Dissertação. Roberta Sampaio Guimarães..docx

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1 A MORADIA COMO PATRIMÔNIO CULTURAL discursos oficiais e re- apropriações locais Roberta Sampaio Guimarães Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Sociologia e Antropologia / Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia). Orientador: Prof. José Reginaldo Santos Gonçalves

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

A MORADIA COMO PATRIMNIO CULTURAL

discursos oficiais e re-apropriaes locais

Roberta Sampaio Guimares

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Sociologia e Antropologia / Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Sociologia (com concentrao em Antropologia).

Orientador: Prof. Jos Reginaldo Santos Gonalves

Rio de Janeiro

Outubro de 2004

10A MORADIA COMO PATRIMNIO CULTURAL

discursos oficiais e re-apropriaes locais

Roberta Sampaio Guimares

Orientador: Prof. Jos Reginaldo Santos Gonalves

Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia / Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Sociologia (com concentrao em Antropologia).

Aprovada por:

Presidente, Prof. Jos Reginaldo Santos Gonalves

Prof. Regina Abreu (UNIRIO PPGMS)

Prof. Beatriz Maria Alasia de Heredia (UFRJ PPGSA)

Rio de Janeiro

Outubro de 2004

Guimares, Roberta Sampaio.

A moradia como patrimnio cultural: discursos oficiais e re-apropriaes locais/ Roberta Sampaio Guimares. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, PPGSA,2004.

108 f. il.; 21 X 29,7 cm.

OrientaodoProf.JosReginaldoSantos

Gonalves. Dissertao, UFRJ, IFCS, PPGSA, 2004.

RESUMO

A MORADIA COMO PATRIMNIO CULTURAL

discursos oficiais e re-apropriaes locais

Roberta Sampaio Guimares

Orientador: Prof. Jos Reginaldo Santos Gonalves

Resumo da dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia / Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Sociologia (com concentrao em Antropologia).

Essa dissertao busca compreender que valores sociais a transformao de moradias urbanas em patrimnios culturais movimenta atravs da anlise dos mltiplos usos discursivos da categoria patrimnio entre os diversos segmentos envolvidos com o tema. Para tanto, aborda a construo poltica e conceitual desses smbolos de memria e identidade pelos especialistas dos rgos pblicos patrimoniais e a re-apropriao do discurso desses especialistas pelos segmentos que atuam localizadamente nas cidades, nos bairros e nas vizinhanas.

Palavras-chaves: patrimnio; patrimnio cultural; vizinhana; moradia; cidade.

Rio de Janeiro

Outubro de 2004

ABSTRACT

THE HOME AS A CULTURAL PATRIMONY

official speeches and local re-appropriations

Roberta Sampaio Guimares

Orientador: Prof. Jos Reginaldo Santos Gonalves

Abstract da dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia / Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Sociologia (com concentrao em Antropologia).

This dissertation try to understand what socials values the transformation of urban homes in cultural patrimonies movies through the analysis of the multiple speech uses of the category patrimony between the different social segments involved with the subject. For that, approach the political and conceptual construction of these symbols of memory and identity for the specialists of the patrimonial public organs and the re-appropriation of their speeches for the segments who acting locally in the cities, districts and neighborhoods.

Key-words: patrimony; cultural patrimony; neighborhood; home; city.

Rio de Janeiro

Outubro de 2004

AGRADECIMENTOS

Durante a elaborao dessa dissertao de mestrado, pude contar com o apoio de diversas pessoas e instituies. Gostaria aqui de agradecer a todos os que tornaram a minha pesquisa vivel e tambm prazerosa.

Ao Prof. Jos Reginaldo Santos Gonalves por todo o apoio intelectual, pelo bom humor e pela pacincia que teve comigo, marinheira de primeira viagem nas Cincias Sociais. Suas observaes durante o processo de pesquisa tornaram-na sem dvida nenhuma mais desafiadora e interessante.

Profa. Ana Maria Galano por ter me incentivado a ingressar nas Cincias Sociais e por ter ampliado o meu olhar social e fotogrfico. Sua presena tambm est em cada pgina dessa dissertao. Nunca esquecerei a generosidade e a alegria com que me orientou no incio da minha jornada pelo mundo da pesquisa.

Profa. Regina Abreu por todos os comentrios feitos ainda na defesa do meu projeto de pesquisa, que contriburam muito para o seu encaminhamento emprico e terico. Profa. Beatriz Heredia e ao Prof. John Comerford pelo oferecimento do curso Comunidade, localidade, nao, de fundamental importncia na produo dessa dissertao, e tambm pelo apoio pessoal.

