DISSERTAÇÃO - Os Movimentos dos Sem Teto da Grande São Paulo

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Nathalia Cristina Oliveira

Os movimentos dos sem-teto da Grande So Paulo (1995-2009)

Dissertao de mestrado apresentada ao Departamento de Cincia Poltica do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Cincia Poltica sob a orientao do Prof. Dr. Armando Boito Junior. Esta verso corresponde ao exemplar definitivo da dissertao aprovada em 26/03/2010.

Campinas Maro de 2010

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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP Bibliotecria: Ceclia Maria Jorge Nicolau CRB n 3387

OL4m

Oliveira, Nathalia Cristina Os movimentos dos sem-teto da Grande So Paulo (1995-2009) / Nathalia Cristina Oliveira. - - Campinas, SP : [s. n.], 2010. Orientador: Armando Boito Junior. Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. 1. Movimento dos Sem Teto de So Paulo. 2. Classes sociais. 3. Habitao. 4. Ideologia. 5. Movimentos sociais. I. Boito Junior, Armando. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.

Ttulo em ingls: Homeless movements of Grande So Paulo (1995-2009) Palavras chaves em ingls (keywords) :

Homeless Movements of So Paulo Social Class Ideology Social movements

rea de Concentrao: Trabalho, Movimentos Sociais, Cultura e Poltica Titulao: Mestre em Cincia Poltica Banca examinadora: Armando Boito Junior, Andria Galvo, Jair Pinheiro

Data da defesa: 26-03-2010 Programa de Ps-Graduao: Cincia Poltica

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Aos sem-tetinhos e sem-tetinhas paulistanos, na esperana de que tenham dias melhores. e Aos meus pais, Roque e Luisa, meus verdadeiros mestres.

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Agradecimentos No poderia iniciar os agradecimentos seno pelos meus amados pais Roque e Luisa. Agradeo pelo apoio incondicional que vocs tm me dado e pelo fato de vocs fazerem de nossa casa a Tara, lugar onde eu sempre posso retornar, repensar, recuperar as foras e recomear. Ao meu amado irmo, Thiago, pelas sbias palavras sempre e tambm pelas inusitadas discusses a respeito do mundo! Ao meu querido companheiro Fabrcio, pelo incentivo constante e por compreender e (ainda o que mais incrvel) admirar o que ser cientista social. Obrigada pela pacincia com o meu jeitinho de ser. Agradeo ao F tambm pela ajuda com a traduo do resumo e pela elaborao dos grficos da dissertao. Aproveito para avis-lo que outros textos viro... Gigante Famlia Dotti, que cada membro, sua maneira, contribui para a minha formao enquanto gente grande. Sou muito feliz e grata por fazer parte desta famlia. V Laura, V Ernesto (in memoriam) e toda a Famlia Oliveira, pelo apoio durante toda a minha vida. Dona Elusa e Seu Hlio, pelo carinho e, sobretudo, pela compreenso em minhas ausncias. Aos amigos de longas e novas datas, por termos compartilhado tantos momentos bons. Em especial agradeo a Dani Dotti pela amizade leal desde sempre. Obrigada pelos diversos carnavais juntas! s meninas das duplinhas alternadas: Brbara Castro, Mariana Marques e Talita Castro, por fazerem parte da minha vida desde maro de 2002. Depois, devagarzinho, mas no to devagar assim, foram chegando as outras duplinhas: Carol Cavazza, Carol Parreiras (Mineira), Glucia Destro, Vanessa Ortiz, Victor Queiroz (Dudu) ... Agradeo a todos vocs pelas festinhas no IFCH, pelos esquentas, ois, dos fondues aos acarajs, e pelo bom papo de sempre. colega Francine Hirata, pela companhia na realizao do trabalho de campo desta pesquisa na cidade de So Paulo. Pesquisadoras do mesmo tema, alunas da mesma turma e integrantes do mesmo grupo de pesquisa... as afinidades so diversas e as angstias compartilhadas foram inmeras... Aos colegas da turma de cincias sociais 02, da turma de mestrado em cincia poltica 07 e da indita turma de mestrado em cincia poltica de meados de 2006 da Unicamp, pela boa companhia. Ao IFCH/Unicamp, pela infra-estrutura disponvel e pela autonomia que garantem ao pesquisador. Agradeo ainda aos funcionrios e, em especial, ao Ben do xrox e ao Marco da cantina (cantina do IMEC, mas freqentada massivamente pelos alunos do IFCH) que nos fazem sentir to em casa. Ao Antonio Barros, secretrio do Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica, pela pacincia dispensada at que eu conseguisse dar conta de todas as papeladas necessrias para realizar a defesa da dissertao. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPQ), pelo financiamento desta pesquisa. Aos membros do Grupo Neoliberalismo e Relaes de Classes, colegas com os quais aprendi muito ao longo desses anos e que fizerem diminuir um pouco a solido da pesquisadora.

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Gostaria de deixar registrado aqui meu agradecimento e respeito a todos os professores que tive at aqui. Destaco especialmente trs deles: Nanete Fortunato Giro (a tia Nanete) minha primeira professora e quem me ensinou a ler e escrever duas importantes ferramentas para o trabalho de pesquisadora; Marcelo Santos, professor de histria nos tempos do colgio, quem me apresentou s Cincias Sociais; Mrcio Naves, professor de sociologia do IFCH - Unicamp, agradeo pela introduo obra de Karl Marx. professora Luciana Tatagiba, pelas valiosas crticas e sugestes na banca de qualificao e por aceitar ser suplente da comisso julgadora deste trabalho. Ao professor Iram Jcome Rodrigues, por ter aceitado o convite de ser suplente da comisso julgadora deste trabalho. Aos professores Andria Galvo e Jair Pinheiro, por fazerem parte da banca deste trabalho. Agradeo ainda a professora Andria pela oportunidade de contar com seus valiosos comentrios sobre o meu trabalho desde a poca da minha graduao. Ao professor Jair, agradeo pelos importantes comentrios e sugestes na poca da qualificao deste trabalho e pela oportunidade de debater e principalmente aprender muito com o professor nos diversos Congressos em que nos encontramos nos ltimos anos. Ao professor Armando Boito Jr, por esses seis anos de convivncia e aprendizado. Obrigada pela orientao, pacincia, broncas, crticas e pelos elogios tambm, por que no? E, por fim, agradeo quelas pessoas fundamentais e que colaboraram diretamente com esta pesquisa. Sou grata a todos os sem-teto com quem tive oportunidade e o prazer de conversar e entrevistar. Obrigada ao Movimento de Moradia do Centro (MMC), Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) e Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST).

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CidadoComposio: Lucio Barbosa T vendo aquele edifcio moo? Ajudei a levantar Foi um tempo de aflio Eram quatro conduo Duas pra ir, duas pra voltar Hoje depois dele pronto Olho pra cima e fico tonto Mas me chega um cidado E me diz desconfiado, tu t a admirado Ou t querendo roubar? Meu domingo t perdido Vou pra casa entristecido D vontade de beber E pra aumentar o meu tdio Eu nem posso olhar pro prdio Que eu ajudei a fazer T vendo aquele colgio moo? Eu tambm trabalhei l L eu quase me arrebento Pus a massa fiz cimento Ajudei a rebocar Minha filha inocente Vem pra mim toda contente Pai vou me matricular Mas me diz um cidado Criana de p no cho Aqui no pode estudar Esta dor doeu mais forte Por que que eu deixei o norte Eu me pus a me dizer L a seca castigava mas o pouco que eu plantava Tinha direito a comer T vendo aquela igreja moo? Onde o padre diz amm Pus o sino e o badalo Enchi minha mo de calo L eu trabalhei tambm L sim valeu a pena Tem quermesse, tem novena E o padre me deixa entrar Foi l que cristo me disse Rapaz deixe de tolice No se deixe amedrontar Fui eu quem criou a terra Enchi o rio fiz a serra No deixei nada faltar Hoje o homem criou asas E na maioria das casas Eu tambm no posso entrar Fui eu quem criou a terra Enchi o rio fiz a serra No deixei nada faltar Hoje o homem criou asas E na maioria das casas Eu tambm no posso entrar

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Resumo: Propusemo-nos a realizar um estudo emprico exploratrio sobre os movimentos dos sem-teto da Grande de So Paulo. Estamos falando aqui da luta de pessoas que no tm moradia digna e que por isso se organizam em movimentos sociais urbanos e realizam ocupaes em imveis vazios no centro da cidade ou em grandes terrenos perifricos vagos que servem especulao imobiliria. Para que nossa pesquisa se tornasse vivel, optamos por analisar trs dos principais movimentos dos sem-teto da Grande So Paulo, a saber, Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) e Movimento de Moradia do Centro (MMC) que atuam no centro da metrpole - e o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), que atua na periferia e na divisa das cidades que compem a Regio Metropolitana de So Paulo. O texto foi estruturado de modo que pudssemos responder a duas questes: Quem so os sem-teto? E Por que so sem-teto? Para a resposta da primeira questo, descrevemos os trs movimentos dos sem-teto citados de maneira que facilitasse o estabelecimento de uma comparao entre eles, demonstrando suas semelhanas e diferenas. Dentre os aspectos descritos e comparados, enfatizamos as diferenas existentes nas reivindicaes e orientaes polticas e ideolgicas dos movimentos dos sem-teto e a semelhana existente em suas bases sociais. Analisamos ainda a estrutura organizativa e mtodos de luta dos trs movimentos citados, assim como suas trajetrias histricas (nascimento e evoluo). A resposta da segunda questo se concentrou na idia de que a existncia dos semteto se deve a uma confluncia de fatores os quais esto relacionados essncia do modo de produo capitalista e a ineficincia das polticas habitacionais brasileiras. Palavras-chave: movimentos dos sem-teto, classes sociais, ideologia, capitalismo neoliberal

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Abstract Our proposal was to produce an exploratory empirical research about homeless movements of Grande So Paulo. We are talking about people who do not have proper home. They have organized urban social movements occupying vacant buildings placed in downtown or big lands in the suburbs of the cities - places that work to the housing speculation. We have focused three homeless movements from Grande So Paulo in our analysis: Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC), Movimento de Moradia do Centro (MMC) and Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). This text was written to answer two questions: Who are the homeless? Why they are homeless? To the first question, we have described the three homeless movements to do a comparison among them, showing their similarities and differences. In the midst of the described and compared aspects, we have been emphasized the differences existents in the demands and political-ideological orientations from homeless movements and the similarity existent among their social bases. We also analyzed the homeless movements organization and method of fighting and their historical trajectories (birth and evolution). The answer of second question is that the homeless existence is due many factors that are linked with the essence of capitalist mode of production and the inefficiency the Brazilians housing policies. Key-words: homeless movements, social class, ideology, neoliberal capitalism

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SumrioINTRODUO ..........................................................................................................................................1

CAPTULO 1. DOS MOVIMENTOS DE MORADIA ECLOSO DOS MOVIMENTOS DOS SEM-TETO NA GRANDE SO PAULO ..............................................................................................15

