Dissertacao Mariana M P Souza

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ADMINISTRATIVAS CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAS EM ADMINISTRAÇÃO MARIANA MAYUMI PEREIRA DE SOUZA “O TEATRO COMO FORMA DE SE COLOCAR NO MUNDO”: A FORMAÇÃO DE IDENTIDADES NOS GRUPOS GALPÕES Belo Horizonte 2010

Transcript of Dissertacao Mariana M P Souza

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

    FACULDADE DE CINCIAS ECONMICAS

    DEPARTAMENTO DE CINCIAS ADMINISTRATIVAS

    CENTRO DE PS-GRADUAO E PESQUISAS EM ADMINISTRAO

    MARIANA MAYUMI PEREIRA DE SOUZA

    O TEATRO COMO FORMA DE SE COLOCAR NO MUNDO: A FORMAO DE IDENTIDADES NOS GRUPOS GALPES

    Belo Horizonte

    2010

  • MARIANA MAYUMI PEREIRA DE SOUZA

    O TEATRO COMO FORMA DE SE COLOCAR NO MUNDO: A FORMAO DE IDENTIDADES NOS GRUPOS GALPES

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em

    Administrao da Faculdade de Cincias

    Econmicas da Universidade Federal de Minas

    Gerais, como requisito obteno do ttulo de

    Mestre em Administrao.

    rea de concentrao: Estudos Organizacionais

    Orientador: Prof. Dr. Alexandre de Pdua Carrieri

    Belo Horizonte

    2010

  • AGRADECIMENTOS

    Principalmente, a Deus, pelos momentos de transcendncia, nos quais encontro minha

    identidade autntica, por ser minha verdade tica e esttica, por conferir sentido minha

    existncia e por ter me possibilitado realizar esta dissertao.

    minha famlia pai, me, Henrique e Felipe , pela inspirao, pelo convvio dirio, pelos

    conhecimentos sobre a vida e pelo suporte essencial ao meu trabalho. Aos meus queridos

    amigos, cujos nomes esto no meu corao, por existirem e simplesmente por estarem ao meu

    lado. Ao Alexandre, pelo apoio e pelo carinho nesta reta final. A todos vocs, agradeo-lhes

    por fazerem parte das minhas relaes autnticas, nas quais me reconheo como

    verdadeiramente sou.

    Ao Professor Alexandre Carrieri, por ter feito parte da minha trajetria acadmica desde seu

    incio e por ter sempre acreditado em mim, pelo apoio constante, pelos conselhos, pela

    amizade e por ser um exemplo de pesquisador, de professor e de pessoa a ser seguido. Sem a

    sua orientao pelos tortuosos caminhos acadmicos, este trabalho no seria possvel. Meus

    agradecimentos se estendem a todos os colegas do Ncleo de Estudos Organizacionais e

    Sociedade (NEOS), que contriburam, direta ou indiretamente, para a consecuo deste

    trabalho, pelas discusses, pelas trocas de experincias e pelo apoio nas longas transcries.

    Professora Ana Paula Paes de Paula, no apenas pelas participaes nas bancas de

    qualificao e de defesa da dissertao, mas tambm por contribuir indiretamente para a

    realizao deste trabalho, pelas disciplinas, pelas ideias defendidas e pelo modelo de

    coerncia e de tica que representa para mim.

    Ao Professor Antnio Augusto Moreira de Faria, pelos ensinamentos sobre a anlise do

    discurso e pelo incentivo para sempre estar prosseguindo nesta rea.

    Aos colegas das reunies de quinta, especialmente, Jonathan, Thalita (Tita), Daniel, Lvia,

    Fred, Glauciene, Claudinha e Xambinho, pelas reflexes, pelas discusses e pelas

    contribuies, que foram cruciais para este trabalho. As reunies com vocs tm sido

    momentos importantes, a partir dos quais pude transcender e obter boa parte dos insights

    desta pesquisa. Agradeo especialmente ao Daniel Calbino e ao Alexandre Pinheiro

    (Xambinho), pelas discusses frutferas e pelas parcerias nos artigos.

  • Guardo gratido especial aos sujeitos de pesquisa, que foram coautores deste trabalho: a

    todos do Grupo Galpo, Arildo, Beto, Chico, Eduardo, Fernanda, Ins, Jlio, Lydia, Paulo

    Andr, Rodolfo, Simone, Teuda e Toninho; ao pessoal do Oficino 2009, Lenine, Ana Flvia,

    Andria, Daniela, Elise, Fabiana, Gabriel, Juliana, Leonardo, Lucas, Mariana, Patrcia,

    Renata, Vlber e Valeria; aos atores da Cia. Malarrumada, principalmente aos que

    participaram das entrevistas, Grman, Gyuliana e Marcelo; e, finalmente, Rose e Joyce,

    funcionrias do Galpo Cine Horto. Agradeo a todos vocs pela abertura, pela disposio em

    contribuir para esta pesquisa e pela inspirao ao v-los na arte da vida cotidiana. No posso

    deixar de agradecer ainda Professora Marlia de Castro Silva, por me abrir as portas e por

    me ajudar nos primeiros passos da pesquisa. De forma geral, agradeo a todos que fazem

    parte da estrutura do Grupo Galpo e do Galpo Cine Horto, pela simpatia e pelo bom

    convvio.

    Por fim, agradeo a todos do Centro de Ps-Graduao e Pesquisas em Administrao

    (CEPEAD/UFMG), professores, funcionrios e alunos, responsveis por manter uma estrutura

    em que o ensino e a pesquisa ainda so valores primordiais.

  • (Chen-T diz aos deuses)

    Vossa ordem de outrora:

    Ser boa e viver apesar disso

    Partiu-me em duas metades como um raio.

    Sei l como isso aconteceu: no conseguia

    Ser boa para os outros e ao mesmo tempo para mim.

    Ajudar os outros e ajudar-me

    Era duro demais.

    Ah! Que complicado o vosso mundo!

    Bertold Brecht - Alma boa de Setsuan

  • RESUMO

    A motivao inicial deste trabalho foi a compreenso da dinmica de construo de

    identidades no interior do Grupo Galpo, entendido, a princpio, como locus de pesquisa.

    O objetivo consiste em abordar o tema da identidade em relao ao contexto da produo

    de arte. A realidade social recortada foi concebida como fruto da construo diria dos

    sujeitos enquanto participantes ativos e interpretadores do mundo que os cerca. Com a

    aproximao ao locus de pesquisa, observou-se que o Grupo Galpo, na realidade, se

    desmembrava numa estrutura organizacional diversificada e complexa. Optou-se, ento,

    por estudar em profundidade trs grupos de atores que possuem suas identidades coletivas

    atreladas ao nome da entidade Galpo, a saber, o prprio grupo de atores do Galpo, o

    grupo do Projeto Oficino 2009, conduzido pelo Galpo Cine Horto, e o grupo de atores

    da Cia. Malarrumada. O contato com o campo e a reviso das literaturas sobre identidade

    fizeram com que se optasse pela abordagem da identidade enquanto prtica, enquanto

    atividade humana no mundo (CIAMPA, 2005). A anlise das identidades realizada nesta

    pesquisa se baseou, dessa forma, na concepo da identidade enquanto um atributo em

    constante mudana, que se constri diariamente a partir das atividades cotidianas. A

    revelao de quem a pessoa e, em particular, o estudo dessa revelao pelo pesquisador

    perpassam necessariamente pela interpretao de suas prticas, isto , pela captao delas

    como discursos, verbais ou no, o que confere sentido ao. Dessa forma, h de se

    conceber as prticas enquanto prticas discursivas, o que pressupe o estabelecimento de

    relaes de sentido entre enunciador e receptor (FAIRCLOUGH, 2003). Adicionalmente,

    partindo-se de uma perspectiva filosfica negativa, entende-se que as prticas

    (discursivas) cotidianas poderiam estar direcionadas existncia material no mundo ou a

    atividades que a transcendam. Em momentos de existncia, o indivduo se dedica ao

    simples cumprimento de papis sociais e pauta sua conduta em funo de sua relao

    objetiva mundana. Em momentos de transcendncia, por outro lado, o indivduo poderia

    se dedicar contemplao, arte, interao autntica e ao pensamento crtico. Entende-

    se que a razo humana opera de forma diferenciada em atividades de existncia e de

    transcendncia, sendo as primeiras pautadas, basicamente, pela racionalidade instrumental

    e as ltimas pela racionalidade substancial (ARENDT, 2004; MANNHEIM, 1986). Nesse

    sentido, prticas cotidianas pautadas pelas diferentes racionalidades permitem ao

    indivduo exercer identidade instrumental ou identidade autntica. Aplicando-se tal

    entendimento ao contexto das organizaes, salienta-se a importncia de se estudar os

    indivduos em relao aos nveis coletivos, pois, em diferentes enclaves da vida social,

    torna-se possvel ao indivduo exercer diferentes tipos de racionalidade (RAMOS, 1981).

    Em contrapartida, defende-se tambm a ideia de que o indivduo capaz de exercer uma

    identidade autntica em contextos pautados pela instrumentalidade, sendo capaz de

    transformar-se e de transformar as condies que o reprimem (CIAMPA, 2005). Ao final

    da pesquisa, foram evidenciadas as relaes entre as identidades individuais dos artistas e

    dos grupos. Essas relaes ocorrem a partir de prticas discursivas compartilhadas pelos

    gneros, principalmente a respeito dos objetivos, da estrutura e da representao das

    caractersticas tpicas do membro do grupo. Alm disso, foi feita uma anlise comparativa

    das identidades coletivas e algumas consideraes sobre a produo de arte no contexto

    atual. Por fim, demonstra-se esquematicamente o conhecimento gerado a partir da

    pesquisa, entendendo-o como forma de se expandir zonas de sentido sobre a questo das

    identidades e racionalidades.

    Palavras-chave: Identidade. Identidade coletiva. Racionalidade. Produo de arte. Grupo

    Galpo

  • ABSTRACT

    The first motivation of this work was the comprehension of the identity construction

    dynamics inside Grupo Galpo, which was considered initially as the research locus. Our

    objective was to study identity in relation to arts production context. We conceived the

    social reality in focus as a product of subjects daily construction. Subjects are seen as active participants and interpreters of their surrounding world. As we got closer to the

    research locus, we observed that Grupo Galpo was actually a very diversified and

    complex organizational structure. So, we chose three internal groups of actors to study

    deeply, as they seem to have their collective identity related to Galpos entity name. The three groups were the Galpos main group of actors, the group of Oficino Project 2009 conducted by Galpo Cine Horto and the group of actors of Malarrumada Company.

