Dissertação - Lex Sportiva - Da Autonomia Jurídica Ao Diálogo Transconstitucional

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    Ramon de Vasconcelos Negcio

    Lex sportiva

    Da autonomia jurdica ao dilogo transconstitucional

    MESTRADO EM DIREITO

    SO PAULO

    2011

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    Ramon de Vasconcelos Negcio

    Lex sportiva

    Da autonomia jurdica ao dilogo transconstitucional

    MESTRADO EM DIREITO

    Dissertao apresentada Banca

    Examinadora da Pontifcia Universidade

    Catlica de So Paulo, como exigncia

    parcial para obteno do ttulo de MESTRE

    em Direito Constitucional, sob a orientao

    da Prof. Dr. Marcelo da Costa Pinto Neves.

    SO PAULO

    2011

  • BANCA EXAMINADORA

    ________________________________

    ________________________________

    ________________________________

  • Para meus pais,

    Francisco Negcio (in memorian) e Lucimarlene Costa.

  • RESUMO

    Autor: Ramon de Vasconcelos Negcio

    Ttulo: Lex sportiva: da autonomia jurdica ao dilogo transconstitucional

    Este trabalho pretende estudar o funcionamento da autonomia jurdica da lex sportiva e o seu

    limite diante de outra ordem, quando presente um problema jurdico (especialmente

    constitucional) comum a ambas. Aps esta anlise, procurar-se-o as possibilidades de

    entrelaamento construtivo de ordens, o que permitir novas percepes a respeito de

    questes tipicamente constitucionais. Partindo das Federaes Internacionais, ser mostrado

    que a globalidade do direito desportivo e sua forma vinculativa independem do contexto

    olmpico. Contudo, com o Movimento Olmpico, a Agncia Mundial Antidoping e, sobretudo,

    o Tribunal Arbitral do Esporte, foi possvel estabelecer maior harmonizao global da ordem

    jurdico-desportiva. Essa globalidade no raramente conflitou com outras ordens, o que exigia

    o entrelaamento proporcionado, destacadamente, pelos princpios constitucionais da

    igualdade e da liberdade. A documentao consultada composta por casos jurdicos,

    Estatutos e legislaes (nacionais, internacionais e transnacionais) contribuiu tambm para

    dar nova compreenso com relao soberania, ao acesso aos procedimentos

    constitucionais e nacionalidade, que no apenas se limitaro ao mbito nacional, como

    tambm transnacional.

    Palavras-chave: Lex sportiva; autonomia jurdica; transconstitucionalismo; soberania.

  • ABSTRACT

    Author: Ramon de Vasconcelos Negcio

    Title: Lex sportiva: from the legal autonomy to the transconstitutional dialogue.

    This work intends to study the lex sportivas legal autonomy operation and its limits against

    another order, when there is a legal problem (specially constitutional) which is common to

    both of them. Right after this analysis, one will search for the possibilities of constructive

    interlacements orders, which will allow new perceptions according to typically constitutional

    questions. From the International Federations, it will be shown that the sportive law and its

    binding form are independent from the olympic context. However, together with the

    Olympic Movement, the World Anti-Doping Agency and the Court of Arbitration for Sport,

    it was possible to establish a bigger global legal- sportive order harmonization. This global

    characteristic is not rarely conflicting with other orders, which demanded the proper

    interlacement of, prominently, equality and freedom constitutional principles. The

    documentation analyzed composed by legal cases, Statutes and legislations (national,

    international and transnational) contributed also to give a new comprehension regarding

    sovereignty, constitutional procedures access and nationality, which will not only be

    limited to the national scope, but also transnational.

    Keywords: Lex sportiva; legal autonomy; transconstitutionalism; sovereignty.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao CNPq, pela bolsa de estudos que viabilizou a vida em So Paulo.

    Sou imensamente grato ao rei dos mestres, Professor Marcelo Neves. No seria

    novidade falar da sua capacidade acadmica e de suas contribuies enquanto orientador e

    professor. Por isso, agradeo por ter me aceito como orientando. Minha gratido tambm se

    estende sua pacincia (o que inclui a Elvira) por me receber em sua residncia. Agradeo,

    ainda mais, pela postura humilde nas conversas extra-acadmicas, que envolviam msica

    (Cartola e Noel), cinema, teatro, poltica etc. Uma relao horizontal como essa s pode ser

    proporcionada por algum que aprendeu sem se ensinar....

    Meus agradecimentos aos professores Rodrigo Mendes, que participou da minha banca

    de qualificao, sendo sempre educado em suas crticas e solcito ao indicar solues; e ao

    professor Roberto Dias, que no s participou da minha qualificao como tambm

    presenciou toda minha vida acadmica em So Paulo, incluindo os tempos de especializao.

    Sou muito grato por sua disponibilidade no exterior para adquirir importante livro para este

    trabalho.

    professora Maria Garcia, pela crena no meu potencial e pelas valiosas lies de vida.

    Agradeo ao professor Luiz Alberto David Araujo, por orientar meu primeiro projeto de

    mestrado. Aos professores Renato Mehanna, Luiz Guilherme e Derly Barreto, pelos

    incentivos em ingressar no mundo acadmico. Aos amigos Hlio Silveira e Imre Horst, que,

    alm de prestativos colegas de estudo, me foram verdadeiros mestres na vida.

    Existem pessoas que, durante essa jornada, mereceriam um texto prprio. Nesse

    pargrafo, reservo espao para as pessoas que tiveram importncia no campo da amizade e da

    academia de forma misturada. Foi sempre importante escutar os vrios conselhos, nem

    sempre seguidos, do Andr Barros, que me amenizou o solitrio segundo semestre de 2009.

    Ao Octaviano Arruda, pelos cafs, pelas provocaes acadmicas e pelos debates esportivos.

    Nossas conversas fizeram com que Luhmann e futebol pudessem ter o mesmo espao. Entre

    loucuras e mensagens cifradas, agradeo ao Maurcio Palma pela companhia nos incertos

    caminhos percorridos, que transformava um quarteiro em dez. H, contudo, uma certeza

    inquestionvel: a fidelidade em nossa amizade. Com relao ao Rodrigo Cipriano, amigo

    uma qualidade muito fraca para definir sua importncia. Posso afirmar, hoje, que ele quase

    um irmo. A gratido enquanto insurgncia da gratuidade do dom, da recusa a qualquer

  • exigncia de reciprocidade o sentimento que mais descreve a minha histria com todos

    esses amigos.

    Conheci alguns grandes camaradas nessa jornada acadmica, como o Pedro Henrique e

    a galera do grupo de estudos, que foram responsveis por encontros divertidos,

    destacadamente, em bares da cidade. Agradeo, ao mesmo tempo em que peo desculpas, ao

    Rui e Rafael (da PUC) e a Simia por escutarem vrias perguntas repetidas quanto a prazos e

    agendamentos com o orientador. Agradeo ao Wesley (vulgo Werlim) por resolver em meu

    nome burocracias na PUC, sem falar das nossas conversas no condomnio onde abrigava

    nossos flats. impossvel esquecer o amigo Hallison, que, apesar de acreditar em justia

    enquanto prtica, foi uma referncia acadmica. Ao Leonardo Sabino, minha eterna dvida

    pela estadia e amizade proporcionada nos meus ltimos e queridos meses em So Paulo (sim,

    possvel ter saudade de So Paulo).

    Sou grato aos amigos de Fortaleza, especialmente ao Filipe Jorge Igncio Souto Maior

    Moura Nogueira, Lucas Jereissati por terem lido extratos do meu texto e Rafael Maia

    que no s leu como tambm concedeu uma parte considervel da bibliografia. Acrescento

    ainda os amigos Dionir Lima, Mariana Dionsio e Ticiana Nobre, que foram grandes

    camaradas nas conversas da madrugada, e Nairo Rgis, Thiago Alves e Tiago Gondim pelo

    companheirismo nos intervalos da minha escrita. Ao Afonso Lima, por ter dado fora em um

    dos momentos mais crticos da minha estadia em So Paulo. Agradeo aos professores

    Gustavo Liberato, por ter sido meu primeiro orientador e exemplo acadmico, e ao professor

    Evanilson, que, sem seus ensinamentos, esta dissertao seria impossvel de ser feita. Aos da

    minha cidade, por fim, agradeo a todos que compreenderam que, nas minhas promessas no

    cumpridas de que eu ligaria para combinar algum evento social, havia um sincero indireto

    afetivo, cujo efeito era mostrar que, mesmo na minha ausncia, existia um carinho por todos.

    Sou grato minha me, dona Luci, que, com toques paternos e maternos, me deu

    coragem para seguir a vida acadmica. Ao meu tio Weyne, pelo apoio a nossa famlia. tia

    Elen, pela estadia em Braslia e por ter adquirido importante fonte bibliogrfica.

    Ao meu amor, Aline Medeiros, agradeo pelo calor das horas frias, pela companhia na

    cidade solitria, pelas brincadeiras nas horas erradas, pelas discusses nas horas corretas, pelo

    passado, pelo presente e, principalmente, pelo futuro. Minha gratido, portanto, por me ter

    sido sempre necessria.

  • Por fim, sou grato ao Pablo e Deborah por terem proporcionado o meu ltimo

    combustvel para terminar este trabalho: meu sobrinho Jos Hugo (Z Uguim).