CAPTULO 2 OS MOVIMENTOS DOS SEM-TETO DO CENTRO E DA PERIFERIA ............33

CAPTULO 3 REFLEXO SOBRE A BASE SOCIAL DOS MOVIMENTOS DOS SEM-TETO E O SEU CARTER CLASSISTA ..........................................................................................................139

CAPTULO 4 AS DIFERENTES ORIENTAES POLTICO-IDEOLGICAS DOS MOVIMENTOS DOS SEM-TETO ......................................................................................................177

CAPTULO 5 OS PERODOS DE ASCENSOS E DESCENSOS DAS OCUPAES DOS MOVIMENTOS DOS SEM-TETO E AS ESTRATGIAS DE AO PARA O INCIO DO SCULO XXI ..........................................................................................................................................................213

CAPTULO 6 AS RAZES DO PROBLEMA ..................................................................................247

CONSIDERAES FINAIS.................................................................................................................285

BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................................295

ANEXO ...................................................................................................................................................305

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INTRODUO

Um dos problemas sociais contemporneos mais srios que a humanidade enfrenta o relacionado habitao. Este problema to antigo quanto urbanizao, porm no foi solucionado e se encontra em uma situao catica em diversas partes do mundo. por isso que tal problemtica est na ordem do dia, tanto no cenrio internacional quanto nacional. O relatrio publicado em outubro de 2003 pelo Programa de Assentamentos Humanos das Naes Unidas (UN-Habitat) qualifica o problema habitacional mundial como uma situao de desastre. O Banco Mundial tambm j advertia, na dcada de 90, que a pobreza urbana se tornaria o problema mais importante e politicamente explosivo do prximo sculo (Davis, 2006). verdade que o problema habitacional se apresenta de diferentes maneiras, com distintas dimenses e intensidades entre as cidades e os pases, no entanto, inegvel a existncia do problema em nvel mundial. Los Angeles, nos Estados Unidos, conhecida como a capital dos moradores de rua (homeless) no Primeiro Mundo, estimados em 100 mil pessoas. J Mumbai possui provavelmente a maior populao em situao de rua do mundo, cerca de 1 milho de pessoas. ainda no Cairo, Egito, que aparece o exemplo mais incomum de oferta de moradia: a Cidade dos Mortos, onde 1 milho de pobres usam sepulturas mamelucas como mdulos habitacionais (Davis, 2006). No Brasil, o dficit habitacional nacional aumenta cada vez mais. Em 2002, de acordo com a Fundao Joo Pinheiro, tal dficit se encontrava por volta de 6,6 milhes de moradias, j em 2006, de acordo com a mesma Fundao, estava na faixa de 7,9 milhes de unidades habitacionais. A regio sudeste a regio que possui uma maior parcela do dficit habitacional brasileiro, representando 37% do total. O estado de So Paulo apresenta um dficit de mais de 1 milho e 400 mil moradias, representando, s ele, quase 20% do dficit habitacional brasileiro total. A Regio Metropolitana de So Paulo a regio que possui o maior dficit habitacional do pas,

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mais de 720 mil moradias os movimentos dos sem-teto a serem analisados neste trabalho atuam justamente neste territrio explosivo de grande dficit habitacional1. Mike Davis (2006) defende a tese de que a urbanizao e o crescimento da populao urbana acontecem atualmente em todo o mundo e a perspectiva para o futuro que esses fenmenos se intensifiquem, de modo que as favelas urbanas se reproduzam em massa. Enquanto os favelados dos pases centrais representam 6% de sua populao urbana, nos pases dependentes (Amrica Latina, frica, Oriente Mdio e sul da sia) temos 78,2% da populao urbana vivendo em favelas. Davis afirma que a partir da dcada de 1970, o crescimento das favelas no hemisfrio sul ultrapassou a urbanizao propriamente dita, ou seja, as favelas crescem mais rpido que as prprias cidades. Assim, o futuro do planeta ser um s: um planeta favela. A partir da dcada de 90, o capitalismo neoliberal foi introduzido e consolidado em diversos pases, dentre eles o Brasil e, cada vez mais, as desigualdades sociais foram se intensificando nas palavras de Mike Davis, o neoliberalismo aprofunda os vales e eleva os picos das diversas topografias sociais mundiais. A idia de um Estado intervencionista comprometido com a habitao popular parece, nos termos de Davis, alucinao. Isto porque os governos no esto interessados, empenhados e muito menos dispostos a investir em iniciativas srias para combater as favelas e remediar a marginalidade urbana. No cenrio nacional, as favelas so grandes conhecidas dos brasileiros. De acordo com o IBGE, entre 1991 e 2000, houve um aumento de 22,5% no nmero de favelas. Na cidade de So Paulo, as favelas cresceram, na dcada de 1990, a um ritmo explosivo de 16,4% ao ano (Davis, 2006). De acordo com uma pesquisa da prefeitura de So Paulo, realizada em 2007 e financiada pelo Banco Mundial, estima-se que um em cada seis

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Existem divergncias no que se refere ao clculo do dficit habitacional (quantitativo e qualitativo) j que este pode ser definido de diferentes maneiras. Algumas instituies contabilizam, por exemplo, como dficit quando existe uma co-habitao de muitas pessoas em uma mesma casa. Optamos por citar aqui os dados da Fundao Joo Pinheiro devido seriedade e qualidade do trabalho desta instituio. Assim, todos os dados aqui citados sobre questo habitacional, quando no mencionados a sua fonte, se referem a seguinte pesquisa: Fundao Joo Pinheiro, Centro de Estatstica e Informaes. Dficit habitacional no Brasil 2006 / Ministrio das Cidades, Secretaria Nacional de Habitao. Braslia, 2008. (Projeto PNUD-BRA-00/019 Habitar Brasil BID).

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paulistanos mora em favelas. Percebemos assim que as previses de Mike Davis parecem estar na direo correta. Diante da dimenso do problema habitacional no Brasil, os movimentos de moradia e, principalmente, os movimentos dos sem-teto ganham fora e visibilidade ao longo das ltimas dcadas. Esses movimentos foram capazes de demonstrar, atravs de suas atuaes (a ocupao de imensos prdios vazios no centro da cidade de So Paulo e, depois, com o processo de reintegrao de posse, o ato de acampar em frente a estes prdios vazios), a imensa injustia social e desigualdade no que se refere posse do terreno urbano e propriedade privada. Denuncia-se ainda a ao irracional da especulao imobiliria quando pensada do ponto de vista social e humano. No entanto, quando a especulao analisada do ponto de vista do capital algo muito racional: valorizao do capital2. No entanto, a visibilidade e fora dos movimentos dos sem-teto so combatidas pela classe dominante com a criminalizao diria desses movimentos, enfatizando os seus aspectos negativos e distorcendo a realidade. Essa posio entendida quando pensamos nos interesses dos capitalistas imobilirios, interesses inconciliveis com os interesses dos sem-teto. Enquanto os primeiros desejam supervalorizar seus terrenos na regio central das cidades (fil mignon imobilirio), os sem-teto querem a construo de habitao social, ou seja, moradias a baixo custo para que os trabalhadores possam viver com mais dignidade no centro da cidade. Os grandes capitalistas, detentores de latifndios territoriais e miditicos, atacam os sem-teto pela imprensa, ressaltam os elementos de violncia, perigo e conflito dos movimentos, adotando assim apenas uma maneira de ver e mostrar os movimentos sociais mais combativos. A esse respeito, Sader (2005) comenta: A grande mdia privada seu (do liberalismo, ou melhor, neoliberalismo) instrumento essencial de divulgao, deixando o movimento popular e a esquerda com poucos espaos de difuso de suas opinies, suas idias e suas propostas.

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O estado de So Paulo possui no apenas o maior dficit habitacional do pas, mas tambm o maior nmero de domiclios vagos em condies de serem ocupados e em construo, cerca de 1 milho e 378 mil domiclios (o nmero total de domiclios brasileiros vagos de 6 milhes). O alto ndice de imveis vazios quase que equivalente ao dficit estadual (1 milho e 400 mil moradias).

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O jornal Estado de So Paulo demonstrou o seu temor frente superorganizao dos sem-teto durante todo o ano de 1999 e exigia uma atitude dos governantes para combater as aes daqueles. De acordo com o tal peridico, os movimentos dos sem-teto poderiam se tornar organizaes semelhantes aos nazistas e fascistas da dcada de 303. Como sabemos a imprensa possui grande impacto na opinio pblica tendo, neste caso, o poder de reproduzir pr-conceitos sobre os sem-teto. Por outro lado, existem alguns peridicos e jornalistas mais compromissados com as questes sociais e, quando chegam a uma ocupao, esto abertos para perceberem a organizao e seriedade dos movimentos e ainda a grande quantidade de famlias envolvidas, acabando assim por fazer reportagens mais realistas. Os prprios trabalhadores ao incorporarem a ideologia dominante de obedincia civil e respeito propriedade privada tambm condenam as aes dos sem-teto de ocuparem propriedade privadas (os prdios vazios do centro das cidades). As classes mdias, geralmente impregnadas pela ideologia meritocrtica, defendem que as desigualdades sociais so resultados de diferenas de dons e mritos individuais4. Ao se pensar na existncia e situao dos sem-teto com as lentes desta ideologia, a condio atual de miserabilidade dos sem-teto percebida como uma falha individual, um demrito, responsabilizando o sujeito por sua situao atual e atribuindolhe caractersticas como a de no querer trabalhar ou no ter capacidade de estudar para ter uma situao econmica mais favorvel. Na tentativa de distanciarmos-nos de idias pr-concebidas e pertencentes s ideologias dominantes, propomo-nos aqui a verificar como os movimentos dos sem-teto so de fato, como atuam no dia a dia, quais so suas reivindicaes, quem so as lideranas, quem participa de tais movimentos e por que o fazem. Para que nossa pesquisa se tornasse vivel, optamos por analisar trs dos principais movimentos dos sem-teto da grande So Paulo, a saber, Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC), Movimento de Moradia do Centro (MMC) e Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). Esta escolha se deu porque esses movimentos parecem ser os que mais possuem fora e visibilidade na grande imprensa e, principalmente,

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As invases superorganizadas. In: Estado de S. Paulo. So Paulo, 29 de outubro de 1999. Sobre a ideologia meritocrtica das classes mdias verificar o estudo de Boito Jr. (2004).

