo hermenêutico nos sugere que toda compreensão do mundo implica na
compreensão da existência e, reciprocamente (Heidegger), essa antecipação é a
pré-compreensão de que, a partir desse entendimento, se poderá desenvolver uma
explicitação compreensiva (MACEDO, 2000, p. 13).
Para Macedo, a hermenêutica também é um elemento fundamental, e surge como um
“esforço interpretativo e compreensivo sobre as situações de vida em geral” (Id. Ibid., p. 13).
Trazemos esta perspectiva metodológica, por compreendermos que apresenta caminhos que
melhor nos conduzem ao próprio entendimento da Interculturalidade. Para tanto,
precisávamos de uma metodologia que não se apresentasse apenas como um instrumento
investigativo, mas que estivesse em profunda consonância com nossa fundamentação teórica.
É desse modo, que buscamos, na etnopesquisa, o desenvolvimento da “escuta sensível”
necessária a todo pesquisador que busca, não apenas compreender uma realidade, mas
fundamentalmente, dialogar com esta realidade.
A observação participante foi um dos procedimentos centrais de nosso estudo. Mais do
que um instrumento de coleta de dados, essa observação caracteriza a própria pesquisa
participante “tal o grau de autonomia e importância que assume em relação aos recursos de
investigação de inspiração qualitativa” (MACEDO, 2006, p. 96). Por isso, interessam-nos a
proximidade e a permanência no campo de pesquisa que a observação participante possibilita.
Outro procedimento foi a entrevista com aquele que se definiu como o principal
interlocutor desta investigação, o cacique Guarani José Cirilo Morinico. Devido à riqueza de
dados, proveniente de sua historia de vida e de sua representação política, como uma
importante liderança, a pesquisa foi também se apresentando com um Estudo de Caso.
A denominação [estudo de caso] refere-se evidentemente ao estudo de um caso,
talvez o de uma pessoa, mas também o de um grupo, de uma comunidade, de um
meio, ou então fará referência a um acontecimento especial [...] (LAVILLE, C. E
DIONNE, J. 1999 p. 155).
Percebemos, desse modo, a importância de trazermos múltiplas possibilidades
metodológicas quando se trabalha com uma pesquisa no campo social. Utilizamos, para tanto,
de gravador para registrar depoimentos - estes fizeram parte do corpo do texto de nossa
pesquisa - bem como diário de campo e câmera fotográfica.
41
Um fator relevante, para o desenvolvimento dessa pesquisa, foi o nosso contato prévio
com indígenas das três aldeias Guarani. Isso proporcionou uma inserção, no campo mais
aprofundado, pois existia, no convívio, uma reciprocidade e um grau de intimidade
previamente adquiridos, o que facilitou o desenvolvimento e aprofundamento do estudo.
É importante destacarmos que nossos interlocutores centrais (os M‟byá), além de
serem possuidores de uma cotidianidade distinta do dia-a-dia dos não-indígenas, atualmente,
ressignificam sua atuação diária a partir de uma vida em constante contato com centros
urbanos. Esse fato exige a observação detalhada das novas formas de organização e relação
desses indígenas com uma sociedade globalizada. É dessa forma, que as analises dos dados
buscaram, na Filosofia Intercultural, nosso principal aporte teórico. O debate sobre a
interculturalidade na Filosofia surge num contexto globalizado que influencia,
significativamente, a vida prática de grupos sociais. A esse respeito Salas (2007) afirma que
os pensadores latino-americanos elencam suas críticas a partir de uma relação de poder
assimétrica entre os povos latino-americanos e governos e instituições internacionais na
globalização neoliberal. Esses estudos ofereceram aporte para problematizarmos
ressignificações e mudanças geradas num contexto social indígena, permeado pela lógica
capitalista-neoliberal da globalização. Compreendemos, também, que as concepções
fundantes da Etnopesquisa corroboraram com princípios da Filosofia Intercultural, sobretudo
ao postularem a necessidade de proximidade e de reconhecimento com o Outro, diferente,
imerso em uma cultura distinta. Esse entendimento torna-se indispensável para o
desenvolvimento de nosso estudo e para repensarmos outras possibilidades metodológicas
quando se trabalha as questões interculturais.
Na música M‟byá-Guarani especificamente – essa manifestação não é a única, pois
temos os grafismos em cestos, artesanato e outras manifestações – percebemos a relação
íntima entre estética e ética, a partir da noção de mba‟epú (música), que revela formas de agir
diante de situações cotidianas, originadas no contato dos Guarani com a mundo espiritual.
Esses pressupostos fundamentam a ação desses ameríndios, na esfera social, divina e com a
natureza, possibilitando o convívio harmônico e a teko (vida). A música é a geradora de vida,
portanto, da não-violência, produzindo assim sentimentos de solidariedade e união que
afirmam e fortalecem os costumes que devem ser preservados. Aprofundaremos nossa
investigação e, posteriores considerações sobre a relação entre mba‟epú (música) e aete
(ética), no quarto capítulo.
42
III ETNOMUSICOLOGIA: OS M’BYÁ-GUARANI E SUA MÚSICA
Neste capítulo, descreveremos, brevemente, algumas informações, que pensamos ser
necessárias, para apresentar a cultura M‟byá e sua música. Não é nossa intenção
desenvolvermos uma explanação completa dessa cultura, mas pontuar alguns aspectos que
colaboraram com nossa investigação, essencialmente, no que tange à música. Tomaremos
como referência as obras Através do mbaraka: música, dança e xamanismo guarani, de Deise
Montardo e Yvý Poty, Yva á/Flores e Frutos da Terra: cantos e danças tradicionais M‟byá-
Guarani, de Maria Elizabeth Lucas e Marília Stein. Iniciaremos com informações gerais dos
M‟byá-Guarani, passando pelos Guarani, que são formados por mais três grupos, Kaiová,
Nhandeva e Chiriguano, para, posteriormente, localizarmos nosso campo de pesquisa e suas
características, a aldeia Anhetenguá. Adiante, faremos algumas considerações sobre a música
M‟byá a partir da etnomusicologia – representada pelas duas obras que citamos anteriormente
– pois essa área do conhecimento colaborou de forma relevante com nosso trabalho, pela
necessidade que tínhamos em obter um conhecimento prévio da sociabilidade, cosmologia e
da música desses Guarani.
3.1 Localização e população M’byá-Guarani
Os Guarani têm provável origem na Amazônia, há cerca de 3.000 anos e constituem
uma das maiores populações indígenas do Brasil, atualmente, com aproximadamente 34.000
43
indivíduos distribuídos nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo,
Rio de Janeiro, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul. No Rio Grande do Sul, vivem cerca de
2.000 desses indígenas, organizados em mais de vinte aldeias; a presença desses indígenas, no
estado, é de aproximadamente dois mil anos.
A profundidade histórica da presença guarani no território atualmente reconhecido
como Estado do Rio Grande do Sul remonta há dois mil anos. A literatura
arqueológica relaciona estas populações pré-históricas como portadoras de uma
tradição ceramista denominada Tupiguarani. Em suas migrações pré-históricas,
estas populações originárias dos limites da Amazônia teriam atingido o Rio Grande
do Sul, via rios Paraná e Uruguai, colonizando todo o território propício (partes
baixas dos vales, matas subtropicais, evitando as altitudes onde a floresta mudaria
de características e os campos baixos) e atingindo o litoral atlântico. Daí, teriam
seguido rumo ao norte, via orla marítima, alcançando tardiamente o litoral
catarinense (SILVA, 2008, p. 28).
Os M‟byá são um subgrupo dos Guarani e, na Grande Porto Alegre, encontramos
quatro aldeias majoritariamente M‟byá: Tekoá Anhetenguá (Aldeia Verdadeira), na Lomba do
Pinheiro, Tekoá Pindó Mirim (Aldeia da Pequena Palmeira), em Itapuã, Tekoá Jataitý (Aldeia
do Butiazeiro), no Cantagalo e Tekoá Nhundy (Aldeia dos Campos Abertos), na Estiva
(LUCAS, STEIN, 2009, p. 21, 22).
A mobilidade é uma característica marcante dos M‟byá. Caminhar em busca de uma
convivência comunitária harmônica, em outra tekoá, é uma atividade frequente na vida desses
indígenas. “Os Guarani circulam intensamente entre as diferentes aldeias, onde vivem os seus
afins, renovando laços de parentesco e alianças, colaborando nas tarefas cotidianas e trocando
saberes e práticas no plano ritual e estético” (LUCAS, STEIN, 2009, p. 21, 22).
Cirilo afirmou que “O índio caminha por se sentir feliz, porque antigamente tinha
acesso livre” (CIRILO, Entrevista, 30.07. 2011). Essa afirmação sugere que o caminhar
relaciona-se, também, com a liberdade e é uma prática que se encontra ameaçada pela
imposição da propriedade privada. Então, o indígena e sua família podem optar pela busca de
outra tekoá para viver. Caminhar é um costume Guarani que está intimamente ligado à
cosmologia e religiosidade,
A expressão guarani Nhandé rekó pode ser traduzida por nosso costume. Nele, têm
fundamental importância as Belas Palavras, expressas nos mitos e nos cantos
sagrados, o sistema xamânico-cosmológico, o aguyje estado de totalidade acabada,
de perfeição espiritual-religiosa, que é buscado constantemente, e o tapejá o ser
caminhante guarani que procura na Terra sem Mal, sob a liderança dos xamãs e
44
durante a vida terrena, o reencontro com a divindade e a imortalidade perdidas
(SILVA, 2008, p. 27).
Mas algumas vezes, o motivo desse “caminhar” é um conflito sem uma solução que
configure a continuação da convivência equilibrada. Então, uma família pode buscar outra
aldeia para morar. Sobre esse tipo de conflito entre os Guarani participantes do projeto, que
constituiu o livro com CD, o qual citamos anteriormente, o Cirilo relembrou a produção de
CDs e fez as seguintes considerações:
Naquele momento a gente nem pensava no lucro, a gente pensou em divulgar, uma
forma de ver algumas coisas. Tipo assim, já que não mostramos tudo, mostramos
um pedacinho né. Mas tu não pode virá. Por que estou falando isso? Porque cria
uma briga dentro dos guarani. Por isso que hoje o Marcelo não ficou e o Vherá
Poty saiu, pela briga. (CIRILO, Entrevista, 24.09.2011).
O comentário de nosso interlocutor expressa um problema frequente nas aldeias
M‟byá que visitei: a discordância entre aqueles que defendem a conservação de elementos
relevantes da música, como forma de proteção da ação dos não-indígenas, e a divulgação que
visa uma melhor compreensão e respeito pela cultura desses indígenas. Normalmente, os mais
jovens – existem exceções – defendem a última postura e, os mais velhos, sustentam a
primeira.
A Tekoá Anhetenguá foi a aldeia que mais frequentamos e onde desenvolvemos as
entrevistas e encaminhamos atividades, em parceria com o Cirilo, nosso interlocutor. Nessa
pequena aldeia (10 equitares) moram, atualmente, 20 famílias e um total de 125 indígenas. A
aldeia está num local conhecido como, Beco dos Mendonças, na parada 22 da Lomba do
Pinheiro, um bairro de classe média baixa, com infra-estrutura bastante precária e um
comércio em desenvolvimento. Essa localização facilita a relação dos M‟byá com os não-
indígenas, sobretudo nas atividades de manutenção de suas necessidades essenciais, como
alimentação. A aldeia tem 10 casas, de madeira de eucalipto, alvenaria e de barro com bambu
(taipa). No momento enfrenta problemas com habitação, pois, nos últimos dois anos, o
número de moradores aumentou significativamente.
45
Casa tradicional do Tatu.
Além dessas casas, a aldeia tem um centro médico e odontológico, que funciona,
semanalmente, oferecendo à comunidade indígena atendimento desenvolvido por não-
indígenas, uma casa tradicional (casa do tatu) construída há aproximadamente seis anos, com
verba pública de um projeto estadual, que visava constituir um ponto de referência da cultura
M‟byá-Guarani. Mas atualmente, a casa é utilizada pelo Cirilo e sua família - resultado da
falta de casas na aldeia - e a opý (casa tradicional de rezas). Recentemente, foi construído um
viveiro de plantas nativas (Poarendá), com composteira e uma boa estrutura. A ação,
acompanhada por um agrônomo, Ricardo Shimith, do IECAM (Instituto de Estudos Culturais
e Ambientais), tem como meta, reflorestar algumas aldeias Guarani, com plantas nativas e
conhecidas desses indígenas. Essa aldeia recebe visita de indígenas de outros estados do
Brasil, da Argentina e do Uruguai e Paraguai.
46
Posto médico onde gravamos algumas entrevistas.
A origem dessa aldeia é descrita por Silva (2008, p. 45):
A T. I. Lomba do Pinheiro surgiu à margem do processo fundiário executado pelo
Ministério da Justiça ou pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), já que ela foi
adquirida enquanto propriedade pela antiga Associação Nacional de Apoio ao
Índio (ANAI), que surgiu em Porto Alegre no início da década de 1970. A ANAI
tinha um escritório no centro da cidade e este terreno na Lomba do Pinheiro,
pensado como suporte estratégico para abrigar os índios e as famílias indígenas em
deslocamento por Porto Alegre, onde se concentram diversos serviços básicos
também procurados pelos Mbyá. Com a extinção da ANAÍ, seu patrimônio foi doado
aos indígenas e coube aos Mbyá ficarem com a área na Lomba do Pinheiro para
nela fazerem infra-estrutura de suporte ao trânsito dos que circulam por Porto
Alegre. Os Mbyá consolidaram a fundação de uma aldeia no local a partir da
década de 1980, que hoje se apresenta como modelo de comportamento tradicional
para as demais comunidades Mbyá.
47
Poarendá (viveiro de plantas nativas).
A Tekoá Anhetenguá (Aldeia Verdadeira) constituiu o contexto, no qual nossa pesquisa se
desenvolveu, bem como, nossas reflexões fundamentais sobre a relação entre música e ética M‟byá-
Guarani. Este local tornou-se o centro das vivências, que proporcionaram a aproximação e
convivência com a cultura Guarani.