  • SUMRIO

    INTRODUO..........................................................................................................................1

    1 DA VONTADE DE PERFORMANCE FEDERAO INTERNACIONAL.................5

    1.1 Vontade de performance e Direito como caractersticas do esporte...................................5

    1.2 A Federao Internacional como resultante das vontades nacionais................................12

    1.2.1 Caractersticas da federao e da confederao.....................................................12

    1.2.2 Federao Internacional?...................................................................................15

    1.3 A produo jurdica nas Federaes Internacionais ........................................................20

    1.3.1 Autorregulao.........................................................................................................22

    1.3.2 Autoadministrao...................................................................................................23

    1.3.3 Julgamento de suas prprias causas........................................................................24

    2 O MOVIMENTO OLMPICO............................................................................................27

    2.1 Origem..............................................................................................................................27

    2.2 Comit Olmpico Internacional........................................................................................28

    2.2.1 Papel central............................................................................................................30

    2.2.2 Organizao interna do COI e seus mecanismos regulatrios................................34

    2.3 Jogos Olmpicos e Comit Organizador dos Jogos Olmpicos (COJO)...........................37

    2.4 Federaes Internacionais e Comits Olmpicos Nacionais: autonomia e funo...........40

    3 AGNCIA MUNDIAL ANTIDOPING.............................................................................44

    3.1 Origem..............................................................................................................................44

    3.2 Cdigo Mundial Antidoping e sua aplicabilidade............................................................47

    3.3 Funo e composio da AMA.........................................................................................50

    3.4 Reconhecimento internacional e a previso do TAS como rgo julgador......................53

    4 TRIBUNAL ARBITRAL DO ESPORTE: O CENTRO DA ORDEM DESPORTIVA....56

    4.1 Origem e organizao.......................................................................................................56

    4.2 O Tribunal como centro da ordem jurdico-desportiva e a eficcia de suas decises......60

    4.3 Padres interpretativos prprios.......................................................................................67

    4.4 Princpios gerais de direito revisitados.............................................................................74

    5 LIMITES DA AUTONOMIA JURDICA E O TRANSCONSTITUCIONALISMO.......80

    5.1 O transconstitucionalismo................................................................................................81

    5.2 A ordem internacional e a lex sportiva.............................................................................85

    5.3 O pas sede como limitador da Lex sportiva.....................................................................88

  • 5.4 Autonomia da lex sportiva perante as ordens nacionais...................................................93

    5.5 A fora do direito comunitrio.......................................................................................102

    6 A SOBERANIA JURDICA: DA LOCALIZAO DESLOCALIZAO..............111

    6.1 Soberania jurdica...........................................................................................................111

    6.2 Cidadania e o acesso aos procedimentos constitucionais...............................................118

    6.3 Nacionalidade e um terceiro critrio...............................................................................123

    CONCLUSO........................................................................................................................126

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS....................................................................................129

  • ABREVIATURAS

    ACNO: Associao dos Comits Olmpicos Nacionais

    AIBA: Associao Internacional de Boxe Amador

    ASOIF: Associao das Federaes Internacionais Olmpicas de esporte de vero

    AIWF: Associao das Federaes Internacionais Olmpicas de inverno

    AMA (ou WADA): Agncia Mundial Antidoping

    CAAD: Comisso de Apelao e Arbitragem do Desporte

    CMA: Cdigo Mundial Antidoping

    CNCDD: Comit Nacional de Competio e Disciplina Desportiva

    COI: Comit Olmpico Internacional

    COJO: Comit Organizador dos Jogos Olmpicos

    CON: Comit Olmpico Nacional

    FEI: Federao Eqestre Internacional

    FFC: Federao Francesa de Ciclismo

    FI: Federao Internacional

    FIA: Federao Internacional de Automobilismo

    FIBA: Federao Internacional de Basquete

    FIFA: Federao Internacional de Futebol e Associao

    FIG: Federao Internacional de Ginstica

    FIJ: Federao Internacional de Jud

    FILA: Fderation Internationale de Luttes Associes

    FINA: Federao Internacional de Natao

    FMF: Federao Mexicana de Futebol

    FN: Federao Nacional

    IAAF: Federao Internacional de Atletismo

  • ICAS: Conselho Internacional de Arbitragem em matria de Esporte

    IIHF: Federao Internacional de Hquei no Gelo

    ISU: International Skating Union

    ITU: International Triathlon Union

    LDIP: Lei Federal sobre Direito Internacional Privado

    RFEC: Real Federao Espanhola de Ciclismo

    TAS: Tribunal Arbitral do Esporte

    TF: Tribunal Federal (suo)

    TJCE: Tribunal de Justia das Comunidades Europias

    UCI: Unio Ciclista Internacional

    UEFA: Unio Europia de Futebol e Associao

    UNESCO: United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization

    WFK: Federao Mundial de Karat

  • INTRODUO

    Enquanto aguardava o resultado final de uma acusao por doping por alto teor de

    testosterona exgena em 2006 no trofu Jos Finkel, a atleta Rebeca Gusmo conquistou

    duas medalhas de ouro nos jogos Pan-Americanos de 2007, realizados no Rio de Janeiro.

    Aps a condenao pela Federao Internacional de Natao (FINA) que resultou na

    suspenso da atleta as amostras coletadas no Pan-Americano mostraram dois DNAs

    diferentes; isto , uma das amostras no correspondia ao seu DNA. Em face disso, o

    Ministrio Pblico entrou com uma denncia contra a atleta por falsidade ideolgica, mesmo

    havendo um recurso da atleta sendo julgado junto ao Tribunal Arbitral do Esporte (TAS), a

    ltima instncia esportiva. A atleta foi inocentada na ordem jurdica brasileira, mas foi

    considerada culpada pela ordem desportiva1.

    Situaes como essa ocorrem com certa freqncia, mas, com a mesma freqncia,

    passam despercebidas, inclusive, nos meios acadmicos jurdicos. A riqueza do caso

    proporciona a inverso de uma lgica de enxergar os problemas jurdicos: ao invs de se

    investigar o direito a partir da teoria geral clssica para entender as ordens jurdicas, estuda-se

    a ordem jurdica transnacional para entender as mudanas na Teoria Geral do Direito. Na

    atual conjuntura, essa , possivelmente, a melhor forma de se entender a lex sportiva.

    No final do sculo XIX e incio do sculo XX, o esporte tornava-se uma atividade de

    pretenso globalizante. Havia uma inteno de unir todos os povos, deixando de lado toda e

    qualquer diferena entre eles. A idia de retornar a um passado, isto , ao significado olmpico

    que existia na Grcia Antiga, servia como argumento fundamental para essa unio. Se isso

    no aconteceu, pelo menos serviu como um germe para trazer autonomia e estabilizar regras

    do jogo em boa parte do mundo. O contexto atual nada se parece com aquele discurso antigo.

    A autonomia do esporte o respeito s regras do jogo ganha novos atores que tentam influir

    no discurso que meramente busca a performance: contratos publicitrios e de direitos de

    transmisso, salrios de atletas, venda de produtos esportivos etc. O esporte, como atividade

    completamente globalizada e meio que gera bilhes de dlares anuais, tambm configura um

    1 Sentena n 2008/A/1572; 2008/A/1632; 2008/A/1659, de 13 de novembro de 2009 Gusmo c/ FINA.

  • 2

    forte instrumento de poltica internacional de reconhecimento e afirmao de um pas. Dessa

    forma, a autonomia do esporte requer rgos que possam defend-la de intromisses de outros

    sistemas sociais, desenvolvendo um Direito com critrios prprios para a resoluo de

    conflitos.

    Atuando de forma mais independente desde 1993, o TAS desenvolveu padres

    interpretativos de deciso que vo desde a no-interveno nas regras do jogo at o banimento

    de atletas. O crescimento da complexidade nos julgados esportivos resultado de uma maior

    complexidade de problemas l desenvolvidos, como no caso do doping: atletas,

    independentemente de idade e sexo, podem ser proibidos, por um rgo no-estatal, de

    exercer sua atividade remuneratria, se recorrentes no uso do doping. Esse fato vai tocar em

    vrias reas do saber jurdico. Desde j, o fenmeno do direito desportivo transnacional lex

    sportiva merece maiores consideraes pelas doutrinas de Teoria Geral de Direito e Direito

    Internacional, da mesma forma ela merece consideraes do Direito Constitucional. Os

    problemas constitucionais, nesse contexto, emancipam-se do Estado para ganhar novas

    aplicaes de Tribunais fora do plano estatal. O poder de vinculao da lex sportiva ordem

    jurdica sem Constituio aos seus atores traz uma nova viso no que tange soberania

    jurdica do Estado, principalmente quando a deciso dela se sobrepe a algum rgo estatal.

    De forma dependente, outras situaes aparecem, como a limitao ao Poder Judicirio e a

    nova significao nacionalidade e cidadania.

    To importante quanto identificar esses problemas constitucionais estabelecer os

    limites da lex sportiva. Muitas vezes, notar-se- que a justificativa da ordem transnacional em

    se declarar competente para decidir eficazmente de carter constitucional, principalmente,

    quando confrontadas com ordens estatais. Contudo, a lex sportiva no se encontra isolada no

    sistema jurdico em relao a outras ordens. importante verificar as situaes que exigem

    estabelecer os limites e possibilidades para o dilogo quando mais de uma ordem encontra-se,

    especialmente, envolvida em problemas constitucionais. Mesmo que fragilmente, o sistema

    jurdico exige maior consistncia e integrao de seus atores constitucionalmente envolvidos.

    Diante dessas notas introdutrias, buscar-se-, pois, desenvolver pesquisa que responda

    aos seguintes questionamentos:

    1 Como a lex sportiva desenvolve sua autonomia jurdica?

    2 Quais so os limites da lex sportiva frente a outras ordens?

  • 3

    3 Que tipo de problemas jurdicos, especialmente constitucionais, aparecem,

    simultaneamente, lex sportiva a outra ordem jurdica, exigindo o entrelaamento delas?

    4 Quais problemas constitucionais passam a ganhar novas perspectivas a partir da lex

    sportiva?

    No primeiro captulo, sero tratadas as caractersticas das Federaes Internacionais.

    Partir-se- das caractersticas do esporte, ressaltando que a vontade de performance e o direito

    so caractersticas intrnsecas desta atividade. Posteriormente, sero analisados os aspectos

    federativos desta organizao, mostrando que tambm existem atributos de confederao. Por

    fim, estudar-se- como essas organizaes produzem direito na autorregulao,

    autoadministrao e no julgamento de suas prprias causas.

    No segundo captulo, o Movimento Olmpico ser objeto de investigao. Ao examinar

    com ateno sua origem, ser facilitada a compreenso de como foi possvel a construo de

    uma instituio que se tornou global em funo de sua grandiosa competio. Sero estudadas

    as caractersticas do Comit Olmpico Internacional: seu papel central administrativo diante

    de outras instituies desportivas; e sua organizao interna, isto , como so eleitos seus

    representantes e como funcionam seus mecanismos regulatrios. Associado ao Movimento

    Olmpico, estudar-se- tambm o Comit Organizador dos Jogos Olmpicos, que servir como

    entidade que intermedeia os interesses estatais da cidade sede e do COI sobre os Jogos

    Olmpicos. Finalizando o tema relacionado ao Movimento, sero estudadas a autonomia e

    funo das Federaes Internacionais e os Comits Olmpicos Nacionais dentro do contexto

    olmpico.