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porque eles representam bem a heterogeneidade poltico-ideolgica que acreditamos existir entre os sem-teto. O estudo desses trs movimentos tambm importante para demonstrar os distintos espaos em que os sem-teto lutam. Enquanto o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) atua nas periferias da Grande So Paulo, o Movimento de Moradia do Centro (MMC) e o Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) se concentram, como a prpria nomenclatura j indica, no centro da metrpole5. Descrevemos os trs movimentos dos sem-teto citados de maneira que facilitasse o estabelecimento de uma comparao entre eles, demonstrando suas semelhanas e diferenas. Dentre os aspectos descritos e comparados, enfatizamos as diferenas existentes nas reivindicaes e orientaes polticas e ideolgicas dos movimentos dos sem-teto e a semelhana existente em suas bases sociais. Analisamos ainda a estrutura organizativa e mtodos de luta dos trs movimentos citados, assim como suas trajetrias histricas (nascimento e evoluo). Nossa pesquisa sobre os movimentos dos sem-teto da cidade de So Paulo teve incio em meados de 2004, durante nossa graduao em cincias sociais. Na ocasio, tivemos a oportunidade de elaborar um projeto de pesquisa de iniciao cientfica sobre o tema e, depois, durante um ano (de agosto de 2005 a julho de 2006) desenvolvemos a pesquisa, a qual foi apoiada por uma bolsa do PIBIC/CNPq. Deste tempo de estudo resultou a nossa monografia de concluso de curso, no ano de 2006, intitulada: Os movimentos dos sem-teto da cidade de So Paulo frente aos governos neoliberais (19952002). Foi ento a partir desta primeira pesquisa que entramos em contato com os movimentos dos sem-teto, definimos melhor nosso objeto e levantamos algumas hipteses, as quais foram aprofundadas neste presente trabalho. Teoria e Metodologia Devida a aproximao com o referencial terico marxista e a utilizao deste para estudarmos os movimentos dos sem-teto, nossa anlise est embasada nos seguintes conceitos: modo de produo capitalista, lei de acumulao, contradio capital e5

Para evitar a confuso e o cansao do leitor com a sopa de letrinhas que existe na nomenclatura dos movimentos dos sem-teto, doravante, passamos a nos referir aos movimentos da seguinte maneira: trataremos o Movimento de Moradia do Centro (MMC) como Moradia do Centro, o Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC) como Sem-Teto do Centro e o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) como Trabalhadores Sem-Teto.

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trabalho, Estado capitalista, estrutura econmica e poltica, classes sociais, luta de classes e fraes de classes, questo estrutural e a influncia das condies socioeconmicas na organizao dos movimentos. De nossa parte, acreditamos que o conceito de classe social muito importante para compreendermos os movimentos sociais, inclusive os ditos novos movimentos sociais. Assim sendo, as classes sociais no podem ser colocadas como um ponto sem grande relevncia na anlise, principalmente, no estudo sobre os movimentos dos semteto, onde o carter de classe aparece com tanta evidncia. Diante disso, faz-se necessrio explicitar o que entendemos por movimentos sociais e classes sociais. Sobre as definies dos movimentos sociais, possumos concordncia com as idias de Vakaloulis, Borja e Mouriaux. Vakaloulis fornece uma noo ampla do conceito de movimento social de modo a relacion-lo com as relaes de subordinao de classe e com as relaes sociais de protesto na sociedade capitalista. A definio do autor ainda articula aspectos econmicos, polticos e ideolgicos. Vakaloulis (2005, 132) diz o seguinte: O conceito de movimento social refere-se, na verdade, a um conjunto mutvel de relaes sociais de protesto que emergem no seio do capitalismo contemporneo. Essas relaes se desenvolvem de forma desigual em seus ritmos, sua existncia reivindicativa, sua constncia e sua projeo no futuro e, finalmente, em sua importncia poltica e ideolgica. Sua origem comum, se que existe uma, est no fato de que certos grupos sociais dominados entram em conflito, de forma direta ou indireta, com a materialidade das relaes de poder e de dominao, mas tambm com o imaginrio social marcado pela dinmica da valorizao/desvalorizao. Borja ao buscar uma definio para os movimentos reivindicativos urbanos aponta que eles estariam relacionados com as aes coletivas que buscam melhores condies de vida, condies que esto relacionadas ao uso da cidade, como moradias dignas e acessos aos servios de qualidade (sade, educao, etc). Nas palavras do autor: Consideramos como movimientos reivindicativos urbanos las acciones colectivas de la poblacin entretanto que usuaria de la ciudad, es decir, de viviendas y servicios, acciones destinadas a evitar la degradacin de sus condiciones de vida, a obtner la

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adecuacin de stas a las nuevas necessidades o a perseguir un mayor nvel de equipamiento.(Borja 1975: 12) Ren Mouriaux ao tratar dos movimentos sociais na nova fase do capitalismo elabora uma tipificao das lutas sociais e polticas (Galvo, 2002). Nesta tipificao, destacamos o primeiro tipo, que se refere s lutas de urgncia. Essas lutas seriam aquelas em que as pessoas lutam para garantir sua sobrevivncia devido deteriorao da situao econmica de uma parcela da classe trabalhadora elas se vem obrigadas a lutarem pelas coisas mais elementares: comida, abrigo, emprego. Acreditamos poder classificar os movimentos dos sem-teto como um movimento de urgncia, posto que lutam para a obteno de uma moradia segura, ou seja, lutam por condies bsicas e urgentes que garantam minimamente a sua existncia fsica. Passemos para a apresentao do conceito de classe social utilizado por ns6. Geralmente, quando pensamos no conceito de classe social para Marx, logo, o relacionamos com a posio que os agentes ocupam na estrutura produtiva. E, em seguida, vem mente a famosa e j exaustivamente citada passagem em que Marx retrata a situao do campons em O 18 Brumrio de Luis Bonaparte: Os pequenos camponeses constituem uma imensa massa, cujos membros vivem em condies semelhantes, mas sem estabelecerem relaes multiformes entre si. (...) Na medida em que milhes de famlias camponesas vivem em condies econmicas que as separam umas das outras, e opem o seu modo de vida, os seus interesses e sua cultura aos das outras classes da sociedade, estes milhes constituem uma classe. Mas na medida em que existe entre os pequenos camponeses apenas uma ligao local e em que a similitude de seus interesses no cria entre eles comunidade alguma, ligao nacional alguma, nem organizao poltica, nessa exata medida no constituem uma classe. (Marx, K; 1974: 402-403). Da conclui-se que o campons da Frana de 1848 era uma classe e no era, ou seja, era uma classe sob o ngulo econmico, mas no o era sob o ponto de vista poltico e ideolgico. Marx sugere assim que a estrutura econmica contm, potencialmente, uma classe. No entanto, a formao efetiva de tal s se realiza quando h uma ao conjunta,

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A noo de classe social que seguiremos a utilizada pelo grupo de estudos Neoliberalismo e relaes de classe, do qual participamos.

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uma organizao poltica, que relacione os interesses de classe e os projetos dessa. Logo, no devemos ter uma noo reducionista e tampouco economicista do conceito de classe social de Karl Marx, entretanto, deve ficar claro que no h a formao de uma classe apenas no nvel das prticas sociais, ou seja, a classe no apenas uma construo social, fundada nas relaes concretas estabelecidas entre os agentes sociais. Dito de outra maneira, uma classe social se define a partir da posio dos agentes na estrutura econmica, porm s se constitui enquanto classe nos conflitos, nas lutas, no processo de mobilizao poltica que passa pela capacidade de agregar interesses e construir solidariedades. Deve-se pensar a classe social como um fenmeno, ao mesmo tempo, econmico, poltico, objetivo e subjetivo. De acordo com Marx, ainda em O 18 Brumrio de Luis Bonaparte, o conceito de classe social pode ser utilizado no somente nos momentos em que os agentes da produo esto mobilizados num embate em torno da preservao ou da revolucionarizao da ordem vigente (como apresentava o autor no Manifesto do Partido Comunista), mas tambm no momento em que os agentes atuam no processo poltico visando manter ou conquistar posies na distribuio da riqueza ou na balana do poder. O conflito de classes aparece assim como um fenmeno poltico permanente e das maneiras mais distintas possveis. Dizer que o paradigma marxista no d conta mais de explicar a realidade um equvoco. Surgem novas necessidades, tais como teorizao do conceito de classe mdia, no se ter uma viso economicista, introduzir elementos culturais na anlise, mas dizer que a posio do agente na estrutura produtiva no importa, isto seria um erro. Larangeira (1990) coloca algumas questes interessantes: Quantas horas do dia as pessoas passam envolvidas com o trabalho? Como a ocupao de um trabalhador e, consequentemente, o seu salrio poderia deixar de influenciar o seu dia a dia, as possibilidades lazer, o acesso cultura? E ainda, na velhice, o que so as condies de vida se no um resultado direto do lugar ocupado anteriormente na diviso social do trabalho? Como analisar os interesses antagnicos da Unio Democrtica Ruralista (UDR) e dos sem-terra, e no constante conflito entre esses dois setores, seno a partir da idia de luta de classes? O vigor da ao coletiva desses agentes classistas na sociedade brasileira, por exemplo, no permite afirmar to 8

facilmente que o conceito de classe social j no seja mais adequado para descrever a realidade. Talvez se pudesse dizer que ele no suficiente para descrever toda a realidade. (Larangeira, 1990:27) Os movimentos sociais exigem que sejam interpretados em suas diversas dimenses: econmica, poltica, ideolgica e cultural e ainda relacionando as condies objetivas e subjetivas. Galvo (2008), baseada na literatura francesa7, afirma que a perspectiva marxista faz diferena e importa na anlise dos movimentos sociais ao buscar a relao entre ideologia e classe, entre poltica e economia. A autora entende que a ao poltica est vinculada a interesses materiais e trabalhar com as contradies de classe ajuda a compreender os conflitos, as resistncias dos dominantes ao das classes dominadas, sobretudo quando elas so capazes de desvelar e apontar para as causas da desigualdade e da explorao. Galvo (2008: 14-15) ainda destaca algumas outras vantagens da anlise marxista dos movimentos sociais: A abordagem marxista tambm permite ao analista se interrogar sobre a diversidade dos movimentos e, ao mesmo tempo, buscar seus elementos comuns. Ainda possibilita compreender os movimentos de modo no linear, uma vez que a conflituosidade feita de avanos e retrocessos. (...) Por fim, possibilita considerar os nveis distintos de atuao poltica que, esquematicamente, podem ser resumidos nos seguintes aspectos: 1. Demandas pontuais ao Estado: subsdios para subsistncia imediata (como os movimentos dos sem); 2. Reformas (econmicas, como a distribuio de renda; das instituies polticas, como mais participao, democratizao), ampliao da cidadania, direitos sociais (perspectiva anti-neoliberal); 3. Mudanas das prticas polticas e dos valores sociais: novas relaes de gnero, raciais, de preferncia sexual; 4. Anti-capitalista: requer pensar a questo da emancipao social.

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A autora realiza uma leitura dos marxistas franceses da dcada de 70, citando Castells e Lojkine, passa pelos anos 80, Laclau e Mouffe e chega aos anos 90 e 2000, quando parece haver uma renovao dos estudos com Mouriaux, Broud e Vakaloulis.