3.2 A música Guarani a partir da Etnomusicologia
A Etnomusicologia é responsável por estudos relevantes sobre a música ameríndia, no
Brasil, e mantém núcleos de pesquisa com estudos significativos, em oito estados brasileiros
(Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Bahia, Pernambuco e
Paraiba). Embora esteja em fase de consolidação, no país, colabora, significativamente, nos
estudos sobre a música ameríndia (BASTOS, 2004).
48
Na cosmologia dos Guarani, a música expressa sua espiritualidade e garante a vida na
terra através de seus rituais xamanísticos, possibilitando o contato com o conhecimento
ancestral que dá disposição aos indígenas. Ela é divina, é dada aos Guarani por merecimento,
não é composta por eles, os M‟byá são receptores dessa graça dada pelos Deuses, que pode
ser revelada em sonhos, com seus ancestrais. Sobre esse entendimento Montardo (2002), em
pesquisa desenvolvida com os Guarani Kaiová, afirma:
Tratar da composição da música guarani aponta diretamente para a dialogia, pois
os Guarani não se consideram donos dos cantos. Mesmo os cantos individuais
recebidos especialmente por cada um em sonhos são recebidos por merecimento,
como um presente, não são compostos pela pessoa. Ela escuta. A noção é de que a
música já existe em outro lugar (MONTARDO, 2002, p. 45).
Na mesma obra, encontramos uma definição da música Guarani,
A música na cultura Guarani é a linguagem privilegiada nas tranformações afetivas
que viram os lados da moeda da raiva e do amor, do quente e do frio e da tristeza e
da alegria. Ao cantar e “dançar a guerra” nesses rituais os Guarani estão
aperfeiçoando seus corpos em agilidade e defesa, embelezando-se, alegrando-se e,
consequentemente fortalecendo-se, ao mesmo tempo em que agradam os demiurgos
objetivando a continuidade da manutenção das condições de vida saudável na
Terra. A música, tanto no mito quanto no ritual, proporciona transformações,
ativação dos atributos de resplandecência e radiância, deslocamentos e
comunicação com divindades e seres espirituais. Os cantos e as danças nos rituais
diários atuam justamente nesse sentido, trazem a presença e a interação aos corpos
e, com isso a, alegria a saúde e a beleza (MONTARDO, 2002, p. 261).
Além dessas duas ideias, que marcam a concepção de criação musical, é preciso
considerar que o próprio conceito de mba‟epú nhendú é aproximado, designando “sonoridade
musical”, embora seja concordância, nos estudos citados, que noção de mba‟epú nhendú
ultrapassa a descrição de sonoridade musical. O próprio termo mba‟epú (que trataremos de
verificar demoradamente adiante) é composto por uma série de noções complexas e inter-
relacionadas que revelam a profunda conexão dos Guarani com as divindades e a terra. No
entanto, um aspecto é evidente: “[...] práticas sociais envolvendo sons e movimentos
corporais são fundantes da sociocosmologia M‟byá-Guarani, na definição de sua identidade e
no estabelecimento das relações entre os M‟byá e suas divindades”(LUCAS, STEIN, 2009, p.
21, 22).
A música, na cosmologia Guarani, configura-se em uma forma de conhecer o mundo
através da sonoridade e corporalidade, constituindo práticas essenciais para o
49
desenvolvimento e preservação da vida, nas aldeias e na terra. Os orientadores dessa esfera
artística são os Karaí (líder espiritual homem) e Kunhã Karaí (líder espiritual mulher) que
têm a habilidade de reconhecer e tratar com as instâncias divinas e espirituais. Sobre a
colocação da música, no cotidiano desses indígenas, pode - se afirmar que:
[...] o universo sonoro e gestual M‟byá expressa formas próprias de conceber o
mundo pelo domínio cosmo-sônico: sons, cantos, danças, e instrumentos musicais
perpassam os mitos, participam da construção dos corpos e possibilitam a
transformação das pessoas – de tristes em alegres, de fracas em fortes, de pesadas
em leves e ágeis (LUCAS, STEIN, 2009, p.29).
Assim, a música está intimamente ligada à sociabilidade e à teko (vida). Ela é a
principal responsável pela manutenção dessa energia vital (teko) e é praticada,
essencialmente, na opý (casa de rezas), com a orientação dos karaí (líderes espirituais).
Foi, a partir desses pressupostos, que o projeto sobre os cantos e danças tradicionais
dos M‟byá-Guarani foi desenvolvido, em 2009, com indígenas de três grupos corais e
colaboradores da aldeia da Estiva, em parceria com o Grupo de Estudos Musicais da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (GEM/UFRGS). Esse trabalho gerou um
encontro entre músicos (indígenas e não-indígenas), que resultou no livro acompanhado de
CD Yvý Poty, Yva‟á (Flores e Frutos da Terra). A iniciativa foi marcada pela escuta e
discussão do grupo da Universidade com os indígenas e cada etapa priorizou essas duas
dimensões. Tratando da escolha do repertório e do desenvolvimento da gravação e livro, as
autoras afirmam que,
[...] todas as decisões foram minuciosamente delineadas em conjunto. As traduções
culturais (como os coordenadores dos grupos entendem essa processo) dos textos
das canções em M‟byá-Guarani para o português, bem como os comentários sobre
a cosmo-sônica Guarani, os textos e seus contextos de performance, são outras
dimensões fundamentais desse processo dialógico de registro musical, coorientadas
pelos membros indígenas do projeto” (LUCAS, STEIN, 2009, p.27).
O projeto iniciou com a solicitação dos indígenas e foi constituído a partir do diálogo
entre músicos indígenas e não-indígenas. Nesse aspecto, nossa investigação assemelha-se a
essa proposta quando busca, a partir da música, desenvolver o diálogo intercultural em vista
de re-conhecer a sócio-cosmologia Guarani. Sobre a legitimidade da música, enquanto clara
possibilidade de compreensão do universo Guarani, Montardo descreve,
50
O Sol, ou o dono do Sol, o herói criador, é responsável por manter a sonoridade do
mundo durante o dia. Durante a noite esta responsabilidade é dos homens. Ao ter
contato com os desenhos de Silvano Flores, kaiová, filho de dona Adúlia Mendes,
nos quais o Sol e a Lua aparecem sempre portando o mbaraka (chocalho) e o
takuapu (bastão de ritmo), percebi que estava diante de algo importante para este
estudo. Entre os kaiová ouvi uma explicação para o porquê de os rituais serem
noturnos. O Sol, o Pa‟i Kuara, é um xamã, e ele canta e toca seus instrumentos
durante o dia. Durante a noite os homens são responsáveis por tocar, cantar e
dançar, o que têm que fazer para manter o mundo, a vida na Terra. Caso parem de
fazê-lo, o Sol cessará de iluminar, e a Terra que é um mbeju-guasu (beiju grande),
com a forma de um prato, virará de ponta-cabeça. Diante de uma assertiva como
esta, é evidente que penetrar no universo guarani pelo viés da música ou da dança é
uma possibilidade fértil para o seu entendimento (MONTARDO, 2002, p. 11).
Essa concepção de música, como fundamental na cosmologia e sociabilidade
ameríndia, não é uma novidade, pois encontramos descrições sobre a íntima relação dessas
esferas, em trabalhos de Antropologia e Etnomusicologia, contudo, na Filosofia Intercultural
ainda é rara essa investigação. Assim, a contribuição da Etnomusicologia foi relevante para
compreendermos fatores essenciais que constituem a música Guarani. A partir dessa
compreensão inicial, que colaborou com nossa curiosidade em investigar a música indígena,
pensamos a relação da interculturalidade com a arte e, o quanto seria instigante, refletir os
diálogos interculturais a partir da música.
O foco do projeto do GEM não foi o mesmo que o nosso, no entanto, defendemos a
ideia de que, não é possível analisar a música Guarani, sem compreender o universo desses
indígenas, e vice versa. Isso supõe que o grupo de músicos teve acesso a cosmo-visão
Guarani.
Enquanto o grupo de estudos musicais focava-se na elaboração da expressão musical,
observando a música Guarani e assim gerou o diálogo (uma necessidade para essa
construção), nós analisamos o diálogo através da concepção de música Guarani. Nossa
intenção foi constituir um diálogo e analisá-lo e este teve, como elemento fundamental, a
música. O trabalho do GEM nos possibilitou pensar um encontro mediado pela música, antes
de entrarmos em campo, para o desenvolvimento do projeto, e serviu como referência, para a
realização de um diálogo com os M‟byá. No entanto, não é nossa intenção, no momento,
verificar as condições do diálogo que acompanhou o desenvolvimento desse projeto da
UFRGS.
O livro, acompanhado de CD, descreve aspectos da música Guarani, a partir de duas
fontes: os próprios indígenas M‟byá e as considerações das duas organizadoras da obra. Há
uma preocupação com a apresentação da forma de constituição e desenvolvimento do
51
trabalho, que foi discutido, minuciosamente, com os participantes indígenas e não-indígenas.
O depoimento dos M‟byá compõe uma parte da obra e expressa seu ponto de vista acerca da
música Guarani e da importância da gravação do CD e publicação do livro. O trabalho conta
com a participação de dois jovens líderes (Marcelo Kuaray e Vherá Poty), com um indígena
de cinquenta anos, que é referência da coordenação do coral da aldeia da Estiva e da sabedoria
musical M‟byá (Agostinho Verá Moreira), e outros indígenas envolvidos nas atividades
musicais. O resultado desse encontro constituiu uma nova forma de expressar a cultura
indígena, unindo cultura oral (CD) e cultura escrita (livro), o que facilita o reconhecimento
dos não-indígenas – familiarizados e dependentes da cultura escrita – sobre a música
indígena.
Outra marca relevante do trabalho é a utilização de vários recursos para expressar a
música Guarani: descrições escritas, imagens (dispostas de forma variada e esteticamente
harmônica), letras das músicas, depoimentos de indígenas e não-indígenas.
Nesse aspecto, destacamos que, trabalhos como esse, incentivam e possibilitam a
criação de novas pesquisas que podem colaborar para a legitimação da cosmovisão dos
ameríndios, o que, em nosso ponto de vista, é essencial para pensarmos novas formas de
atuação humana, sobretudo, que tenham em sua essência a preservação da vida, e, portanto, o
rechaço à violência.
O Cirilo comentou o trabalho, que originou o livro com CD. Nesse depoimento,
percebemos ideias de interculturalidade, liberdade, relação com o dinheiro e os problemas
internos dos Guarani,
Não está fazendo prejuízo, só que fizeram um livro né. Só isso, não significa pra
nós. Só fizeram um livro para o branco, não para os índios. Por isso é importante
respeitar a oral, respeitar o conhecimento e respeitar a escuta. Porque muitas vezes
as pessoas escutam e já querem fazer. Por exemplo, porque eu estou falando isso. É
interessante tua pesquisa, eu vou falar com liberdade, e tu vai falar com liberdade,
então é um momento intercultural. Nós estamos conversando e seria interessante
saber qual caminho poderia tomar junto. Por exemplo, você perguntou agora do
CD. Claro que pra mim não significa nada. É uma coisa que eu não posso dizer
assim: temos resultado com isso, não tem. Claro que para o Vherá Poty foi bom,
porque ele vendeu um troquinho, é pra isso. Então, não tem força, não tem peso. Eu
fiz em 2000 um DVD da música mba‟epú nhendú. Nós fizemos o CD e até hoje não
queremos fazer mais. Naquele momento o primeiro CD que saiu foi do nosso grupo,
depois saiu o da Estiva, em terceiro o Canta Galo, e quarto em São Miguel. Agora
querem fazer CD [...] Então, não pode acontecer isso. É uma coisa que a gente tem
que respeitar as crianças né. E lá em São Miguel também saiu, foi para Argentina.
Não é que eu estou falando, mas a gente fala a verdade. Nós temos que valorizar é a
música, mba‟epú, mba‟epú nhendu. É interessante isso, é importante, tem que saber.
Não adianta você escutar e querer fazer. Mesma coisa é o passarinho que está no
52
ninho. A mãe dá alimentação pra ele, depois ele voa sozinho. Ele pensou que vai
voar, ele voa tranqüilo, mas pode cortar a asa para não voar mais. É uma coisa que
aconteceu. Por exemplo, o Vherá Poty, jovem cacique que deveria permanecer. Por
que não permaneceu? Porque não respeitou a cultura, não respeita os mais velhos,
divulga o que não é pra divulgar. Então, essa parte tem que ter muito cuidado. Por
exemplo, vou falar aqui de perto de mba‟epú, e seria interessante pensar bem
(CIRILO, Entrevista, 24.09.2011).
Destacamos, também, nas pesquisas sobre a música ameríndia, a importância do
procedimento da pesquisa valorizar sua fonte principal, o depoimento. Como esses povos têm,
como fundamento de seu conhecimento a transmissão oral, é comum que estudos etnográficos
tenham os depoimentos – que são expressos de forma variada, dependendo do autor da obra –
como elemento fundamental das informações descritas, que foram interpretadas, e, portanto
traduzidas.
Consideramos, nessa esfera, duas questões que nos parecem relevantes para o
esclarecimento das limitações que acompanham nossa pesquisa: a situação que encontramos,
na comunidade com a qual convivemos, durante o desenvolvimento da pesquisa, é temporal,
ou seja, ela está em uma situação determinada naquele ano, mês, semana. A segunda questão
relevante é que todas as culturas são dinâmicas, portanto, nossas considerações acompanham
e refletem uma situação momentânea, acompanhada de uma série de instâncias que compõem
as problemáticas e a criação de possibilidades de superação, em um determinado momento.
Compartilhamos de um momento da cultura, com a qual dialogamos, e nossas considerações
serão passíveis de ressignificações, de acordo com a etapa histórica que vivenciam nossos
interlocutores e suas relações com o contexto mundial.
Outro elemento que compõe a pesquisa de campo – comum em estudos de
Antropologia, Etnomusicologia, Filosofia Intercultural e outras visões de pesquisa que têm
como objetivo a construção do conhecimento, a partir do diálogo com o Outro, é ter, como
fonte de informações, um interlocutor que assuma um papel de destaque e, assim, é possível
que o trabalho constitua-se num estudo de caso. Nesse caso, a fonte de pesquisa expressará a
subjetividade de um sujeito da comunidade. Em nosso ponto de vista o estudo de caso não é
um limitador, pois possibilita o aprofundamento da perspectiva de um sujeito e do diálogo, ao
mesmo tempo, que reconhece a limitação de um trabalho dentro dos padrões acadêmicos, e
prioriza uma análise, minuciosa e cuidadosa, que respeite o tempo do interlocutor, o que é
indispensável quando tratamos da cultura ameríndia e priorizamos uma perspectiva
intercultural e ética.