    Getting contact with the field and reviewing literature about identity supported our option

    to approach identity as practice, as a result of human activity in the world (CIAMPA,

    2005). The identitary analysis in this research was based on the conception of identity as a

    constantly changing attribute, which is daily constructed by everyday activities.

    Revelation of whom the person is, in particular the study of this revelation by the

    researcher, has necessarily to go through interpretation of his/her practices, i.e., by

    capturing these practices as discourses that give sense to the action. Discourses, in this

    sense, can be verbal or not. So, we assume that practices must be conceived as discursive

    practices, which establish sense relations between enunciator and receptor

    (FAIRCLOUGH, 2003). In addition, considering a negative philosophical perspective, we

    understand that (discursive) everyday practices could be directed to material existence in

    the world or to transcendent activities. In existence moments, individual is dedicated only

    to playing social roles and directs his/her behavior according to his/her objective relation

    with the world. On the other hand, in transcendence moments, individual could dedicate

    his/herself to contemplation activities, to arts, to authentic interaction e to critical thinking.

    We believe that human Reason operates differently during existence or transcendence

    activities. The former is oriented by an instrumental rationality and the latter by

    substantive rationality (ARENDT, 2004; MANNHEIM, 1986). In this sense, every day

    practices oriented by different rationalities let individual perform instrumental or authentic

    identity. Applying this theory to organizations context, we point to the importance of

    studying individuals in relation with collective levels, because, in different systems of

    social life, the practice of different types of rationality become desirable to individuals.

    (RAMOS, 1981). However, we also assume that individuals are capable of expressing

    authentic identity in instrumental oriented contexts, because they could change themselves

    and change repressive conditions (CIAMPA, 2005). By the end of this research, we could

    demonstrate relations between artists individual identities and their groups. These relations happened by shared discursive practices, as genres. They were mainly about the

    groups objectives, structures and typical characteristics of the members. We also made a comparative analysis of the collective identities and some considerations on the art

    production in current context. Finally, we showed a scheme consolidating the knowledge

    we could generate by the research. We believe that this knowledge is a way of expanding

    sense zones about identity and rationality issues.

    Key-words: Identity. Collective Identity. Rationality. Arts production. Grupo Galpo.

  • LISTA DE FIGURAS

    FIGURA 1 - Articulao para a compreenso da identidade.............................................67

    FIGURA 2 - Dimenses da identidade segundo as racionalidades.....................................68

    FIGURA 3 - Articulao entre os nveis identitrios e discursivos....................................92

    FIGURA 4 - O Paradigma Paraeconmico..........................................................................94

    FIGURA 5 - Estrutura do Grupo Galpo e do Galpo Cine Horto.................................104

    FIGURA 6 - As identidades coletivas no Galpo...............................................................218

    FIGURA 7 As identidades coletivas.................................................................................219

  • SUMRIO

    1. INTRODUO ................................................................................................................ 1

    1.1 ORGANIZAO DA DISSERTAO ........................................................................................ 7

    2. POSICIONAMENTO ONTOLGICO E EPISTEMOLGICO ............................... 10

    3. A TEORIA CRTICA E A RAZO HUMANA ........................................................... 17

    3.1 RACIONALIDADES ....................................................................................................................24

    3.2 RACIONALIDADE NA ARTE .......................................................................................................30

    4. A CONSTRUO DA IDENTIDADE ........................................................................ 45

    4.1 PARA ALM DA DUALIDADE ENTRE IDENTIDADE PESSOAL E SOCIAL: ENTENDENDO A

    IDENTIDADE COMO PRTICA ..........................................................................................................52

    4.1.1 Definies de prticas ..........................................................................................................56

    4.1.2 Identidade instrumental ........................................................................................................69

    4.1.3 Identidade substantiva ..........................................................................................................72

    4.2 IDENTIDADES COLETIVAS EM ESPAOS ORGANIZACIONAIS .......................................................78

    4.2.1 A formao da identidade coletiva ........................................................................................84

    4.3 OPERACIONALIZANDO A ANLISE DAS IDENTIDADES NO GRUPO GALPO ...............................91

    5. O GRUPO GALPO: abrindo as cortinas do palco ..................................................... 95

    6. O ESPETCULO DAS IDENTIDADES .................................................................... 108

    6.1 O ARTISTA E SUA ARTE DE VIVER .......................................................................................... 109

    6.1.1 O artista faz a arte e a arte faz o artista: o percurso semntico da arte ............................... 128

    7. VIDAS E ARTES COLETIVAS.................................................................................. 139

    7.1 O GRUPO GALPO: A ARTE DE (SOBRE)VIVER COLETIVAMENTE ............................................. 140

    7.2 O OFICINO 2009: ENSAIANDO A IDENTIDADE COLETIVA ....................................................... 167

    7.3 A COMPANHIA MALARRUMADA: (DES)ARRUMANDO UM COLETIVO ....................................... 192

    8. CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 214

    9 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ......................................................................... 223

    ANEXO A - CAMINHOS METODOLGICOS .......................................................... 230

    ANLISE DO DISCURSO ........................................................................................................ 236

  • 1

    1. INTRODUO

    A motivao inicial deste trabalho foi a compreenso da dinmica de construo de

    identidades no interior do Grupo Galpo, entendido a princpio como locus de pesquisa.

    Partiu-se, intencionalmente, do questionamento amplo sobre como as identidades eram

    formadas no interior desse locus, com vistas a lapidar questes especficas a partir da

    ampliao do conhecimento emprico. A realidade social (e nas organizaes) recortada foi

    concebida como fruto da construo diria dos sujeitos enquanto participantes ativos e

    interpretadores do mundo que os cerca. Dessa forma, somente aps certo tempo de convvio e

    de coleta de dados preliminares que se tornou possvel especificar parmetros para o

    encaminhamento da pesquisa (BERGER; LUCKMAN, 1998; HERACLEOUS; JACOBS,

    2006).

    O objetivo foi abordar o tema da identidade em relao ao contexto da produo de arte.

    Optou-se pelo conceito de identidade, pois ele abriria possibilidades de se explorar a

    individualidade de cada sujeito no decorrer das interaes sociais. A articulao das

    identidades individuais em nveis coletivos permitiria o entendimento dos significados

    coletivamente partilhados, das restries que a identidade coletiva impe identidade

    individual e das razes que levam o sujeito a se agrupar. Tais questes so consideradas

    centrais aos estudos organizacionais e tm sido, ao longo de anos de pesquisas, bastante

    discutidas no Ncleo de Estudos Organizacionais e Sociedade (NEOS), do qual eu fao parte.

    Neste trabalho, pretendeu-se articular o tema da identidade nas organizaes com a questo da

    produo artstica contempornea. Entende-se que o trabalho artstico organizado assume

    formatos diferenciados em relao s organizaes econmicas. Isso porque tratar-se-ia de um

    produto cuja natureza altamente autoral e cujo valor assume sentidos simblicos. A

    compreenso de como se inter-relacionam as identidades de artistas contemporneos,

    principalmente quando estes se encontram agrupados de forma organizacional, poderia gerar

    contribuies relevantes para estudos tanto do campo da identidade quanto do campo das

    organizaes chamadas culturais ou criativas (BENDASOLLI et al., 2009; GLYNN,

    2000).

  • 2

    Segundo Duarte (2002), o processo moderno de globalizao tem reintroduzido o debate

    sobre a indstria cultural. No cerne da indstria cultural estaria o fetichismo em relao aos

    bens culturais. O valor de uso desses bens, tradicionalmente representado pela admirao

    esttica de um devir transcendente, passa a ser absorvido pelo seu valor de troca, advindo de

    uma valorizao social artificial gerada pelo prestgio de se consumir certo tipo de mercadoria

    cultural (HORKHEIMER; ADORNO, [1947] 2007).

    Neste cenrio, observa-se no Brasil e no mundo a franca expanso do setor cutural, entendido

    como espao de criao, consumo e gerao de emprego. notvel o crescimento de

    investimentos financeiros para essa rea, assim como o nmero cada vez maior de pessoas

    que possuem a arte como ocupao principal. Nesse processo, chamam a ateno a procura

    por profissionalizao e a formalizao de uma gesto cultural. O discurso dos profissionais

    em gesto cultural torna-se forte na medida em que essas figuras so os responsveis pela

    formulao de projetos para captar financiamentos no setor privado. Isso porque, numa

    realizao quase total da ideia de indstria cultural, as empresas privadas se tornam as

    principais gestoras de financiamentos para a produo cultural, entendendo-a como

    instrumento de marketing e, at mesmo, como instrumento pedaggico das massas

    (AVELAR, 2008).

    Tendo em vista a complexidade do contexto histrico e macrossocial, o sistema social

    particular estudado, conforme j exposto, foi o Grupo Galpo, grupo teatral que existe h

    vinte e oito anos, com sede em Belo Horizonte. O Galpo surgiu a partir da associao de

    quatro atores Teuda Bara, Eduardo Moreira, Wanda Fernandes e Antnio Edson , que se

    conheceram em uma oficina de teatro oferecida por dois membros alemes do Teatro Livre de

    Munique, primeiro em Belo Horizonte, e posteriormente, em Diamantina. Dos alemes, os

    fundadores do Galpo herdaram as influncias do dramaturgo Bertold Brecht, que tem sua

    obra reconhecida como politizada e contestadora. Alm disso, o grupo tambm herdou de seus

    mentores a tradio do teatro de rua, o trabalho circense e a sacralidade do teatro como

    atividade digna de entrega e seriedade (BRANDO, 2002).

    A aproximao com o locus de pesquisa revelou que o Grupo Galpo, na realidade, se

    desmembrava numa estrutura organizacional diversificada e complexa. Isso porque no ano de

    1998 o Galpo criou um centro cultural, denominado Galpo Cine Horto. Apesar da

    proximidade geogrfica entre a sede do grupo de atores e o centro cultural, h uma distncia

  • 3

    nas relaes cotidianas entre aqueles que trabalham em cada sistema. O Grupo Galpo

    mantm-se basicamente nas atividades de produo, ensaios e apresentao de espetculos,

    alm de se relacionar com patrocinadores que viabilizam tais atividades. O Galpo Cine

    Horto, por sua vez, abriga uma srie de projetos que ocorrem paralelamente, como o acervo

    sobre memria do teatro, as aulas de teatro para crianas e adultos, e o recebimento de grupos

    de atores de fora da cidade. Os patrocinadores do Cine Horto no so os mesmos do Galpo.

    A estrutura Grupo Galpo-Galpo Cine Horto, em conjunto, emprega cerca de quarenta

    funcionrios, mantendo um formato, algumas vezes, prximo ao empresarial.