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Acreditamos que para uma anlise da realidade necessrio que se leve em conta vrios fatores: ideolgicos, polticos e econmicos, sujeito e estrutura. No entanto, em ltima instncia, a estrutura que pauta grande parte das reivindicaes e interesses, e as classes sociais so alguns dos elementos mais importantes para compreender os movimentos sociais e a luta poltica atual. pensando na articulao das mltiplas determinantes que buscamos realizar uma anlise marxista sobre movimentos dos semteto. Partindo destas idias, a proposta metodolgica de Castells (1976: 124) para o estudo dos movimentos sociais urbanos se apresenta como uma boa opo a ser seguida: Mas, em todo o caso, nesta interao entre lugar do problema urbano na estrutura social, lugar do grupo social nas relaes de classe e caractersticas poltico-ideolgicas das organizaes intervenientes, que se encontra o segredo ltimo dos movimentos sociais urbanos. De acordo com o levantamento bibliogrfico que fizemos para a verificao da existncia da temtica (movimentos dos sem-teto de So Paulo/Brasil) em revistas cientficas nacionais e internacionais foi possvel verificar que ainda no existe uma bibliografia significativa a respeito dos movimentos dos sem-teto8. Percebemos que as teses e dissertaes sobre nossa temtica so bem recentes9. Os pesquisadores se encontram em diversas reas: arquitetura, direito, servio social, geografia, histria e cincias sociais, sendo que os estudos destas ltimas no so predominantes. Por isso, acreditamos que, com o desenvolvimento desta pesquisa, poderemos contribuir para o debate que ainda se encontra pequeno, principalmente nas cincias sociais, sobre os movimentos dos sem-teto brasileiros. E, de maneira mais geral, contribuiremos com o debate a respeito dos movimentos sociais urbanos e movimento de moradia na sociedade brasileira atual. Da a contemporaneidade do tema e sua grande relevncia.As revistas cientficas consultadas por ns foram: Revista Brasileira de Cincias Sociais, BIB, Dados, Novos Estudos Cebrap, Lua Nova, Tempo Social, Lutas Sociais, Margem esquerda, Outubro e Crtica Marxista. Dentre os peridicos internacionais contamos com: Revista Mexicana de Sociologia, New Left Review, Actuel Marx e Le mouvement social. Verificamos as edies das ltimas dcadas, mais precisamente entre os anos de 1984 e 2008. 9 Consultamos as dissertaes e teses da Usp e Unicamp e, para tal, nos utilizamos dos links cruesp/unibibli que est na pgina da internet do sistema de bibliotecas da Unicamp (SBU). Tambm fizemos um levantamento bibliogrfico a partir do Banco de Teses da Capes (www.servicos.capes.gov.br/capesdw). Como sinal da falta de bibliografia especfica sobre o tema, temos a publicao do primeiro livro sobre os movimentos dos sem-teto no Brasil, mais especificamente, dos movimentos dos sem-teto de Salvador, apenas no ano de 2008. O livro de autoria do jovem historiador Raphael Cloux e editado por ele mesmo.8

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A falta de bibliografia a respeito da temtica e o prprio objeto nos direcionaram para a realizao de um estudo emprico exploratrio. Esta classificao da pesquisa est embasada no documento do Departamento de Cincia Poltica do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, IFCH, da Unicamp, em que so descritas algumas caractersticas gerais da dissertao do seu programa de mestrado. De acordo com tal documento, uma pesquisa deve ser considerada emprica ou terica de acordo com o seu objeto, j que em relao aos meios utilizados para sua efetivao, so, no geral, os mesmos. Sendo assim, enquanto a pesquisa terica tem por seu objeto teorias e conceitos, a pesquisa emprica tem como objeto uma realidade determinada. Quanto denominao estudo exploratrio, essa se d devido ao pouco acmulo bibliogrfico sobre a temtica, da termos que realizar um levantamento descritivo sobre o tema. De acordo com Castells (1975: 392,393), a fase exploratria essencial para se compreender um movimento social: (...) preciso antes de mais nada, saber a respeito do que falamos, quer dizer, aprender a reconhecer os movimentos sociais urbanos, colocar um pouco de vida, isto , de historia concreta (...). Mas isto (fase exploratria) no significa recair no empirismo, limitar-se a uma simples observao que por si s, nunca poderia fazer outra coisa a no ser acumular anedotas. Isto significa tratar os fenmenos que supostamente esto carregados de contradies do ngulo da emergncia das reivindicaes sociais e das mobilizaes polticas, ao mesmo tempo em que se busca as leis de sua articulao com a luta de classes em geral. Assim sendo o trabalho de campo foi de fundamental importncia para a nossa pesquisa e a realizao de diversas entrevistas e conversas com os militantes dos movimentos se fez, portanto, fundamental para lograrmos uma boa descrio dos movimentos estudados. Trabalho de Campo Para melhor entendimento, podemos dividir a nossa pesquisa de campo em trs partes. A primeira se refere aos primeiros contatos com o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). Isso se deu no final do ano de 2007 e incio de 2008. Este movimento realizou uma ocupao na cidade de Campinas, e devido a nossa facilidade de acesso j

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que morvamos nesta cidade, pudemos acompanhar um pouco das fases da organizao da ocupao Frei Tito que ocorreu em maro de 2008. Falamos tambm com algumas lideranas, as quais possuam uma interessante experincia em outras ocupaes realizadas na Grande So Paulo. Nos ltimos dias da ocupao, o movimento realizou um acampamento em frente prefeitura de Campinas, onde pudemos acompanhar e observar pessoalmente os acontecimentos, alm de conversarmos com diversos membros do movimento. A segunda parte da pesquisa contou com o apoio do Programa de Ps Graduao de Cincia Poltica do IFCH, Unicamp, financiando as idas cidade de So Paulo durante os meses de maio, junho e julho de 2008. Neste perodo, entramos em contato com o Movimento de Moradia do Centro (MMC) e o Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) e, ainda, com o Movimento Nacional de Populao de Rua (MNPR). Pudemos realizar diversas visitas s ocupaes, participamos de assemblias e atos organizados pelos movimentos, alm de termos realizado entrevistas com as principais lideranas e conversas com diferentes membros dos movimentos dos sem-teto. Lembramos que nesta fase da pesquisa, contamos com a companhia de Francine Hirata, colega de mestrado e do grupo de estudos Neoliberalismo e Relaes de Classes e tambm pesquisadora dos movimentos dos sem-teto do centro da cidade de So Paulo. O trabalho conjunto foi muito frutfero. A terceira parte da pesquisa de campo teve como objetivo observar especificamente as orientaes poltico-ideolgicas dos trs movimentos. Nesse caso, foi muito til a nossa participao enquanto observadores em alguns dias dos dois encontros estaduais dos sem-teto que se realizaram no ms de maio de 2009: o Encontro Estadual do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e o Encontro Estadual da Unio dos Movimentos de Moradia (UMM) O Movimento de Moradia do Centro filiado a este movimento e participou do referido encontro. O tema das discusses travadas nesses dois encontros, assim como a origem e perfil dos convidados para as mesas de abertura, entre outros elementos, proporcionou-nos um rico material para a compreenso da diversidade de orientaes polticas e ideolgicas entre os movimentos analisados. Deixamos registrado que, a partir de uma avaliao geral, nossa pesquisa de campo foi muito rica, possibilitou-nos a observao dos trs movimentos em diversas

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situaes, contexto, lugares e aes e a realizao de entrevistas e conversas com os semteto com diversas caractersticas: crianas, jovens, adultos, idosos, homens, mulheres, negros, migrantes, lideranas, sem-teto da base, sem-teto experientes e sem-teto que participavam pela primeira vez de uma ocupao. Fizemos entrevistas semi-estruturadas, priorizando entrevistas qualitativas, ao invs das quantitativas. As entrevistas semi-estruturadas articulam tanto as entrevistas denominadas estruturadas (pressupem perguntas previamente selecionadas) quanto as no-estruturadas (onde o informante aborda livremente o tema proposto). A maioria das entrevistas foram iniciadas com a histria de vida dos entrevistados, variando entre o que se chama de historia de vida completa (que retrata todo o conjunto da experincia vivida) e historia de vida tpica (que focaliza uma etapa ou um determinado setor da experincia em questo). De acordo com Neto (1994: 59): Para muitas pesquisas a histria de vida tem tudo para ser um ponto inicial e privilegiado porque permite ao informante retomar sua vivncia de forma retrospectiva, com uma exaustiva interpretao. Nela geralmente acontece a liberao de um pensamento crtico reprimido e que muitas vezes chega em tom de confidencia. um olhar cuidadoso sobre a prpria vivencia ou sobre determinado fato. Esse relato fornece um material extremamente rico para a anlise do vivido. Nele podemos encontrar o reflexo da dimenso coletiva a partir da viso individual. Quando se fez conveniente e possvel as entrevistas foram gravadas. No por acaso isso aconteceu com as principais lideranas dos movimentos do centro, por exemplo, j que as condies espaciais eram adequadas e a desenvoltura dos entrevistados notria. No entanto, as entrevistas com os outros membros dos movimentos no foram gravadas j que elas se deram no decorrer de uma manifestao na rua, ou em uma caminhada da sede do movimento at uma ocupao, ou ainda, por considerarmos inapropriado pedir para gravar um conversa em que as pessoas fazem confidncias de sua vida, ou simplesmente devido ao pnico do gravador. Por isso, ao invs de falar entrevistas no gravadas, me referirei a elas como conversas com os sem-teto, que foi na verdade o que aconteceu. Essas conversas foram registradas, de acordo com nossa memria, no final de cada dia de pesquisa de campo.

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No que se refere observao participante, estratgia complementar pesquisa, pudemos acompanhar assemblias, manifestaes /atos nas ruas e encontros estaduais organizados pelos movimentos. Realizamos ainda visitas as ocupaes onde pudemos observar a diviso dos barracos ali dentro, a infra-estrutura, a harmonia (ou no) dos semteto dentro de uma ocupao, etc. E, ainda realizamos observao direta em acampamentos em frente a duas prefeituras municipais. A observao direta permite ao pesquisador contato direto com a realidade e isso foi fundamental para a nossa pesquisa. Em todas as idas a campo fomos muito bem recebidos tanto pelas lideranas dos movimentos quanto pela base. Os sem-teto se demonstraram bastante atenciosos e dispostos a nos apresentar os seus respectivos movimentos.

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Captulo 1. Dos Movimentos de Moradia Ecloso dos Movimentos dos Sem-Teto na Grande So Paulo

1. 1 Unio dos Movimentos de Moradia de So Paulo (UMMSP)As lutas sociais urbanas so bastante antigas, no entanto, a partir dos anos 80 que os movimentos de moradia crescem e se espalham por todas as regies da cidade de So Paulo. Isso acontece em decorrncia do agravamento da crise econmica e da exploso dos valores dos aluguis. Neste contexto h uma generalizao das ocupaes de terras, em propriedades pblicas e privadas, por toda a cidade, mas em especial na zona leste. A (...) luta por moradia ganha intensidade e em 1987 fundada a Unio dos Movimentos de Moradia de So Paulo (Cavalcanti, 2006: 63). A Unio dos Movimentos de Moradia de So Paulo (UMMSP), conhecida tambm como UMM ou simplesmente Unio, pode ser considerada como a entidade-me de grande parte dos movimentos sociais que lutam por moradia e por isso ela possui grande representatividade. Esta entidade tambm tem se apresentado como um movimento com grande capacidade de mobilizao, presso e negociao com o poder pblico municipal, estadual e federal. A Unio dos Movimentos de Moradia de So Paulo (UMMSP) se organiza em forma de rede, articulando movimentos populares de moradia, em suas diversas expresses movimentos de sem-teto, cortios, favelas, loteamentos, mutires, ocupaes no estado de So Paulo. A UMM uma das importantes entidades do pas que luta em defesa da moradia popular, atuando, em defesa de projetos habitacionais nas reas centrais das cidades, em projetos de urbanizao favelas, na luta contra os despejos e na defesa da reforma urbana com participao popular10.