53
A obra Através do M‟baracá, de Luci Montardo, marcou nossos estudos introdutórios
e influenciou na escolha e consequente elaboração da presente pesquisa. A autora teve, como
referência principal do seu trabalho, uma xamã Guarani Kaiová, chamada Talcira, que
descreve sua trajetória, até assumir o status de Kunhã Karai (líder religiosa). Essa
representante da cultura Guarani assume um local de destaque, na medida em que Montardo
relaciona a música e o xamanismo, pois a perspectiva de uma líder religiosa é extremamente
respeitada e somente ela poderá descrever determinados aspectos da espiritualidade, em graus
mais avançados, pois os Karai têm acesso privilegiado às instâncias indizíveis que compõem
a cosmologia Guarani. Ter como fonte de informações um interlocutor principal denotam o
tempo necessário para estabelecer uma relação de confiança entre um indígena e um não-
indígena, pois há informações que dependem dessa relação, para serem reveladas, e isso se
dará a partir da reciprocidade.
Em nosso caso, não foi diferente. A manutenção do vínculo com nosso interlocutor foi
permeada por negociações e conflitos que se tornaram essenciais na própria concepção e
desenvolvimento da pesquisa. Nesse sentido, a metodologia dependia, diretamente, dessas
negociações e foi repensada, conforme a situação que nos deparávamos, sendo constituída
pela epistemologia do trabalho. Essa forma de conhecer foi constituída, a partir dos diálogos
que buscavam a aproximação do ponto de vista dos Guarani, representado essencialmente
pelo Cirilo, em consonância com os pressupostos da Ética Intercultural.
54
IV A MÚSICA NA EXPERIÊNCIA DE DIÁLOGO INTERCULTURAL A
PARTIR DO PENSAMENTO M’BYÁ-GUARANI
Trataremos, neste capítulo, de descrever e refletir as considerações geradas na
trajetória que constituiu nosso encontro com os M‟byá, tendo como referência, o diálogo com
o Cirilo Kuaray, bem como, nossa vivência – que inclui as observações e percepções – nas
aldeias Guarani. Nosso foco será o de pensar o diálogo estabelecido com nosso interlocutor, a
partir das questões que envolvem a música desses indígenas. Nesse momento, a fala de nosso
interlocutor é o elemento fundamental do estudo, pois vimos, nessa ação, a possibilidade da
interculturalidade e, assim, uma oportunidade de desenvolver o diálogo intercultural, tendo a
música como elemento central do encontro.
Pretendemos aprofundar a noção de música Guarani, percebendo sua importância e
influência na vida cotidiana, sobretudo, nos conflitos que constituem o convívio humano.
Portanto, a música coloca-se como um elemento propulsor, para pensarmos outras formas de
ação social, que não seja a vigente na sociedade capitalista-neoliberal. O diálogo intercultural
servirá, desse modo, para pensarmos a música na sociedade de consumo. Iniciaremos com a
descrição de fatos, que constituíram nosso problema, a partir das saídas de campo, nas aldeias
Guaranis, para, posteriormente, dialogarmos com noções que constituem a ideia de música e
ética dos M‟byá, noções estas que estão profundamente interligadas. Traremos, para colaborar
com nossa reflexão, pressupostos da Filosofia Intercultural e noções de música que dialogam
com a música sagrada Guarani. Nosso desafio principal será o de verificar os elementos que
surgem desse diálogo e sua influência no convívio - permeado pela música – entre indígenas e
não-indígenas.
Nosso procedimento foi estruturado na escuta sensível, que buscou a aproximação do
ponto de vista dos Guarani, pois, se é possível o diálogo quando se tem a possibilidade de
55
escuta do Outro, assim, mais do que falar, a escuta é uma dimensão ética fundamental para
todo o diálogo intercultural. Optamos por essa postura, como uma possibilidade do dialogo,
por entendermos que, somente assim, poderíamos estabelecer uma vivência coerente com os
pressupostos da interculturalidade, que embasou nossos primeiros capítulos. Essa foi uma
orientação importante, durante os encontros e posteriores reflexões que desenvolvemos.
Nosso procedimento foi construído no próprio campo, a cada entrevista, pois a Etnopesquisa
nos fornecia condições para isso. Permanecemos atentos aos acontecimentos que constituíram
nossos encontros e a forma como procederíamos a partir das novas entrevistas, de atividades
na aldeia e dos conflitos e negociações que foram gerados nessa convivência.
4.1 O encontro com os M’byá-Guarani: refletindo a trajetória
Meus primeiros contatos com os M‟byá ocorreram em 2003, na aldeia da Estiva, em
Viamão. O principal contato foi o cacique Juarez. Na época, eu participava de um grupo que
buscava desenvolver projetos sociais, na cidade, e que se chamava Jaikoporã. Embora
soubéssemos o significado desse termo guarani, estávamos em busca do significado de
Jaikoporã, para esses indígenas. Levamos milho, para compartilharmos, e os indígenas
assaram, rapidamente, as espigas, enquanto conversávamos. Minha primeira impressão foi a
de conversar com pessoas muito verdadeiras, que se expressavam com sinceridade. Fiquei
impressionado com a alegria explicita nos rostos dos Guarani, que faziam brincadeiras
inteligentes e engraçadas sobre fatos cotidianos. Decidi retornar para conhecer mais sobre a
cultura dessa comunidade.
56
Encontro dos integrantes do Movimento Jaikoporã com os M‟byá na aldeia da Estiva (2003).
Alguns meses mais tarde, eu conheci o cacique regional, Cirilo Kuaray, um líder que
representava esses indígenas em todo o estado do Rio Grande do Sul. Homem sério e jovem,
com seu discurso marcado pela necessidade da espiritualidade, me recebeu com muita
cordialidade, embora deixasse claro, até onde eu poderia perguntar sobre a forma de viver nas
aldeias Guarani. Aos poucos, organizamos algumas atividades, sobretudo, apresentações do
coral para divulgar a cultura Guarani e gerar renda para a comunidade da aldeia Anhetenguá.
O Cirilo ressaltava que era importante ter um lugar confortável, para as crianças prepararem-
se para cantar, com água e alimento e que a forma como são recebidas é muito importante
para os M‟byá. A partir dessas vivências, percebi a clareza que o Cirilo tinha, quanto ao
preconceito dos não-indígenas, com a forma de viver e a situação empobrecida dos
indígenas.* Fiquei impressionado com a resistência e com a capacidade de manterem-se
alegres, eu tentava compreender como eles brincavam e mantinham a harmonia social diante
de tantas dificuldades1.
1 Segundo o censo do IBGE/2010, os índios representam 0,4% do total de brasileiros e 2,9% da população sem
renda que vive em extrema pobreza. Fonte:http://www.agenciapatriciagalvao.org.br
57
Mais tarde, participei de um evento, na aldeia da Estiva, onde passei um fim de
semana acampado. Nessa oportunidade, além de contatar outros indígenas, confirmei a
situação precária em que vivem os Guarani. Havia uma fila para o café da manhã e, cada
indígena, incluindo crianças, recebia uma xícara de café, sem leite, e um pão, sem
acompanhamento de manteiga ou doce. Fiquei chocado com tais condições e entendi a reação
severa do Cirilo, diante de situações de negociação com não-indígenas.
Uma das atividades que organizei com cachê, foi na escola privada onde eu lecionava.
Depois da apresentação do coral, a pessoa responsável pelo pagamento, informou-me que o
cheque estaria à disposição em três dias. Ao informar o Cirilo sobre a situação, ele foi severo
e afirmou que teriam que pagar no mesmo dia. Depois de conversarmos, comprometi-me de
levar o pagamento na aldeia e que poderia emprestar o mesmo valor, até o pagamento da
escola, se houvesse necessidade. Descobri que os M‟byá sofreram com promessas de
pagamento que não foram executados. No entanto, o fator fundamental na relação com os
não-indígenas no âmbito das apresentações artísticas, é a forma como esses indígenas são
recebidos, acolhidos; o ambiente, o local para preparação, o alimento. Percebi, nitidamente,
essa valorização profunda do respeito, enquanto oferecimento de condições dignas para os
visitantes-artistas Guarani. Em uma das entrevistas – descrita adiante – o Cirilo relatou esse
aspecto da relação entre indígenas e não- indígenas.
Na mesma oportunidade, evidenciei a discriminação com os indígenas, ao ouvir, uma
professora das séries iniciais dizer: “eles poderiam tomar banho antes da apresentação.”
Fiquei muito incomodado com esse comentário e resolvi contestar imediatamente. Conversei
com a educadora, alguns minutos, descrevendo o que havia aprendido com os Guarani,
durante os últimos anos, e o respeito que adquiri por eles. Ela se desculpou e ficou bastante
constrangida quando percebeu sua ignorância, acerca da cultura indígena.
Minha inquietação suscitou a convicção de que o Cirilo era muito sensível, e, portanto,
a discriminação por parte dos não-indígenas ficava evidente para ele. Se a fala da professora
gerou minha indignação, mesmo sendo também um não-indígena, como o olhar dos juruás
afetava esse representante Guarani? Senti, minimamente, em minha condição de tradutor -
como nomeia Fornet-Betancourt (2004), ao referir-se à limitação do filósofo que contata outra
cultura e pensa sobre ela - a influência do preconceito, da relação fundamentada numa ideia
de superioridade cultural dos não-indígenas, em relação aos indígenas. Pensar sobre formas de
transformar essa relação assimétrica dava sentido ao trabalho, que mais tarde busquei
desenvolver.
58
Outro aspecto significativo nessa busca, é que a música indígena sempre me causou
curiosidade, me sentia atraído pela forma como os Guarani compreendiam essa instância de
sua cultura. A importância da música, na vida dos indígenas brasileiros, conforme Bastos
(2004) foi tratada em estudos significativos,
Textos referenciais como o de Hugh-Jones (1979), Basso (1985), Viveiros de Castro
(1986) e Graham (1995) – feitos de fora da etnomusicologia – demonstram que a
música ocupa um lugar privilegiado nas sociedades indígenas das terras baixas da
América do Sul, sendo uma das chaves mais importantes da sociabilidade e tendo
conexões fortes com a cosmologia e a filosofia dos povos da região (BASTOS,
2004, p. 5).
Iniciei, em 2006, uma breve investigação sobre os instrumentos de corda dos M‟byá,
na disciplina de Etnologia e Etnografia do Brasil, na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. No desenvolvimento desse trabalho, conheci o Marcelo Kuaray, genro do Juarez (cacique
da aldeia da Estiva) e morador da Estiva, um jovem indígena muito animado e instrumentista
do coral. Combinamos uma saída para comprar uma ravé, na aldeia da Cochilha da Cruz,
onde morava um luthier chamado Artur. A ravé serviria para o coral da Estiva e, segundo o
Marcelo, custaria cinquenta reais. Fomos eu, o Maurício (colega da disciplina) e o Marcelo.
Paramos, algumas vezes, na estrada, para o Marcelo conversar com seus parentes que estavam
acampados, em situação muito precária, aguardando os encaminhamentos da FUNAI.
Conversamos com alguns Guarani e recebemos notícia de que havia indígenas doentes, por
estarem desabrigados e com pouco alimento. O Marcelo explicou que sem tekoá (aldeia) o
Guarani fica doente, pois ter tekoá é também ter opý, a casa de rezas, onde os M‟byá se
fortalecem. Notei, nos olhos de alguns acampados, a tristeza de estarem desamparados e
desprovidos de suas práticas espirituais. Chegamos, ainda de manhã, na aldeia e fomos bem
recebidos pelos líderes que mostraram o local e suas casas. Depois de uma longa caminhada,
(é uma aldeia grande) nos dirigimos para a casa do Artur. Ele tinha um tatu de estimação, com
o qual brincamos e rimos alguns minutos. O Artur era um homem de meia idade, de pouco
assunto e muita habilidade para confeccionar a ravé. Mostrou-nos um instrumento bem
acabado que ele estava colocando o encordamento (são três cordas).
59
Ravé confeccionada pelo Artur.
Perguntamos quanto tempo ele precisava para fazer a ravé. Ele respondeu que aquela
levou uns quinze dias, desde o corte da árvore, até dar a forma, secar e dar acabamento. Era
uma madeira bem clara, quase branca. Depois de afinar as três cordas, o Marcelo tocou um
pouco, sentamos e fumamos o petynguá (cachimbo). O luthier não executava o instrumento
que custou o triplo do preço que o Marcelo informou.
Artur com a ravé.
60
Retornamos, no final da tarde, e paramos, mais duas vezes, para conversar com os
Guarani acampados que tinham laços familiares com o Marcelo. Mesmo na situação que se
encontravam, foram muito receptivos e descreveram o histórico, sobre as terras que
aguardavam, e o significado daquele território para os M‟byá.
O Marcelo ficou, algum tempo, antes de retornar pala aldeia da Estiva, em minha casa,
e, nessa oportunidade, percebi que aquele jovem líder, apesar de ter claro sua cultura,
planejava sua vida, a partir de um hibridismo cultural, pois queria adquirir bens para ter mais
conforto e uma vida estável. A ideia de uma vida boa, que percorre as culturas, certamente,
não é a mesma. Segundo Arkonada, em entrevista concedida ao IHU on-line,
O Bem-Viver, pode ser considerado um princípio ético-moral que nos foi legado
pelos índios andinos, mas que encontra expressões próprias nas demais
comunidades indígenas. Hoje, segundo Arkonada, surgem novas construções
híbridas entre conceitos milenares da cosmovisão indígena, como o Bem-Viver, e
conceitos centenários, ocidentais e modernos, como a ética ou a moral. [...] Mas
não se pode dissociar este modo de vida de conceitos como descolonização (do
poder e do saber) e desmercantilização da vida (ARKONADA, 2010).