    Aps os primeiros contatos com o locus de pesquisa e tendo selecionado os grupos

    especficos a serem estudados, a pesquisa partiu para sua segunda etapa, baseada em

    observaes assistemticas e em entrevistas em profundidade. Durante essa fase, retomou-se

    uma srie de questionamentos terico-metodolgicos a respeito do estudo das identidades.

    Como identificar os aspectos identitrios dos indivduos? A identidade dos sujeitos

    envolvidos nos grupos explica seus comportamentos cotidianos? Sendo pessoas muito

    diferentes, o que seria exatamente a identidade coletiva? Como ela se constri? O contato com

    o campo e a reviso das literaturas sobre identidade fizeram com que se optasse pela

    abordagem da identidade enquanto prtica, enquanto atividade humana no mundo (CIAMPA,

    2005).

    A anlise das identidades realizada nesta pesquisa se baseou, dessa forma, na concepo da

    identidade enquanto um atributo em constante mudana, que se constri diariamente a partir

    das atividades cotidianas. Rejeita-se, nesse sentido, a ideia de identidade enquanto um

    conceito formado, um substantivo ou adjetivo, que caracteriza o que o indivduo , e, a partir

    disso, explica tautologicamente seus comportamentos. A identidade entendida enquanto

    ao, enquanto o verbo desempenhado pelo sujeito. Dessa forma, no se cristaliza o que o

    indivduo chegou a ser um dia. Abrem-se possibilidades contnuas de transformao e de

    transgresso das imposies externas pelo desempenho de papis sociais. Estudar a identidade

    seria, consequentemente, conceb-la como a mesmidade de pensar e ser ou seja, quando o

    indivduo busca ser ele mesmo, no como forma de buscar sua essncia, mas de ser ele

    mesmo como um ser que dotado de identidade (CIAMPA, 2005; ARENDT, 2004).

    Sendo a identidade manifestada pela vida ativa, nem sempre o indivduo estaria apto a exercer

    a mesmidade entre pensar e ser. Nem sempre haveria possibilidade de se exercer livremente a

  • 4

    identidade, devido a restries situacionais e imposio de papis. Notadamente, no

    contexto da pesquisa, observou-se que a criao artstica ocorreria quando espaos de

    interao permitiam liberdade aos sujeitos, para manifestarem abertamente suas idias, para

    testar prticas, ou seja, para ser eles mesmos em sua condio humana. Tais constataes

    iriam ao encontro da viso da arte enquanto atividade que requer transcendncia das

    condies materiais vividas. Sendo necessrio admitir a separao entre as atividades

    humanas transcendentes daquelas voltadas simplesmente a questes mundanas, o estudo se

    orientou segundo a lgica dialtica, baseada na filosofia negativa (MARCUSE, 1973).

    Partindo-se de uma perspectiva filosfica negativa, entende-se que as prticas (discursivas)

    cotidianas poderiam estar direcionadas existncia material no mundo ou a atividades que a

    transcendam. Em momentos de existncia, o indivduo se dedica ao simples cumprimento de

    papis sociais e pauta sua conduta em funo de sua relao objetiva mundana. Em momentos

    de transcendncia, por outro lado, o indivduo poderia se dedicar contemplao, arte,

    interao autntica e ao pensamento crtico. A razo humana operaria de forma diferenciada

    em atividades de existncia e de transcendncia, sendo as primeiras pautadas, basicamente,

    pela racionalidade instrumental e as ltimas pela racionalidade substantiva. Nesse sentido,

    prticas cotidianas pautadas pelas diferentes racionalidades permitem ao indivduo exercer

    identidade instrumental ou identidade autntica em seu cotidiano (ARENDT, 2004;

    MANNHEIM, 1986; RAMOS, 1981).

    Em sntese, esta pesquisa parte dos seguintes pressupostos:

    - A realidade social enquanto produto da construo humana acessada sempre de forma

    parcial a partir do conhecimento cientfico construtivo-interpretativo e dos mtodos

    qualitativos (REY, 2005; BERGER; LUCKMAN, 1998).

    - Segundo a filosofia negativa, caracterstico da natureza humana a capacidade de

    transcender as condies materiais como forma de se viver momentos em que sejam

    contempladas verdades baseadas em valores ticos ou estticos (MARCUSE, 1973;

    MANNHEIN, 1986; ARENDT, 2004).

    - Quando o comportamento humano se pauta por motivos existenciais a partir das condies

    materiais imediatas, ele seria orientado segundo a racionalidade instrumental. Em

  • 5

    contrapartida, quando o homem age segundo suas convices valorativas em busca de

    relaes interpessoais autnticas, ele seria motivado pela racionalidade substantiva

    (MANNHEIN, 1986; RAMOS, 1981).

    - A identidade um atributo em constante construo, a partir da atividade dos homens no

    mundo. Ela pode ser, portanto, instrumental ou substantiva, dependendo do contexto em que o

    indivduo se encontra, do grau de liberdade que lhe permitido e do grau utpico de suas

    convices (CIAMPA, 2005; ARENDT, 2004; MANNHEIN, 1986).

    - As prticas identitrias devem ser analisadas como prticas discursivas, pois pressupem a

    revelao do sujeito que as empreende e a recepo do pesquisador que as interpreta. Mesmo

    as prticas no verbais se tornam discursivas a partir do processo de semiotizao.

    Inevitavelmente, haver interferncia da subjetividade do pesquisador nesse processo

    (ARENDT, 2004; FAIRCLOUGH, 2003).

    Partindo-se das articulaes teoricoempricas construdas e reconstrudas ao longo da

    pesquisa, para se responder ampla questo Como se processa a construo das

    identidades no(s) Grupo(s) Galpo(es)?, foram traados alguns objetivos especficos:

    a) Entendendo que as identidades individuais e coletivas se constroem de forma

    articulada e dinmica, foi necessrio, primeiramente, reconhecer as identidades

    coletivas que se formam no interior da estrutura do Galpo.

    b) Aps o mapeamento dessas identidades coletivas e a seleo daquelas a serem

    estudadas em profundidade, o segundo objetivo foi conhecer as prticas empreendidas

    pelos sujeitos em relao aos grupos, preferencialmente, no nvel cotidiano.

    c) Tendo sido coletadas, objetivou-se analisar as prticas como prticas discursivas por

    meio dos conceitos da anlise do discurso. Dessa forma, sentidos a respeito das

    identidades individuais e coletivas foram identificados, assim como as respectivas

    racionalidades subjacentes aos discursos.

    d) Por fim, buscou-se evidenciar as inter-relaes envolvendo as identidades individuais

    e coletivas, entendendo como as racionalidades envolvidas influenciam a construo

    identitria. Assim, tornou-se possvel traar uma srie de consideraes a respeito das

  • 6

    identidades dos indivduos, dos grupos e do Galpo enquanto uma entidade cujo nome

    influencia todas as identidades em jogo.

    Para a concretizao emprica desta pesquisa, realizou-se, portanto, um estudo de caso

    qualitativo. A pesquisa qualitativa permitiu chegar essncia dos fenmenos estudados a

    partir do trabalho de interpretao dos dados, no de maneira isolada como fatos ou

    acontecimentos isolados, mas sim em um contexto em que h uma dinmica de relaes. Os

    dados foram coletados por meio de observaes assistemticas, seguidas de anotaes de

    campo, entrevistas semiestruturadas e fontes secundrias, como bibliotecas e acervos. Dessa

    forma, pretendeu-se apreender as prticas cotidianas dos sujeitos pesquisados, seus discursos

    e os discursos oficiais disponveis em publicaes institucionais e documentos (CHIZZOTTI,

    2008).

    Para a anlise dos discursos coletados, foram empregados elementos da anlise discurso.

    Entende-se que o discurso deve ser analisado de forma socialmente contextualizada, pois um

    indivduo jamais constitui um discurso sozinho, mas em constante interao com outros.

    Nesse sentido, uma questo cara anlise do discurso a relao sujeito (enunciador) e

    estrutura (formao discursiva) (FIORIN, 2003; FARIA, 2001). A partir de aspectos tericos

    ligados formao sociolingustica das identidades individuais e coletivas, foram destacados

    alguns conceitos-chave que oferecero suporte para a operacionalizao das anlises, tais

    como: gnero discursivo/prticas discursivas, semntica/sintaxe, intradiscurso/interdiscurso,

    enunciado/enunciao, percursos semnticos e estratgias de persuaso (BAKHTIN, 1992;

    SPINK; MEDRADO, 1999; FIORIN, 2003; FARIA, 2001; MAINGUENEAU, 2000; FARIA;

    LINHARES, 1993).

    Torna-se relevante resgatar o conceito de identidade nesta pesquisa por vrias razes.

    Primeira, pois, diante do cenrio de instabilidade no trabalho, da crescente individualidade e

    aplicao predominante da lgica instrumental nas relaes sociais, abordar a construo das

    identidades, individuais e coletivas permite trazer tona o ncleo subjetivo e essencial dos

    indivduos. Permite humanizar o olhar sobre ambiente organizacional, ampliando a

    compreenso da dinmica social e esclarecendo laos identificatrios e de pertencimento.

    Em segundo lugar, o estudo se torna relevante por abordar uma organizao do setor cultural,

    o que pode contribuir para promover maior entendimento da gesto nesse campo, novo e em

    expanso. As organizaes culturais apresentam peculiaridades e enfrentam contradies

  • 7

    inerentes sobrevivncia no sistema capitalista, tendncia instrumentalidade nesse sistema

    e manuteno do trabalho criativo. Ao estudar o Grupo Galpo, tornou-se possvel adentrar

    na realidade de uma organizao desse tipo, explorando as alternativas tticas e estratgicas

    de sobrevivncia empreendidas pelos integrantes, bem como o jogo entre as racionalidades

    instrumentais e substantivas por trs dessas prticas.

    Por ltimo, mas no menos importante, esta pesquisa torna-se justificvel e vivel pois est

    relacionada ao grupo temtico de Estudos Organizacionais, Histria, Memria e Identidade

    Cultural do Ncleo de Estudos Organizacionais e Sociedade (NEOS) da Universidade Federal

    de Minas Gerais (UFMG), que se caracteriza pelo desenvolvimento de pesquisas

    interdisciplinares, procurando realizar interfaces entre a rea da Teoria Organizacional e a do

    Pensamento Social. Nos ltimos anos, foram desenvolvidas outras pesquisas relacionadas

    temtica da identidade, das prticas estratgicas e tticas, e das prticas em organizaes de

    produo artstica. Portanto, a participao no Ncleo proporcionou um espao de

    compartilhamento de saberes e ideias que certamente enriqueceram a pesquisa e contribuiram

    para sua articulao com outros estudos.