    Aps ter sido analisado o Movimento, notar-se- este tem o importante papel de

    harmonizar o direito desportivo transnacional. O que refora tal afirmativa a imposio do

    Cdigo Mundial Antidoping, sob a fiscalizao da Agncia Mundial Antidoping. Tomando

    por base as primeiras legislaes antidopings e suas difceis execues em mbito global, o

    terceiro captulo ter a finalidade de examinar a aplicabilidade do CMA e a funo e

    composio da AMA, enquanto instrumentos que possibilitaram um discurso harmonizado

    mundialmente. Neste captulo, mostrar-se- a importncia do reconhecimento internacional da

    Agncia e seu Cdigo, mas sem nunca lhe tirar a proeminncia transnacional, tambm em

    razo da previso recursal junto ao Tribunal Arbitral do Esporte.

  • 4

    O quarto captulo trata da elaborao do Tribunal Arbitral do Esporte (TAS). Ser visto

    nele a contribuio para a identificao de uma diferenciao interna da ordem jurdico-

    esportiva transnacional, declarando a licitude e ilicitude na ordem desportiva, sob o amparo de

    um programa prprio. Com participao de vrias legislaes esportivas, estudar-se- como,

    diante de tantas diferenas, o Tribunal produz jurisprudncia e padres interpretativos. Da

    mesma forma, sero investigados os usos dados aos princpios gerais de direito pelo TAS.

    Sero examinadas, tambm, como suas decises possuem eficcia transterritorial. Associado

    aos captulos anteriores, o quarto ter a pretenso de mostrar o funcionamento estrutural da

    lex sportiva. Restar, ento, compreender como esse funcionamento se dar ao conflitar com

    outra ordem.

    O quinto captulo examinar os limites da ordem desportiva em face das outras ordens

    jurdicas. Dando preferncia aos conflitos de ordem constitucional, estudar-se- o

    transconstitucionalismo, que servir tanto como identificao problemas constitucionais

    comuns a mais de uma ordem, quanto uma proposta que tenta tornar praticvel os vnculos

    construtivos horizontalizados, possibilitando o aprendizado e influncia recproca entre

    ordens jurdicas. Nesse contexto, ser analisado o comportamento da lex sportiva diante das

    ordens nacionais, internacional e comunitria, sempre procurando identificar at que ponto

    suas decises conseguiro ser eficazes diante de outra ordem.

    O sexto captulo buscar identificar alguns problemas constitucionais que ganharo

    novas perspectivas a partir da lex sportiva. O debate a respeito da soberania jurdica ser

    revisitado com o intuito de se localizar criticamente, e a partir de casos, onde fica a soberania

    da ordem jurdico-desportiva transnacional no contexto atual. A partir disso, verificar-se-

    como o acesso aos procedimentos constitucionais, enquanto caracterstica da cidadania,

    tomar outros rumos, inclusive, deslocalizados. Finalmente, a nacionalidade, tambm ligada

    ao novo ponto de vista sobre soberania, ser mostrada como ela pode ser objeto de um

    terceiro critrio: o transnacional.

  • 1 DA VONTADE DE PERFORMANCE FEDERAO

    INTERNACIONAL

    O primeiro componente a ser estudado, dentro de um contexto jurdico-esportivo, a

    Federao Internacional. Ela controla, inicialmente, todas as competies internacionais que

    digam respeito ao seu respectivo esporte. A partir dessa informao, cabe, preliminarmente,

    fazer duas observaes a respeito dos objetivos deste captulo: a primeira que se ter a

    preocupao de mostrar que existe uma produo jurdica inicial, a comear da estrutura da

    Federao Internacional; a segunda trata de evidenciar, como preocupao maior, a coerncia

    do funcionamento das Federaes, originado por uma solidariedade interna, que permite

    admitir ou punir membros. Foram estudados nove Estatutos das mais diversas Federaes

    Internacionais. A escolha de cada Estatuto teve por base a relevncia mundial do esporte, o

    reconhecimento olmpico e a existncia (quando existiu) de mais de um rgo regulador do

    mesmo esporte. Para ser mais especfico, a FIFA e a FIA, enquanto FIs de grande relevncia

    mundial, seja pelo espao miditico, seja pelo nmero de Federaes Nacionais federalizadas

    (a primeira reconhecida pelo COI, a segunda, no); FIG, FIJ, IAAF, FIBA, FINA

    (vinculadas ao Movimento Olmpico, representadas nos Jogos Olmpicos de Vero) e a IIHF

    (representada nos Jogos Olmpicos de Inverno); e a WFK (como uma representante dentre

    vrias sobre o esporte Carat, mas que ainda no possui reconhecimento do Movimento

    Olmpico). Atravs de seus Estatutos, pretendeu-se apresentar algumas semelhanas na forma

    das Federaes manterem sua solidariedade. evidente que existiro diferenas profundas em

    vrias legislaes. Sabe-se que impossvel estudar todas as Federaes Internacionais. Por

    isso, justifica-se, de antemo, que o captulo tem o intuito dar um olhar geral a essas

    Federaes, na tentativa de mostrar que existe uma lex sportiva anterior ao contexto olmpico.

    1.1 Vontade de performance e Direito como caractersticas do esporte

    Aos quarenta e um minutos do segundo tempo, na final do campeonato carioca de

    futebol de 1978, Zico cobra o escanteio, quando, de surpresa, o zagueiro do Flamengo,

    Rondinelli, cabeceia a bola marcando o gol do ttulo. O defensor rubro-negro no utilizou as

  • 6

    mos ou empurrou qualquer adversrio para conseguir xito no seu feito por um motivo

    bvio: as regras do jogo probem tal conduta.

    O exemplo acima pode soar banal, mas pode servir para compreender inicialmente o

    funcionamento de uma estrutura que possui regras, rbitros e sanes. que existe uma

    gratuidade essencial atividade esportiva, isto , no responde a alguma utilidade que lhe

    seja exterior para pressupor regras. Isso permite dissipar a aparncia do arbitrrio, ou do sem

    sentido. Aos praticantes, rbitros cuja presena se deve para assegurar o respeito s regras

    e espectadores, pressupe o conhecimento dessas regras1, ou seja, necessrio nutrir

    expectativas normativas de um determinado comportamento esportivo.

    Antes de adentrar na estrutura jurdica do esporte, fundamental exprimir que existe

    uma caracterstica que motiva a organizao esportiva e a produo de regras: a performance.

    A performance o produto mais caracterstico da atividade esportiva, porque, ao contrrio de

    outras atividades humanas, como o trabalho, no produz bens ou servios. Porm, se o

    trabalho visa produzir algo, o esporte visa produzir performance. A vontade de performance

    o que transforma em ato; o que coloca o esporte em movimento. A sua motivao pode ser

    um recorde a ser batido ou uma valorao maior de uma performance comparada de outro

    atleta2.

    Para uma melhor caracterizao do esporte, possvel fazer uma comparao deste os

    comportamentos do cotidiano. Contrariamente ao comportamento ordinrio, a performance,

    como medida de valor esportivo, valorizada em razo dos obstculos. No cotidiano, busca-

    se no chegar perto de obstculos para concluir mais rpido seu objetivo. No esporte, o

    obstculo um componente prprio da atividade ao qual o atleta se ope deliberadamente3.

    A vontade de performance, acompanhada de seus obstculos, concretizada nas

    competies. na competio o espao onde se pode afirmar superioridade sobre o

    adversrio4. Com isso, j possvel diferenciar o esporte da mera atividade fsica. Se, por

    exemplo, possvel realizar uma competio de futebol, no possvel realizar uma

    competio da simples caminhada na praia. Esta no possui, primariamente, a vontade de

    performance, tornando impossvel verificar um comparativo entre atletas, que, somado

    1 Simon, 1990, pp. 1-2.

    2 Ibidem, pp. 20 e 22-23.

    3 Ibidem, pp. 21-22.

    4 Ibidem, pp. 23-25.

  • 7

    ausncia de espao para a concretizao performtica, confirma a falta de caracterizao desta

    atividade como esporte.

    Para que seja possvel a realizao da competio, necessrio que haja previamente

    um acordo das vontades competitivas. Apresenta-se como um acordo contratual que

    formado pela troca das vontades dos competidores, que se renem para definir as regras da

    disputa. Sua execuo, que o desenrolar da competio, deve possuir correspondncia com

    as condies fixadas previamente pelas partes. Mais do que para prevenir ou encerrar um

    conflito, o acordo das vontades competitivas elabora, como singularidade, o conceito de

    conflito. Ou seja, a competio o resultado de um consenso para que se possa desenvolver a

    concorrncia5.

    Ao contrrio das guerras, a concorrncia nas competies se caracteriza em no haver

    formas destrutivas de eliminao do adversrio, mesmo nas mais agressivas. O carter

    pacfico outra condio intrnseca do esporte, porque, sem ela, haveria a destruio do

    sentido de rivalidade competitiva6. Nessa condio, afirma Simon:

    [...] a competio combina nela esses dois elementos aparentemente contraditrios,

    mas absolutamente recprocos um ao outro, a cooperao e a oposio, no somente

    o afrontamento dos adversrios no destri o pacto inicial, mas precisamente na

    oposio mesma que este se realiza.7

    No esporte, o paradoxo da relao entre cooperao e oposio serve como combustvel

    para a inexistncia das conquistas definitivas, eis que um vitorioso jamais ser um

    proprietrio de um ttulo, mas um detentor provisrio. Isso possvel porque, uma vez

    derrotado, o adversrio ter outra chance de vencer em uma prxima competio. A

    reproduo desse paradoxo contribui na perpetuao das competies8.

    Alm da contribuio da relao entre cooperao e oposio, cabe destacar que a

    perpetuao das competies depende da institucionalizao das vontades competitivas9.

    necessrio criar rgos pelos quais defendero essa perpetuao da competio e suas regras,

    resultadas de acordos de vontades competitivas. Portanto, para que exista esporte, necessrio

    que haja direito. No se nega que a produo de performances gere uma apreciao esttica.

    Alm da performance ser um fim em si mesma, isso pode aproximar o esporte da arte10

    .

    5 Ibidem, pp. 26-27.

    6 Ibidem, p. 28. O Estatuto da FIBA assegura, em seu art. 4, C, a busca por um esporte justo e competitivo.

    7 Ibidem, p. 27.

    8 Ibidem, p. 29.

    9 Ibidem, p. 31.

    10 Welsch, 2005, pp. 137 e 145.

  • 8

    Contudo, o ponto importante que vai diferenciar o esporte da arte a presena do direito.