Dois meses mais tarde, visitei a aldeia do Canta Galo e conheci Vherá Poty, um jovem
líder Guarani, com quem conversei sobre o mba‟epú (cordofone de cinco cordas). Perguntei
sobre o instrumento original, onde poderia encontrar o tradicional, confeccionado pelos
Guarani. Ele mostrou um violão adaptado para cinco cordas – na afinação adequada para o
xondaro (uma dança dos homens) e falou: aqui está o mba‟epú! Eu contestei, dizendo que
aquele objeto era um violão com cinco cordas. Ele riu e respondeu: vocês juruás pensam
diferente, para nós mba‟epú é o som, o objeto não importa, por isso que é mba‟epú! Eu
compreendi sua concepção, mas sentia um estranhamento, ao pensar que, conceitualmente,
era contraditório atribuir o mesmo nome para o objeto e o som produzido por este, sem fazer
uma distinção ou categorizar o sentido que tem a palavra para a cultura Guarani. Esta forma
de pensar a própria música foi objeto de reflexão e certo incômodo, durante alguns dias, para
mim. Passamos o dia com os M‟byá, assistimos a apresentação do coral, dançamos xondaro,
almoçamos e conversamos demoradamente. Essa vivência organizada pelos indígenas e
alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi relevante para a caminhada que
resultou na vontade de pesquisar a música Guarani. Por isso, trago esta reflexão para mostrar
que um problema de pesquisa não emerge do nada, mas de uma relação de proximidade com
uma realidade.
61
Os eventos, nas aldeias, visam, além de divulgar a cultura M‟byá, criar novas parcerias
com os não-indígenas, pois com a proximidade das aldeias com centros urbanos, o contato
com as instituições públicas e privadas dependem da intermediação de não-indígenas
confiáveis. Esses parceiros assumem um lugar importante na dinâmica de reivindicações dos
indígenas e fazem a transformação da cultura oral, em cultura escrita, constituindo o elo entre
os Guarani e os não-indígenas. Segundo o Cirilo, essa necessidade existe porque os juruás
não respeitam a cultura oral, respeitam somente o que está registrado em documentos. Neste
contexto, destacamos, novamente, a importância do diálogo intercultural, construído a partir
da escuta, da fala, do silêncio, da música, elemento importante para a cultura indígena.
Fiquei afastado das aldeias, durante dois anos, pela mudança de cidade e de trabalho,
mas realizei visitas esporádicas ao Cirilo, para compartilhar as novas iniciativas em minha
vida e saber da atual situação dos Guarani, sobretudo, da aldeia Anhetenguá e Estiva, locais
onde tinha alguns amigos.
Retornei o contato, mais periódico, em 2010, e recebi a notícia de que Marcelo e
Vherá Poty haviam mudado de Estado – foram para Santa Catarina. Assim, segundo o Cirilo,
duas aldeias do Rio Grande do Sul perderam dois jovens líderes Guarani. O motivo da saída
dos dois jovens, representantes e líderes dos corais das aldeias da Estiva e Canta Galo, foi o
desentendimento entre estes e os mais velhos sobre a divulgação de informações da cultura
M‟byá para os não-indígenas. Havia uma divergência pontual, sobre o contato dos jovens com
brancos, pois os mais velhos defendiam a preservação de práticas espirituais que protegiam os
Guarani da ação dos juruás. Além disso, os mais velhos não queriam que os jovens
convivessem muito com os não-indígenas, porque os costumes destes causavam prejuízo aos
indígenas. Um dos malefícios gerados pelo contato com brancos foi o alcoolismo. Esse
impasse é uma marca significativa nas aldeias que frequentei. Os jovens querem participar da
sociedade globalizada, e aprender como esta funciona, para adquirir autonomia e respeito,
enquanto os mais velhos defendem a necessidade de proteção e preservação da forma de ser
dos M‟byá.
Recomecei os diálogos e negociações com Cirilo expondo que, se ele aceitasse, eu
continuaria a pesquisa sobre música e que poderíamos retomar as ações para colaborar no
desenvolvimento da aldeia. Essa colaboração constituiu a reciprocidade que possibilitou uma
relação de confiança com os Guarani. Encontramos, na obra Reflexões Éticas em Pesquisas
com Populações Indígenas, de Maíra Pedroso Corrêa da Silva e Sonia Grubits, a seguinte
afirmação:
62
O que consideramos interessante discutir sobre esse tópico é o que diz respeito às
trocas. É importante ressaltar que os índios, no geral, possuem uma relação
explícita de troca, que é bastante interessante e não possui a mesma conotação
que na nossa cultura, ou seja, mesmo quando os pesquisadores não são solicitados
a pagar pela realização da pesquisa, ainda assim a troca pode aparecer como um
elemento importante da relação.
Na relação com os índios kadiwéu, por exemplo, eles costumam pedir para que
levemos determinadas coisas, que são às vezes de difícil acesso para eles, e
conosco realizam trocas. As trocas são realizadas principalmente com as
mulheres, e é difícil dizer em que se baseiam para saber o que deve ser trocado
pelo que (a quantidade e a qualidade das coisas). De qualquer maneira, é algo que
passamos a considerar natural, primeiro, porque não foi proposto ou imposto por
nós, mas estabelecido na relação; segundo, porque as trocas têm uma conotação,
na nossa cultura, muitas vezes pejorativa, com um sentido de "interesse" (de tirar
proveito), algo que parece não possuir esse sentido para eles, caracterizando mais
uma relação de cordialidade. Além disso, ao longo do tempo, passaram a ocorrer
situações em que algo era presenteado e não, trocado, e essa ação é de grande
valor, parecendo significar que a relação chegou a um nível maior de
profundidade, afetividade e respeito (CORRÊA DA SILVA e GRUBITS, 2006, p.
55).
Após sinalizar a aceitação da pesquisa, o Cirilo explicou que os Guarani estavam
repensando o contato com pesquisadores e pessoas que desenvolviam projetos com os M‟byá,
por perceberem que os benefícios são concentrados nos não-indígenas, que publicam livros,
expõem fotos e ganham dinheiro, enquanto os indígenas usufruem de uma pequena parte da
renda, gerada nessas iniciativas. Afirmou que estão cansados de serem enganados e passarem
por bobos; que os juruás pensam que eles são crianças, que não sabem se impor. Fiquei um
pouco tenso com o relato, mas sentia que ele não era uma negação ao meu trabalho, e minha
intuição estava certa. Em seguida, declarou que eu poderia desenvolver a pesquisa e que ele
falaria sobre a música, mas que eu, em compensação, teria que ajudá-lo a resolver esse
problema.
Iniciamos as primeiras anotações de nossas ideias sobre uma ação para prevenir os
Guarani da exploração perpetrada por pesquisas e projetos que não dividiam seus benefícios
ou autoria com os indígenas. Decidimos elaborar modelos de contrato que tivessem validade
nas leis dos juruás e impusessem a estes, o retorno dos benefícios, para as aldeias, dos
trabalhos envolvendo os Guarani. Após algumas conversas e análises de modelos de
contratos, encaminhei o assunto para o setor jurídico da Universidade, onde eu desenvolvia
minha pesquisa de mestrado, e me reuni com os responsáveis e professores envolvidos na
pesquisa e desenvolvimento de ações em comunidades indígenas.
63
Iniciamos, na mesma época, o planejamento de um Encontro Espiritual, para o
Benefício dos Visitantes, na aldeia. A intenção central do evento foi realizar um ritual,
conduzido pelo Karai (líder espiritual), tio do Cirilo, no qual os participantes que desejassem,
fossem atendidos individualmente – um tipo de benção desse líder religioso Guarani – em
uma roda de pessoas, no meio da mata nativa. Ficaram responsáveis pela organização, os
indígenas, Ariel Kuarai Tataendy, Vherá Tchunú e Cirilo Kuarai. A verba arrecadada serviria
para a construção de uma casa, na aldeia, para a família do Cirilo. Antes desse evento,
tivemos alguns encontros, para elaboração do cronograma de atividades e confecção dos
convites. Em um desses momentos de chegada à aldeia, ocorreu um conflito, que foi uma
experiência fundamental, no desenvolvimento da pesquisa.
Convidados aguardando a apresentação do coral (15.10.2011).
Partindo da descrição do encontro e conflito com o Cirilo, faremos algumas
considerações sobre a possibilidade do diálogo intercultural e como este é um processo
constante de reconstrução. Recorremos, aqui, aos critérios definidos por Salas (2010), quando
elabora sua compreensão de Ética intercultural, ou seja, uma das fontes importantes é a
64
resolução de conflitos, mas que deve se dar dentro de critérios reguladores que são enfocados
na relação com o Outro.
Como de costume, combinei a visita, no início da semana, liguei, algumas horas antes
de chegar à aldeia Anhetenguá, e recebi confirmação para o encontro e a possibilidade de uma
entrevista com um músico de outra aldeia, chamado Agostinho. A saída para outra aldeia seria
acompanhada pelo Cirilo ou um indígena que ele indicasse. Cheguei à aldeia Anhetenguá, no
meio da manhã, e encontrei o Cirilo sentado com alguns indígenas – oito pessoas, entre
homens, mulheres e crianças – em frente à casa do tatu, que, no planejamento anterior da
aldeia, seria um centro cultural, mas, atualmente, abriga a família do Cirilo. Sentei num
banco, onde alguns jovens estavam, e um deles levantou. O Cirilo falou-me que passou frio,
durante a noite e sobre problemas que eu deveria ajudá-lo a resolver. A conversa ficou tensa
com essa cobrança e outros indígenas participaram, falando em Guarani, e eu não
compreendia os argumentos. Este momento significava a ruptura do diálogo, quando os
indígenas falam em sua própria língua, impossibilitando a compreensão. Mas também
poderíamos pensar ao reverso, o quanto o homem branco, ao impor sua língua como
mediadora do diálogo, também provoca uma ruptura do diálogo intercultural. A questão sobre
que língua falamos, quando nos propomos a um diálogo intercultural, é importante nesta
reflexão.
Depois de um momento de silêncio, o Cirilo retomou a discussão, afirmou que eu não
estava colaborando com a aldeia e perguntou o que eu poderia fazer para mudar. Expliquei
que não pagaria para continuar a pesquisa e expliquei os motivos dessa decisão. Ele falou com
um adulto, em Guarani. Reconheci uma das palavras, que quer dizer “ir embora”, uma
despedida, perguntei, para o Cirilo, o que o indígena havia dito, ao que ele me respondeu que
era assunto deles. O diálogo estava bem tenso e percebi que havia algum incômodo, que eu
não reconhecia. Achei melhor me afastar, temporariamente, mas antes de sair da aldeia,
combinamos comprar um caderno, para anotações do encontro, que planejávamos para o
próximo mês. Foi o Cirilo e sua companheira, que aproveitaram para passar numa lotérica e
sacar dinheiro. Despedimo-nos apertando as mãos e me pareceu que ele não estava
incomodado com a situação na aldeia, mas eu fiquei um pouco chocado com a forma como foi
encaminhada a negociação.
Refleti sobre esse conflito, nos dias que seguiram, e a necessidade de encarar a
possiblilidde de resolução. Sobre a diferença entre os conflitos e a prioridade daqueles que
podem ser solucionados, Salas (2003) postula a necessidade de categorizá-los, para assim,
65
buscar soluções, primeiramente, para os que evidenciam uma resolução possível. Essa busca
constitui a esfera pragmática da Ética Intercultural.
Compreendi que a raiz do problema, que gerou a postura ofensiva do Cirilo, originava-
se no fato de eu necessitar de uma visita, em outra aldeia, e, esse episódio, geraria a
possibilidade de uma nova aliança que me distanciaria da aldeia Anhetenguá. Isso,
consequentemente, diminuiria minha dedicação às iniciativas para a melhoria de vida daquela
comunidade. Percebi que o Cirilo estava expressando a importância de darmos continuidade
às atividades que planejávamos para a aldeia, e, ao mesmo tempo, marcava a necessidade de
reciprocidade, pois, dar entrevista, pressupõe algo em troca para os Guarani. Senti um alívio e
compreendia que a postura daquele dia de conflito marcava, também, uma afirmação de
aceitação e vontade de prosseguir com os trabalhos que desenvolvemos, na comunidade,
desde nossos primeiros encontros. Esta postura, que busca olhar a partir da perspectiva do
outro, é um elemento relevante na Ética Intercultural proposta por Salas (2003). Essa reflexão
criou um dilema que eu teria que resolver, pois surgiram duas alternativas: optar por seguir as
entrevistas, somente com os moradores da aldeia Anhetenguá – sobretudo o Cirilo - ou
expandi-las para outros locais. O certo era que demoraria muito para se estabelecerem novos
laços de confiança com outros indígenas, como os que eu já havia constituído com o Cirilo, e
isso seria impraticável diante dos prazos estabelecidos pela Academia, e que eu deveria
cumprir. Essa foi uma reflexão constante: o desencontro entre as perspectivas, modos de
organização e forma de encaminhar as atividades dos indígenas e da Academia. Os “tempos”
são diferentes, enquanto a Academia determina objetivos com prazos rígidos e que estão
marcados pela burocracia, os indígenas seguem pressupostos espirituais que podem gerar, por
exemplo, a desmarcação de uma entrevista, cinco minutos antes da hora estabelecida, e
tratada com antecedência. No meio dessas duas concepções, fica o pesquisador, que
desenvolve – sem ter alternativas – a capacidade de negociar, esta foi uma ação constante no
desenvolvimento da presente pesquisa.
Pensávamos na melhor forma de prosseguir, na busca de respostas, para nossa questão
central, de forma contundente e mais clara possível, e isso colaborou para que o trabalho se
tornasse um estudo de caso.
Retornemos ao evento na aldeia Anhetenguá. No dia programado, 15 de outubro,
participaram cerca de trinta e cinco não-indígenas, foi preparado almoço, o coral se
apresentou, houve venda de artesanato, visita ao viveiro de mudas de árvores nativas e a
66
escola indígena e a cerimônia espiritual, na qual o Karai da aldeia abençoou os convidados
individualmente.
Escola indígena da aldeia Anhetenguá
67
Integrantes do coral da aldeia Anhetenguá durante a apresentação.
Esse dia foi fundamental na retomada da parceria com o Cirilo, pois felizmente o
encontro foi bem aceito pelos moradores e visitantes, o ambiente foi de alegria e trocas.