    1.1 Organizao da dissertao

    Esta dissertao est dividida em oito captulos, incluindo esta introduo, em que se

    apresentam brevemente as motivaes e justificativas da pesquisa, os caminhos tericos e

    empricos trilhados, os pressupostos tomados como base para o encaminhamento das anlises

    e das concluses, a questo norteadora e os objetivos especficos a ela atrelados.

    O segundo captulo descreve os posicionamentos ontolgicos e epistemolgicos da pesquisa,

    com base na perspectiva construtivo-interpretativa e na abordagem qualitativa. Buscou-se

    evitar a reificao das organizaes, entendendo-as como produto da atividade humana

    associada.

    O terceiro captulo parte da teoria crtica para delinear os conceitos de transcendncia e

    existncia. A partir deles, so desenvolvidas ideias sobre as racionalidades humanas. Aborda-

  • 8

    se, tambm, a questo histrica da arte e sua relao com os vrios sistemas sociais ao longo

    do tempo. Dessa forma, so colocadas questes sobre a racionalidade na arte e a produo

    artistica contempornea.

    O quarto captulo adentra no tema da identidade, primeiramente, destacando o panorama das

    diversas teorias a respeito do assunto. No subitem seguinte, so apresentadas as razes para se

    transpor a dualidade entre identidade social e identidade pessoal, propondo-se a viso da

    identidade enquanto prtica humana no mundo. Para isso, so delineadas as definies das

    prticas empregadas na pesquisa. Ainda neste subitem, apresenta-se o modelo integrativo da

    viso da identidade como prtica, da prtica como discurso e das racionalidades subjacentes.

    De forma mais especfica, ento, discorre-se sobre os tipos de identidade: a instrumental e a

    substantiva. O segundo subitem parte para a articulao das ideias sobre identidade coletiva,

    notadamente, no contexto organizacional. Encerra-se com a apresentao do esquema de

    operacionalizao das anlises.

    O quinto captulo adentra no tema do Grupo Galpo, apresentando informaes preliminares

    sobre o Grupo e sobre os caminhos da pesquisa.

    O sexto captulo foca a construo das identidades individuais, separando por subitem

    especfico o percurso semntico sobre as relaes entre o artista e sua arte.

    O stimo captulo apresenta as anlises das identidades coletivas. Primeiramente, a identidade

    do Grupo Galpo; depois, a identidade do Oficino 2009; e, por fim, a identidade da Cia.

    Malarrumada. Ao longo das anlises, so colocadas tambm consideraes entre o material

    emprico e a teoria.

    Finalmente, o oitavo captulo foi reservado para as concluses finais, nas quais se retoma a

    questo norteadora e traam-se consideraes sobre a relao entre as identidades dos sujeitos

    pesquisados, as identidades coletivas e o contexto do setor cultural. realizada, ainda, a

    anlise comparativa das identidades coletivas, sendo que tambm considerada a identidade

    do Galpo enquanto entidade cujo significado vai alm da identidade do grupo de atores. Em

    seguida, feito um esforo para demonstrar esquematicamente o conhecimento gerado a

    partir da pesquisa, entendendo-o como forma de se expandir zonas de sentido sobre a questo

    das identidades e racionalidades. Para finalizar, apontam-se quais seriam as possveis

  • 9

    contribuies deste estudo para os estudos organizacionais e quais seriam tambm as crticas

    colocadas a algumas abordagens dos estudos da identidade. So apresentadas as limitaes da

    pesquisa e as sugestes de estudos futuros.

    Esta pesquisa fruto de mais de dois anos de estudos, de discusses, de coleta de dados e,

    principalmente, de experincias significativas. Foi, portanto, um perodo de transformaes

    identitrias para a prpria pesquisadora. Tais transformaes levaram a reposicionamentos e a

    insights, os quais, acredita-se, levaram ao enriquecimento da perspectiva inicial. Este foi um

    trabalho baseado em dosagens de racionalidades, como toda atividade humana. Esteve

    imbudo de instrumentalidade quando o foco foi a obteno do ttulo. Contudo,

    predominantemente, foi orientado segundo uma razo substantiva, pois findou em um texto

    autntico, baseado em valores ticos profundamente arraigados. Para alm do reconhecimento

    acadmico, espera-se que este trabalho gere processos de autorreflexo aos interessados na

    temtica e, dessa forma, os conduza a uma reviso sobre as identidades praticadas

    cotidianamente.

  • 10

    2. POSICIONAMENTO ONTOLGICO E EPISTEMOLGICO

    Um dos pilares fundadores do pensamento cientfico representado pelo desenvolvimento da

    lgica aristotlica, associada forma do pensamento correto. Qualquer cincia a pressupe,

    assim como toda disciplina e todas as artes a contm. Aristteles, em seus escritos do

    Organon, reconhecido como o criador das principais leis da lgica, por exemplo, a doutrina

    do silogismo, que postula que dois elementos iguais a um terceiro so tambm iguais entre si.

    Assim, sua lgica permite a clareza da exposio e do pensamento, considerada at hoje um

    manual de etiqueta, obrigatrio para a cincia (DURANT, 1996, p. 79).

    Embora o discurso da cincia esteja sob o julgo da lgica, esta pode se dar de diferentes

    formas e conduzir a diferentes modos de pensar a verdade. A lgica apenas fornece um guia

    para o raciocnio, mas parte de premissas a priori, que iro depender dos posicionamentos do

    cientista. Marcuse (1973) destaca a existncia da lgica simblica moderna, da lgica

    transcendente e da lgica dialtica. Cada uma levaria a um universo diferente de locuo e

    experincia, apresentando formas diferenciadas de se dominar casos particulares em prol de

    um pensamento universal. Nesse sentido, toda lgica uma forma de domnio, que pode ser

    repressivo ou libertador. No primeiro caso, segundo Marcuse (1973) e Mannheim (1986),

    tratar-se-ia dos modos de pensar positivos, que levam ao conformismo, ao reformismo e

    ideologia; no segundo, do modo de pensar negativo, que leva ao carter especulativo,

    revolucionrio e utpico.

    A partir do Iluminismo, a filosofia positiva se torna hegemnica no pensamento cientfico

    ocidental. A crena na lgica cartesiana, na busca por leis gerais, por verdades estatsticas e

    por frmulas matemticas, influencia o desenvolvimento das cincias naturais e humanas

    desde ento. Com isso, o ideal positivista de que a cincia traz o progresso tecnolgico e,

    consequentemente, o progresso humano se torna um forte valor na modernidade. Contudo, o

    pensamento positivo incapaz de superar as limitaes inerentes ao sistema socioeconmico

    vigente, na medida em que impede a viso crtica do mundo social e o desenvolvimento de

    alternativas. Nesse sentido, surgem, paralelamente, diversas correntes de pensamento calcadas

    na filosofia negativa, buscando romper com o mito do progresso positivo.

  • 11

    De acordo com Mattos (2006), existem vrias formas de rompimento com o paradigma

    positivista nos estudos organizacionais, como a sociologia weberiana, a hermenutica crtica

    da Escola de Frankfurt, o discurso da ps-Modernidade, a fenomenologia husserliana e a

    anlise pragmtica da linguagem. O autor sustenta que o primeiro e mais influente

    rompimento foi por meio das proposies interpretativistas de Max Weber.

    Weber (1973) questiona a existncia de verdades objetivamente vlidas no terreno das

    cincias da vida cultural em geral. Toda atividade cientfica pressupe uma escolha prvia de

    determinados fins ltimos, que guiam, em ltima instncia, a motivao da pesquisa. Alm

    disso, a prpria escolha do objeto a ser investigado faz parte de um recorte baseado em

    valores norteadores. Portanto, a cincia social jamais est livre da subjetividade e no papel

    da comunidade cientfica buscar uma viso nica e objetiva da realidade, livre de valores.

    papel dessa comunidade, no entanto, aceitar os diversos pontos de vista possveis, sob um

    julgamento crtico intersubjetivo.

    Snape e Spencer (2003) assinalam que as ideias interpretativistas defendidas por Weber

    (1973) so originrias da filosofia de Immanuel Kant, para quem o conhecimento do homem

    sobre o mundo se baseia mais na compreenso que se faz dele a partir das experincias

    vividas do que da simples observao direta. Isto porque a percepo no est relacionada

    apenas aos sentidos humanos, mas tambm interpretao que se faz a partir desses sentidos.

    Portanto, para Weber (1973), nas cincias sociais o interesse principal deveria ser

    compreender o sentido das aes das pessoas, descobrir por que agem de certa maneira. Ao

    contrrio das cincias naturais, cujo fim a causa originria que gera descrio, controle e

    previso , nas cincias humanas o fim a descrio, a compreenso particularizada. Essas

    cincias so, essencialmente, analticas e descritivas, e no sintticas, dedutivas e prescritivas.

    Com base nesse raciocnio, o conhecimento das leis gerais no leva ao conhecimento da

    realidade social. Quanto mais generalizveis, mais abstratas elas se tornam e menos capazes

    de contribuir para a compreenso da significao de processos culturais individuais. As leis

    no podem ser o fim da investigao, mas apenas seu meio. Mattos (2006, p. 7) aponta que

    Weber insiste no lugar que tm no seu mtodo a teoria e coisa que ele distingue a criao

    de tipos ideais. A teoria tem funo instrumental e auxiliar para o conhecimento, e o conceito,

    funo heurstica. Os conceitos abstratos, que tipificam ideias, padres comportamentais,

  • 12

    tendncias econmicas, etc., servem para orientar e ordenar o trabalho de anlise e descrio

    da realidade (WEBER, 1973).

    Weber (1973) observou que, muitas vezes, os conceitos das cincias sociais no so bem

    determinados e se tornam ambguos, o que impede seu desenvolvimento e a ampliao da

    capacidade analtica. Visando suprir tal carncia, props o uso dos tipos ideais para aprimorar

    os conceitos, torn-los mais puros e referenciveis. Os tipos ideais seriam construes tericas

    obtidas a partir do realce conceitual de certos elementos da realidade. So conceitos isolados,

    a-histricos, puramente lgicos e no observveis na realidade. No espelham uma realidade

    ideal, no sentido de que deve ser buscada. O tipo ideal deve ser algo por inteiro indiferente a

    qualquer juzo valorativo e nada tem a ver com uma perfeio. Tipos ideais serviriam de base

    de comparao da realidade (em que grau um fenmeno real individual se aproxima ao tipo

    ideal) e auxiliariam na formulao de hipteses. De acordo com a necessidade compreensiva,

    novos tipos ideais podem ser propostos, modificando o sistema conceitual vigente. Haveria

    uma relao dialtica entre conceito e conceituado (WEBER, 1973).