    Apesar de regular a performance (e no determin-la)11

    , o direito aparece no esporte como um

    elemento necessrio, o que no se verifica necessariamente na arte. A atividade esportiva se

    desenvolve efetivamente em aplicao de uma regulamentao, adotada pelas instituies

    responsveis de cada esporte. O meio esportivo de carter jurdico na medida em que boa

    parte dos gestos esportivos se qualifica pela relao com alguma regulamentao tcnica. Isso

    permite afirmar que no esporte a regra de Direito reveste-se de um aspecto original, em que

    as regras do jogo, prprias de cada esporte, conferem direitos e deveres relativos ao

    desenvolvimento da prova. Assim, toda infrao incorre uma sano12.

    Diante desse aspecto jurdico constituinte do esporte, torna-se necessrio explicar as

    funes do direito, para, desde j, afastar a possibilidade de reduo destas ao enquadramento

    hierrquico das Constituies estatais13

    . O direito possui dimenses para que o

    comportamento social, em um mundo altamente complexo e contingente, exija a realizao

    de redues que possibilitem expectativas comportamentais recprocas e que so orientadas a

    partir das expectativas sobre tais expectativas. A dimenso temporal estabiliza as estruturas

    de expectativas contra frustraes atravs da normatizao, o que, frente crescente

    complexidade social, pressupe uma diferenciao entre expectativas cognitivas (disposio

    assimilao) e normativas, alm da disponibilidade de mecanismos eficientes para o

    processamento de desapontamentos. Na dimenso social, essas estruturas podem ser

    institucionalizadas, ou seja apoiadas sobre o consenso esperado a partir de terceiros. Na

    dimenso prtica, essas estruturas de expectativas podem ser fixadas externamente atravs

    de um sentido idntico, compondo uma inter-relao de confirmaes e limitaes

    recprocas14.

    Em razo dessas trs dimenses, que devem ser consideradas em conjunto, possvel

    afirmar que se criam possibilidades de para que exista uma generalizao de expectativas:

    Dessa forma a normatizao d continuidade a uma expectativa, independentemente

    do fato de que ela de tempos em tempos venha a ser frustrada. Atravs da

    institucionalizao o consenso geral suposto, independentemente do fato de no

    existir uma aprovao individual. A identificao garante unidade e a inter-

    dependncia do sentido, independentemente das diferenas objetivas entre as

    expectativas. Dessa forma a generalizao gera uma imunizao simblica das

    11

    Ibidem, p. 146. 12

    Latty, 2007, p. 25. 13

    Com o mesmo propsito de afastamento, Teubner, 1997a, p. 157. 14

    Luhmann, 1983, p. 109.

  • 9

    expectativas contra outras possibilidades; sua funo apia o necessrio processo de

    reduo ao possibilitar uma indiferena inofensiva15

    (grifos do autor).

    O direito, assim, no se apresenta, primariamente, como um ordenamento coativo, mas

    como um alvio para as expectativas, isto , na disponibilidade de caminhos

    congruentemente generalizados para as expectativas, significando uma eficiente indiferena

    inofensiva contra outras possibilidades, que reduz consideravelmente o risco da expectativa

    contraftica16. Portanto, em razo do que acima foi exposto, a funo do direito deve ser

    definido como estrutura de um sistema social que se baseia na generalizao congruente de

    expectativas comportamentais normativas17 (grifos do autor).

    O direito existente no esporte no pode ser comparado com um mero costume. O

    conhecido exemplo de costumes praticados na Igreja, como o de no entrar com chapu no

    recinto, no pode ser igualado ao estabelecimento de regras esportivas. certo que somente a

    especificao da funo do direito no suficiente para mostrar que h direito no esporte18

    .

    Este depende de estrutura. fundamental apontar para o cdigo que orienta o direito. Ao

    distinguir os lados opostos que o do cdigo do direito promove, nota-se que eles se

    caracterizaro pela diferena lcito/ilcito (um valor positivo, quando o assunto coincide com

    as normas do sistema; um valor negativo, quando infringe as normas do sistema19

    ). Este

    cdigo binrio, sob a forma da biestabilidade, garante que o sistema pode ligar suas operaes

    seguintes, tanto na declarao de licitude, quanto na ilicitude20

    . Dessa forma, o cdigo utiliza

    ambas as possibilidades para confirmar a si mesmo, rechaando cdigo de outros sistemas

    funcionais21

    . Contudo, o cdigo em si no oferece nenhuma possibilidade de adaptao do

    sistema ao ambiente e no produz informao22

    . A soluo para este problema a formao

    de uma distino interna entre codificao e programao, sendo o primeiro condio de

    possibilidade de condicionamentos que regulam qual de ambos os valores se aplicar

    adequadamente, enquanto que o segundo serve como critrio de determinao dos valores do

    cdigo binrio23

    , isto , h o preenchimento da codificao com contedo. Relacionado com a

    funo de estabilizao de expectativas, os programas do direo semntica, determinando

    15

    Ibidem, p. 110. 16

    Ibidem, p. 115. 17

    Ibidem, p. 121. 18

    Mendes, 2010, p. 79, a respeito da insuficincia da explicao do direito somente a partir da funo. 19

    Luhmann, 2005, p. 236. 20

    Ibidem. 21

    Ibidem, p. 238. 22

    Ibidem, p. 246. 23

    Ibidem, p. 248.

  • 10

    de antemo o comportamento aceitvel juridicamente, mas, ao mesmo tempo, condicionado

    por um cdigo24

    .

    No campo do jogo do esporte, essa ptica sobre o direito se confirma. No somente no

    plano funcional da estabilizao de expectativas, como tambm a declarao de uma

    licitude/ilicitude dos atos de campo. No mbito esportivo, existem regras institucionalizadas

    atravs de cdigos, que determinam ao juiz (ou comisso julgadora) qual o comportamento

    dentro do campo de jogo que permitido ou no. Exemplificando, um juiz de futebol no

    pode declarar que houve falta sem que haja uma correspondncia com as regras

    institucionalizadas em seu cdigo desportivo. No h, portanto, arbitrariedade na validao

    das regras. Da mesma forma, elas no podem ser consideradas meros convencionalismos

    sociais. A presena do direito no somente reduzida sua funo no esporte marcante a

    tal ponto que, sem ela, o esporte seria impraticvel. Vale ressaltar, por fim, que esta presena

    necessria, mas no pode ser comparada complexidade de uma ordem jurdica estatal, por

    exemplo. No campo, ao contrrio das ordens estatais, as decises so tomadas sem uma

    profunda discusso do fato, isto , sem uma densa operacionalizao do contraditrio (por

    mais que as tecnologias tenham aumentado, gerando maior espao para contestao/reforma

    da deciso tomada, como o caso no tnis). Isso, porm, no representa que no haja direito

    no esporte, seno um direito menos complexo.

    O esporte enquanto movimento unitrio e coerente s consegue assegurar sua

    concretizao nas contnuas e regulares competies atravs da unificao de regras

    esportivas institucionalizadas, que so criadas, observadas, aplicadas e executadas por

    instituies especficas para isso25

    . Alm da garantia de permitir o jogo pacfico, quando, por

    exemplo, codificam o fair-play, as instituies devem garantir da mesma forma a igualdade

    esportiva e a incerteza do resultado final. A igualdade esportiva a garantia inicial de que

    todos os atletas tero as mesmas condies de conquistar a vitria, permitindo a

    confrontao equilibrada das foras que d plenamente seu sentido comparao das

    performances26. possvel que algum atleta, em razo da qualificao, consiga uma melhor

    posio no momento da competio, o que lhe facilitaria a vitria. Todavia, essa condio

    benfica s pode ser conquistada em funo de uma condio jurdica inicial igualitria. Sem

    igualdade esportiva, dificilmente poderia vislumbrar a incerteza do resultado final. Este

    24

    Ibidem, p. 251, 256 e 258. 25

    Simon, 1990, p. 3-4. 26

    Ibidem, p. 89.

  • 11

    aspecto, que deve ser garantido pelas instituies, permite que no haja a intromisso de

    outros elementos estranhos ao esporte que garantam a certeza do resultado. Fica mais fcil de

    ser vislumbrada quando se tomam medidas em que dois clubes de futebol diferentes no

    podem ter o mesmo dono ao disputarem o mesmo campeonato27

    .

    Inicialmente, as instituies esportivas comeam no mbito territorial. So geralmente

    oriundos da reunio de clubes locais, que formam uma federao para organizar eventos. Essa

    instituio pode tomar corpo, crescendo em dimenses nacionais, quando somadas s outras

    instituies localizadas que tratam da mesma matria. O resultado desse processo a

    Federao Nacional. As regras ganham domnio nacional, sendo cumpridas pela totalidade de

    seus membros, dada a solidariedade necessria para se fazer parte desse contexto. Ou seja,

    para que se possa participar de competies nacionais, os membros tero de cumprir as regras

    formuladas pelas instituies do mesmo mbito28

    .

    Essa mesma lgica tambm servir para a construo de Federaes Internacionais

    esportivas (FI), que serviro de mote para a construo de uma solidariedade transnacional.

    Esta, para se afastar de um contexto politizado ou meramente localizado, ter como formao

    uma produo privada na institucionalizao de regras e rgos. Isso tudo para garantir que a

    identificao de sentido global das regras esportivas possa ser realizada nas competies

    internacionais, tendo em vista que existiro rgos que produziro e resguardaro as regras,

    aplicando sanes aos que tentarem burl-las. possvel, nesse sentido, que as ordens

    desportivas enxerguem os programas jurdicos de forma diferente do Estado. Tudo isso para

    que, de fato, se possa garantir a igualdade e a incerteza do resultado final nas competies.

    Nesse sentido, Teubner afirma:

    Nos regimes privados globais, ocorre uma eficaz autodesconstruo do direito,

    capaz de tornar simplesmente ineficazes os princpios bsicos do direito estatal, a

    saber: a deduo da validade das normas jurdicas a partir de um modelo hierrquico

    de fontes normativas, a legitimao do direito por uma constituio politicamente

    posta, o processo legislativo em instncias parlamentares, a segurana conferida por

    instituies, processos e princpios do Estado de direito e a garantia de espaos de

    liberdades individuais pelos direitos fundamentais politicamente conquistados29

    .

    Com o processo de globalizao do esporte, globalizou-se, tambm, o seu Direito30

    .

    Seria impossvel dissociar o Direito do esporte, dado que, para o esporte ser o que ,

    27

    Cf. Sentena n 98/200, de 20 de agosto de 1999 AEK Athens and SK Slavia Prague c/ Union of European Football Associations (UEFA). 28

    Latty, 2007, p. 50. 29

    Teubner, 2005, p. 111. 30

    De forma semelhante, Teubner, 2005, p. 108-09.