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Organizao da UMMSP. Documento distribudo durante o 10 Encontro Estadual de Moradia Popular, realizado no ano de 2007, na cidade de Campinas.

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A Unio tem seu percurso marcado por forte influncia da Igreja Catlica destacando a Pastoral de Moradia e algumas Comunidades Eclesiais de Base. Personalidades importantes da Igreja, como Dom Paulo Evaristo Arns e Don Cludio Hummes, foram grandes apoiadores da unificao dos movimentos de moradia (Cavalcanti, 2006). Em relao aos objetivos iniciais da Unio temos o seguinte: A UMM j nasce com o objetivo de articular os movimentos de moradia locais em So Paulo, fortalecer a luta cotidiana por moradia, pelo direito de as famlias de baixa renda mensal, pelo atendimento da base dos movimentos nos programas habitacionais e, ainda, pela realizao de mutires autogestionrios. (Silva,Wanderley, Paz; 2006: 38) No que se refere especificamente a proposta de mutiro, esta viria a ser a grande marca da entidade. Como esclarece Cavalcanti (2006: 64-65), essa proposta influenciada pela (...) experincia uruguaia de construo de habitao de interesse social atravs de cooperativas habitacionais autogestionrias, criadas e desenvolvidas pela FUCVAM Federacin Uruguaya de Cooperativas de Vivenda por Ayuda Mtua. Os militantes brasileiros tomam contato com a iniciativa da autogesto em um seminrio internacional organizado pela Igreja Catlica. Aps esse evento, algumas lideranas brasileiras vo ao Uruguai, patrocinados pela Ong Miserior, e l conhecem a fundo a experincia dos companheiros latino-americanos. No final da dcada de 80, o movimento de luta pela moradia se fortalece na regio central da cidade de So Paulo. E, em meados dos anos 90, o processo de ocupao de prdios nesta regio se intensificou, dando origem ao que denominamos aqui como movimento dos sem-teto. Marcava-se assim um importante momento da histria da Unio. No que se refere organizao interna das ocupaes, grande parte das estratgias so influenciadas pela experincia argentina, principalmente pela experincia das ocupaes urbanas realizadas na cidade de Buenos Aires, como declara Vernica Kroll, importante liderana do Frum de Cortios e Sem-Teto de So Paulo (movimento filiado Unio), no vdeo intitulado Margem do Concreto de Evaldo Mocarzel (2006).

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A maneira como a Unio apresenta sua estrutura organizativa, por exemplo, a existncia de uma coordenadoria ampliada e outra executiva, ou ainda, o fato de as decises serem tomadas em plenrias mensais e na reunio semanal da coordenao, ser repetida, como veremos, em alguns movimentos dos sem-teto. No entanto, os movimentos filiados entidade-me possuem relativa autonomia de modo a possuir estrutura e organizao interna prprias. Nos dias atuais, a entidade tenta ampliar seu campo de atuao de modo a desenvolver aes em temticas relevantes socialmente como Juventude, Gays, Lsbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (GLBTT), Mulheres, Crianas e Adolescentes entre outras. Ao longo dos anos a entidade passa a ocupar cada vez mais os espaos pblicos na mdia, de negociao com os governos e de polticas institucionais. Um exemplo disso que em 2003 a Unio consegue eleger um nmero significativo de militantes como conselheiros no Conselho Municipal e Habitao. Muitos militantes participam ainda do Conselho Municipal de Desenvolvimento de Polticas Urbanas e do Conselho Nacional das Cidades. Durante a gesto petista de Marta Suplicy, a Unio atuou no processo de elaborao do Plano Diretor do municpio. No plano nacional, destaca-se a luta pelo Fundo Nacional de Moradia Popular, projeto de lei de iniciativa popular, originalmente elaborado pela UMM, que coletou 1 milho de assinaturas e organizou diversas caravanas a Braslia (Silva,Wanderley, Paz, 2006: 40). Este Fundo demorou mais de dez anos para ser aprovado e teve sua aprovao durante o primeiro governo Lula. Alm da ajuda de Ongs e de setores da Igreja Catlica, a Unio conta ainda com o apoio logstico de alguns parlamentares de partidos de esquerda, em especial do Partido dos Trabalhadores (PT). Como veremos posteriormente, esta relao entre movimentos sociais e partidos polticos (em especial o PT) ser muito comum entre os movimentos dos sem-teto do centro. De acordo com Cavalcanti (2006:74): A prpria origem do partido (PT), oriundo de organizaes populares e sindicais, explica em parte a existncia desse tipo de preocupao, mas no somente. A permanncia do tema como questo de relevncia poltica durante longo perodo do desenvolvimento interno do PT pe em evidncia a sua importncia. Mais adiante, Cavalcanti (2006: 76) complementa o raciocnio: 17

O Partido dos Trabalhadores tambm criou, de forma a efetivar um canal concreto de dilogo com os movimentos, um rgo nacional com esta funo especfica, a Secretaria Nacional dos Movimentos Populares, com estrutura prpria e desdobramentos em nveis estaduais e municipais da mquina partidria. Alm disso, foi montada uma agenda de encontros nessas mesmas esferas de modo a fomentar o debate com as organizaes da sociedade civil. A seguir, apresentaremos de maneira sinttica as outras grandes entidades que possuem representatividade dentre os movimentos de moradia de So Paulo. Comecemos pela Unio Nacional por Moradia Popular (UNMP) que surge na mesma poca da Unio de Movimento de Moradia de So Paulo e tem seu surgimento fortemente atrelado ao apoio da Igreja Catlica. Assim como a Unio prope a unio dos movimentos de moradia do estado de So Paulo, a Unio Nacional por Moradia Popular, como a prpria nomenclatura j indica, busca a unio dos movimentos em nvel nacional. Dessa maneira a UMM filiada a esta outra entidade. Em 2007, a Unio Nacional por Moradia Popular (UNMP) atuava em 20 estados brasileiros, cada qual com seu representante na coordenao executiva11. O Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM) uma entidade que nasce de uma dissidncia da UNMP, em 1988. Em So Paulo, tem 6500 cadastrados e possui ainda uma coordenadoria executiva composta por um representante de cada um dos 16 estados em que atua. Esta entidade tambm possui boas relaes com o Partido dos Trabalhadores (PT)12. A Confederao Nacional das Associaes de Moradores (CONAM) foi fundada em 1982, como conseqncia do fortalecimento das federaes estaduais e atua em 22 estados brasileiros. Em 2004, a Confederao possua 5 mil famlias cadastradas. A fonte de financiamento de muitas dessas entidades maiores vem das contribuies dos movimentos filiados. Essa contribuio possui um critrio de proporcionalidade que pode ser exemplificado da seguinte maneira: uma entidade com at 300 integrantes contribui com 25% de salrio mnimo por ms; j um movimento de 300 a 500 integrantes, paga meio salrio mnimo e entidades com mais de 500 associadosDisponvel em: http://www.sp.unmp.org.br/index.php?option=com_content&view =article & id = 391 &Itemid=31. Acessado em dezembro de 2009. 12 Saiba mais sobre os movimentos de sem-teto. Folha de S. Paulo Cotidiano. 20 de abril de 2004.11

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contribuem com 75% do salrio mnimo13. Assim parte da arrecadao vem diretamente da da base, no entanto, em muitas ocasies este dinheiro no suficiente e as entidades buscam auxlio entre ONGs, partidos polticos e entidades religiosas. Temos ainda a Central de Movimentos Populares (CMP), criada em 1993, (...) aps um amplo processo de discusso desencadeado pela Articulao Nacional dos Movimentos Populares e Sindical (ANAMPOS), que entendia que, assim como na rea sindical, era necessria a existncia de uma central para reunir os movimentos populares (Silva,Wanderley, Paz, 2006: 44). A entidade atua em diversas reas e por isso possui os seguintes grupos setoriais: Crianas, Adolescente e Juventude, Negritude, Mulher, etc. No incio dos anos 90, a Central era dominada pelo Movimento de Sade, no entanto, na medida em que este passou a priorizar a atuao em espaos institucionais de gesto e controle social, foram as lideranas dos movimentos de moradia que se tornaram os militantes mais atuantes na Central (Silva,Wanderley, Paz, 2006: 46). Os dirigentes e militantes da Central de Movimentos Populares possuem boas relaes com o Partido dos Trabalhadores e os seus governos, de modo que a Secretaria Municipal de Habitao, na gesto Marta Suplicy, possua diversos assessores ligados CMP. Todas as entidades mencionadas anteriormente (Central de Movimentos Populares (CMP), Confederao Nacional das Associaes de Moradores (CONAM), Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM), Unio Nacional por Moradia Popular (UNMP)) fazem parte, juntamente com outras organizaes, da coordenao do Frum Nacional de Reforma Urbana (FNRU). O Frum, existente desde 1987, composto por organizaes de diversas partes do Brasil (movimentos populares, associaes de diferentes categorias profissionais, ONGs e instituies de pesquisa) que querem promover a Reforma Urbana, mudando as injustias sociais das cidades. O Frum Nacional de Reforma Urbana se fundamenta a partir de trs princpios fundamentais: 1. Direito Cidade (entendendo que todos os moradores da cidade tm direito moradia digna, aos meios de subsistncia, ao saneamento ambiental, a sade e educao, ao transporte pblico e alimentao, ao trabalho, ao lazer e 13

Saiba mais sobre os movimentos. Folha de S. Paulo Cotidiano. 27 de abril de 2006.

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informao); 2. Gesto Democrtica das Cidades (incentivo da participao dos cidados nas decises polticas e controle das aes dos governos, como por exemplo, o estimulo da participao popular nos conselhos municipais); 3. Funo Social da Cidade e da Propriedade (entende-se com isso que tanto a cidade quanto a propriedade devem atender primeiramente aos interesses coletivos das grandes maiorias)14. Por fim, temos a Frente de Luta por Moradia (FLM), fundada no ano de 2003, composta por movimentos dissidentes da Unio dos Movimentos de Moradia. No ano de 2008, a FLM congregava um total de doze movimentos. A Frente de Luta por Moradia (...) um coletivo de luta por moradia, constitudo de representao de movimentos autnomos que somam esforos para conquistar projetos habitacionais. Embora esteja assegurada a autonomia de cada movimento, seus procedimentos no podem ser incompatveis com os princpios gerais da Frente (Documento elaborado por Manoel Del Rio: Luta pelo direito cidade. FLM Frente de Luta por Moradia). Cronologia da criao das principais associaes e movimentos dos sem-teto na Grande So Paulo e associaes nacionais 1982 1987 1988 1991 1993 De 1993 a 1997 1997 2000 2003 Confederao Nacional das Associaes de Moradores (CONAM) Unio de Movimento de Moradia de So Paulo (UMMSP) Unio Nacional por Moradia Popular (UNMP) Frum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM) Unificao das Lutas de Cortios (ULC) Central de Movimentos Populares (CMP) Frum dos Cortios Movimento de Moradia do Centro (MMC) Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) Frente de Luta por Moradia (FLM)

Fonte: Elaborao prpria a partir da leitura de documentos oficiais das entidades e da imprensa.