Percebi a satisfação dos M‟byá envolvidos na organização, apesar de apresentarem um leve
nervosismo. Notei, da mesma forma, que o “nosso tempo” é muito diferente da noção de
tempo dos Guarani, pois enquanto eu tentava cumprir o horário da programação, os indígenas
tratavam o atraso e os imprevistos, com naturalidade, e não expressavam a mínima
preocupação com esses fatos. O que lhes interessava – e tomou grande tempo – era a
preparação do local, onde foi realizada a cerimônia de benção, retirando os galhos e varrendo
o chão de terra avermelhada. Solicitaram que os participantes formassem uma roda, no local
que haviam limpado. O líder espiritual sentou, em uma cadeira, ocupando um dos lugares da
roda e, em sua frente, foi marcado um caminho com distância de cerca de sete passos. Cada
um dirigia-se a ele, caminhando pelo corredor, ajoelhava-se com a cabeça baixa e esperava
sua benção. Esta variou, de acordo com a pessoa, pois enquanto alguns foram tocados na
cabeça, imediatamente, outros foram antes, examinados pelas costas. O líder ficou em pé, e,
depois, abençoou sentado, fazendo gestos com as mãos e tocando na cabeça do visitante. Foi
recomendado, a dois participantes, o retorno à aldeia para conversarem com o Karai, pois
68
tinham problemas mais graves para resolver. Esse momento foi conduzido, com muito
respeito e concentração do Karai e mais dois indígenas, o Cirilo e o Vherá Tchunú.
Exposição e venda de artesanato dos M‟byá no dia do evento.
No sábado posterior, retornei, à aldeia, para conversar sobre o encontro e produzir
algumas imagens com a câmera fotográfica. Senti, claramente, o efeito de minha colaboração
no evento, pois o Ariel e o Cirilo vieram, imediatamente, para sentarmos juntos e puxaram a
conversa, ação incomum, quando não há reciprocidade.
O Ariel orientou-me na descrição dos nomes (em m‟byá) dos coordenadores do
evento, do sábado anterior, e conversou com um músico, que tocava violão, pedindo para eu
fotografá-lo. Ele aceitou e outros indígenas vieram olhar as fotos.
69
Músico da aldeia (Juan) com o violão.
Presenciei, nesse dia, uma entrevista feita por Marcus Vinícius de Souza Mouzer,
graduando de Biologia da UFRGS, com o Cirilo, sobre os mitos das árvores e a concepção
dos M‟byá sobre essa relação. Os dois sentaram próximos, depois de o Cirilo falar: vamos
trabalhar? O aluno anotava, em um caderno, as informações sobre o tema e fazia perguntas
para complementá-las. Ele me informou que a atividade fazia parte de um projeto piloto para
a elaboração de um livro sobre as plantas e os mitos Guarani.
70
Entrevista com o Cirilo sobre Mitos Guarani na aldeia Anhetenguá (Ariel, Marcus e Cirilo)
Perguntei, para o Cirilo, sobre a forma como o líder espiritual havia conduzido a
atividade principal do evento, em que, cada participante, voluntariamente, ficava na frente do
Karai para receber uma benção, pois percebi que o procedimento variava de acordo com a
pessoa. O Cirilo respondeu que era segredo, coisas do Karai, e que mesmo os indígenas não o
sabiam, somente o Karai e aqueles que estavam aprendendo os procedimentos de cura.
Uma convicção que acompanhou nossas reflexões, a partir da convivência frequente
com os M‟byá, foi a de que o Cirilo representava, legitimamente, a forma de ser Guarani,
marcada pela espiritualidade e pela ética (aete), pois se mantinha forte, disposto, com
respostas claras sobre a atuação adequada, diante de situações conflitivas, que acompanham,
desde a chegada dos europeus no Brasil, o cotidiano atual dos Guarani.
Foi com esse líder indígena que desenvolvemos as reflexões sobre a música Guarani, a
partir das questões que surgiram com o convívio prévio e, nas entrevistas, que possibilitaram
a pesquisa e deram clareza à problemática que nos inquietava, ou seja, o entendimento de
mba‟epú, e sua relação com o aete (ética).
71
José Cirilo Morinico (Karaí Tataendy) falando sobre a cultura M‟byá-Guarani.
4.2 Aproximações do entendimento de Mba’epú
Traçar uma perspectiva intercultural, em nossa análise, pressupõe, primeiramente,
refletir a história de desvantagens e prejuízos vivida pelos M‟byá-Guarani e buscarmos a co-
construção de possibilidades de superação da condição, ainda muito assimétrica, em que
vivem as comunidades indígenas. Portanto, para analisarmos a música, nessa comunidade
72
Guarani, é necessário reconhecermos a história de exclusão e violência que constituíram,
desde a colonização do Brasil, a vida desses indígenas.
Uma segunda questão relevante a considerar, no campo filosófico, é que não somente
a Filosofia eurocêntrica, mas a própria Filosofia latino-americana, apresenta “problemas de
acesso e relação” (FORNET-BETANCOURT, 2001, p. 237) com o pensamento indígena,
pois é recente a virada intercultural que privilegia o diálogo intercultural no interior de nossa
América. Nesse âmbito, o problema posto não é somente o de distanciar-se de pressupostos da
Filosofia clássica, mas construir de forma amorosa - podemos resgatar aqui o sentido
etimológico de Filosofia, “amor ao conhecimento” e pensarmos o conhecimento do amor -
com o pensamento indígena, novas formas de pensar nossa América. Certamente essa postura,
que busca o encontro fraterno da Filosofia com uma cosmovisão diferente, pressupõe o
abandono de “um tipo lógico de saber crítico” (FORNET-BETANCOURT, Ibid., p. 237) e a
superação do individualismo, para que surja o pensamento compartilhado através do diálogo
intercultural. Este não será constituído no confronto entre as ideias de indígenas e não-
indígenas, não se trata de verificar as diferenças conceituais ou semânticas. Sobre isto,
referindo-se a estudos recentes na área da etnomusicologia, Bastos (2004, p. 14) afirma, “É
assim que esses textos se revelam aos leitores como interpretações de universos de
sociabilidade altamente consistentes com o humano, nada tendo de exóticos ou esquisitos (e,
então, nada de: “enquanto que para „nós‟ X, para „eles‟ Y)”.
É a partir do encontro na pesquisa de campo e das vivências com essa comunidade,
que surgiram elementos interculturais relevantes para nosso estudo. Portanto, a
interculturalidade neste trabalho foi tecida na convivência – feita de negociações e conflitos -
com os M‟byá, como mostramos anteriormente.
A aproximação do ponto de vista dos indígenas M‟byá-Guarani, através do diálogo
com o Cirilo, nessa vivência intercultural, suscita algumas questões preliminares, relevantes
para o desenvolvimento da investigação sobre a música Guarani: Qual é a perspectiva desse
indígena para descrever à noção de música? Quais aspectos que são importantes para
compreendê-la? Qual é a importância da música no “viver bem” dos Guarani?
As descrições do Cirilo afirmam que mba‟epú é uma noção complexa e de difícil
entendimento para os não-indígenas, é uma ideia carregada de significados intimamente
ligados à disposição cotidiana, chegando a designar a própria vida. Para descrever as
instâncias (indissociáveis) dessa noção de música, ele não fragmenta os elementos que
73
constituem a ampla esfera do mba‟epú. Seu argumento busca, constantemente, ir à raiz da
música, do mba‟epú - que se torna, em alguns momentos de sua descrição, o conceito de vida
dos M‟byá.
Buscaremos refletir as concepções de mba‟epú (música) e teko (vida) a partir de três
entendimentos: o primeiro que designa disposição cotidiana, o segundo, como força para
sobreviver, e o terceiro, que abarca essas duas concepções e configura-se numa instância
coletiva constituída pela terra, homem e o sagrado.
O mba‟epú, que designa a vida, aparece inicialmente com dois sentidos. Em um
primeiro entendimento surge como a disposição para o viver que está no som, na música,
gerada principalmente, pelo canto das crianças. A influência do som no ambiente composto
pelo coletivo Guarani gera a disposição, e consequentemente, a vitalidade:
A música dos Guarani, é muito sagrado a música, o som. Por exemplo, mba‟epú, a
palavra vem de nós, na alma, vem com os deus. Então, mba‟epú, quando a gente
fala essa língua, a gente fala na cerimônia, dentro da casa tradicional que nós
chamamos de opý. O que é mba‟epú? Mba‟epú é uma vida, é que dá vida, que dá
saúde. Tipo assim, tu dá ânimo, tu levanta tomando chimarrão, e, ao mesmo tempo
você toca um pouquinho aquele mba‟epú, uma música, um som, ele vai na morada
dos deus (CIRILO, Entrevista, 18.07.2011).
Aproveito para pensar uma questão que foi fruto de um processo de negociação
durante a entrevista. Embora houvesse por parte dele a sugestão de “arrumar” a fala dentro
das normas da língua portuguesa, optei em trazer a transcrição exata de sua fala. Isso se dá,
primeiramente, pelo respeito ao modo do Outro se expressar, e por pensar que, na própria
expressão, encontra-se presente a discussão sobre a interculturalidade. Contudo, me
acompanha a dúvida de ser ou não esta, a melhor escolha, pois a solicitação partiu de uma
vontade do Cirilo e, quando reflito sobre a possibilidade de estar em seu “lugar”, penso que
seria possível que a solicitação partisse da vontade de expressar minhas ideias em outro
idioma, tão claramente, como em minha própria língua.
Pensamos que a interculturalidade desenvolve positivamente essa capacidade de
conviver com o inesperado, com a dúvida sobre o Outro e sobre nós mesmos, nessa relação
com um interlocutor que, ora revela seu pensamento de forma aberta e expressiva, ora,
silencia. No caso de nosso encontro com os Guarani, o silêncio é um elemento importante que
fez parte do diálogo intercultural e, deve ser refletido, pois algumas informações serão
compartilhadas somente entre os M‟byá, mas revelar informações sobre a música sagrada
74
configura-se numa ação de confiança. Essa postura permitiu a liberdade recíproca, mesmo
que, às vezes, causasse incômodo para o ouvinte, a expressão do Outro.
No segundo entendimento, a música é geradora da sobrevivência M‟byá – por isso
vida, no sentido de ausência da morte - e a possibilidade de conquistar o aguyje (eternidade).
Assim, a música é, simultaneamente, o fortalecedor do corpo e da alma, e a principal
responsável pela resistência e sobrevivência dos M‟byá-Guarani, pois, em momentos críticos
da barbárie colonizadora, essa música gerou a força interior necessária para esses indígenas
resistirem. Esse elemento de proteção é utilizado, atualmente, e mantido em segredo,
conforme a descrição do Cirilo:
No primeiro momento os brancos mataram os índios com a epidemia, com a
doença, pra tirar o território dos índios. Aí os índios fugiram para o mato e saíram
novamente. Os brancos viram, não morreram todos, tem que matar com arma de
fogo. Mas no terceiro momento, apareceram de novo os índios, agora tem que
matar com caneta. Mas nós estamos vivendo. A música tem essa força. Essa é nossa
arma. Essa é a arma poderosa que a gente tem. A música fora da opý é diferente. As
apresentações que as pessoas fazem é para conhecer um pouco da vida Guarani,
como é que vive, como é que faz ritual. Porque o ritual mesmo não se mostra. Isso é
um pouco de segurança. Então a gente cria forma, se o branco quer ver, a gente
cria um grupo coral pra levar e cantar alguma melodia da natureza. Então a gente
canta, falamos da terra, nossas perdas, essas coisas. Fazemos alguma coisa da
língua na melodia. Então, fazer ritual mesmo, não se faz no pátio, não tem como
fazer. O coral das crianças é um demonstrativo (CIRILO, Entrevista, 18.07. 2011).
O terceiro entendimento de mba‟epu é o mais complexo, porque designa a ligação dos
Guarani, através do som, com a esfera sagrada. A fala do Cirilo, para conceituar a música
tradicional (mba‟epú), como afirmamos anteriormente, tem a não fragmentação como
característica marcante, pois ele afirma que mba‟epu é o som interior dos M‟byá, vem da
alma, é uma instância constituinte do próprio ser M‟byá-Guarani e a ligação entre a terra e o
sagrado. O som, recebido dos deuses e expressado pelo homem coletivamente, tem, como
estrutura, a terra. O mba‟epú constitui-se, nessa instância complexa e coesa, formada pela
união entre sagrado, homem e terra. A respeito da música, como instância que ultrapassa a
subjetividade, em determinados momentos, Carlos D. Fregtman afirma que, “[...] a nossa
música transcende as fronteiras do ego, transforma-se numa corrente transpessoal que
ultrapassa nosso ser individual” (FREGTMAN, 1989, p. 48).
A música é o elemento que faz a conexão, entre essas três esferas, e por isso podemos
considerá-la uma importante orientadora da vida prática desses indígenas. Portanto, o som que
75
é dado pelas divindades é incorporado pelos indígenas e, ao mesmo tempo, constitui a ligação
dessas instâncias com a natureza através do som.
Mba‟epú é nossa, mba‟e significa de nós, pú é som, sai pela alma dos Guarani, por
isso é mba‟epú. Saiu da natureza dos índios. Por isso a gente fala mba‟epú, essa
música vem dos deuses, entra no corpo e sai pela voz. Isso é mba‟epú, uma palavra
viva, não é vazia, é o som da chuva, do vento. A gente pode pensar, pensa que você
está junto com a música, porque uma música é sagrada. É prepara e escuta uma
música, para os M‟byá, você está junto com a música, você está dentro. Então, é por
isso que uma música é importante, uma música tem que ser respeitada, não pode ser
levada para rua. As crianças não podem ficar na cidade cantando todo momento.
Tem que ter muito cuidado (CIRILO, Entrevista, 18.07. 2011).
Essa concepção de música, como constituinte do próprio ser humano, é semelhante ao
entendimento do indiano Inayat Khan de que a música é “[...] a mais alta expressão daquilo
que é mais profundo em nós mesmos” (KHAN, 1973, P. 22). Nessa perspectiva, podemos
pensar a música como a expressão do sagrado através do som M‟byá-Guarani, marcando a
íntima relação desses indígenas com os deuses e a relevância desse contato, na sua forma de
ser, cotidianamente. Pensamos, a partir dessa ideia, que a música configura-se, enquanto arte,
muito próxima da seguinte noção: “A arte é a única área de crescimento do homem que o
impele a outros domínios. É uma forma de comunicação presente, uma linguagem mais ligada
à emoção” (FREGTMAN, 1989, p. 48).