  • 12

    necessrio que possua direito em sua constituio. Com o crescimento da complexidade do

    esporte, muito em funo de interesses diversos sobre a matria (farmacuticos, mdicos,

    polticos, econmicos etc.), as instituies esportivas se viram compelidas a criar uma carga

    argumentativa mais forte. Assim, para garantir a solidariedade interna no plano transnacional

    esportivo, foi organizada uma lex sportiva que fosse alm das regras do jogo para que pudesse

    garantir a manuteno de aspectos fundamentais em face de atores externos, como a

    autonomia do esporte global, a igualdade e a incerteza do resultado final.

    O termo lex sportiva pode ser considerado como o direito transnacional esportivo. No

    se deve limitar seu campo a s jurisprudncia do Tribunal Arbitral do Esporte, pois o

    fenmeno engloba regras e decises de outras organizaes esportivas transnacionais. Atravs

    da lex sportiva, no se quer reforar um discurso independente para inventar uma

    autonomia do direito transnacional esportivo desligada de influncias de outras ordens

    jurdicas. Tambm condenvel a postura oposta, que, ao negar a existncia ou minimizar a

    eficcia jurdica da lex sportiva, comparam-na a um contra-poder dos Direitos estatais. A

    idia, aqui, entender como a noo de direito transnacional consegue ser aplicada no campo

    esportivo31

    .

    Para que a compreenso de direito transnacional possa ser compreendida, essencial

    estudar a estrutura organizacional da lex sportiva, seu funcionamento e como se processa a

    unidade, resultante da solidariedade interna dos componentes da ordem. A seguir, o primeiro

    ator a ser focado nessa estrutura transnacional ser as Federaes Internacionais.

    1.2 A Federao Internacional como resultante das vontades nacionais

    As Federaes Internacionais esportivas (FI) so fruto da reunio das vontades

    nacionais competitivas. possvel notar que a afirmativa anterior possui uma proximidade

    com o conceito de federalismo, to estudada pela Teoria Geral do Estado. Porm, no caso

    esportivo, no haver uma pureza do conceito federalista nessas instituies esportivas,

    havendo proximidades tambm com o conceito de confederao. Sob o olhar desta, um estudo

    geral sobre federao e confederao facilitar o conhecimento das FIs.

    1.2.1 Caractersticas da federao e da confederao

    A federao uma unio permanente, baseada no livre convnio, e ao servio de uma

    estrutura comum da auto-conservao de todos os membros, mediante a qual se altera o total

    31

    Latty, 2007, pp. 36-39.

  • 13

    status poltico de cada um dos membros em ateno ao fim comum32, representando uma

    ausncia no direito de secesso. Dessa forma, no se ter uma unio de Estados soberanos, eis

    que, dentro de uma ptica federalista, a soberania nica do Estado Federal. H, assim, o

    nascimento de um novo Estado e, conseqentemente (em regra), uma nova cidadania e

    nacionalidade com o advento da Federao33

    .

    Por no se falar em soberania dos entes federativos, falar-se-, no plano interno, de

    autonomia destes. Essa autonomia h de estar prevista na Constituio do pas, de forma

    oposta ao que ocorre na confederao, em que os poderes so expressos em um tratado.

    Delineiam-se, na Constituio, todas as competncias que cada ente ter (repartio de

    competncias). A necessidade de diviso constitucional das competncias importante para

    determinar as atribuies e impedir a sua mudana ao bel-prazer dos mesmos34.

    Para a manuteno e reforo da descentralizao, mostra-se necessrio que as

    competncias estejam descritas para o real exerccio da autonomia que cada ente possui. A

    respeito da definio de autonomia, Baracho entende que A autonomia constitui uma

    pluralidade de ordenamentos. Por isso, sua mais elevada realizao, no domnio da forma do

    Estado, encontra naquela pluralidade inconfundvel35. Essa autonomia necessria aos entes

    federativos dividir-se- em poltica, legislativa, administrativa e financeira.

    A autonomia poltica refere-se ao autogoverno, e a legislativa, liberdade de se

    produzir leis conforme as necessidades locais, regionais ou nacionais. J a autonomia

    administrativa permite que as comunidades federadas conservem, cada uma, certa

    independncia, que lhes permite efetuar a gesto de seus negcios36. Todas sempre ho de

    respeitar os ditames da Constituio. No adianta, contudo, o ente federativo possuir

    competncias nominalmente se no possui meios para coloc-los em prtica. Sendo assim, os

    tributos so as representaes maiores da efetividade da autonomia financeira.

    Os doutrinadores colocam como sustentculo do federalismo, alm da autonomia, o

    princpio da participao37

    . Pode a participao ser direta ou indireta. A primeira prev

    participao do ente federativo, alm da Unio, no processo revisional da Constituio. Em

    sentido mais amplo, Zippelius expressa:

    32

    Schmitt, 2003, p. 348. 33

    Dallari, 2005, p. 260. 34

    Liberato, 2005, p. 310. 35

    Baracho, 1986, p. 50. 36

    Ibidem. 37

    Ibidem.

  • 14

    Na mesma direo aponta tambm a reivindicao democrtica de, atravs de uma

    descentralizao poltica e democrtica, assegurar ao indivduo a maior participao

    possvel na formao da vontade comunitria e na regulao das tarefas pblicas. As

    oportunidades de uma participao democrtica e responsabilidade cvica do

    indivduo so tanto maiores quanto mais poder de deciso for depositado nos nveis

    organizativos mais baixos38

    .

    Outro elemento importante do federalismo a delimitao territorial do ente. A

    delimitao territorial est intimamente ligada ao exerccio da autonomia e at onde ela pode

    ser exercida. Pode soar bvio o presente aspecto, porm, ao se falar de interveno federal, o

    carter territorial soa necessrio. Nessa perspectiva, destaca-se:

    Se garante, pois, dentro da Federao o status quo poltico. No sentido da existncia

    poltica. A isto corresponde tambm normalmente a garantia do status territorial.

    No pode ser privado nenhum membro federal, contra sua vontade, de uma parte de

    seu territrio, e muito menos pode ser suprimido contra sua vontade em sua

    existncia poltica. No quer dizer-se com isso que toda garantia da existncia

    poltica ou de um status de possesso territorial signifique j um pacto federal.

    Porm, o contrrio, a toda Federao corresponde essa garantia, que resulta tanto da

    finalidade de auto-conservao como do conceito de permanncia, essencial

    Federao (grifos originais)39

    .

    A existncia de um Tribunal Constitucional tambm requisito importante para a

    consecuo de uma federao. H a necessidade de um rgo neutro que atue nos conflitos de

    competncia entre os diversos entes federativos40

    , sendo necessrio o controle de

    constitucionalidade.

    Existe a exigncia da previso da interveno para a manuteno da federao. uma

    medida excepcional, pois, por meio dela, um dos entes federativos fica autorizado a intervir

    em outro, suspendendo-lhe a autonomia de que gozava, nos termos da Constituio41

    . Isso

    ocorre quando h algum ato desrespeitoso conservao da Federao. Exemplo tpico a

    luta pela separao de um Estado-membro, na luta por sua soberania.

    No possvel determinar com critrios absolutos se um pas ou no uma Federao,

    pois esta uma construo social e histrica42

    . J se foi mostrado que, em vrios pases

    unitrios, h mais descentralizao regionalizada que em alguns pases que se proclamam

    federais43

    . Alm disso, se todos os critrios fossem tidos como absolutos, seria impossvel

    encontrar uma federao no mundo. No significa, porm, que no se possam abstrair

    algumas caractersticas comuns ou ideais que se vislumbrem a construo de uma federao.

    38

    Zippelius, 1997, p. 506. 39

    Schmitt, 2003, p. 350. 40

    Tavares, 2007, p. 963. 41

    Ibidem, p. 964. 42

    Bercovici, 2003, p. 146 43

    Pontes de Miranda, 1960, pp. 177-179.

  • 15

    Ao contrrio da federao, a confederao a aliana de dois ou mais Estados

    soberanos que, mesmo unidos para a consecuo de objetivos comuns, conservam a liberdade

    de se autogovernarem44. A confederao liga-se a fins, enquanto que a federao uma

    realizao estrutural. Ela nasce de um tratado entre Estados independentes e ainda soberanos

    que deferem ao rgo central algumas atribuies, tendo em vista a defesa comum, a

    segurana de suas liberdades, a manuteno do bem-estar de seus habitantes etc.45

    H uma permanente relao jurdica internacional, cujos Estados so independentes e

    no do origem a um novo Estado. A confederao apenas cria um sistema de coordenao

    de vontades polticas, cuja base contratual assenta visivelmente sobre uma limitao

    consentida da soberania de cada Estado-membro para consecuo de fins comuns46. Na

    confederao, no se fala em cidadania ou nacionalidade distinta das j existentes, visto que

    no se possui, nesse caso, territrio prprio. uma simples unio. Com isso, h de se

    reconhecer o direito de secesso, eis que cada Estado possui soberania, matria intacta em

    uma Confederao. Tem-se o direito de denunciar o tratado ou retirar-se da Confederao47

    .

    Nessa unio de Estados soberanos existe um corpo deliberante denominado Dieta.

    composto por embaixadores e Chefes de Estados, que, por maioria, podem vetar decises,

    alm de diminuir ou aumentar os poderes dessa unio de Estados. Vale ressaltar que todas

    essas modificaes ho de passar pelo crivo dos governos dos Estados componentes48

    . Por ter

    carter eminentemente internacional, as aes unitrias expressam-se, em regra, na poltica

    externa, ditadas pelas razes que justificam a sua existncia.

    Essas caractersticas, comuns em estudos doutrinrios, tm grande importncia como

    elemento crtico das federaes e confederaes ou como base comparativa de institutos que

    conservam sua unidade fundamentada em elementos de teorias sobre as duas. o caso da FI,

    que absorve caractersticas de ambos os institutos.

    1.2.2 Federao Internacional?

    As Federaes Internacionais constituem agrupamentos de organizaes nacionais

    esportivas. Da mesma forma que uma federao, convive-se com a combinao entre

    liberdade de ao dos associados e unidade da unio entre eles. Significa que existe uma

    44

    Carrazza, 2005, p. 130. 45

    Ibidem. 46

    Bonavides, 2006, p. 179. 47

    Ibidem, p. 180. 48

    Ibidem, pp. 180-81.

  • 16

    tentativa eterna de conciliar as tendncias contraditrias entre a autonomia dos entes e a

    hierarquizao da comunidade global que agrupa todas as unidades elementares49

    . Essa

    construo federativa ser possvel por trs motivos: o monoplio sobre o tema esportivo; o

    controle sobre a competio internacional; e a coerncia interna das regulamentaes

    federativas.