Disponvel em: www.forumreformaurbana.org.br/_reforma/pagina.php?id=733. Acessado em janeiro de 2010.

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1. 2 A emergncia dos movimentos dos sem-teto em So PauloObras importantes referentes aos movimentos de moradia brasileiros, tais como Movimentos sociais e lutas pela moradia, de Maria da Glria Gohn, e A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participao poltica no Brasil pos-70, de Ana Maria Doimo, descrevem os diferentes tipos de luta popular por moradia. No entanto, tais obras no descrevem os movimentos dos sem-teto. Isso acontece porque a luta dos sem-teto se constitui nos moldes atuais ocupaes de prdios vazios no centro da cidade organizadas por movimentos sociais urbanos durante a dcada de noventa e as respectivas obras so datadas do incio dos anos 90, mais precisamente de 199115. inegvel que os sem-teto de hoje tm suas razes nas lutas sociais urbanas travadas nas dcadas anteriores. Alm do importante legado deixado pelos movimentos de moradia das dcadas passadas a respeito do conhecimento processual (savoir-faire) sobre organizar-se e pressionar os governos para que suas reivindicaes sejam atendidas, podemos dizer que uma outra importante herana deixada aos movimentos dos sem-teto de hoje so os apoios polticos com os quais eles tm podido contar - citamos aqui os partidos polticos, principalmente o PT, e setores progressistas da Igreja Catlica. Acreditamos que os movimentos dos sem-teto da dcada de 90, apesar de possurem fortes ligaes com os movimentos de moradia da dcada de 70 e 80, inovam em alguns aspectos. Essa inovao vem principalmente da forma de ao radical destes movimentos, a saber, a realizao de ocupaes de prdios vazios no centro da cidade denunciando a situao de desigualdade social e o aumento da especulao imobiliria. Diante do processo crescente de esvaziamento do centro com milhares de imveis abandonados, os sem-teto travam uma luta para que haja um processo de re-ocupao destes imveis de modo a diminuir o dficit habitacional na cidade. Percebemos assim uma dupla inovao: referente ao mtodo de luta (luta direta com a realizao organizada de ocupaes de edifcios) e ao contedo da reivindicao (o direito cidade, mais especificamente o direito ao centro da cidade).Apesar de Doimo mencionar os moradores de cortios e as ocupaes, a autora no faz uma exposio detalhada desse tema, deixando em aberto a anlise acerca dos movimentos dos sem-teto. Acreditamos que a grande contribuio da autora para os estudos dos movimentos de moradia o destaque que ela d para a influncia da Igreja em tal movimento.15

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De acordo com Frgoli Jr (2006 (a): 2): (...) um primeiro fenmeno assinalvel diz respeito a vrios movimentos de luta por mordia que vieram, a partir do final dos anos 1990, a promover dezenas de ocupaes de edifcios da rea central, para adot-los como local de resistncia ou pressionar politicamente os poderes pblicos, pelo atendimento de suas demandas. Tais ocupaes passaram a representar, do ponto de vista territorial, um novo tipo de demanda das classes populares, j que nas ltimas dcadas as principais formas de ocupao para moradia vinham ocorrendo nas reas perifricas. Defendemos que, tambm na periferia, h um movimento de moradia de novo tipo, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). As ocupaes realizadas por esses sem-teto diferem das ocupaes tradicionais dos movimentos de moradia, j que tal movimento, o Trabalhadores Sem-Teto, definiu seu modo de agir a partir das estratgias de ocupaes e acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). As ocupaes servem como moradia provisria para muita gente que no tem onde morar e mais, de acordo com algumas lideranas dos movimentos, a ocupao a maneira encontrada pelos sem-teto de serem enxergados e ouvidos. Os pobres do centro vm demonstrando que tm voz para falar e gritar, que tm fora para lutar e organizao para fazer valer seus direitos. Assim, no haveria outra forma do Movimento ser ouvido, enxergado ou percebido. Estas formas de organizao foram primeiro reconhecidas entre as entidades, depois pela cidade, pelo estado, pelo pas e hoje reconhecida internacionalmente (Barbosa e Pita, 2006) A nomenclatura dos movimentos atuais, ao se denominarem movimentos dos sem-teto e em outros casos trabalhadores sem-teto, indica que a luta pela moradia travada por aqueles trabalhadores que esto sem moradia, denunciando assim a precria situao econmica das pessoas que participam de tais movimentos. Como uma liderana de um dos movimentos j destacara: (...) alm dos moradores de cortio, todos aqueles que pagam aluguel, que no tm casa prpria e que moram em albergue seriam semteto (Frgoli Jr, 2006 (b): 8).

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Ser sem-teto hoje fazer parte de uma determinada categoria social, contribuir para uma construo identitria que se d no cotidiano da luta pela moradia e, portanto, na militncia dos movimentos dos sem-teto. Diramos ento que o trabalhador sem-teto se define no apenas por ser uma pessoa com uma condio socioeconmico desfavorvel e no possuir uma moradia, mas tambm pela sua ao poltica, por estar participando de um movimento que tem como reivindicao principal a conquista de uma moradia16. Portanto, o conceito que utilizamos aqui de sem-teto deve ser entendido em sua dimenso poltica e econmica, o sem-teto fruto de condies objetivas, mas s pode ser entendido em sua amplitude quando pensamos em sua constituio enquanto agente poltico. Os movimentos sem-teto do centro De acordo com Gohn (2008) a luta popular mais abrangente da dcada de 80 foi a da moradia. A intensificao das organizaes de movimentos pela melhoria da moradia na regio central da cidade de So Paulo se deu em meados da dcada de 80. As pessoas que viviam nos cortios (local onde o aluguel alto e as condies de habitabilidade so pssimas) comearam a se organizar para lutar contra as taxas abusivas de aluguel, Imposto sobre a propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), gua e luz, tambm lutavam contra os despejos e a violncia contra o povo encortiado. Essas lutas eram fortemente apoiadas pelos setores progressistas da Igreja Catlica. Assim se formaram diversos grupos nos diferentes bairros centrais da cidade: Luz, Pari, Liberdade, Canind, Mooca, Belm, Tatuap, etc. Apesar da existncia de divergncias e especificidades entre estes grupos, havia uma grande unidade na luta e foi isto que possibilitou que, em 1991, surgisse a Unificao das Lutas de Cortios (ULC). este movimento que comea a recorrer como forma de luta s ocupaes em prdios vazios, pblicos ou privados, no centro da cidade de So Paulo. A Unificao das Luta de Cortios (ULC) pode ser considerada a matriz dos movimentos dos sem-teto da regio central da cidade de So Paulo, pois em seu ncleo

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Os sem-teto se diferenciam, por exemplo, da populao em situao de rua, a qual, muitas vezes, faz com que as demandas de direito rua prevaleam sobre o direito moradia. Temos assim duas categorias identitrias com distintos posicionamentos com relao ao tema da moradia. Para uma interessante diferenciao entre os sem-teto e a populao em situao de rua, ver Frgoli Jr (2006 (b)). No captulo 3, analisaremos em mais detalhes as diferenas entre a populao em situao de rua e os sem-teto.

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encontravam-se diversas lideranas que atualmente se encontram nestes movimentos (Bloch, 2007). Alguns anos depois, surge o Frum dos Cortios, sendo esse uma dissidncia da Unificao das Lutas de Cortios. Dessa maneira, at meados da dcada de 90 so esses os dois principais movimentos atuantes no centro. O Frum surge no ano de 1993, mas foi somente no ano de 1997 que foi firmado seu estatuto de criao17. A partir deste perodo, vo surgindo grupos dissidentes dos movimentos citados anteriormente e dentre estes esto os dois movimentos do centro estudados por ns: Movimento de Moradia do Centro (MMC) e Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC). Como exemplo de dissidentes da ULC temos os Sem-Teto e Catadores de Papelo da Regio Central de So Paulo e o Movimento por Moradia do Centro (MMC). Ainda de dentro do Moradia do Centro surge o Movimento de Moradia da Regio Central (MMRC). Dos dissidentes do Frum dos Cortios temos a Associao dos Moradores Sem-Teto da Regio Central, Movimento dos Encortiados e o Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC). De acordo com os discursos das lideranas, as principais causas do surgimento de tantos grupos dissidentes se referem s divergncias no carter das ocupaes realizadas pelos movimentos. Por ora, ficaremos com esta justificativa e apenas alertamos ao leitor que quando analisarmos as orientaes poltico-ideolgicas dos diferentes movimentos podem aparecer outras razes para esses constantes rachas. Movimento de Moradia do Centro (MMC) A partir de nossas conversas com lideranas do Moradia do Centro, parece que este movimento j possua um grupo definido ainda mesmo quando pertencia a Unificao da Lutas de Cortios. O Movimento de Moradia do Centro era composto pelos seguintes grupos que lutavam nos cortios nos anos 80: Luz, Pari, Canind, Bom Retiro, Liberdade, Santa Ceclia e Catadores. No ano de 1997, tem-se uma importante ocupao em um prdio na Rua do Carmo, na regio central da cidade de So Paulo, organizado pela Unificao das Lutas deDisponvel em: www.sp.unmp.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id =98:regiaocentral-g-forum-dos-corticos&catid=74:movimentos-da-capital&Itemid=76. Acessado em dezembro de 2009.17

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Cortios (ULC). Os fatos decorrentes desta ocupao foram definitivos para a separao do Moradia do Centro e da ULC. De acordo com Geg, coordenador poltico do Moradia do Centro, as divergncias entre os dois movimentos se davam em torno de questes relativas organizao do movimento e formas de ao, o que perpassa pela temtica das prprias ocupaes. Enquanto o grupo que viria a se consolidar no Moradia do Centro apoiava fortemente as ocupaes em prdios pblicos, por exemplo da CDHU, a Unificao das Lutas de Cortios sempre optava pela realizao de atos, ao invs de ocupaes. Em dezembro de 1997, o Moradia do Centro realizou a ocupao de um prdio vazio pertencente Secretaria Estadual da Cultura, na Rua do Ouvidor e assim declarou a sua independncia e autonomia frente a Unificao das Lutas de Cortio. Esta ocupao durou quase oito anos, mantendo-se at 2005. O seu desfecho foi considerado como uma derrota dos movimentos da regio central. O prdio foi desocupado e at hoje permanece vazio. Nas palavras de Geg era a ocupao smbolo de organizao, pois l existiram vrias experincias de vivncia coletiva. O Moradia do Centro est filiado Unio dos Movimentos de Moradia (UMM) de So Paulo, a entidade me dos movimentos de moradia que reconhecida nacionalmente e internacionalmente. A UMM, por sua vez, est filiada Central dos movimentos Populares (CMP), esta foi criada em 1993. Ambas as instituies s quais o Movimento de Moradia do Centro est filiado foram descritas anteriormente. Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) No ano 2000, tivemos a fundao do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), resultado de um grupo dissidente do Frum dos Cortios. O racha se d, mais uma vez, porque havia o impasse entre dois grupos: os que eram contra e os que eram a favor da realizao de ocupaes de imveis vazios e a sua utilizao como moradia para os sem-teto Solange, uma importante liderana do Sem-Teto do Centro, ao contar como nasceu o movimento destaca:(....)tivemos uma divergncia com a Vernica Kroll, que continua