A música gera a disposição e a força que estão no interior dos M‟byá, é expressa,
essencialmente pelo canto, mas ela é, também, a própria força que liga os Guarani às
divindades e a terra. Portanto, esse terceiro entendimento de som aparece como um elo, entre
duas dimensões. É o humano que expressa a música através do canto, que é um fortalecedor e
propulsor da vida que é dada, pelos deuses, aos Guarani. Esses indígenas, ao cantarem “com a
alma” ou expressarem o seu som, conectam a terra (primeiro elemento) com uma instância
divina (segundo elemento). O ser humano – terceiro elemento dessa noção (conector) - forma
uma forte estrutura coletiva que estabelece a relação entre o visível e audível e o invisível e o
silêncio. No plano, visível e audível, está a terra, uma mãe que abriga os homens, fornece os
instrumentos musicais - tudo que é fruto da natureza, da terra, é sagrado. O indígena, em
contato com a terra e com seu instrumento musical, produz o som que dará base para o canto
sagrado das crianças. A instância sagrada, antes oculta, mostra-se através do mba‟epú,
expressão profunda da vida que se origina nos deuses Guarani.
76
Consideramos que o ocultamento e o não dizível que percebemos na concepção de
música dos Guarani, permanecem no diálogo com os M‟byá, pois nem tudo pode ser revelado,
e alguns termos importantes não têm tradução para a língua dos não-indígenas. O segredo
sobre aspectos da música sagrada garantem a proteção desses indígenas contra males
espirituais e terrenos.
Nessas situações de ocultamento necessário, surge um elemento relevante do diálogo
intercultural, o silêncio. Pensamos que este teve dois significados, em nossos encontros. O
primeiro é certo “prelúdio” para a conversa e a própria música, necessário para todo o tipo de
comunicação e pertencente à esfera espiritual: “O silêncio é o impulso que engendra os sons,
as linguagens, as músicas. [...] O silêncio iniciático muda o coração de todo homem. É a
instrução espiritual mais significativa. A verdade transcende as palavras, embora estas, muitas
vezes possam indicar uma direção” (FREGTMAN, 1989, p.47, 48).
O silêncio, como transformador do homem e instrução espiritual, aproxima-se do que
percebemos acerca da perspectiva M‟byá, pois falar o desnecessário é indício de falta de
sabedoria. Os mais velhos - ponderados e silenciosos - são referência para os adultos e jovens
e ocupam lugar de respeito na tomada de decisões. Dessa forma, o silêncio é indicador de
sabedoria e desafia-nos a vivenciarmos novas formas de comunicação humana.
Em alguns momentos, seja pela orientação do líder espiritual, na roda de chimarrão ao
amanhecer, ou pelo limite das revelações da entrevista, instalava-se o silêncio, que poderia
perdurar e normalmente era interrompido pelos meus comentários. Nesse sentido, o silêncio
foi um elemento importante que marcou o limite da revelação sobre o mba‟epú e a
necessidade de respeito pela preservação de determinados componentes da tradição M‟byá-
Guarani. Foi esse “jogo” de revelação e ocultamento que determinou as fronteiras de nosso
diálogo e garantiu a ausência da violência, como impedimento, do outro decidir o que deve
ser compartilhado. Trazemos aqui uma citação longa, mas que consideramos fundamental
para este compreensão.
Então, não tem como tirar dos índios. Claro que pra gente dizer da música, do som,
mba‟epú...quando a gente fala jeroji a gente fala a música e a dança. Jeroji que nós
chamamos, é que ao mesmo tempo em que você pede a força da terra, da mãe terra,
você recebe o fortalecimento do espírito através do som. Então, por isso que é
importante saber um pouco o que é a música, o que representa a música dos
indígenas. Então seria importante falar essa parte, porque não é só uma música,
não é um som. A palavra mba‟epú significa vida e força, tu vai viver mais. Porque
antigamente vive cento e oitenta, duzentos anos de vida com essa música, com esse
som, mba‟epú, mba‟e é de nossa, pú é som. Então esse mbae‟pú significa... claro
77
que para explicar, no português mesmo não tem explicação, porque é uma coisa dos
deuses, então não tem tradução para o português, tu não consegue, mas pra poder
entender um pouco como é que é a forma, como é que a gente usa esse mba‟epú.
Pra nós tem significado, em português é a vida, a saúde e a força. Não é música. O
branco fala assim: música, música você escuta de amor, por exemplo, você lembra
que um dia você tem, um dia você namorava, quer namorar tomando cerveja,
escutando som quer tomar mais cerveja, por exemplo. É muito diferente da música
tradicional. Mba‟epú é um toco assim (gesticula com as mãos a forma de um toco
fincado no chão), que segura, um toco com uma raiz que dá conhecimento do
mba‟epú. O que significa? Mba‟epú é um toco que está enfiado na terra, e você
segura, você olha. Então é por isso que é mba‟epú. Pode ser mba‟epú – aí já fala
tudo – não fala de ravé [rabeca tradicional, semelhante ao violino, porém com três
cordas]. Ao mesmo tempo tem dois: mba‟epú jerojy, fala da coletividade. Tu não
divide: aqui é violão, aqui é tambor, não tem essa forma. É uma mba‟epú, que
significa, já é conjunto.
Mba‟epú, essa palavra vem dos deus, não tem explicação. Em português não tem,
porque não está escrita, tem oralmente. Então, no canto é a mesma coisa, mba‟epú
junto com uma m‟baeaã, o canto das crianças e também dos adultos. M‟baeaã
significa a mesma coisa da explicação do som. Mba‟epú, m‟baeaa é a mesma coisa.
É interessante, significa que mba‟epú, m‟baeaa, aí significa que tu poderia chegar
num momento aguyje. O que significa aguyje? Aguyje tu pode viver eternamente,
sem morrer. Por isso hoje tem m‟baeaã (cântico). Por exemplo, a gente canta. No
português também não tem tradução, m‟baeaã, aguyje. A gente busca essa música,
esse som (CIRILO, Entrevista, 18.07.2011).
A perspectiva de nosso interlocutor, no que chamamos de terceiro entendimento de
som, não é comum em descrições da música indígena que separam música e ser humano. Esta
concepção de investigação não avança além do estabelecimento de relações entre música, vida
e disposição, pois não considera o som como elemento do próprio ser Guarani. Mesmo que,
em alguns momentos, essa relação entre música e vida apareça na fala do Cirilo, sempre é
acompanhada pela noção de música, que é inseparável do ser Guarani e seus estados de
felicidade e disposição. Ele descreve a música como indissociável da vida e da força indígena,
ela é inclusive, parte da corporalidade expressada pelo canto e dança, é o elo entre o sagrado,
o humano e a terra, que está no corpo do Guarani. Compreendemos que essa mudança de
perspectiva – característica da cultura M‟byá - deve ser considerada, e entendemos também,
que é um desafio dialogar com essa concepção de mundo, pois é uma ideia marcada por uma
cosmovisão complexa e que, até hoje, foi, em muitos momentos, investigada a partir de uma
ótica ocidental e eurocêntrica. O destaque dado por Cirilo sobre a impossibilidade de tradução
do significado de mba‟epú, também é importante, para percebermos que, no diálogo
intercultural, lidamos a todo o momento, com o intraduzível e, ao mesmo tempo, com a
necessidade da tradução, mas que esta não seja violenta, e sim, se dê no próprio espaço
amoroso de compreender o Outro. Dessa forma, a aproximação do “lugar” de onde os M‟byá
falam é o pressuposto fundamental para que nossa investigação faça uma vivência da
interculturalidade.
78
Esta ótica, que orienta as descrições do Cirilo, marca a identidade desses indígenas,
que é fundamentada numa cosmovisão constituída, essencialmente, pelo sagrado. O Cirilo
expressa esse entendimento ao referir-se a música tradicional dos M‟byá:
Os brancos cantam! Vamos fazer uma música!Vamos fazer um coral por exemplo. A
gente vai fazer a apresentação com o coral, o pessoal gostou, mas não sabe por que
está gostando, porque é uma música milenar que leva o pensamento para natureza.
Você pensa de outra forma, pensa na natureza, na planta, no vento, na chuva, no
mar, na pedra. Tudo que as crianças cantam representa a natureza. Então é uma
coisa importante essa música. Então a gente respeita essa música, mba‟epú
(CIRILO, Entrevista, 30.07.2011).
A espiritualidade que permeia essa cosmovisão não está desconectada da vida prática,
bem como a música não é possível sem esta instância, pois é a permissão dos deuses que
possibilita a mediação entre o divino e a terra, feita pelos indígenas. A terra, desse modo,
representa tanto a dimensão do cotidiano, que permite a sobrevivência, como a relação do
humano com o sagrado. Nesse momento, a música, com uma relação intrínseca com o
sagrado, pode ser pensada na mesma duplicidade de sentido que a terra possui, ou seja, ela
permite, para os indígenas, a relação com o cotidiano, mas abre e se instaura numa relação
com o sagrado. O significado desta música (mba‟epú) é abarcado, em sua totalidade, somente
na língua guarani, e os próprios indígenas não conseguem descrever o seu fim ou início.
Assim, o mba‟epú tem, como característica relevante, a infinitude. É o que revela Cirilo
quando diz: “Por isso que a gente respeita muito o canto. Não tem fim, eu mesmo não sei qual
o fim da música. Não tem como dizer aqui acabou. Continua. Por isso, por milhares de anos
as crianças estão cantando” (CIRILO, Entrevista, 24.09. 2011).
É imensa a distância entre a concepção de música dos Guarani e a compreensão que
nossa cultura tem da música. Por exemplo, o quanto a música se torna um produto de
consumo regido pelo mercado e por interesses de grandes instituições, promovendo a
alienação e a ausência de crítica. A música é adequada aos padrões que chamam a atenção
daqueles que formam o senso comum e é banalizada para atender ao mercado. É evidente o
desprezo pelo trabalho de compositores brasileiros que optaram por não entrar no mercado e
resistirem às imposições das grandes produtoras. O resultado desse impasse, em muitos casos,
é a criação independente, na qual músicos promovem seu trabalho a partir de meios
alternativos que não atingem a grande mídia.
79
Outro aspecto relevante que percebemos na fala do Cirilo é a emoção e a satisfação de
ser Guarani que acompanha suas palavras. Seu sorriso e tons mais altos de voz expressam,
também, a confiança e o orgulho, que tem esse indígena, pelo som, pela música tradicional.
Esta está intimamente ligada à religiosidade e é conservada e afirmada a partir do ritual na
opý – local, que guarda a prática musical espiritual, que não é revelada para os não-indígenas.
Assim, a música tem, como essência, a espiritualidade, tanto em sua origem, como na
influência que exerce sobre os seres humanos indígenas e não-indígenas.
Uma música, mba‟epú nhendú é muito amplo, muito amplo porque m‟baepú nhendú,
nhendú, a palavra vem na inspiração das pessoas. Por exemplo, a palavra vem
pelos deus e mba‟epú nhendú, com essa palavra a gente cura, é palavra viva, as
palavras que curam as pessoas. Mba‟epú nhendú, nhendú você está feliz. Por que o
índio Guarani hoje está feliz, se está morando no meio da estrada? Por falta de
alimentação o índio nunca vai morrer, o índio vai viver sempre. O índio tem vida
porque é um ser humano que protege o território da terra, nós chamamos nharupá.
Aí vem uma música, ela está junto com a terra. A música com a terra e com a alma.
Mba‟epú, ravé. Ravé é aquele violino, nós chamamos ravé. A ravé é a mesma coisa,
a palavra significa mais um passo dos índios Guarani. Ravé (a música que leva), a
música que abre o caminho, vê o futuro. Essa é a espiritualidade que a gente
acredita bastante (CIRILO, Entrevista, 18.07.2011).
A música, que é apresentada nas ruas, é mais superficial, revela apenas a relação dos
Guarani com a natureza, seus desejos e necessidades e algumas marcas da identidade M‟byá-
Guarani. O Cirilo esclarece que, nessas situações, mesmo sendo músicas diferentes das que
são executadas na casa de rezas, os não-indígenas não têm conhecimento sobre os benefícios
que a música dos corais, que estão nas ruas, traz para eles. Mesmo fora da opý, a música tem a
capacidade de curar. Por isso, não há possibilidade de troca justa, através de contribuições em
dinheiro, pois os benefícios da música, na vida humana, não são mensuráveis, são espirituais,
supremos. A falta de consciência dos não-indígenas, sobre a importância da música para o
viver bem, é um fator que gera o desrespeito pela cultura M‟byá-Guarani. A música indígena
não existe para ser consumida, mas para ser vivida.
Sobre os instrumentos musicas dos M‟byá, nos ateremos à importância desses
componentes na noção de mba'epú, para os Guarani. A escolha dessas duas ideias deu-se, pela
necessidade, em nosso ponto de vista, de aprofundar a reflexão sobre a materialidade na
noção de som desses indígenas.
Os instrumentos musicais, embora sejam sagrados, pois são fabricados com madeiras
sagradas, retiradas da natureza, em alguns momentos da descrição do Cirilo, aparecem como
80
componentes de uma esfera inferior da música: “O som é importante, não é o instrumento que
a gente valoriza, é o som, porque o som não é de nosso, o som é de Deus” (CIRILO, Entrevista,
2011). Essa perspectiva, de certa inferioridade dos instrumentos musicais, designa a
valorização da espiritualidade, no entendimento de som, contudo, não parece menosprezar tais
componentes do mba'epú, uma vez que estes são construídos com madeira e métodos
sagrados, os quais respeitam a qualidade do material e o tempo de criação do luthier. O som
produzido pela ravé e o mba'epú (cordofone de cinco cordas) é fundamental para a
constituição da música, nos três entendimentos que apresentamos, pois, junto com o canto,
formam uma espécie de portal da música Guarani, no qual a ravé e o mba'epú são pilares que
sustentam o canto.