Aos Profs. Glucia Villas Boas, Gian Mario Giuliani, Maria Laura Cavalcanti e Maria Ligia Barbosa pelo apoio pessoal e acadmico oferecido em diversos momentos da minha passagem pelo curso de mestrado do PPGSA. s secretrias do PPGSA Cludia, Denise e Clara, pela ajuda na soluo das sempre complicadas questes burocrticas.

Aos amigos Elizete Igncio, Mrcio Vilar, Rodrigo Folhes, Daniel Granada, Rodrigo Rosistolato e Maurcio Sianes pela generosa troca de experincia de pesquisa e pelo divertido companheirismo. Aos amigos Madalena Romeo, Juliana Loureiro, Priscila Barreto, Natlia Gaspar, Luiza Pitanga e Eduardo Menezes por todo tipo de incentivo que me ofereceram e por participarem de diversas maneiras na minha vida. Ao amigo Stefano Paulino, prematuramente afastado de nossa convivncia, pelas longas

discusses tericas e mundanas que tivemos. Um amigo extraordinrio. amiga Fabiene Gama pela incomparvel e exemplar alegria com que se envolve com tudo. E tambm pelo apoio que me ofereceu na documentao fotogrfica dessa dissertao. So delas algumas das fotos que compem o terceiro captulo.

Ao Luzimar Pereira por acompanhar com interesse e carinho cada momento da realizao dessa dissertao. Suas consideraes tambm esto presentes em muitas dessas pginas.

Aos meus pais, Humberto e Silvia, e ao meu irmo, Rodrigo, por me incentivarem sempre.

Aos moradores da Vila Imperial pela simpatia com que me receberam em suas casas e colaboraram com a pesquisa. funcionria do Arquivo Geral do SPHAN, Zez, por ter viabilizado o andamento da minha pesquisa. presidente da Associao de Moradores de Botafogo, Regina Chiaradia, por ter disponibilizado seu arquivo pessoal de reportagens sobre as APACs do Rio de Janeiro e por ter me concedido uma entrevista. Ao historiador Milton Teixeira tambm por ter me concedido uma entrevista.

CAPES por ter me concedido uma bolsa de estudo e, conseqentemente, viabilizado financeiramente esta pesquisa.

Dedico esta dissertao memria de meu pai

Humberto S. Guimares

NDICE

Introduo - De moradia a patrimnio cultural .......................................................... 10

Captulo 1 - O primeiro tombamento ........................................................................... 18

1.1.A proposta de um bem histrico e autntico .............................................. 20

1.2.Os desafios de uma viso integradora ......................................................... 23

1.3.O patrimnio e a representao da nao ................................................... 32

1.4.Um estudo sociolgico sobre a comunidade .............................................. 36

Captulo 2 Uma disputa pelos lugares da cidade ...................................................... 45

2.1. O patrimnio e a cidade: primeiros passos ....................................................... 46

2.2. As atuais APACs e seus conflitos ..................................................................... 51

Captulo 3 Os moradores: solicitantes e atingidos ................................................... 67

3.1. Os solicitantes: uma APAC para um bairro ameaado ..................................... 68

3.2. Os atingidos: Diga no s APACs imorais e tardias! .................................... 75

3.3. O caso da Vila Imperial .................................................................................... 80

Consideraes finais .................................................................................................. 102

Referncias bibliogrficas ......................................................................................... 105

Anexo - Tabela das reas de Proteo do Ambiente Cultural ................................... 107

INTRODUO

DE MORADIA A PATRIMNIO CULTURAL

Em 2001, os jornais dirios da cidade do Rio de Janeiro comearam a cobrir exaustivamente os debates em torno da criao de algumas reas de Proteo do Ambiente Cultural - APACs. Embora as primeiras APACs datassem da dcada de 1980, foi com a decretao de cinco recente APACs que se conformou um espao pblico conflituoso envolvendo moradores, empresrios da construo civil, gestores pblicos e especialistas em geral. O surpreendente interesse pelos patrimnios culturais da cidade foi ocasionado principalmente pelo alvo dos processos de preservao: prdios e casas residenciais de propriedade das camadas mdias e altas da populao, localizados em pontos econmica e simbolicamente valorizados da Zona Sul carioca.