    Apesar de no defender explicitamente a metodologia weberiana dos tipos ideais, Rey (2005)

    parece concordar com Weber (1973) ao defender a funo interpretativa das cincias

    humanas. Mais especificamente, para Rey (2005, p. 2), em consonncia com a crtica tecida

    por Ramos (1981) e Mannheim (1986), essas cincias tm se perdido em um metodologismo,

    no qual os instrumentos e as tcnicas se emanciparam das representaes tericas,

    convertendo-se em princpios absolutos de legitimidade para a informao produzida por eles,

    as quais no passavam pela reflexo dos pesquisadores. Diante disso, para que haja a

    construo do conhecimento humano e social, seria necessrio romper com o modelo de

    cincia positivista e assumir de forma epistemologicamente coerente a metodologia

    qualitativa de pesquisa.

    Rey (2005) defende que a epistemologia qualitativa est relacionada ao carter construtivo

    interpretativo do conhecimento, o que implica a concepo do conhecimento como produo,

    e no como uma apropriao sistematizada e linear de uma realidade a partir de categorias

    universais. Nesse ponto, o autor critica os estudos de linha qualitativa, que no assumem tal

    posicionamento epistemolgico. Esses estudos acabam buscando legitimao por meio dos

    instrumentos utilizados na pesquisa, e no pelos processos de produo do conhecimento. Isso

    os torna incoerentes, pois o mtodo qualitativo deve ter como fim ltimo a reflexo terica em

  • 13

    detrimento das evidncias empricas, levando em considerao as subjetividades como

    elementos constitutivos da realidade social.

    Concorda-se com Rey (2005) de que existe uma realidade social. Contudo, impossvel

    acess-la de forma total e direta. O conhecimento do real sempre parcial e limitado, devido

    s prprias prticas de interveno do pesquisador. Assim, no existiria uma concepo

    exclusiva da realidade como realidade ltima. Seria sempre possvel aprofundar nos fatos,

    sendo a realidade algo constantemente a interpretar. A partir disso, Rey (2005) apresenta o

    conceito de zonas de sentido, ou espaos de inteligibilidade gerados pelas pesquisas

    cientficas, capazes de abrir possibilidades de aprofundamento em um campo de construo

    terica. Esse conceito pressupe a funo do conhecimento cientfico como:

    [...] gerar campos de inteligibilidade que possibilitem tanto o surgimento de novas

    zonas de ao sobre a realidade, como de novos caminhos de trnsito dentro dela

    atravs de nossas representaes tericas. O conhecimento legitima-se na sua

    continuidade e na sua capacidade de gerar novas zonas de inteligibilidade acerca do que estudado e de articular essas zonas em modelos cada vez mais teis para a

    produo de novos conhecimentos (REY, 2005, p. 6).

    Existem convergncias dos pensamentos de Rey (2005) com os de Weber (1973), pois ambos

    propem o rompimento com a viso positivista nas cincias humanas, enfatizando a

    importncia do mtodo interpretativo e qualitativo. Entretanto, os autores parecem divergir

    em relao ao papel dos conceitos tericos. Enquanto Weber (1973) coloca como um

    problema das cincias humanas a falta de coerncia conceitual e prope os tipos ideais como

    formas conceituais mais sofisticadas, Rey (2005) parece se opor a esse posicionamento,

    criticando a dicotomia entre emprico e terico, na qual o terico reduzido a mera

    especulao ou simples rtulo para nomear o emprico. Para esse autor, no h separao

    entre terico e emprico, pois o terico entendido como um sistema aberto, de constante

    construo de zonas de sentido, a partir da coleta de dados empricos. O objetivo dar

    consistncia construo do conhecimento, articulando em modelos a significao do social

    na vida humana.

    A partir da comparao entre os autores, sustenta-se que Rey (2005) acrescenta noo de

    cincia interpretativa de Weber (1973) o carter construtivo, que parte da concepo de que a

    realidade um sistema infinito de campos inter-relacionados. A abordagem construtiva do

    conhecimento cientfico ganha relevncia e coerncia diante de uma realidade social que

    produto da construo humana, entendida como uma complexa relao entre realidades

  • 14

    objetivadas e as subjetividades. Na viso de Berger e Luckman (1998), a ordem social existe

    unicamente como produto de atividade humana. O homem constri sua natureza, sendo

    produto de si mesmo. Ao nascer e se socializar, a realidade da vida cotidiana aparece j

    objetivada ao homem. Contudo, ao interagir com o mundo, o sujeito atribui significados

    subjetivos realidade e os expressa pela atividade, contribuindo para reconstruir a ordem

    institucional e as interpretaes compartilhadas.

    vista do exposto, este estudo se insere na epistemologia interpretativista construtivista,

    entendendo a realidade social como produto de uma construo intersubjetiva. Assim, torna-

    se importante conceber as organizaes como produtos da prpria atividade humana,

    rejeitando sua reificao e o enquadramento positivo como guia da interpretao. Para Berger

    e Luckman (1998), quando determinados fenmenos humanos passam a ser apreendidos

    como se fossem coisas independentes da vontade humana, fruto de leis csmicas ou vontade

    divina, esses fenmenos passam a ser reificados. A reificao das organizaes um processo

    recorrente na atualidade e pode ser nociva ao pensamento crtico e negativo, reivindicao

    de mudanas por parte dos indivduos envolvidos. Nesse processo, o homem esquece sua

    prpria autoria do mundo humano, tomando-o como dado e imutvel. A dialtica entre o

    homem (o produtor) e seus produtos perdida de vista pela conscincia (PAO-CUNHA,

    2008).

    Procurando estimular a autocrtica nos estudiosos brasileiros das organizaes, Pao-cunha

    (2008) tece uma contundente crtica rea dos estudos organizacionais, que se definiria a

    partir da falsa concretude de seu objeto: as organizaes. Segundo o autor, a organizao

    uma abstrao que tratada como concreta, sendo coisificada e mistificada. Os estudos

    organizacionais operariam como um funil, que aplica teorias abrangentes das cincias

    humanas s organizaes, reificando-as como espao circunscrito, determinado e a-histrico

    de relaes de poder ou, mesmo, como espao homogneo de uma organizao-sujeito. O

    processo de mistificao das organizaes responsvel por abstrair tanto do pensamento

    acadmico quanto do cotidiano o processo de reificao, que resultado das lutas, das

    relaes de foras historicamente determinadas [...]. Exige-se, assim, do pensar e do fazer

    acadmicos a mesma qualidade abstrata do seu objeto (PAO-CUNHA, 2008, p. 4).

    Ao sustentar a viso interpretativa construtiva da cincia, este estudo busca se contrapor

    viso de cincia, predominante nos estudos organizacionais que reificam as organizaes e

  • 15

    passam a investigar leis sobre-humanas de funcionamento generalizado e de controle da

    ordem social. Vergara e Caldas (2005) corroboram a viso aqui sustentada de que diferenas

    epistemolgicas conferem distintas concepes a respeito das organizaes. Aps realizar um

    levantamento bibliogrfico da produo acadmica nos estudos organizacionais, os autores

    concluram que as pesquisas interpretativistas divergem das funcionalistas ao discordarem que

    as organizaes so objetos tangveis, concretos e objetivos. Para os interpretacionistas, as

    organizaes so

    [...] processos, teias de significados, de representaes, de interpretaes, de

    interaes, de vises compartilhadas dos aspectos objetivos e subjetivos que

    compem a realidade de pessoas, de movimento, de aes de pessoas individual,

    grupal e socialmente consideradas (VERGARA; CALDAS, 2005, p. 71).

    De acordo com Vergara e Caldas (2005), os estudos organizacionais interpretativistas no

    Brasil esto presentes em trabalhos de diversos pesquisadores que, apesar de irem contra a

    grande maioria de estudos funcionalistas, conseguiram manter um fluxo razovel de pesquisas

    a partir da dcada de 1980. As vertentes terico-metodolgicas so diversas, como

    fenomenologia, interacionismo simblico e etnometodologia na perspectiva antropolgica. Os

    autores ressaltam ainda estudos que se aliceram no interpretativismo, mas no se dedicam a

    analisar este tema, nem seus mtodos per se. Esses estudos abordam temas como cultura e

    simbolismo, identidade, poder, emoo, relaes de gnero, esttica e espiritualidade.

    Este trabalho se posiciona na ltima corrente de estudos interpretativistas brasileiros,

    identificada por Vergara e Caldas (2005). O estudo sobre a identidade nas organizaes,

    apesar de ter surgido no mbito do paradigma positivista-funcionalista com Albert e Whetten

    (1985), pode ser explorado de diversas formas no contexto organizacional, conforme

    identificado por Caldas e Wood Jr. (1997). A identidade torna-se uma categoria de anlise

    relevante para a compreenso da dinmica organizacional, das relaes de identificao e do

    comportamento dos indivduos no trabalho. Em um perodo de mudanas aceleradas, no qual

    instituies sociais so cada vez mais questionadas, o estudo sobre a construo da identidade

    e da identificao pode auxiliar na compreenso das transformaes no mundo moderno do

    trabalho.

    Aliado ao esforo de compreenso e interpretao, esta pesquisa buscou tambm lanar um

    olhar crtico sobre a realidade. Julgou-se necessrio tal posicionamento, pois, ao se aprofundar

    o estudo da identidade nas organizaes e, especialmente, na produo artstica, observou-se

  • 16

    uma srie de distores, as quais no seriam satisfatoriamente compreendidas apenas pelo

    paradigma interpretativista. A teoria crtica, nesse sentido, fez-se pertinente, notadamente,

    tendo em vista o contexto das sociedades industriais, em que a subjetividade dos indivduos

    estaria prisioneira razo moderna, que coloca como valor a ampliao do controle sobre a

    natureza. Seria necessrio o desenvolvimento de uma teoria crtica da sociedade, visando

    subordinar a pesquisa cientfica ao interesse cognitivo emancipatrio, encontrando maneiras

    de se estimular as potencialidades humanas de autorreflexo, particularmente necessrias

    produo autntica da arte. Corroborando tais ideias, esta pesquisa advoga o pensamento

    filosfico negativo. Prope-se, portanto, a abordar o processo de construo do conhecimento

    de forma construtiva-interpretativa, mas atendo-se ontologicamente viso crtica. No

    captulo a seguir, sero apresentados os pilares de tal posicionamento para a compreenso da

    identidade.