A fala do Cirilo expressa sua consciência sobre o desrespeito que sofrem os M‟byá, na
sociedade de consumo, globalizada e neoliberal. Essa forma de vida dos não-indígenas remete
à barbárie da colonização brasileira e da assimetria dos indígenas, perante a voracidade dos
colonizadores. O respeito à música é antagônico à uniformidade e a não aceitação de
elementos que constituem a identidade M‟byá-Guarani. Repetidamente, nosso interlocutor
afirma a necessidade do não-indígena entender a música Guarani para gerar o respeito pela
cultura indígena. Ao ser questionado sobre a relação atual entre indígenas e não indígenas ele
responde o seguinte:
Pra mim a situação é a mesma, só que estão respeitando mais porque os índios
estão se defendendo e os brancos ficam parados. Na verdade não está bem
respeitado. Por exemplo, tem muito preconceito, o índio tem que estar no mato, não
pode andar na cidade. Esse preconceito é porque as pessoas não sabem dos valores
que o índio tem. Não, índio é selvagem, por exemplo, tem que morar na floresta.
Mas muitas vezes não é assim, como o índio vai ficar na floresta com tanta doença.
Então nós defendemos essa parte. Porque nunca chegaram a respeitar realmente,
porque muitas vezes não acreditam, poucos acreditam. Por isso é importante esse
diálogo, essas conversas. Agora não é como antigamente, hoje matam com a caneta.
Isso mudou, com certeza mudou. A gente não sente dor, mas sente pressão. Então,
por exemplo, muitas pessoas chegam só pra tirar fotos. Chegou índio, tira foto das
crianças, não respeitam, índio é criança, não sabe nada. Pensam que índio é bobo,
tiram foto, filmam. Falam: índio não sabe, é analfabeto. Não sabe de direito
autoral, direito de imagem. Isso acontece até hoje. Por isso é importante as pessoas
estarem junto, acompanhar esse processo, pra gente criar uma forma de respeito.
Ter um documento de como ser tratado o índio. Então tem que ter um documento.
Se a gente vai fazer algum trabalho, qual troca poderia fazer. Tudo isso deveria
colocar no papel, porque os brancos não respeitam oralmente, respeitam o papel.
Nós precisamos aprender a lidar com o papel também. Não adianta falar e não
respeitar. Temos que colocar no papel para que seja respeitado. Por isso é
importante esse trabalho. Eu fiquei contente, porque vai servir para todos Guarani
esse trabalho (CIRILO, Entrevista, 30.07.2011).
81
Quando o Cirilo fala sobre o contrato, ele compreende, neste momento, a necessidade
de afirmação desta negociação, dando visibilidade e materialidade aos critérios reguladores,
comentados por Salas (2010).
O respeito à cultura Guarani, passa pelo reconhecimento dos não-indígenas, sobre a
forma de atuar no mundo desses indígenas, e a música é um elemento essencial para essa
compreensão, pois ela influencia diretamente, os estados de ânimo e não-violência no
cotidiano das aldeias. Em situações de conflito, a música suscita estados emocionais que
tornam a ação M‟byá ponderada e pacífica. Assim, a música apresenta-se, na esfera social,
como pacificadora, no interior das aldeias e, como descreveu nosso interlocutor
anteriormente, é a arma de defesa contra iniciativas violentas dos juruás.
Sobre os conflitos internos e a importância da música para garantir a ausência de
violência o Cirilo afirma que,
Nós falamos da tradição, quando fala de música, essa música dá um ânimo. Por que
estou falando essa música? Retomando essa parte. Se houver uma briga dentro da
aldeia, aí tocamos uma música. Se emocionou, então tá, não vou brigar como meu
parente, mas vou me mudar, pra não ter briga. Essa forma de vida que a gente vive,
fala de conhecimento milenar que a gente lida com nossos irmãos, com os parentes
M‟byá-Guarani que sempre se mudam. Muitas vezes faz parte da cultura Guarani o
sistema de mudar, não pode proibir. Não pela briga muitas vezes se muda, às vezes
é pela briga, não é briga física. Não se entendeu, então se muda, aí vem uma
música, então tá, pra consolar, pra ficar bem, ou tu fuma. Vou me mudar pra não
acontecer nada, a vida é assim é muita harmonia (CIRILO, Entrevista, 30.07.2011).
Enfim, as esferas da música e da ética se entrelaçam, a partir de uma cosmovisão
orientada pela espiritualidade, esta permeia o fazer M‟byá no dia-a-dia, evitando situações
violentas e garantindo a harmonia, no interior das aldeias. A subjetividade de um Guarani é
constituída, sobretudo no âmbito da ética (aete), pela sua conexão com o sagrado e com a
natureza. O intermediário do encontro entre o visível e o não visível é o indígena, que recebe
os benefícios do som. Assim, o mba‟epú, constitui-se num importante elemento para o
convívio simétrico entre os indígenas e nos desafia a repensar a importância da arte, no
diálogo intercultural. Ao descrever o “ser músico” como “dirigir o olhar para coisas
fundamentais da vida” (FREGTMAN, 1989, p. 48), Egberto Gismonte2 compreende a música
como possibilitadora do autoconhecimento e da percepção de questões fundamentais da vida:
2 Artista brasileiro com amplo trabalho desenvolvido no âmbito musical e com vivências musicais com indígenas
brasileiros. Ele descreve no diálogo com Fregtman (autor da obra que tem a participação de Egberto) algumas de
suas experiências com a música, esta é chamada no livro de música transcendental e se aproxima da concepção
de música indígena.
82
“O respeito, a benevolência, a paciência, o silêncio” (FREGTMAN, Ibid., p. 48), Esta noção
aproxima-se do costume M‟byá de tocar uma música, cantar para, através da emoção, evitar a
violência e preservar a solidariedade entre os Guaranis nas aldeias. O som tem a capacidade
de acalmar os indígenas, envolvidos em situações conflitivas, sendo um fator relevante para a
instalação da convivência pacífica. Contudo, ela não elimina o conflito e a busca de soluções
para superá-lo, pois é um dispositivo que evita o contato violento e, assim, possibilita uma
resolução, que muitas vezes, é a saída da aldeia e a busca de uma nova comunidade M‟byá
para viver.
4.3 Considerações sobre o Aete Guarani: principio fundamentador da
interculturalidade
O agir, no cotidiano Guarani, é fundamentado em preceitos espirituais, intimamente
relacionados à vida prática. A espiritualidade é uma instância que faz parte da ação solidária,
é uma orientadora das relações sociais. A palavra aete (ética) foi utilizada pelo Cirilo para
designar a conduta na qual não enganamos o Outro e dizemos a verdade, por reconhecer o
Outro como um ser respeitável e que tem conhecimento – mesmo que este conhecimento seja
distinto do indígena. O aete concretiza-se, no encontro de duas identidades, que devem ter a
liberdade de falar e a sabedoria para ouvir. Ao aceitar esse diálogo, os participantes
comprometem-se a falar a verdade. Aceitar o diálogo, sentar para conversar sobre a cultura
Guarani é privilégio de amigos, de pessoas que conquistam e preservam a confiança, como
elemento essencial da relação que, no caso dos M‟byá, foi estabelecida, depois de um longo
convívio.
Normalmente, a restrição é feita com o anúncio de outro indígena que diz: “o cacique
não está”. Escutei essa frase algumas vezes nesses últimos oito anos.
A espiritualidade Guarani permeia suas vidas práticas e é vivenciada na ação fraterna,
orientada pela cosmovisão Guarani, que não privilegia o imediato, mas “olha para frente”,
constrói o futuro, a partir do presente, sobretudo, no contato com a natureza, através de
vivências profundas, no âmbito artístico-espiritual. Seja na confecção de instrumentos
musicais ou de bichinhos de madeira, os Guarani tomam consciência da influência dos
espíritos que habitam cada ideia, cada forma de um animal ou do próprio material provindo de
83
árvores. Nesses dois casos, as árvores que servem para a criação dos instrumentos musicais e
dos bichinhos representam uma natureza sagrada. Cada animal criado, a partir da madeira,
tem uma forma de ser, como a ação de voar (borboleta), ou transmitir medo (cobra). O contato
–através da criação – influencia os estados mentais do artista, com suas propriedades
intrínsecas, e essa vivência tem a capacidade de curar, de resolver problemas. Portanto, a
espiritualidade é a instância mais significativa do teko (vida). A arte tem validade porque é
espiritual, é exercida com a ideia de dar teko, ela está imbricada com a ação solidária e não
com a venda ou acumulação de bens.
A ação gerada pelas vivências espirituais evidencia a forma de tratamento privilegiada
pelos M‟byá, a qual busca preservar a “sutileza” na comunicação – sobretudo com as crianças
– para não causar estados emocionais de raiva, medo, injustiça. As palavras devem ser usadas
para acolher o outro e colaborar com seu desenvolvimento, elas são poderosas e podem gerar
a agressividade que comprometerá a vida pessoal de um indígena. A música tem a capacidade
de emocionar e, assim, constituir um ser humano mais sensível, pois, para os Guarani, a razão
acompanha a emoção. Assim, o Guarani age com a mente e com o coração, sente a natureza e
o outro, percebe atentamente seus parceiros, suas crianças, e assim, dirige-se a elas com a
intenção de suscitar um estado de ser harmônico e equilibrado, construido com a natureza,
com o sagrado o teko. Nesse âmbito social, a música tem, como um de seus atributos, impedir
a agressividade. Referindo-se ao ritual xamânico Guarani, Montardo (2002, p. 263) afirma
que, “A plasticidade do ritual guarani, com as formações em linha e as reverências ao dono-
do-Sol, o herói criador, o grande xamã, é exercida na vida social com um domínio da
agressividade [...]”.
O nexo entre mba‟epú e aete está na produção de um ambiente harmônico, de respeito
e liberdade pela música que estabelece a ética. Antes de considerarmos aspectos relevantes do
aete Guarani, destacamos que alguns de seus elementos pertencem à esfera privada e ficaram
ocultos na fala de nosso interlocutor. Portanto, nossas considerações estarão limitadas à esfera
pública. Contudo, os aspectos descritos pelo Cirilo são esclarecedores e revelam um sistema
lúcido e minucioso que orienta a ação cotidiana na tekoá (lugar de vida, aldeia). A vida, nas
aldeias, é marcada pela busca de harmonia, embora esta não designe ausência de conflitos.
Recorrendo aos postulados da ética intercultural, defendemos que o conflito é um elemento
constituinte da dinâmica natural da cultura. No entanto, na perspectiva dos Guarani, a
violência é evitada pela emoção, gerada através da música. Dessa forma, o ápice de um
conflito, não se configura em agressão, mas pode implicar na saída dos sujeitos incomodados
84
da aldeia. Estes caminham em busca de uma nova tekoá, na qual serão recebidos e
constituirão novas possibilidades de convívio. Por isso, os Guarani compreendem o caminhar
–marca de sua cultura – como uma prática de superação dos desentendimentos que poderiam
fragilizar a teko.
O mba‟epú relaciona-se com o aete, como propulsor do contato fraterno que impede a
violência, gerando teko, força contrária à estagnação e à morte. Essa busca é constante na
atuação M‟byá, gerar teko; atingir o momento aguyje (eternidade) a vida, em sua forma mais
plena. A emoção é outro elemento importante que a música suscita, o indígena, influenciado
pela música, substitui a agressividade pela tranquilidade que possibilita pensar na resolução
de um conflito, mesmo que seja a de sair da aldeia. O mais importante é evitar o contato
violento. Dessa forma, pensamos o mba‟epú como uma instância que influencia a esfera
individual e coletiva, harmonizando as relações entre homens e, destes, com a natureza. Essa
potência da música Guarani advém, sobretudo, da espiritualidade, que abarca o audível e o
não-audível e que se expressa no contato íntimo desses indígenas com o sagrado, através de
seus encontros mediados pela música, principalmente, na opý. Esta prática pertence à esfera
privada e é essencial para a manutenção da espiritualidade e proteção da teko. A partir dessas
considerações, sustentamos a ideia de que a música M‟byá-Guarani é indispensável para
pensarmos sua ética, a ligação entre arte e a ética orienta e dá sentido às “relações tensas que
caracterizam uma cultura” (SALAS, 2003). Pensar a ética Guarani pressupõe pensar a música
e sua influência na teko. A busca da vida, da disposição, da alegria depende do equilíbrio
subjetivo e do estabelecimento de um contato fraterno, com os integrantes humanos e não-
humanos da tekoá. Assim, postulamos a impossibilidade de pensarmos o conceito de aete -
mesmo com a limitação da tradução intercultural e linguística – sem pensarmos o mba‟epú.
Portanto, a ética tem, como elemento fundamental, a conexão entre terra, humano e sagrado,
as três instâncias que constituem o mba‟epú, um elemento caracterizado pela complexidade e
que nos desafia a repensarmos a relação entre arte e ética. Isso se dá porque o fazer artístico
tem uma íntima relação com o Outro que é aqui, tanto natureza, como divino e humano. Aliás,
estes três elementos se encontram também relacionados.
Desenvolveremos, agora, algumas considerações sobre a relação dessas noções de arte
e ética, com a vida prática dos M‟byá, quando buscam estabelecer relações sociais
equilibradas e lidar com os conflitos evitando a violência.
85
Segundo depoimentos do Cirilo, a palavra e a forma como esta é transmitida, necessita
de cuidado e conhecimento, pois a palavra gerada, com agressividade, produz violência,
sobretudo, no interior da pessoa atingida, e esta reproduz a ação ofensiva.
Isso mostra a importância da palavra para o Guarani, como comenta Colombres (1997,
p. 37),
Para los guaraní, todo es palavra. La identificación es tan plena, que se habla de
palavra alma (Ñe‟e). Ñe‟e, en guaraní común, significa linguaje humano, aunque el
término se aplica también al canto de las aves, al chirriar de algunos insectos. La
función fundamental del alma es la de transferir al hombre el don del linguaje. La
palavra es la manifestación del alma que no muere, del alma original o alma humana
de naturaleza divina, que se diferencia del alma animal, ligada a la carne y la sangre,
a la vida sensual [...]. Muy pocas lenguas en el mundo han legado a la biologia más
nombres de plantas y animales que la guaraní, hasta el punto de que se afirma que
sería la terceira en tal sentido, luego del griego y el latin.
E o autor segue, mais adiante, dizendo que “por su misma naturaleza sagrada, los
guaranies consideran inconveniente que su nombre verdadero esté en boca de todos, y en
especial de los que pueden hacerles daño” (COLOMBRES, 1997, p. 39).
Dentro deste contexto em que a palavra é extremante significativa, as crianças são as
mais protegidas e é obrigação dos adultos utilizarem palavras adequadas e expressá-las
suavemente, a fim de preservarem a passividade e evitar a constituição de jovens violentos.