    Os Estatutos das FIs apresentam os objetivos fundamentais da unio entre os membros.

    Entre os objetivos estatudos est a afirmao de que a FI responsvel pela regulao,

    fiscalizao, aplicao e execuo das regras que englobam o mundo no que tange sua

    matria esportiva, conforme expressa o artigo 4.1, do Estatuto da Federao Internacional de

    Basquete (FIBA)50

    . O aspecto de fiscalizao do cumprimento das regras comum em

    praticamente todas as FIs, mesmo que no expressas em Estatuto. O artigo 3.6 da Federao

    Internacional de Atletismo (IAAF) afirma que obrigao desta supervisionar e fazer

    cumprir as obrigaes dos membros, servindo, como ser mais frente analisado, de

    condio para a participao do contexto esportivo especfico. Existem objetivos secundrios,

    como melhorar a qualidade do ensino de Jud ou promover e encorajar o desenvolvimento

    de relaes internacionais51. O que de mais importante h nos objetivos principais das FIs

    a afirmao de que possui o domnio global em sua matria, pois, sem a existncia de um

    poder capaz de estabelecer e de impor uma regulamentao se aplicando a todos os pases

    interessados, no seria possvel dar na prtica esportiva uma dimenso universal52. Portanto,

    na FI, possvel enxergar uma caracterstica com respeito a fins, aproximando-se dos

    atributos das confederaes

    O monoplio federal condio lgica da organizao do sistema esportivo no que diz

    respeito a uma vontade unitria53

    . As razes da manuteno no tempo do monoplio federal

    se devem vontade de independncia, notadamente em face dos poderes pblicos, e por um

    tipo de mentalidade de primeiro ocupante na constituio das disciplinas, cujos responsveis

    federais atuais se sentem herdeiros. Para os dias atuais, essa explicao ainda digna de

    registro, mas no sustentvel por si s. A razo de sua manuteno reside nos mecanismos

    49

    Latty, 2007, p. 123. 50

    No mesmo sentido, est previsto nos artigos 2 da AIBA, da FIFA e da IIHF, artigo 5 da FINA, artigo

    3.5 da IAAF. 51

    Artigo 2 da FIJ, e C-5.3 da FINA. 52

    Simon, 1990, p. 46. 53

    Cf. Silance, 1998, p. 16.

  • 17

    internos que seu funcionamento prova eficcia54. Vale ressaltar que o monoplio sobre a

    matria esportiva tem sido diludo. A criao de federaes esportivas profissionais tem feito

    migrar atletas de uma federao outra. o caso do boxe, cuja matria esportiva regulada

    por mais de uma Federao Internacional. No caso, a Associao Internacional de Boxe

    Olmpico (AIBA) divide ateno com outras Federaes, como a World Professional Boxing

    Federation. Da mesma maneira, a FIBA por muitos anos recusou a participao em suas

    competies de atletas que jogassem na NBA. A criao de Federaes profissionais

    esportivas se deve ao crescimento de interesses econmicos na matria. A migrao de atletas

    se d, muitas vezes, por razes econmicas, no mais tcnicas. Alm disso, por situao como

    essa, corre-se o risco de o entretenimento ser mais importante que a performance e suas

    regras, resultando na espetacularizao do esporte, provocando mudanas no jogo para, em

    nome da esttica, satisfazer quem consome o esporte.

    O controle das competies o fator principal que permite a manuteno da unidade e

    coerncia interna das FIs. Os interesses de Federaes Nacionais (FN) e atletas giraro em

    torno de uma competio, representados pelas vontades competitivas. Quanto mais FIs

    controlarem algum esporte mundialmente, mais opes de competies e regramentos

    federativos um atleta poder se submeter. A conseqncia do reagrupamento das vontades

    competitivas a separao entre a instncia federal e seus diferentes membros. A federao

    aparecer pelos seus efeitos, pelos seus poderes, pela autoridade manifesta sobre a disciplina

    esportiva, como um ser distinto e superior s individualidades e grupos que ela emana.

    Assim como na teoria clssica do federalismo, a reunio dessas vontades competitivas faz

    nascer uma entidade distinta dos rgos que a compem: a Federao Internacional. Ela

    aparece como a estrutura ideal de resoluo do paradoxo do acordo das vontades

    competitivas, porque representa este conjunto de vontades sobre uma mesma disciplina,

    sendo, ao mesmo tempo, parte integrante do sistema competitivo da qual constitui pea

    essencial. Representa a vontade coletiva e unitria das competies, assegurando o

    funcionamento delas55

    . Porm, essas funes exercidas pela FI s podero se concretizar caso

    haja previso em um Estatuto federal.

    Nesse processo de traar paralelos entre as caractersticas do federalismo (e da

    confederao) e as FIs, depara-se com as semelhanas entre a Constituio e os Estatutos

    54

    Simon, 1990, pp. 57-58. 55

    Ibidem, pp. 40-42.

  • 18

    federais. Se a Constituio fundamento escrito da unidade federativa, o Estatuto serve como

    representao da unio entre vontades nacionais esportivas. No se quer, contudo, afirmar que

    o Estatuto de uma FI seja uma Constituio civil56, mas uma regulamentao de carter

    privado que possui caractersticas parecidas com algumas funes exercidas por uma

    Constituio Federal. Assim como esta, existe uma preocupao por parte dos Estatutos em

    manter a unidade federativa. Para tanto, porm, existem instrumentos regulatrios que

    prevem critrios de admisso e excluso de seus membros57

    , gerando uma situao paradoxal

    no mbito de uma dita federao: para manter sua unidade estrutural, usa de meios tpicos de

    uma confederao.

    A admisso como membros das associaes esportivas nacionais fruto da

    representao, a ttulo esportivo, do conjunto dos praticantes, de dirigentes, de treinadores etc.

    da disciplina esportiva nacional58

    . A conseqncia do reconhecimento o de dar FN a

    qualidade para representar a disciplina considerada sobre o territrio nacional59. A

    admisso, submetida ao reconhecimento da FI, requer a obedincia ao Estatuto, gerando

    algumas obrigaes, que, descumpridas, podem gerar a excluso do membro. Se em uma

    federao comum existe o instituto da interveno federal como elemento garantidor da

    unidade, nas FIs existe a excluso de um membro como instrumento protetor da unidade. Na

    interveno federal, h, provisoriamente, a suspenso de autonomia do membro, assim como

    a sua capacidade representativa na Federao. A excluso do membro tem objetivo

    semelhante, mas lida com a perda de autonomia e capacidade representativa, no com sua

    suspenso. Isso, como afirmado, aproxima-se de uma caracterstica de confederao ao invs

    de federao. O artigo 15 do Estatuto da FIFA exprime bem esse instrumento de manuteno

    da unidade quando prev a possibilidade de expulso de algum membro que no cumpre com

    suas obrigaes financeiras (o que garante, em parte, a autonomia financeira da FI em relao

    a outros rgos estranhos organizao); do membro que viola o Estatuto, regulaes ou

    decises; ou quando se perde o status de uma associao representativa do futebol em seu

    pas. Cria-se a expectativa de que todos os membros da Federao Nacional seguiro o

    Estatuto. A expulso torna-se a pena mais forte para quem foge dessa expectativa, garantindo

    a submisso ao direito transnacional da FIs. Ou seja, da mesma forma que as regulaes da

    56

    Teubner, 2005, pp. 123-24. 57

    Isso no significa que as Constituies possuam critrios de admisso ou excluso de membros. O que se quer

    ressaltar a funo de manuteno da unidade como caracterstica constitucional, a partir do momento em que

    h a unio de membros federativos. 58

    Simon, 1990, p. 35. Artigo 6 do Estatuto da AIBA; artigo 6.1 da FIBA; e artigo 3 da FIA. 59

    Ibidem, p. 59.

  • 19

    Unio encontram ressonncia nos outros membros federativos, as regulaes das FIs

    encontram ressonncia nas FNs.

    As regras das FIs no tm por destinatrios apenas as FNs. Elas visam algo maior e

    mais importante: atingir diretamente os atletas em qualquer lugar do mundo. Afiliando-se a

    uma FN, um atleta encontra-se, por efeito cascata (pela simples afiliao de sua FN FI),

    submetido aos regulamentos da FI60

    . Vale ressaltar que o atleta no tem opo de no se filiar

    a uma FN, eis que a filiao uma imposio por parte das FIs, subordinando deliberao

    das licenas para a disputa de uma competio internacional. Por um lado, a licena d o

    direito de competir; por outro, o dever de se submeter ao poder federal61

    .

    Embora haja um grande poder das FIs em face das FNs, estas ainda possuem espao

    de autonomia, compreendendo certa liberdade na organizao das entidades federadas. Isso,

    porm, varivel entre as FIs quando se compara o Estatuto da FINA com o da FIBA. O

    artigo C-8 da FINA pouco fala sobre as liberdades das FNs. Ao contrrio, o Estatuto da

    FIBA prev em seu artigo 7, alm da participao nas polticas internacionais, a possibilidade

    de administrar suas prprias competies, que, de forma geral, o principal exerccio de

    autonomia que uma FN pode ter. No mbito geral, as Federaes Internacionais tendem ao

    centralismo. Uma das possveis razes para isso o forte poder da maioria dos esportes

    globalizados, cuja popularidade contribui no enquadramento estrito do exerccio das

    competncias de seus membros nacionais. A presso exercida sobre as FNs conhece uma

    intensidade que restringe a sua autonomia62

    . Isso, contudo, no representa, necessariamente,

    uma hierarquizao entre legislaes. A sobreposio da legislao transnacional tende a

    acontecer em casos de envolvimento de competies internacionais, ao passo que nas

    competies nacionais o exerccio da autonomia das FNs permite que as regras nacionais

    tenham maior voz perante as outras.

    Mesmo diante desse centralismo, as FIs e FNs so regidas por reparties verticais e

    horizontais. Estas ocorrem quando, por exemplo, se tem em vista a regulamentao da

    organizao das competies nacionais (FN) e internacionais (FI). Existe, ao mesmo tempo,

    um compartilhamento vertical na implementao de regras transnacionais no respeito das

    formas e procedimentos ou aplicao direta das regras antidoping transnacionais63

    . Cabe

    60

    Latty, 2007, pp. 85 e 125-128. 61

    Simon, 1990, p. 35 e 109-115. 62

    Latty, 2007, p. 129-133; e Simon, 1990, p. 43. 63

    Latty, 2007, p. 137; e artigo 4 do Estatuto da AIBA.