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no Frum, sobre como fazer a luta. Ela estava no gabinete de Henrique Pacheco18, no queria mais fazer ocupao. A ns nos separamos19. Por outro lado, a justificativa de Vernica era a de que muitas ocupaes se transformavam em depsitos de gente, em grandes cortios com a diferena de que no era preciso pagar aluguel. Eram moradias provisrias e precrias, sempre ameaadas por aes de despejo, com constantes casos de violncia e de controle pelo trfico de drogas (Bloch, 2007: 370), de modo que tudo isso causava muito desgaste nos movimentos. O Frum dos Cortios faz ento uma reavaliao da estratgia de luta e acaba optando pela realizao de ocupaes breves, com durao de poucos dias, para dar visibilidade para a questo da moradia e pressionar o poder pblico (Bloch, 2007: 370). Diferentemente do Moradia do Centro que parecia j ter um grupo definido mesmo quando estava dentro da ULC, o Sem-teto do Centro quando sai do Frum que rene alguns dissidentes e cria novas lideranas, as quais so majoritariamente mulheres, e assim funda-se o Movimento Sem-teto do Centro (MSTC). Uma das primeiras ocupaes do Sem-Teto do Centro aconteceu em agosto de 2000, em um hospital na zona leste. Quando a imprensa chega para fazer uma reportagem e pergunta qual movimento era o responsvel pela aquela ocupao, surge a necessidade do nome. Falamos que ramos um movimento sem-teto do centro da cidade, falvamos de movimento sem-teto, mas no tinha ainda aquela sigla. A ele (o jornalista) colocou no jornal que o MSTC ocupava o hospital. movimento Sem-Teto do Centro porque as famlias vinham, em sua maioria, do centro. E a vila formosa (onde se localizava o hospital ocupado) fica um pouco no centro tambm. Porque quando a gente fala em centro, a gente fala em bairros que tm capacidade de se morar, que tm infra-estrutura, banco, loja, escola, hospital, que tm tudo. Ento hoje existem vrios centros em So Paulo. (Solange, liderana do MSTC. Disponvel em: www.ocupacaoprestesmaia.zip.net)

Henrique Pacheco era na poca deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores (PT). No ano de 2001, o deputado tinha ainda mais trs lideranas dos movimentos dos sem-teto de So Paulo entre seus cargos de confiana. In: Poltico paga R$5,3 mil a lder sem-teto. Folha de so Paulo. Disponvel em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u41664.shtml. Acessado em dezembro de 2009. 19 BREDA, Tadeu. No queremos nada de graa do governo. Entrevista realizada com Solange Carvalho, liderana do MSTC. 2006. Disponvel em: www.ocupacaoprestesmaia.zip.net

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O primeiro boletim do movimento, datado de agosto de 2000, aparece com o nome de Movimento Sem-Teto dos Cortios com a sigla MSTC. J no boletim seguinte, em novembro de 2000, o nome se modifica pra Movimento Sem-teto do Centro, permanecendo com a mesma sigla (o C referindo-se agora ao centro e no mais aos cortios). E este nome que se mantm at hoje. O Sem-Teto do Centro era filiado inicialmente a UMM, porm foi convidado a se retirar desta entidade. Esse fato justificado pelas lideranas do movimento como sendo, mais uma vez, divergncias no que se refere realizao de ocupaes. Assim, em 2003, o Sem-Teto do Centro juntamente com alguns outros movimentos fundam a Frente de Luta por Moradia. Os movimentos sem-teto da periferia: o caso do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) Diferentemente dos movimentos do centro, o Trabalhadores Sem-Teto realiza a ocupao de terrenos (e no prdios) na periferia das cidades da Grande So Paulo e a fazem acampamentos, parecidos com os realizados pelos sem-terra. Alis, O Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) emerge claramente de um esforo de organizao e ampliao da luta travada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST): O MST, movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, um movimento conhecido por todos ns por sua luta rdua por uma vida digna para quem mora no campo. um movimento srio que sabe que a maioria do povo pobre vive na cidade e no nas reas rurais. Com isto, percebeu a necessidade de ajudar os trabalhadores urbanos a se organizarem para lutar tambm por melhores condies de vida. Foi assim que, na marcha nacional que o MST realiza todos os anos, no ano de 1997 este movimento resolveu liberar militantes comprometidos com a transformao da sociedade para criar um movimento urbano. Estes militantes comearam a estudar os problemas que os trabalhadores viviam com mais dificuldade e perceberam que, naquele momento, dois eram os mais preocupantes: Moradia e Trabalho. Estes companheiros comearam ento a trabalhar pela construo de um movimento que juntasse as duas lutas na mesma bandeira e ento nasceu o MTST, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. (Cartilha do Militante, n1, Movimento dos Trabalhadores SemTeto (MTST). So Paulo, 2005. Disponvel em: www.mtst.info)

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As razes para todo este interesse do MST nas lutas urbanas so entendidas de diferentes maneiras, de acordo com as distintas lideranas. Uns dizem que diante da mudana do perfil da populao camponesa, do aumento do xodo rural e da concentrao da vida nas cidades uma alternativa para o fortalecimento da luta do campo pudesse ser realizada com a participao dos marginalizados da cidade. Outros afirmam que a luta pela reforma agrria e a reforma urbana deveriam ser travadas juntamente, da a necessidade da criao de um movimento na cidade que pudesse fortalecer a luta. Ainda tem os que dizem que a proposta de criao do Trabalhadores Sem-Teto foi uma alternativa diante da necessidade de redefinir a linha de ao do MST, na regio do Pontal de Paranapanema, no estado de So Paulo, frente mudana de orientao poltica do governo do estado no enfrentamento do conflito fundirio. Lima (2004: 142) sintetiza isto da seguinte maneira: O MTST aparece, na fala de lideranas, no mbito de uma estratgia maior, que visa a articulao entre movimentos urbanos e o MST e, por vezes, como processo de organizao que apoiaria, de imediato, o fortalecimento do prprio MST 20. Assim, diferentemente dos movimentos dos sem-teto do centro que nascem de uma reivindicao, a saber, a moradia, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto criado por um outro movimento e com o intuito de no lutar somente por moradia, mas sim ter uma plataforma reivindicativa ampliada. O Trabalhadores Sem-Teto deveria ser, portanto, um movimento social urbano em um sentido mais amplo. No entanto, a questo da habitao acaba se tornando o centro das preocupaes e isto usado pelo movimento como estratgia para ir se organizando e ampliado um processo de formao poltica. (...) o MTST no um movimento de moradia, mas um movimento que, a partir da luta pela moradia, se organiza para o enfrentamento das dificuldades que afetam as massas excludas. Assim, nossos objetivos no so corporativos, ainda que saibamos da importncia do interesse corporativo das massas nas transformaes sociais. A luta passa por ele, mas no esgota-se nele.(Texto elaborado pelo MTST para Periferia do Capital de Poder Popular caderno de debates, da Conferncia Poltica, out/2006, citado em Pinheiro, 2007/2008)

Sabe-se que no decorrer dos anos o Trabalhadores Sem-Teto se torna cada vez mais independente do MST, embora ainda permaneam fortes laos entre os dois movimentos. Comentaremos melhor a respeito quando abordarmos a questo da orientao poltico-ideolgica do movimento.

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O Trabalhadores Sem-Teto surgiu em Campinas no ano de 1997 e, depois, foi se consolidando em outras cidades e outros estados. Mas fato que a organizao maior deste movimento est no estado de So Paulo e, principalmente, na regio metropolitana da cidade de So Paulo (Osasco, Guarulhos, So Bernardo do Campo, Itapecerica da Serra, Taboo da Serra e outros). Em fevereiro de 1997, o movimento coordenou uma grande ocupao que foi muito bem sucedida dando origem aos bairros Parque Oziel21 e Jardim Monte Cristo que hoje contam com cerca de 25 mil pessoas. Aps a realizao desta ocupao na cidade de Campinas, os militantes sem-teto deste movimento, com a inteno de aprender melhor a dinmica das lutas para construir um movimento urbano, vo para o campo aprender algumas tticas com o MST. Assim, em 2000, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) se encontrava fortalecido e articulado e, enfim, realizou uma experincia de ocupao na Grande So Paulo que culminou no acampamento Anita Garibaldi, o qual reuniu 3200 famlias em um terreno de 113 hectares na cidade de Guarulhos. Aps muitas lutas e conflitos, o movimento conseguiu negociaes com os governos e hoje o Anita como o acampamento Anita Garibaldi chamado pelos sem-teto - , na verdade, um grande bairro da cidade de Guarulhos. O movimento continua presente entre as famlias da regio, organizando lutas em torno de melhorias de infra-estrutura e oferta de servios naquele bairro. O ltimo Encontro Estadual do Movimento dos Trabalhadores Sem-teto, que aconteceu em maio de 2009, foi realizado no bairro Anita Garibaldi. O Trabalhadores Sem-Teto no est filiado a nenhuma outra instituio ou movimento, diferentemente do que acontece com os movimentos do centro como mencionamos anteriormente. A seguir, elaboramos diagramas que sintetizam as informaes contidas neste captulo a respeito das trajetrias das entidades e dissidncias existentes entre os diferentes movimentos dos sem-teto e sobre as instituies e entidades s quais os movimentos se encontram filiados.

O nome do bairro uma homenagem ao sem-terra Oziel da Silva, um dos 19 mortos em Eldorado dos Carajs (PA), em abril de 1996, durante confronto com a polcia militar.