  • 17

    3. A TEORIA CRTICA E A RAZO HUMANA

    A filosofia negativa pressupe uma viso crtica da sociedade e a capacidade humana de

    transcender tal realidade para conceber formas melhores de vida. Para Marcuse (1973, p. 14),

    uma teoria crtica da sociedade implica a pressuposio de valores, que se resumem em dois

    pontos tomados a priori:

    1) o julgamento de que a vida humana vale a pena ser vivida, ou, melhor, pode ser

    ou deve ser tornada digna de se viver. Este julgamento alicera todo esforo

    intelectual; apriorstico para a teoria social, e sua rejeio (que perfeitamente lgica) rejeita a prpria teoria;

    2) o julgamento de que, em determinada sociedade, existem possibilidades

    especficas de melhorar a vida humana e modos e meios especficos de realizar essas

    possibilidades.

    A teoria crtica envolve abstrao, para negar o universo de fatos dados e para transcender

    esses fatos, luz de suas possibilidades, captadas e negadas. As possibilidades de

    transformao tm de estar ao alcance da respectiva sociedade e devem representar a

    necessidade real da populao bsica. Dessa forma, os conceitos tericos crticos culminariam

    dialeticamente em transformao social (MARCUSE, 1973).

    Segundo Mannheim (1986), a transcendncia uma caracterstica humana sempre presente no

    decurso da histria, pois o homem, frequentemente, se ocupou mais de objetos que

    transcendem sua existncia do que com os imanentes a ela. Portanto, historicamente, sempre

    coexistiram as formas de existncia e de transcendncia. Existncia pode ser definida como

    toda ordem operante de vida concreta, que deve ser concebida e caracterizada em relao

    estrutura poltica e econmica particular na qual se baseia.

    Mas abarca igualmente todas as formas de vida em conjunto humana (formas especficas de amor, sociabilidade, conflito, etc.) que a estrutura torna possvel ou

    requer; e tambm todos os modos e formas de experincia e pensamento

    caractersticos deste sistema social e, consequentemente, em congruncia com ele

    (MANNHEIM, 1986, p. 218).

  • 18

    Mannheim (1986) explica que sempre para uma ordem existencial de vida h concepes

    transcendentes, cujos contedos jamais podem ser realizados nas sociedades existentes. Nesse

    sentido, todas as ideias que no cabem na ordem em curso so transcendentes e irreais,

    podendo ser ideologias ou utopias. O mesmo autor ainda prope a dicotomia entre esses dois

    termos, baseando-se no potencial transformador das ideias transcendentes.

    Quando ideologias, as ideias so situacionalmente transcendentes, mas se mostram incapazes

    de transformar a realidade social e acabam se integrando harmoniosamente na viso de mundo

    caracterstica do perodo. Quando utopias, as imagens desiderativas das formas de

    transcendncia assumem uma funo revolucionria, tornam-se orientaes que transcendem

    a realidade e tendem a transformar-se em uma conduta que abale, parcial ou totalmente, a

    ordem das coisas. As utopias estabelecem uma relao dialtica com a ordem existente, pois

    em cada poca surgem ideias e valores para cada grupo social, que condensam as tendncias

    no realizadas representativas das necessidades de tal poca. Por sua vez, esses elementos

    intelectuais se transformam em material explosivo dos limites da ordem existente

    (MANNHEIM, 1986).

    Segundo Mannheim (1986), tendo em vista a possibilidade transformadora da transcendncia

    humana, os grupos dominantes, com vistas manuteno da ordem, sempre pretenderam

    controlar os impulsos transcendentes dos indivduos, tornando-os socialmente impotentes e

    impossveis de serem efetivados no mundo concreto. Dessa forma, ideias e interesses

    situacionalmente transcendentes sempre tenderam ao confinamento em um mundo alm da

    histria e da sociedade, onde no pudessem alterar o status quo.

    Apesar da tentativa de controle social da transcendncia, para que esta no se tornasse utpica

    o pensamento transcendente ocupou lugar de importncia maior entre as atividades humanas

    na Antiguidade. Arendt (2004, p. 23) fala da vita activa e da vita contemplativa de forma

    anloga aos conceitos, respectivamente, de existncia e transcendncia. Para a autora,

    tradicionalmente, todo tipo de atividade existencial serviria s necessidades e carncias da

    contemplao, pois somente esta levaria verdade.

    como a diferena entre a guerra e a paz: tal como a guerra ocorre em beneficio da

    paz, tambm todo tipo de atividade, at mesmo o processo do mero pensamento, deve culminar na absoluta quietude da contemplao. Todo movimento, os

    movimentos do corpo e da alma, bem como o discurso e o raciocnio, devem cessar

    diante da verdade.

  • 19

    Nesse sentido, a vita activa deriva seu significado da vita contemplativa, somente existindo

    para que a contemplao ocorra e a verdade seja buscada. Enquanto a contemplao se refere

    experincia do eterno, a atividade pode, no mximo, levar a atitudes referentes

    imortalidade. O ser que contempla exerce o pensamento sem o intuito de obter resultados, ao

    passo que o ser que age procura resultados o tempo todo e considera intil o pensar.

    Assim, embora o pensamento inspire a mais alta produtividade mundana do homo

    faber (homem que fabrica), no de modo algum sua prerrogativa; comea a

    afirmar-se como fonte de inspirao do homo faber somente quando este se

    ultrapassa, por assim dizer, e se pe a produzir coisas inteis, objetos que no tm

    qualquer relao com necessidades materiais ou intelectuais, com as necessidades

    fsicas do homem ou com a sua sede de conhecimento (ARENDT, 2004, p. 184)

    .

    Arendt (2004) ressalta a importncia das atividades transcendentes na vida humana, pois so

    elas que lhe dariam medida, no a compulsiva necessidade de vida biolgica, nem o

    instrumentalismo utilitrio da fabricao e do uso de objetos. Somente com a transcendncia

    humana que o mundo se torna uma morada para os homens durante sua vida na terra

    (ARENDT, 2004, p. 187). A partir de tal assero, a autora se posiciona criticamente diante

    da sociedade moderna, que estaria vivenciando a inverso de valores entre a vita activa e a

    vita contemplativa. O homem moderno no submeteria mais sua existncia necessidade de

    transcendncia. Tal colocao de Arendt (2004) vai ao encontro de outros tericos crticos

    contemporneos, os quais apontam para o fim da transcendncia, do pensamento utpico e das

    atividades substantivas.

    Ao buscar as bases de tal processo, Arendt (2004) aponta para o pensamento cartesiano, o

    qual preconizava o conhecimento a partir da certeza introspectiva da prpria existncia

    humana. Nesse sentido, o homem abandona o conhecimento obtido a partir da experincia e

    do senso comum, para busc-lo em suas faculdades interiores, sem relao com o mundo.

    Toda a verdade estaria contida na razo humana, definida tanto por Descartes quanto por

    Hobbes, como a capacidade de prever as consequncias, um processo que o homem poderia

    desencadear dentro de si mesmo a qualquer momento.

    A partir de ento, instaura-se a lgica simblica, que at hoje predomina no pensamento

    cientfico moderno e que determina que todo conhecimento obtido por meio dos sentidos deve

    ser substitudo por sistemas de equaes matemticas. O pressuposto que a linguagem

    matemtica seria universal e inabalvel. Contudo, ao menosprezar o mundo tal como dado aos

  • 20

    sentidos, o homem teria perdido o mundo transcendental, e com ele a possibilidade de

    transcender-se o mundo material em conceito e pensamento (ARENDT, 2004, p. 302).

    Nesse processo, nota-se uma alterao na concepo do que racional. O racionalismo

    moderno, com sua lgica cartesiana, teria instaurado um suposto antagonismo entre a razo e

    as sensaes humanas no mensurveis e quantificveis, as paixes e as experincias

    transcendentais. A noo moderna de racionalidade remontaria ao perodo do Iluminismo

    como o momento em que a razo foi separada da sua herana clssica. A partir de ento,

    racional se transformou em sinnimo de clculo matemtico, funcional, conceitos em

    frmulas e verdades estatsticas. A razo abandona a ordenao da vida do homem, a

    compreenso tica, moral e religiosa. Concomitantemente a tal alterao na maneira de se

    pensar a prpria razo humana, ocorreram e tm ocorrido grandes mudanas na sociedade

    pr-Moderna e Moderna.

    Colaborando com o esforo de se buscar as razes da racionalidade moderna, Marcuse (1969)

    ressalta que nos primrdios da Revoluo Francesa estavam presentes elementos do

    pensamento utpico, a partir do qual se acreditava que a situao do homem no mundo

    deveria basear-se em sua prpria atividade racional livre, e no mais de qualquer autoridade

    externa. Tal forma de pensar estaria em contraposio direta realidade social da poca.

    Contudo, o imprio napolenico deixou de lado as tendncias radicais da Revoluo, para

    consolidar suas consequncias econmicas. A realizao da razo associara-se expanso da

    indstria e ideologia capitalista. A partir de ento, a razo se torna o slogan crtico da classe

    mdia burguesa ascendente, que combatia as instituies do Antigo Regime: a Igreja, o

    absolutismo e o mercantilismo. Os trs elementos essenciais dessa razo seriam:

    a) O mundo racional deveria ser compreendido e transformado pela ao intencional

    do homem.

    b) A razo humana era ilimitada, sendo independente da ordem social ou qualquer

    outra ordem preestabelecida. Ao longo da histria, o homem desenvolveria aptides cada vez

    melhores para a satisfao de seus desejos.

    c) Por fim, a razo implica universalidade. Por meio dela, tendo os conceitos como

    instrumentos, o homem poderia descobrir as leis universais do mundo.

  • 21

    Tal ideia de razo era identificada com a lgica cartesiana e o exerccio da cincia natural, que

    se expandiu para o entendimento do mundo social, reduzindo e impedindo a exigncia de

    liberdade do homem. Tudo era comandado por leis gerais, matemticas e racionais

    (MARCUSE, 1969).

    Instaura-se, dessa forma, a hegemonia da filosofia positiva, com sua crena no progresso

    contnuo da humanidade. No positivismo no h espao para iluses transcendentes. Os

    grandes avanos cientficos e tecnolgicos da primeira metade do sculo XX reforam o

    ataque s ideias que transcendam as maravilhas alcanadas pelo homem no plano existencial

    (MARCUSE, 1969).