Os adultos, inclusive, utilizam palavras distintas no tratamento com crianças. Podemos citar
como exemplo, os dois significados de silêncio em Guarani. Para pedi-lo a um adulto, fala-se
japixaka e, para uma criança, a palavra adequada é eirive.
Parece-nos evidente que há esforço e conhecimento necessário para a prática dessa
forma de comunicação não-violenta e que a relação equilibrada é uma marca dos Guarani.
Contudo, a questão que nos inquietou, desde o início desta investigação, é a possibilidade de
efetivar tal contato, nas relações interculturais, diante de cosmologias e formas de agir
distintas. Esse problema constituiu a questão central de nosso estudo: será possível evitar a
violência diante de conflitos inerentes de um encontro entre indígenas e não-indígena?
Percebemos, através do contato com o pensamento Guarani aos pressupostos da ética
Intercultural, principalmente o postulado de que o encontro intercultural, portanto justo,
configura-se na ação em que reconhecemos uma dignidade inviolável no Outro (diferente), já
se encontram ali presentes. Este postulado só é possível na convivência conflitiva, sem
opressão ou desprezo do ponto de vista de outra cultura. Mesmo diante da profunda história
86
de violência e opressão vivida por estes povos, eles nos ensinam o significado e a importância
de estarmos juntos.
Para finalizar, faremos um resgate de nosso estudo, tratando de destacar as ideias
fundamentais que surgiram no encontro com os M‟byá-Guarani, bem como, os fundamentos
teóricos que embasaram o trabalho. Descreveremos nossas considerações sobre os resultados
alcançados pela pesquisa e suas constatações essenciais.
87
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer da presente pesquisa, não tivemos a intenção de evidenciar a relação entre
música e ética, corroboramos com Viveiros de Castro (2002, p. 136) - se referindo à reflexão
de uma concepção ameríndia – quando afirma que “nenhuma ideia interessante é evidente”.
Essa ausência de evidência não foi um incômodo, em nosso diálogo, mas sim um elemento,
que possibilitou e caracterizou a forma de reconhecer nosso objeto de estudo, sem querer
determiná-lo ou desvendá-lo completamente.
Ao pensarmos os três entendimentos de música dos M‟byá, não buscamos afirmar a
veracidade da música dos Guarani como possibilitadora da ética, mas de perguntar o que
nosso interlocutor queria dizer, quando descrevia as noções de mba‟epú (música). Foi desse
modo que nosso problema central se desdobrou nas seguintes questões: O que essas
concepções expressavam sobre o encontro entre humanos? E quais as implicações dessas
noções de música e ética, em nosso entendimento de diálogo intercultural? Como esta
pesquisa estabeleceu o diálogo através da relação do pesquisador com o interlocutor?
Essas questões orientaram nossa investigação e o encontro que construímos com os
M‟byá, e que nos desafiou a pensar novas concepções do próprio diálogo.
Iniciamos nosso estudo, apresentando a interculturalidade, diferenciando-a do
colonialismo e defendendo a ideia de que as relações entre colonizadores e nativos foram
pautadas no conhecimento que explora e que não se importa com o ponto de vista do Outro.
Foi importante marcar essa epistemologia dos colonizadores, por dois motivos.
Primeiramente, para evidenciar uma relação assimétrica que marcou, durante anos, a história
do contato, entre colonizadores e nativos; o segundo e mais importante, foi apresentar a
interculturalidade, como possibilidade de superação do colonialismo, pois consideramos que
este, ainda age na sociedade atual, tomando formas diferentes das antigas invasões da
88
América, por parte dos europeus. Atualmente, é mais forte a colonização do pensamento que
impõe uma forma de conceber o mundo como legítima e recusa-se a reconhecer outras formas
de pensar. A interculturalidade abriu nossa discussão, como certo prelúdio, para irmos ao
encontro de nossa fundamentação teórica essencial, a Filosofia Interculturral.
Nosso segundo passo foi discorrer sobre a Filosofia Intercultural, teoria que forneceu
pressupostos para orientar nossa pesquisa, abrindo caminho para pensarmos nosso problema e
localizá-lo, no âmbito que desejávamos, ou seja, o filosófico. No entanto, necessitávamos de
uma Filosofia que permitisse legitimar a pesquisa de campo, como um elemento relevante do
trabalho, e que estivesse desprendida das concepções clássicas de Filosofia, estas, marcadas
pela hegemonia de uma cultura grega e mais adiante européia, pois seria contraditório
postular a possibilidade de um encontro intercultural, a partir de uma fundamentação teórica
colonizadora. Optamos pela descrição de fundamentos teóricos da Filosofia Intercultural, a
partir da história da Filosofia latino-americana, para marcar a “guinada para a
interculturalização da Filosofia” (FORNET-BETANCOURT, 2004, p. 95), na qual a
interculturalidade é discutida, com aprofundamento, na esfera filosófica, e entendida, como
fundamental, para um pensamento latino-americano que não dá as costas para o pensamento
ameríndio e afro-americano.
No terceiro momento, apresentamos a Etnopesquisa como metodologia do estudo. Esta
abordagem propunha a construção da forma de pesquisar, a partir da própria pesquisa, ou seja,
da relação com nosso interlocutor e, assim, “o conhecimento produzido é ele próprio uma
relação” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 148), permitindo a retomada e adequação do
procedimento de investigação, conforme a realidade, os desafios intrínsecos e problemas
diversos, oriundos de uma pesquisa de campo que contata com outra cultura. A Etnopesquisa
também nos permitiu propor uma epistemologia que teve, como elemento central, o
reconhecimento de uma dignidade inviolável no Outro, que em nosso caso, foram os M‟byá-
Guarani. Da mesma forma, essa metodologia abria espaço para a interdisciplinaridade, que foi
indispensável em nosso trabalho, pois, mesmo tendo a Filosofia como campo central,
necessitávamos dialogar com a Antropologia, a Sociologia e toda área que colaborasse com o
desenvolvimento de nosso trabalho, pois defendíamos que utilizar apenas uma área do
conhecimento, limitaria nosso estudo.
A Ética Intercultural nos forneceu os fundamentos do diálogo intercultural, nas
instâncias hermenêutica e pragmática e, de forma cautelosa, propunha pressupostos possíveis
de universalização, para a introdução de uma relação simétrica, bem como a categorização de
89
conflitos, para que detectássemos aqueles que poderiam ser resolvidos, possibilitando a
continuidade do estudo.
A relação constituída, no campo de pesquisa, foi marcada pela transformação
recíproca, pois, como afirma Viveiros de Castro (2002, p. 114) ao referir-se ao conhecimento
antropológico, “toda relação é uma transformação”. Defendemos, assim, como o faz o autor
citado na mesma obra, que não foi a relação que constituiu as variações, mas as variações que
constituíram a relação. Essas variações estavam, intimamente, relacionadas às diferenças
culturais que faziam parte do diálogo.
Imbuídos desses pressupostos, buscamos pensar o diálogo intercultural, a partir da
música e as implicações dessa instância artística no encontro entre indígenas e não-indígenas.
A quarta etapa do estudo foi construída, fundamentalmente, a partir das entrevistas e,
também, da observação participante. Esses momentos proporcionaram a partilha de
experiências, pois entendíamos, assim como afirma Viveiros de Castro (2002, p. 123) que não
se tratava de “propor uma interpretação do pensamento ameríndio, mas de realizar uma
experimentação com ele”, legitimando a proposta da Filosofia Intercultural, de dialogar com
outras racionalidades e reconhecer sua importância no pensamento latino-americano
(FORNET-BETANCOURT, 2004). Nossos encontros foram pautados pela escuta sensível
(elemento fornecido pela Etnopesquisa) e a busca de aproximação do ponto de vista –
entendido no estudo como relação entre as noções e os conceitos dos Guarani no discurso - e
posterior reflexão das informações gravadas e transcritas. A transcrição possibilitou o
aprofundamento da primeira escuta e facilitou nossas considerações sobre o pensamento
M‟byá, na busca de responder a questão essencial de nosso estudo: Será possível o diálogo
intercultural entre indígenas e não-indígenas, tendo como elemento fundamental a música?
A música tornou-se a instância central dessa etapa, sendo a estética o ponto de partida
para pensarmos a ética, contudo, percebemos que as noções e conceitos que envolviam essas
duas esferas estavam imbricadas, de tal forma, que, por vezes, se confundiam. Essa
constatação revelou outra característica importante do pensamento desses indígenas, a não
fragmentação. Suas noções e conceitos se relacionavam, de forma equilibrada e harmônica.
Como uma sinfonia, expressaram, nessa íntima relação, princípios para a convivência pacífica
e a possibilidade da união das instâncias espiritual e humana na constituição da ideia de
mba‟epú (música).
90
Um importante elemento que constituiu o diálogo intercultural, durante o convívio
com os M‟byá, foi o silêncio. Aos poucos, esse elemento foi tomando um lugar de destaque,
na relação com os Guaranis, sobretudo, em momentos que nos aproximávamos de
informações que pertencem à esfera privada desses indígenas. Então, a aceitação do segredo,
daquilo que não pode ser dito, tornou-se um ato de respeito com nosso interlocutor. Por isso
destacamos que o diálogo intercultural, nesse caso, foi constituído pelo silêncio, um elemento
raro, quando falamos de diálogo filosófico, pois esse pressupõe o discurso e não o silêncio.
Constatamos, no decorrer do trabalho, que a possibilidade de estabelecer o diálogo
intercultural pressupõe o reconhecimento de um pensamento Guarani, distinto do pensamento
não-indígena (o que não é novidade). No entanto, é preciso dar mais um passo, o de
reconhecer, também, que essa diferença não configura uma inferioridade dos indígenas - seja
ela epistemológica, conceitual ou pertencente à outra esfera - mas sim, um pensamento que
não alcançamos, através de nosso pensamento. Portanto, o ponto central da possibilidade do
diálogo está na necessidade de reconhecer o diferente, como diferente, e não como inferior. A
partir desse pressuposto, é possível legitimar o Outro como portador de um pensamento que
não temos acesso total, pelo nosso pensamento, que escapa de nosso pensar, pois, até mesmo
nossos conceitos são apenas para nós, não para os indígenas. A distinção, nesse caso, não está
somente nas concepções ou pontos de vista, mas na própria conceituação, é o que postula
Viveiros de Castro (2002, p. 124), ao referir-se aos indígenas com os quais conviveu: “[...] os
conceitos que eles se dão, as „descrições‟ que eles produzem, são muito diferentes dos nossos
– e, portanto, que o mundo descrito por esses conceitos é muito diverso do nosso”.
Evidenciamos essa diferença que se tornou fundamental, em nosso estudo, ao perguntar ao
indígena Vherá Poty, onde encontrar o mba‟epú (cordofone de cinco cordas) – essa questão
foi citada no capítulo IV. Notamos que o conceito de instrumento, naquele caso, não tratava
do objeto, como o fazem os não-indígenas, – pois o violão é uma viola de grande porte e o
conceito parte, essencialmente, da forma e características desse objeto – mas que o conceito
do indígena partia do som produzido, ou seja, a forma e características do instrumento eram
secundárias. Essa é uma diferença importante de ser notada, para constatarmos que a variação,
em relação ao pensamento não-indígena, está além das noções e envolve os próprios conceitos
dos m‟byá. É nesse sentido, que Salas (2003) afirma que o diálogo intercultural é possível,
somente, a partir do reconhecimento de uma dignidade inviolável no Outro. É também, o que
Fornet-Betancourt (2004, p. 113) postula – na esfera coletiva – fundamentando sua Filosofia
91
Intercultural, ao afirmar a necessidade de dialogar com outras racionalidades, para reconstruir
um pensamento que tem, como princípio, a interculturalidade:
A reconstrução de nossas muitas filosofias contextuais seria, em suma, a base para
transformar e recriar a filosofia na América Latina desde um diálogo sem exclusão,
e encaminhando, também, a pôr a filosofia a serviço da livre realização de todos os
mundos culturais do continente.
Nesse sentido, defendemos que a constatação dessa diferença conceitual aponta para a
consideração feita por Viveiros de Castro (2002, p. 125) sobre essa noção de conceito:
“Tomar as ideias indígenas, como conceitos, significa tomá-las como dotadas de uma
significação propriamente filosófica ou, como potencialmente capazes de um uso filosófico.”
A segunda consideração relevante que emerge de nosso estudo é que a música é um
elemento fundamental, quando tratamos da relação dos Guarani com outras culturas, pois ela
configura pressupostos éticos e define a construção da pessoa M‟byá –Guarani, sua forma de
ser, disposição, alegria, bem como, é responsável pelo controle da agressividade e resolução
de conflitos. Assim, afirmamos que a música permeia a esfera social e é um atributo que
constitui o humano - que se relaciona em comunidade - na perspectiva Guarani, sendo
indispensável na compreensão da ética. Assim, suas noções de música nos fazem pensar o
quanto a visão ocidental e capitalista transformou essa esfera do humano em objeto de
consumo, banalizando a música como “som que entretém e dá prazer ao cérebro do Homo
sapiens”(TAME, 1984, p. 30). Pensar a música M‟byá –Guarani pressupõe a superação dessa
noção superficial de música. Por isso, a noção de música desses indígenas, no decorrer da
pesquisa, apresentou outra perspectiva do significado da música, na vida humana. Essa noção
nos desafia a repensarmos a música, na sociedade de consumo, e os prejuízos que sofremos,
quando prevalece a ideia de música, como uma instância desconectada do humano. Isso
colabora para que a música esteja a serviço de interesses daqueles que dominam e oprimem,
através de um pensamento hegemônico, que não reconhece outras formas de pensar a arte e a
vida.
Consideramos, finalmente, que os postulados da Filosofia Intercultural e a ideia de
música M‟byá-Guarani configuram a possibilidade de criar novas formas de construção
filosófica que legitimem outros pensamentos e que a interculturalidade anuncia uma “re-
invenção” da própria filosofia.
92
E, ao retomarmos a nossa questão central, dizemos que sim: é possível estabelecer os
diálogos interculturais entre indígenas e não-indígenas, e a música M‟byá-Guarani é um
elemento central na configuração desses diálogos. Mas para isso, temos que,
fundamentalmente, ouvir, para escutarmos um som que não se traduz, mas que revela a
importância de estarmos juntos.
93
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