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Trajetria das EntidadesMovimento de Moradia do Centro (MMC) Unificao da luta dos cortios (ULC) Frum dos Cortios Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC)

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST)

Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST)

Unio Nacional por Moradia Popular (UNMP)

Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM)

Central nica dos Trabalhadores (CUT) Articulao Nacional dos Movimentos Populares e Sindical (ANAMPOS) Central de Movimentos Populares (CMP)

Movimentos estudados

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Filiaes das EntidadesUnio Nacional por Moradia Popular (UNMP) Unio de Movimento de Moradia de So Paulo (UMMSP) Movimento de Moradia do Centro (MMC) Central de Movimentos Populares (CMP)

Frente de Luta por Moradia (FLM) Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC)

Frum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) Central de Movimento s Populares (CMP) Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM) Confederao Nacional da Associaes de Moradores (CONAM) Unio Nacional por Moradia Popular (UNMP)

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Captulo 2 Os movimentos dos sem-teto do centro e da periferia 2.1 A segregao na cidade: centro e periferiaA segregao scio-espacial entendida enquanto diferenciao social e espacial determinada por nveis de renda e espacialidades residenciais pode ser bem exemplificada pelo seguinte quadro, o qual por sua vez grande conhecido dos brasileiros: de um lado, uma favela repleta de moradias precrias e sem infra-estrutura, do outro lado, um condomnio muito luxuoso com toda infra-estrutura possvel e tecnologias de ponta, inclusive no que se refere ao quesito segurana. Na favela, provavelmente estaro as empregadas domsticas, no condomnio fechado, suas patroas. De acordo com Castells (1975), a distribuio das residncias no espao segue a mesma lgica da distribuio de produtos entre os diferentes agentes pertencentes a diferentes classes sociais. Assim, a discusso compreende dois conceitos que se encontram interligados: o de estratificao e segregao urbana. O conceito de estratificao urbana ao se relacionar ao sistema de estratificao social, fornece a dimenso de um arranjo hierrquico e uma diviso desigual do poder, da riqueza e do prprio espao urbano entre os agentes. J a segregao urbana a expresso espacial da distncia social existente entre os agentes das diferentes classes sociais. Segundo Flvio Villaa (1998: 142), a (...) segregao um processo segundo o qual diferentes classes ou camadas sociais tendem a se concentrar cada vez mais em diferentes regies gerais ou conjuntos de bairros da metrpole. Posteriormente, este autor demonstra que a distncia fsica entre os bairros dominados por diferentes classes no relevante para o conceito de segregao. Isso porque muito comum termos lado a lado, em uma mesma regio da cidade, um condomnio de alto padro em que seus moradores possuem alta renda e h anos saram dos centros das cidades e, ao lado, a existncia de favelas ou bairros perifricos pobres (sem infra-estrutura, sem segurana e sem acesso a servios de sade e educao, por exemplo). Portanto, a inexistncia da distncia fsica entre espaos to diferenciados no significa que a segregao tenha acabado e que tenha ocorrido uma democratizao na distribuio espacial da cidade. Neste sentido, (...) a seduo fcil de uma teoria de 33

convivncia harmoniosa e divertida negada, entretanto, pela geografia socioeconmica (Rolnik, 2003: 45). Para Villaa a segregao deve ser considerada como um processo necessrio para a manuteno da dominao atravs do espao urbano de uma classe sobre a outra. Isso porque se h uma concentrao espacial das classes dominantes, o poder pblico pode, por exemplo, viabilizar para esta rea, com mais facilidade, uma sria de aparelhos que melhorem a qualidade de vida dessas pessoas. O exemplo citado por Villaa o do quadrante sudoeste da cidade de So Paulo. Apesar de a populao deste quadrante ser minoritria em relao ao total da cidade, ela possui um poder poltico maior e padres urbanos e ambientais muito melhores do que a maior parte da populao da capital paulista. Nesta regio h um bom sistema virio, linhas de metr, ZER (Zonas Exclusivamente Residncias) e a predominncia de reas verdes e arborizadas viabilizando climas mais amenos22. Quando os problemas habitacionais passam a se intensificar nas grandes cidades brasileiras, o Estado, atravs dos inmeros governos, tenta resolv-los com a expanso horizontal ilimitada da cidade, possibilitando aos trabalhadores pobres a compra, mesmo com um salrio baixo, de terrenos e a construo de suas casas na periferia. No entanto, esta expanso horizontal e periferizao das cidades reforaram a segregao urbana. Em So Paulo, por exemplo: A poltica habitacional praticada pela Cohab durante as dcadas de 70 e 80 foi a construo de imensos conjuntos uniformes e exclusivamente residenciais nas extremas periferias, marcando sua posio limtrofe em relao cidade existente e segregando de forma explcita e violenta a populao ali residente. (...) no extremo leste da cidade, guetos habitacionais sem variedade social ou funcional acabaram funcionando como ponta de lana de uma urbanizao feita de loteamentos irregulares e favelas, para aqueles que no tiveram a sorte de residir nos conjuntos (Rolnik, 2003: 50).

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Tivemos contato com essas idias de Villaa em uma palestra conferida pelo autor na ocasio do Seminrio Vulnerabilidade social e dinmica intra-urbana: dimenses, conseqncias e primeiros resultados da pesquisa domiciliar, promovido pelo Ncleo de Estudos de Populao (NEPO). 27 e 28 de maro de 2008, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, So Paulo. A conferncia de Villaa foi entitulada de A segregao: processo necessrio dominao atravs do espao urbano.

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A segregao espacial reproduzida pela especulao imobiliria dos capitalistas, especulao que se d tanto em terrenos perifricos quanto em prdios centrais. No caso da cidade de So Paulo isso visvel e so justamente esses prdios que se encontram vazios, espera de uma valorizao, que a partir da dcada de 90 comearam a ser ocupados pelos movimentos dos sem-teto. Castells (1975) fala da deteriorao dos prdios das regies centrais das cidades e da sua dupla utilidade para os proprietrios. A primeira utilidade seria que o preo do terreno maior que o preo do imvel, aquele valor aumenta por causa da escassez crescente da localizao central. Logo para o capitalista no importa a condio do imvel, mas sim a propriedade do terreno. A outra utilidade se d em um contexto em que os trabalhadores urbanos mais pobres tm uma escolha limitada no que se refere habitao, no tm condies de exigir qualidade, da que o proprietrio tem a certeza de encontrar sempre muitos locatrios (exrcito de reserva em relao moradia). A estratgia do proprietrio simples, ele espera uma supervalorizao no seu terreno para vend-lo e enquanto isso vai garantindo uma renda mensal a partir do aluguel pago pelos trabalhadores pobres. Este tipo de ocupao e de gesto da moradia acelera o processo de deteriorao fsica dos imveis. As famlias de classe mdia e alta deixam a regio central e vo para o subrbio, para os condomnios, to em moda atualmente. Cabendo ento para a populao de mais baixa renda viver no centro da cidade ou na periferia pobre. A partir disto, tal populao possui duas opes dentro das limitaes de uma equao complexa, em que as variveis so dinheiro (ou a falta de), transporte, tempo, qualidade da moradia, dentre outros. Em toda parte do Terceiro Mundo a escolha da moradia um clculo complicado de consideraes ambguas. Como a frase famosa do arquiteto John Turner, Moradia um verbo. Os pobres urbanos tm de resolver uma equao complexa ao tentar otimizar o custo habitacional, a garantia da posse, a qualidade do abrigo, a distncia do trabalho e, por vezes, a prpria segurana. Para alguns, como muitos moradores de rua, a localizao prxima do trabalho digamos, em uma feira livre ou estao de trem ainda mais importante do que o teto. Para outros, o terreno gratuito, ou quase isso, compensa viagens picas da periferia para o trabalho no centro. E para

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todos a pior situao um local ruim e caro sem servios pblicos nem garantia de posse (Davis, 2006: 39). Sendo assim, uma das opes viver na periferia da cidade (conjuntos habitacionais populares, favelas, casas construdas em regime de mutiro, etc) onde os terrenos so mais baratos e livres, ao menos em parte, da especulao imobiliria. Porm, em tal regio, a infra-estrutura urbana de pssima qualidade, alm do que o caminho casa / local de trabalho muito distante e o transporte caro. A outra possibilidade de localidade de moradia da classe trabalhadora de baixa renda a regio central. Aqui, apesar de a casa estar mais perto do trabalho, o preo do aluguel de um quarto minsculo muito caro e a deteriorao fsica dos prdios centrais faz com que a qualidade habitacional seja baixssima, vide o exemplo dos cortios. Percebemos assim que apesar de encontrarmos na periferia bairros pobres e, ainda, os bairros dos pobres, no centro das grandes metrpoles tambm h trabalhadores pobres e populaes em situao de moradia precria. Geralmente, a populao que no possui moradia digna tambm tem dificuldade em se alimentar bem, alm de estar desprovida de sade e educao adequada, entre outras carncias. Rolnik (2003) coloca esta discusso em outros termos. Ela defende a idia da existncia de uma sobreposio das diversas dimenses da excluso que incidem sobre a mesma populao. A autora sustenta que no decorrer dos ltimos anos essa sobreposio das diferentes faces da excluso s aumenta e que as possibilidades reais de superao dessas vulnerabilidades so extremamente limitadas. Na ltima dcada acelerou-se o motor da excluso. Hoje so 2 milhes os favelados na cidade (de So Paulo), representando um recorde histrico de 20% da populao; mais de 1 milho de pessoas na faixa etria dos 18 anos aos 24 anos est sem estudo e sem trabalho na cidade (Rolnik, 2003: 67). Para evitarmos o conceito problemtico de excluso, preferimos falar aqui de uma sobreposio de carncias ou vulnerabilidades23. A partir da nossa observao de campo realizada na regio central da cidade de So Paulo, podemos dizer que a sobreposio de carncias no uma particularidade da23

Apontaremos os problemas do conceito de excluso social no captulo 3, momento em que apresentaremos os sem-teto como membro da massa marginal e no como excludos do sistema capitalista.

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populao perifrica. A questo no se refere periferia ou ao centro, mas sim pobreza. Isto ajuda a desmistificar a idia de que os trabalhadores pobres que vivem no centro esto bem. Eles no esto. Eles possuem baixa escolaridade, precariedade das condies habitacionais, alta mortalidade infantil, altos ndices de homicdios, etc. Temos que ter claro que os pobres sempre passam por privaes e se encontram muitas vezes vulnerveis no porque moram aqui ou ali, mas porque pertencem classe trabalhadora e mais especificamente a uma frao dessa classe que se encontra na pobreza ou extrema pobreza. E se essas fraes de classe so miserveis, possibilitando aos capitalistas maior valorizao de capital, temos aqui simplesmente o funcionamento da lei geral da acumulao de capital detectada por Marx (Marx, 1983). Encontramos trabalhadores pobres, que no esto assegurados de seus direitos sociais (no nosso caso, a moradia), tanto na regio perifrica quanto na central da cidade, no entanto, existem diferenas importantes e especificidades ao se lutar pelo solo urbano no territrio do fil mignon imobilirio (regio central) e na regio perifrica da cidade. Estamos querendo dizer que se, por um lado, no faz sentido se falar de centro versus periferia, entendendo o centro como um territrio rico e onde as pessoas possuem boa qualidade de vida e moradia digna, e a periferia, no sentido de ser um local ruim, com ms condies de vida; por outro lado, faz sentido sim falar em segregao urbana e ainda diferenciar a luta pela moradia no centro e na periferia da cidade.

2.2 Os movimentos dos sem-teto no territrio: a Grande So PauloPo