  • 20

    ressaltar que existe uma preocupao com a autonomia dos entes nacionais por parte das FIs,

    principalmente com relao a atores estranhos ao esporte. O artigo 17 do Estatuto da FIFA

    prev que os membros devem agir de forma independente, excluindo a influncia de terceiros.

    O sucesso dos ditames transnacionais est ligado autonomia que uma FN deve exercer sobre

    terceiros estranhos, pois s assim as regras de uma FI sero concretizadas no plano nacional.

    Assim, a FN se impe s autoridades pblicas como o interlocutor representativo da

    disciplina64

    .

    O principal ponto que se props trabalhar no presente tpico foi o paralelo da unidade

    estrutural do federalismo, somada s finalidades de uma confederao, e a unidade das FIs,

    com sua soberania, espao de autonomia dos entes federativos membros e finalidades

    esportivas. Existem outras caractersticas que servem como paralelo, principalmente, na teoria

    federativa, mas que, por razes metodolgicas, sero discutidas no tpico seguinte. Tais

    caractersticas referem-se autorregulao, autoadministrao e ao julgamento de suas

    prprias causas, que poderiam ser discutidas no plano da autonomia poltica e

    administrativa. Porm, elas tambm so caractersticas da produo jurdica nas FIs.

    Assim, o prximo tpico pode ser encarado tambm como extenso desse paralelo.

    1.3 A produo jurdica nas Federaes Internacionais

    A lex sportiva, como toda ordem jurdica, visa regrar comportamentos e estabelecer as

    condies para que isso possa ocorrer. Pde-se verificar que h uma vasta compreenso

    normativa em razo da matria, limitada pelas metas perseguidas pelas FIs; em razo da

    pessoa, visando FNs, clubes e atletas; em razo do lugar, que, apesar das ordens

    transnacionais no serem fundadas na territorialidade, as FN correspondem os espaos

    territoriais onde se concretiza o direito transnacional65

    . Existe uma estrutura que possibilita

    prever quais comportamentos devem ser regrados e a forma pela qual devem s-los. Abre-se

    espao para aproximar tal estrutura com os estudos de Kelsen e Hart. No se pretende igualar

    o que foi o estudado pelos autores. Pretende-se, a partir das FIs, mostrar o fenmeno da lex

    sportiva embora em um contexto de multiplicidade de identidades do direito para alm do

    Estado66

    pode ser compreendido dentro de uma revisitao da perspectiva tradicional do

    direito.

    64

    Simon, 1990, p. 59-60. 65

    Latty, 2007, pp. 146-152. 66

    Teubner, 1997b, p. 766.

  • 21

    Hart afirma que o carter autovinculativo da legislao tem de acrescentar a noo de

    regra que defina o que tem de ser feito para legislar, diferenciando os legisladores na

    qualidade de oficial e pessoa67

    . Existem, assim, regras de cunho primrio, que impem

    deveres; e de cunho secundrio, que asseguram a aplicao daquela, atribuindo poderes e

    garantindo a criao ou alterao de deveres e obrigaes68

    . A forma mais simples de remdio

    para a incerteza das regras primrias a regra de reconhecimento, especificando aspectos

    de uma regra do grupo que deve ser apoiada pela presso social que a exerce. O crucial o

    reconhecimento do texto dotado de autoridade, que pode ter sido oriundo de legislao ou,

    at, por deciso judicial. Alm disso, um critrio de superioridade serve como soluo em

    possvel conflito de critrio de identificao. Um texto dotado de autoridade, alm de um

    sistema, traz a idia de validade jurdica69. J as regras de alterao so remdios que

    evitam o carter esttico das regras primrias e conferem poder de criao de novas regras,

    especificando quem legisla e o seu processo70. A regra de julgamento, por sua vez, atribui

    poderes e um estatuto especial s declaraes judiciais, tornando-as regras de

    reconhecimento71

    . Essas regras esto no centro do sistema jurdico e contribuem para uma a

    apreciao de comportamentos, mas, por si s, no iluminam todos os problemas72

    .

    Em Kelsen, a norma jurdica vlida por ser criada por outra norma superior, que, em

    uma escala, chega norma fundamental, formando uma unidade73

    . A Constituio, nvel mais

    alto no Direito nacional, no sentido formal (no essencial e caracterstica das Constituies

    escritas), um conjunto de normas que pode ser modificado apenas com prescries

    especiais; no sentido material (essencial e, no caso do Direito consuetudinrio, no h

    diferena das leis ordinrias e constitucionais), so as regras que regulam a criao de outras

    normas jurdicas gerais74. Em Kelsen, as fontes de Direito no apenas designam mtodos de

    criao de Direito, mas caracterizam o fundamento de validade do Direito e o fundamento

    final. A fonte do Direito est sempre no prprio Direito75. Destarte, a criao de Direito a

    sua prpria aplicao (inclusive na funo judicial), pois a criao de uma norma

    aplicao na criao de outra fazendo da primeira Constituio ser considerada aplicao

    67

    Hart, 1994, 98-99. 68

    Ibidem, p. 91. 69

    Ibidem, p. 104-105. 70

    Ibidem, p. 105-106. 71

    Ibidem, p. 106-107. 72

    Ibidem, p. 109. 73

    Kelsen, 2000, p. 181. 74

    Ibidem, p. 182-183. 75

    Ibidem, p. 191-192.

  • 22

    da norma fundamental76

    . A deciso judicial constitutiva no s quando ordena uma sano,

    mas por averiguar os fatos condicionantes da sano, passando a existir dentro da esfera

    jurdica. Nesse caso, apenas a confirmao pelo rgo competente tem relevncia jurdica77

    .

    O Estatuto tem a funo de ser o nvel mais alto na estrutura da FI que condiciona todas

    as outras regulaes. O artigo 17.3 do estatuto da Federao Mundial de Carat (WFK) afirma

    que todas as regras ou regulaes devem ser conformes aos princpios do Estatuto. Assim

    como a maioria das Constituies, o Estatuto precisa de quorum especial para que possa ser

    modificado. O artigo 26.1 do Estatuto da Federao Internacional de Jud prev o quorum

    especial de dois teros das FNs para que possa ser aprovada uma modificao. Se

    anteriormente foi possvel verificar a existncia de regras no mbito primrio ou formal,

    ser igualmente verificvel a existncia de regras secundrias ou materiais nos Estatutos

    federais, principalmente na previso de rgos e condies para se criar, administrar e julgar

    tais regras.

    1.3.1 Autorregulao

    Comumente conhecido como Congresso entre as FIs, o rgo que regula a FI tem

    como composio membros, em especial, as FNs78. Seu principal poder adotar regras

    tcnicas (regras do jogo) para o desenvolvimento das competies79

    . Compete tambm ao

    Congresso adotar e modificar o Estatuto federal; decidir a introduo de novas competies e,

    em alguns casos, determinar o pas cede de competies internacionais; aprovar as contas e

    votar o oramento; aprovar a agenda de governo; eleger o Presidente; nomear os membros de

    determinadas comisses; examinar e aprovar os relatrios; ratificar decises; decidir pela

    expulso dos membros; e declarar a dissoluo da administrao80

    . No cabe aqui afirmar que

    existe democracia nas estruturas de federaes esportivas81

    . Contudo, vale ressaltar que as

    FNs, dentro dessa dinmica institucional, conseguem trazer questes localizadas do

    desenvolvimento esportivo que merecem modificaes no plano global. Quando, por

    exemplo, uma FN procura demonstrar os males sade de se jogar em lugares de altitude

    elevada, tenta modificar a regulamentao global do esporte. Assim, a FN representa

    transnacionalmente os interesses daqueles que a apiam: Federaes locais, clubes e atletas.

    76

    Ibidem, p. 193-194. 77

    Ibidem, p. 196-199. 78

    Conforme exprime o artigo 5.11 do Estatuto do IAAF. 79

    Latty, 2007, pp. 59 e 75. 80

    Nesse sentido, artigo 14 do Estatuto da FIBA. 81

    Sobre uma releitura da democracia, Cf. Neves, 2008, pp. 136-157.

  • 23

    como se um parlamentar trouxesse ao debate questes necessrias de modificao da

    legislao, conforme o interesse daqueles que votaram nele.

    H uma semelhana com a estrutura legislativa parlamentarista. O estabelecimento do

    governo depende da base parlamentar, em que os grupos polticos necessitam organizar-se de

    forma mais coesa, em razo da existncia de uma condio indispensvel para a manuteno

    ou conquista de poder82

    . A possibilidade de o Parlamento destituir o Gabinete ou destituir

    ministros demonstra bem essa idia. Nessa estrutura, possvel afirmar que o Legislativo

    no sistema parlamentarista ocupa posio sobranceira de poder, legislando e

    fiscalizando a ao do Estado, governando efetivamente, ao passo que no

    presidencialismo ele presidente quem conduz por determinao popular a ao do

    Estado. O Presidente da Repblica no deposto a no ser por impeachment83

    .

    comum que o papel regulatrio, assim como no parlamentarismo, se divida com a

    funo Executiva da FI, no s limitada Presidncia, mas somada s comisses

    especializadas. Mesmo quando sua competncia s consultiva, elas so trazidas a uma

    competncia regulamentar prpria84

    . O artigo 15 do Estatuto da FIBA prev que o Comit

    Central regular a transferncia de jogadores e tcnicos, alm de aprovar qualquer regulao

    referente matria. Quantitativamente, o direito federal transnacional provm, de maneira

    geral, de fontes derivadas dos rgos executivos, incluindo as comisses especializadas.

    visvel que h uma produo endgena s FIs, autnoma de fontes externas.

    Internamente, visvel a presena de modos organizados e hierarquizados na formao do

    direito85

    , que parte do Estatuto. Desse modo, mais do que prever quem e como se deve

    produzir regras prprias, o Estatuto determina como elas devem ser administradas.

    1.3.2 Autoadministrao

    A funo executiva responsvel pelo controle e pela superviso das atividades da FI,

    por toda a gesto de disputa, pela poltica geral e pela poltica esportiva da FI; o rgo que a

    governa. Por isso, o executivo detm poderes compreendidos em matria regulamentar ou

    disciplinar, poder de gesto de finanas, de organizao do Congresso e de executar decises

    tomadas pelas FIs86. Alm de presidir as reunies dos principais rgos da FI, o Presidente

    82

    Figueiredo, 1987, pp. 188-192. 83

    Ibidem, p. 193. 84

    Latty, 2007, p. 78. 85

    Ibidem, p. 81. 86

    Latty, 2007, pp. 61-62; e artigos C-17.12 do Estatuto da FINA, 15 e 16.6 da FIBA, 7 da IAAF, 37 e 38 da

    AIBA.