    O progresso tecnolgico instaurado pela hegemonia da filosofia positiva trouxe grandes

    satisfaes e confortos materiais. Contudo, trouxe tambm necessidades infindveis. A espiral

    de necessidades e satisfaes se torna, por sua vez, repressiva, pois garantiria a submisso

    cega ao sistema. Os indivduos so levados a crer que todas as suas necessidades estariam

    supridas pela vida existencial. Dessa forma, so reduzidos os momentos de transcendncia, de

    contemplao, em que os indivduos estariam consigo-mesmos e sendo por-si-mesmos.

    Transformam-se em objetos de sua prpria sociedade, incapazes de transcend-la enquanto

    sujeitos (MARCUSE, 1969).

    Todos os homens haviam sido declarados livres e iguais; todavia, ao agir de acordo

    com seu conhecimento e em funo de seus interesses, os homens haviam criado e

    experimentado uma ordem de dependncia, de injustia e de crises peridicas. A

    competio geral entre sujeitos economicamente livres no havia estabelecido uma

    comunidade racional que pudesse salvaguardar e satisfazer s necessidades e aos

    interesses de todos os homens (MARCUSE, 1969, p. 27).

    Com a hegemonia da razo cartesiana e a reduo da transcendncia na era moderna, assiste-

    se ao processo da instrumentalizao do mundo e da prpria vida humana. Nos termos de

    Arendt (2004), a vita activa se sobrepe pela primeira vez vita contemplativa, invertendo

    suas posies de importncia. A atividade humana no mundo perde seu ponto de referncia na

    contemplao, para se referenciar somente vida em si.

    O homem moderno, perdendo sua certeza em um mundo melhor no futuro, arremessado

    para dentro de si mesmo. O que lhe sobrou foram apenas seus apetites e desejos, os quais

    precisariam ser supridos pelos objetos fabricados por ele mesmo, com a cincia em contnuo

    progresso. Nesse sentido, a atividade de fabricao passa a ser a capacidade humana mais

  • 22

    valorizada na Modernidade. Todavia, fabricar significa perceber os processos apenas como

    meios para um fim. O ser humano se torna to confiante na validade global do princpio de

    meios e fins que qualquer assunto passa a ser resolvido e qualquer motivao passa a ser

    reduzida pelo critrio da utilidade. O resultado extremo de tal processo seria a reduo da vida

    humana a uma sociedade de detentores de empregos, indivduos em funcionamento

    puramente automtico, que aceitaram abandonar sua individualidade e se submeter a uma

    conduta funcional e entorpecida, em prol dos benefcios materiais que aufeririam em razo de

    tal submisso (ARENDT, 2004; RAMOS, 1981; MANNHEIM, 1986).

    Marcuse (1969) explica que desde a sua instaurao a concepo e a realizao da razo

    moderna continham elementos incompatveis com a existncia livre e plena do ser humano. O

    homem contemporneo estaria escravizado pela sua prpria capacidade de produzir, pela

    satisfao adiada com as coisas que ho de ser inventadas e produzidas e pelo domnio

    repressivo da natureza, no homem e fora dele. As potencialidades humanas, ao se

    desenvolverem em uma estrutura de dominao repressiva, tornam o prprio homem refm de

    sua realidade totalitria.

    Com a inverso entre atividade e contemplao, os momentos de experincias

    transcendentais, em que o homem se liberta de sua introspeco e vive a mundanidade,

    escapam cada vez mais da experincia humana comum. So momentos cada vez mais

    limitados aos talentos de artistas, a espaos da vida humana onde se transpe a

    instrumentalidade e a aparncia, para se viver autenticamente. Apesar de escassos, tratar-se-ia

    de momentos imprescindveis para a vida em seu carter mais completo. So momentos que

    ainda persistem, como fascas que negam o fato de que o homem moderno tenha perdido suas

    capacidades humanas (ARENDT, 2004; RAMOS, 1981).

    Marcuse (1969) sustenta que para que haja razo onde no h liberdade plena necessrio

    haver contradio, oposio e negao. Se no h uma razo que negue a realidade, esta se

    transforma em fora repressiva por sua lei positiva. Perdem-se a transcendncia e o esprito

    humano. Portanto, h de se cultivar momentos de liberdade, pois a libertao s pode ser

    estabelecida e empreendida por indivduos livres livres das necessidades e dos interesses

    que pertencem dominao e represso (MARCUSE, 1969, p. 401).

    possvel estender-se a crtica ampla da razo moderna forma como a cincia tem se

    desenvolvido nesse contexto. Mannheim (1986) destaca que a anomalia do pensamento na

    sociedade burguesa se estende a sua teoria social. Observa-se a tentativa de racionalizao

  • 23

    generalizada do mundo, mas no sua soluo. A teoria burguesa buscaria uma

    intelectualizao formal e aparente de elementos inerentemente irracionais, sob a tica

    cartesiana, tais como o conflito poltico e a livre concorrncia, sem contudo, apresentar

    solues. Tratar-se-ia de tautologia disfarada, ou de um pensamento que aceita critrios

    inerentes ao sistema social, sendo ele prprio subproduto do sistema (RAMOS, 1981, p. 50).

    A partir da crtica da teoria social tradicional e, mais especificamente, da teoria organizacional

    vigente, Ramos (1981) postula que uma teoria organizacional verdadeiramente cientfica no

    buscaria estabelecer um sistema cognitivo nico para qualquer organizao existente, mas

    faria, antes, uma avaliao das organizaes em termos da compreenso dos seus padres de

    conduta, levando em considerao o fato de que estes podem estar pautados em requisitos

    funcionais ou substantivos. O cientista das organizaes deveria saber identificar em qual

    enclave da vida social a organizao em questo estaria inserida. E, portanto, deveria

    identificar os elementos guiadores da conduta naquele contexto.

    Ramos (1981) advoga a delimitao dos sistemas sociais a partir do sentido que a interao

    humana adquire em cada situao. Dessa forma, pretende-se evitar a unidimensionalizao da

    vida individual e coletiva. Tal processo foi apontado como um tipo de socializao no qual o

    indivduo internaliza de tal forma a razo moderna, os critrios de utilidade e a busca pela

    satisfao de seus desejos em objetos em outras palavras, o modo de vida baseado no

    mercado que age como se tal carter fosse o supremo padro normativo em todas suas

    relaes interpessoais. O indivduo perderia a dimenso transcendental de sua vida. Segundo a

    abordagem unidimensional das organizaes, h o discurso equivocado da harmonia entre o

    interesse pelas pessoas e o interesse pela produo de mercadorias. Tal ideia abre caminho

    para o processo de superorganizao, o qual transforma toda a sociedade em um universo

    operacionalizado, um mundo administrado (MARCUSE, 1973; RAMOS, 1981).

    Nesse contexto, considerou-se relevante a retomada da discusso sobre a razo humana.

    Negar a unidimensionalidade da vida significa conceber a possibilidade de existirem outras

    formas de racionalidade alm da razo utilitria vigente no mercado. Significa entender o ser

    humano como um ser livre, capaz de pensar e agir autonomamente. A prtica e a interao de

    um indivduo podem ser inspiradas por diferentes racionalidades em diferentes contextos,

    assim como a construo cotidiana de sua identidade. Para clarear tais relaes, inicialmente,

    sero expostas as noes principais sobre racionalidades.

  • 24

    3.1 Racionalidades

    A discusso sobre a racionalidade humana remete diretamente s premissas tomadas como

    verdadeiras e que desencadeiam o pensamento lgico. Sob o prisma do pensamento filosfico

    negativo, a razo humana poderia operar segundo diferentes critrios; basicamente, aqueles

    relacionados existncia e aqueles relacionados transcendncia.

    Ao se tratar do tema da racionalidade, Max Weber apontado como figura relevante

    (RAMOS, 1981; MANNHEIM, 1986), especialmente por ter sido pioneiro ao diferenciar

    quatro tipos de racionalidade:

    A ao social, como toda ao, pode ser determinada: 1) de modo racional referente

    a fins: por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo exterior e de

    outras pessoas, utilizando essas expectativas como condies ou meios para alcanar fins prprios, ponderados e perseguidos racionalmente, como sucesso; 2) de

    modo racional referente a valores: pela crena consciente no valor tico, esttico, religioso ou qualquer que seja sua interpretao absoluto e inerente a determinado comportamento como tal, independentemente do resultado; 3) de modo afetivo,

    especialmente emocional: por afetos ou estados emocionais atuais; 4) de modo

    tradicional: por costume arraigado (WEBER, 2004, p. 15).

    Weber (2004) caracteriza como ao social aquele comportamento que se orienta pelo

    comportamento de outros, seja este passado, presente ou esperado como futuro. A ao social

    pressupe que o indivduo tenha conscincia do sentido de seu comportamento. Portanto,

    aes estritamente reativas, de imitao ou condicionadas pela massa no se caracterizam

    como ao social. Weber (2004) reconhece, contudo, que em vrios casos difcil estabelecer

    distines entre um comportamento alheio e o sentido da ao prpria. Muitas vezes, o

    sentido da ao no totalmente consciente. Ademais, raramente uma ao social ser

    pautada exclusivamente por um tipo de racionalidade. Haveria quase sempre uma mistura de

    racionalidades envolvidas.

    A ao tradicional e a ao afetiva encontram-se no limite daquilo que se chama de ao

    conscientemente orientada pelo sentido. O comportamento pautado pela tradio, muitas

    vezes, aproxima-se da simples reao a estmulos habituais, ao passo que o comportamento

    afetivo pode ser uma reao impensada a um estmulo no cotidiano. Contudo, caso haja

    vinculao consciente na ao em relao tanto ao habitual quanto ao estado emocional, esta

    pode se aproximar da racionalidade referente a valores ou a fins (WEBER, 2004).

  • 25

    A ao referente a valores e a ao afetiva tm em comum o fato de possurem sentido em si

    prprias, em suas peculiaridades, e no no resultado que as transcende. Age afetivamente,

    contudo, quem busca satisfazer uma necessidade emocional, sem pensar nas consequncias ou

    nos alvos ltimos da ao e sem planej-la. Age orientado por valores quem age a servio de

    sua convico sobre o que certo, bom, belo, religioso, piedoso, etc. Nesse caso, a ao

    pautada por mandamentos ou exigncias que o indivduo cr dirigidos a ele (WEBER, 2004).

    A ao racional referente a fins ocorre quando o indivduo pondera racionalmente os meios

    em relao s consequncias e os diferentes fins possveis. A deciso entre fins concorrentes

    pode ser orientada por valores ou, simplesmente, pela urgncia conscientemente ponderada do

    indivduo. A racionalidade quanto aos valores e a quanto aos fins se relacionam de diferentes

    formas. Contudo, do ponto de vista da ltima, a ao orientada por valores ser sempre

    irracional, pois quanto mais se valorize a prpria ao, menos se reflete sobre suas

    consequncias (WEBER, 2004).