  • 24

    representa-a legalmente, seja frente Justia, seja nas relaes comerciais87

    . Isso permite, por

    exemplo, a manuteno da independncia econmica em funo da utilizao e venda dos

    direitos de transmisso do esporte agregado imagem da FI.

    Uma importncia em especial da funo executiva das FIs o controle da matria

    esportiva nas competies. A competio uma atividade submetida ao controle do seu

    desenvolvimento at o fim das provas. Um vasto campo de aplicao dos controles fundado

    na natureza prpria das competies que necessita uma observao contnua da organizao e

    do desenvolvimento dos reencontros. O controle assegura a universalidade das performances

    e a credibilidade dos resultados88

    , muito em funo de ser ele quem registra o resultado das

    melhores performances e os recordes.

    Os comits so rgos importantes para o auxlio das funes administrativas.

    Geralmente, as FIs comportam comits jurdicos, mdicos, de finanas, de marketing, uma

    ou muitas comisses tcnicas. A funo dos comits , antes de tudo, consultiva, mas que

    podem tambm auxiliar o comit executivo no exerccio de suas funes89

    , como expresso no

    artigo 21.4 do Estatuto da FIFA. Esses comits conseguem filtrar, institucionalmente, valores

    de outras esferas do saber para que o esporte possa melhor adequar-se s modificaes

    sociais. Isso verificvel quando as cincias mdicas comprovam que o uso de determinada

    substncia pode falsear o rendimento de um atleta ou prejudicar sua sade.

    Existem Comits que no se ligam estritamente s funes consultivas da funo

    Executiva. Sua caracterstica principal julgar as causas, geralmente, em ltima instncia

    interna das FIs. Isso significa que existem rgos que se assemelham funo Judicial, mas

    que nem sempre sero independentes de interesses diversos dos juridicamente estabelecidos.

    1.3.3 Julgamento de suas prprias causas

    Existe uma intensidade repressiva no mundo esportivo que se explica pela

    multiplicidade e a preciso das regras esportivas. Ela permite a igualdade dos competidores e

    a autenticidade das performances. O respeito regra deve ser absoluto, sendo seu desrespeito

    sistematicamente sancionado. Nessa estrutura que composta por funes Executivas e

    Legislativas, h espao para instncias disciplinares federais, merecendo o nome de Justia

    87

    Ibidem, pp. 62-63. 88

    Simon, 1990, p. 139-141. 89

    Latty, 2007, pp. 64-65.

  • 25

    desportiva90

    . Um dos fatores que refora tal denominao a possibilidade de afastar a

    participao das Cortes ordinrias (estatais) nas decises tomadas pelas FIs. O artigo 64.2 da

    FIFA probe qualquer recurso a essas Cortes, a no ser que as regulaes prevejam tal

    possibilidade. Para que isso possa se realizar, o artigo 64.3 determina que os membros devem

    estipular tal proibio em seu Estatuto ou regulaes que abranjam as ligas e seus membros,

    clubes, jogadores, rbitros e outros dirigentes, devendo impor sanes aos seus componentes,

    caso no seja respeitada essa previso.

    Encontra-se, em algumas FIs, espao grande para decidir sobre litgios esportivos,

    quando, em seu artigo 29.1 do Estatuto da FIJ, prev a competncia de seu Tribunal de

    Arbitragem para julgar as lides resultantes de conflitos entre seus membros; de ndole

    desportiva; ou para dar sua interpretao sobre a aplicao das regras desportivas ou

    estatutrias decretadas pela FIJ. A composio do mesmo Tribunal desvinculada da relao

    com os rgos Administrativos ou Legislativos, sendo apenas vinculado ao reconhecido saber

    jurdico, conforme prev o artigo 29.2. Recorrentemente, encontra-se nos Estatutos a previso

    de que o Tribunal Arbitral do Esporte (TAS)91

    tomar a deciso final, em especial, para

    questes disciplinares.

    A funo de julgar suas prprias causas , por vezes, divida entre rgos que compem

    as outras funes. O artigo 15, e e m, do Estatuto da FIBA, prev que o rgo Executivo

    o responsvel para suspender uma FN e de resolver disputas relacionadas a competies

    internacionais, assim como o Congresso responsvel por decidir a expulso de um membro,

    conforme o artigo 14, podendo ser encarado como um sistema primitivo de checks and

    balances92

    . Esse sistema pode ser encarado positivamente na estrutura desportiva, mas o no

    cumprimento das regras disciplinares por parte da FI, em razo de motivos que no so

    jurdicos, um ponto negativo para a consistncia do prprio Direito, assim como um

    desrespeito ao princpio da igualdade. O caso a seguir mostra bem isso.

    O cubano Javier Sotomayor sustentou o recorde mundial de salto em altura por ser o

    nico homem a saltar oito ps. Em 1992, tornou-se um cone em seu pas por conquistar a

    medalha de ouro nas Olimpadas de Barcelona. Atualmente, tambm um membro da

    Comisso de Atletas da IAAF, dado o exemplo em excelncia que fora o atleta. Todavia,

    90

    Simon, 1990, pp. 149-152. 91

    Em captulo especialmente dedicado ao TAS, mostrar como o funcionamento desse instituto, com sua

    independncia e autonomia. 92

    Latty, 2007, p. 83.

  • 26

    mesmo com o brilhantismo que foi sua carreira, aps sua vitria nos Jogos Pan-americanos,

    Sotomayor testou positivo para cocana. Ele negou o uso. A fora de sua imagem fez com que

    o Presidente cubano, Fidel Castro, sugerisse que algum quis manchar o programa esportivo

    do pas. A Turma decisria nacional livrou-o das acusaes. A Turma de arbitragem da IAAF

    julgou e afastou os argumentos levantados pela Federao Cubana de Atletismo (FCA) que

    incluam argumentos procedimentais, alegaes de amostras corrompidas, e um ataque na

    credibilidade do laboratrio de Montreal sustentando que foram meros argumentos sem

    nenhuma prova. A Turma concluiu que Sotomayor se dopou e, reformando a deciso da

    Turma decisria da FCA, tornou-o inelegvel para competir por dois anos. O Conselho da

    IAAF, rgo responsvel por funes administrativas, reduziu a suspenso para 1 ano de

    inelegibilidade, e Javier competiu nos Jogos Olmpicos de Sidney, conquistando medalha de

    prata. A anulao da deciso da Turma arbitral invocou artigo de regulamento que permitia

    um atleta ser reintegrado de uma punio quando ocorressem circunstncias excepcionais. O

    presidente da IAAF, Lamine Diack, disse que acreditava que o atleta merecia um maior

    suporte e que poderia dar-lhe a possibilidade de competir novamente, por se tratar de um ser

    humano que podia errar. A base para a reduo parece ter sido seu histrico limpo de drogas e

    trabalhos humanitrios. Alguns afirmaram que a deciso da IAAF ia de encontro com suas

    prprias regras, pois prev que apenas verdadeiras circunstncias excepcionais podero

    justificar qualquer reduo93

    . Apesar da importncia de Sotomayor, no era justificvel afast-

    lo de alguma pena, enquanto que outros atletas eram punidos sob o cometimento da mesma

    infrao.

    Situaes, como a narrada, so cada vez mais excepcionais por causa de aes da

    Agncia Mundial Antidoping (AMA ou WADA) e por julgamentos do Tribunal Arbitral do

    Esporte, que so autnomos e afastados das influncias no-jurdicas das FIs. Para que essa

    estrutura pudesse lograr xito junto s FIs, houve uma luta por parte do Comit Olmpico

    Internacional (COI) com o intuito de centralizar o debate jurdico-desportivo, atravs da

    condio de participao da principal competio internacional do mundo: as Olimpadas.

    Portanto, antes de estudar os dois primeiros institutos, fundamental o estudo mais

    aprofundado do Movimento Olmpico.

    93

    Caso analisado por McLaren, 2001, pp. 387-388.

  • 2 O MOVIMENTO OLMPICO

    Em torno da administrao da maior competio esportiva do mundo, encontra-se o

    Movimento Olmpico. ele quem vincular uma poro de atores, atribuindo-lhes

    responsabilidades, sob observao e reconhecimento do COI. Contudo, o papel mais

    importante do Movimento estreitar as possibilidades de discusso de problemas jurdico-

    desportivos. O presente captulo ter como objetivo investigar a origem, os rgos e

    legislao que coordena o Movimento Olmpico.

    2.1 Origem

    Nascido no sculo XIX, Pierre de Coubertin, aristocrata francs, buscou melhorar o

    sistema educacional de seu pas. Para isso, fez viagens Gr-Bretanha, Estados Unidos e

    Canad para entender seus mtodos educacionais. Fascinou-se com o modo enftico dado

    educao fsica como um importante fator de desenvolvimento global e, especialmente, ficou

    encantado com os empreendimentos atlticos que supostamente melhorariam o esprito das

    pessoas1.

    Coubertin tratou de estudar a Grcia antiga e os seus Jogos Olmpicos, acreditando em

    ensinamentos similares, simbolizada pelos dizeres conhecidos uma mente s em um corpo

    so. Apaixonou-se pela idia dos antigos Jogos Olmpicos e, por isso, passou desenvolver

    um movimento que pudesse enfatizar esportes internacionais em um grande festival

    retrospectivo: os Jogos Olmpicos modernos. Publicamente, sugeriu pela primeira vez a idia

    dos Jogos Olmpicos modernos em um encontro de signatrios do esporte em Sorbonne em

    1892, mas nada veio dali. Nesse encontro, todavia, proferiu seu apelo comparando a

    competio entre atletas estrangeiros com o livre comrcio do futuro: um mundo nico que

    abriria espao para a paz. Em 1894, ele promoveu outra conferncia, em que Coubertin

    tornou a discutir a ressurreio dos Jogos Olmpicos. Encontrou ressonncia entre os

    candidatos, e os Jogos Olmpicos modernos, sob a organizao do Comit Olmpico

    Internacional (COI), comearam dois anos depois em Atenas, Grcia, tendo sido um sucesso2.

    1 Mallon e Buchanan, 2006, p. XCIV.

    2 Ibidem, pp. XCIV-XCVI; Cf. Raber, 1998, p. 79.

  • 28

    Nascia ali o Movimento Olmpico, juntamente com seus valores, isto , o Olimpismo

    moderno. possvel reconhecer