    Mannheim (1986) se baseia claramente nas ideias de Weber ao discorrer sobre a racionalidade

    substancial e a funcional.

    A racionalidade substancial estaria baseada em julgamentos independentes de acontecimentos

    em determinada situao, que permitiriam uma conduta tica e responsvel. Desencadearia

    um ato de pensamento que revele percepo inteligente das inter-relaes dos

    acontecimentos de uma determinada situao (MANNHEIM, 1986, p. 63). Por meio do

    exerccio da razo substancial, o homem transcenderia a condio de um ser puramente

    natural, relacional e socialmente determinado, pautando sua vida segundo imperativos ticos

    ou estticos dessa razo e transformando-se em um ator poltico (RAMOS, 1981).

    A racionalidade funcional diria respeito ao reconhecimento de qualquer conduta,

    acontecimento ou objeto como sendo apenas meio para se atingir uma meta. Estaria

    relacionada a uma srie de atos que, para atingir o objetivo, coordena os meios mais

    eficientemente. Cada ato tem um papel funcional na consecuo do objetivo final. A srie de

    atos funcional quando est organizada funcionalmente em relao ao objetivo e suas

    consequncias so calculadas. A ao racional funcional seria observada tanto em limites de

    uma organizao que opera planos estratgicos de certas autoridades quanto em sociedades

  • 26

    solidificadas pela tradio cujas aes individuais tm sentido pela sua funo no todo

    (MANNHEIM, 1986).

    Mannheim (1986) expande os conceitos de funcional e de substancial para a esfera da

    moralidade. Uma disciplina moral seria funcional quando postula padres de conduta que

    garantem o funcionamento suave da sociedade. Em contrapartida, a moralidade substancial

    estaria baseada em valores concretos, arraigados na f, na tica, na esttica ou em outros tipos

    de sentimento que podem parecer irracionais sob o ponto de vista funcional. Nesse sentido,

    para Mannheim (1986, p. 77) existiriam duas formas de proibies e tabus, observveis

    durante toda a histria humana: [...] as que garantem o funcionamento da sociedade em

    questo e as que expressam atitudes emocionais particulares, tradies, ou mesmo

    idiossincrasias de um grupo.

    Na sociedade Moderna, observa-se a tendncia a se neutralizar a moralidade substancial,

    principalmente no espao pblico. As decises na esfera pblica pautam-se cada vez mais em

    padres universais de tolerncia, que possuem significao meramente funcional. Nesse

    sentido, entendido como bom e correto o que facilita o funcionamento das relaes sociais.

    A influncia exacerbada da moralidade funcional impediria as qualificaes ticas da vida

    humana. O ordenamento da vida passa a ser concedido como algo extrnseco. Cada indivduo

    aceita regular e limitar suas prprias paixes de modo a no ameaar seus interesses prticos e

    garantir os seus ganhos. Os valores humanos tornam-se valores econmicos, acordos tcitos

    ou explcitos baseados em um clculo utilitrio de consequncias (MANNHEIM, 1986;

    RAMOS, 1981).

    Diante disso, Mannheim (1986) sustenta que seria necessrio proteger a vida humana contra a

    expanso crescente da racionalidade funcional, acarretada pela industrializao. Um alto grau

    de desenvolvimento tcnico e econmico no significaria necessariamente alto grau de

    desenvolvimento tico

    [...] quanto mais industrializada uma sociedade, mais avanada sua diviso do

    trabalho e sua organizao, maior ser o nmero de esferas de atividade humana

    funcionalmente racionais e portanto tambm previsveis antecipadamente. Enquanto

    o indivduo nas sociedades antigas apenas ocasionalmente e em esferas limitadas,

    agia de uma maneira funcionalmente racional, na sociedade contempornea ele

    obrigado a agir dessa forma em um nmero de esferas de vida cada vez maior

    (MANNHEIM, 1986, p. 65).

  • 27

    A partir das distines de Weber (2004) e das definies de Mannheim (1986), Ramos (1983)

    defende que somente os atos substancialmente racionais que atestam a capacidade de

    transcendncia do ser humano e sua qualidade de ser racional. A racionalidade substancial se

    relaciona preocupao humana em resguardar a liberdade. Somente por meio dela que o

    indivduo se liberta da integrao positiva numa srie sistemtica de outros atos. Essa

    integrao que impede a ao inteligente.

    Ramos (1981) prope que a racionalidade substantiva se constitua como uma categoria

    essencial para a teorizao sobre a vida humana associada. Nesse sentido, ele compara:

    enquanto na teoria substantiva os conceitos seriam derivados do e no processo de realidade,

    em uma teoria formal os conceitos seriam apenas instrumentos convencionais de linguagem,

    que descrevem procedimentos operacionais. A partir disso, Ramos (1981) critica, por

    exemplo, a noo de racionalidade proposta por Simon (1965), pois esta estaria totalmente

    pautada pela instrumentalidade. Sendo a razo o conhecimento absoluto das consequncias,

    Simon (1965) a extrai do prprio homem, colocando as organizaes como mais racionais do

    que a humanidade, j que a habilidade de avaliao das corporaes, principalmente com a

    informtica, seria maior do que a de um indivduo isolado. Simon (1965) concebe os critrios

    da racionalidade como unicamente econmicos e prope a separao entre os elementos

    valorativos e os racionais, como se a nica racionalidade existente fosse a instrumental.

    Nesse sentido, ao negligenciar a racionalidade substancial e ao silenciar sobre seus

    pressupostos filosficos, a cincia moderna se torna a metodologia de uma realidade histrica

    predeterminada, a qual ela refora. O carter instrumentalista interno do mtodo cientfico

    revela uma relao estreita entre o pensamento cientfico e sua aplicao. Essa relao segue a

    lgica e a racionalidade de dominao. A cincia moderna uma tecnologia apriorstica que

    funciona como controle social (MARCUSE, 1973).

    A conjugao da racionalidade instrumental com a cincia moderna d origem racionalidade

    tecnolgica. O aparato tcnico de produo e distribuio funcionaria como um sistema que

    determina a priori seu produto e as operaes de sua manuteno e ampliao. O aparato

    produtivo se torna totalitrio, pois determina no s as oscilaes, habilidades e atitudes

    socialmente necessrias, como tambm as necessidades e aspiraes individuais. No

    ambiente tecnolgico, a cultura, a poltica e a economia se fundem num sistema onipresente

    que engolfa ou rejeita todas as alternativas. O potencial de produtividade e crescimento desse

  • 28

    sistema estabiliza a dominao. A racionalidade tecnolgica ter-se- tornado racionalidade

    poltica (MARCUSE, 1973, p. 19).

    A racionalidade tecnolgica opera na escravizao progressiva do homem pelo aparato

    produtor, reduzindo sua vida luta pela existncia. Contudo, tal racionalidade se torna ainda

    mais suspeita tendo em vista que a existncia pela qual se luta em tais condies deixa de ser

    uma existncia humana, pois prescinde de liberdade, vida poltica e necessidade de

    transcendncia. Guiado pela razo instrumental tecnolgica, o homem aceita sua submisso

    ao aparato tcnico para ampliar as comodidades de sua existncia e aumentar sua

    produtividade no trabalho. Cria-se, portanto, uma sociedade racionalmente totalitria. A

    fora libertadora da tecnologia a instrumentalizao das coisas se torna o grilho da

    libertao; a instrumentalizao do homem (MARCUSE, 1973, p. 155).

    Diante da constatao do totalitarismo racional vigente na sociedade moderna, Marcuse

    (1973) prope a restaurao da racionalidade transcendente, para que as realizaes

    produtivas da civilizao fossem apropriadas em prol da pacificao da existncia, conferindo

    maior possibilidade de livre desenvolvimento das necessidades e faculdades humanas. O autor

    sustenta que tal racionalidade envolve inevitavelmente julgamentos de valor e premissas

    tomadas como verdades a priori.

    Citando Whitehead, Marcuse (1973) afirma que a funo da razo promover a arte da vida;

    ou seja, buscar viver cada vez melhor. Nesse sentido, a arte, como atividade transcendental,

    significa a negao das condies reais, em busca de uma verdade superior. Contudo, na

    sociedade moderna a razo tem sido colocada como o oposto da arte, concedendo arte o

    privilgio de ser irracional, no sujeita razo cientfica, tecnolgica e instrumental. Sendo a

    arte irracional, a razo da cincia assumiu para si o compromisso de buscar uma vida melhor.

    Contudo, a racionalidade cientfica fracassou em tal empreitada, pois conservou o

    compromisso com a no liberdade no qual ela nasceu, com a negao de uma verdade

    superior.

    Uma racionalidade ps-tecnolgica submeteria a tcnica arte da vida, libertao da

    brutalidade e insuficincia da natureza e reduo da misria, da violncia e da crueldade.

    Nesse sentido, a funo da razo converge com a funo da arte. A racionalidade especfica

    da arte est fundada nas ideias do artista, como causa final. A partir disso, ele parte para a

  • 29

    construo de certas coisas. A arte, necessariamente, cria outro universo de pensamento e

    prtica contra o existente e dentro dele (MARCUSE, 1973).

    A capacidade inerente arte de projetar a existncia e de definir possibilidades, ao invs de

    ser capturada pelo sistema como simples forma de embelezamento da realidade, deveria se

    tornar uma tcnica para destruir a lgica de mercado e a misria. A arte transforma o objeto

    natural, pois interfere em seus significados instrumentais e contingenciais por meio de um

    aparato que livre e racional. Transformando a natureza, que opressiva, a arte se torna uma

    forma de libertao. Nesse sentido, torna-se uma manifestao da racionalidade substantiva,

    do autenticamente racional ou do irracional segundo a perspectiva instrumental.

    A sociedade unidimensional em desenvolvimento altera a relao entre o racional e o irracional. Contrastado com os aspectos fantsticos e insanos de sua

    irracionalidade, o reino do irracional se torna o lar do realmente racional das ideias que podem promover a arte da vida. Se a sociedade estabelecida controla toda comunicao normal, validando-a ou invalidando-a de conformidade com as

    exigncias sociais, ento os valores estranhos a essas exigncias podem talvez no

    ter qualquer outro meio de comunicao a no ser o meio anormal da fico

    (MARCUSE, 1973, p. 227).

    Apropriando-se das perspectivas dos autores citados neste tpico, sustenta-se aqui a viso de

    que prprio da natureza humana a interao cotidiana baseada em diferentes tipos de

    racionalidade, a saber, a instrumental e a substantiva. Seriam racionalidades que se mesclam,

    se