De acordo com matria do jornal O Globo de 25/07/2001, o movimento preservacionista que deu origem s APACs dos bairros do Leblon, de Laranjeiras, do Jardim Botnico, de Botafogo e de Ipanema teve incio em 1999, quando o ento prefeito Luiz Paulo Conde promulgou a lei dos apart-hotis, que permitia a construo de apartamentos de 30 m com apenas uma vaga de garagem para cada duas unidades. Segundo o relato da presidente da Associao de Moradores e Amigos deBotafogo AMAB, Regina Chiaradia1, essas novas construes visavam a utilizao

dos lucrativos terrenos ocupados pelas casas antigas e pelos prdios baixos da Zona Sul, o que provocaria, em sua opinio e na dos demais moradores que mobilizaram o movimento de preservao das moradias, a descaracterizao dos bairros e a perda de sua qualidade de vida.

Durante a polmica sobre a construo dos apart-hotis, foi eleito o prefeito Csar Maia, que havia se comprometido durante a campanha eleitoral a atender as reivindicaes dos moradores favorveis preservao dos imveis dos bairros. Logo no comeo de seu mandato, em 2001, ele divulgou a possibilidade da sociedade civil recorrer ao Departamento Geral do Patrimnio Cultural - DGPC contra os processos japrovados de demolies de casas e prdios.

1 Em entrevista concedida a mim em fevereiro de 2003.

Alm dessa medida de preservao, o prefeito tambm decretou o primeiro ambiente cultural de sua gesto: a APAC do Leblon, contendo 218 imveis entre tombados, preservados e tutelados. Essa iniciativa incentivou as associaes de bairro de diversas regies da cidade a procurarem a prefeitura com pedidos de preservao de moradias, fazendo com que, em apenas dois anos, o DGPC iniciasse a discusso e a avaliao da criao de mais de dez APACs, entre elas as do Humait, da Fonte da Saudade, do Corredor Cultural abrangendo o Catete, o Flamengo e a Glria, da Gvea, da Tijuca, do Morro da Mangueira, de Copacabana, do Graja e de Rocha Miranda.

No entanto, as primeiras APACs decretadas durante o governo Csar Maia receberam tantas crticas que o processo de criao de novas reas foi interrompido pela prefeitura. Os questionamentos vieram dos mais variados setores da sociedade e abarcaram diversos aspectos da preservao: os valores enunciados como justificativa para a preservao das casas e prdios de apartamentos; os critrios adotados para a seleo dos imveis; a decretao das APACs em vez de sua aprovao pela Cmara dos Vereadores; o atrito da ao patrimonial com as legislaes urbansticas dos bairros que regulam os gabaritos das ruas e o uso do solo; e a interferncia sob o direito de propriedade dos imveis. Ou seja, a criao de tais patrimnios culturais ps em ebulio diferentes concepes sobre o que ser de ou pertencer a um determinado bairro, que ponto de vista cultural, histrico ou artstico deveria ser preservado e que legislao e direito de propriedade deveria prevalecer sobre os bens.

O patrimnio como categoria de pensamento

Para que determinadas casas e prdios sejam enunciados como patrimnios culturais e representem um passado histrico ou os modos de vida de uma determinada coletividade, determinadas operaes lingsticas e prticas sociais precisam ser acionadas. Nos mais diferentes contextos, o termo patrimnio agregado a outros, como cultural, arquitetnico, histrico, financeiro, familiar, gentico, que so utilizados para definir a idia de propriedade, de posse de algo. A idia de patrimnio se encontra, dessa forma, diretamente relacionada com a de colecionamento, ou seja, com a prtica de ajuntar coisas ou experincias em torno de pessoas, grupos, regies, naes ou sociedades.

Muitos pesquisadores j observaram nas mais diversas culturas e sociedades algum tipo de colecionamento, demonstrando que a prtica universal. No entanto, como aponta Jos Reginaldo Gonalves (2003), uma caracterstica diferente foi encontrada nas colees das modernas sociedades ocidentais: nelas a acumulao de um grupo de objetos feita com o nico propsito de guardar, de reter, enquanto em outras culturas os objetos so colecionados para serem distribudos, trocados ou destrudos. Esse aspecto da subjetividade do colecionador ocidental identificado por James Clifford (1994) como o produtor de uma autenticidade possessiva, que faz o colecionador considerar que pode construir uma identidade, uma diferenciao em relao ao outro, atravs do agrupamento e classificao de objetos como selos, obras de arte, receitas culinrias, tcnicas de pintura ou, no caso aqui estudado, imveis residenciais.

Mas sendo as colees formadas por uma seleo sempre arbitrria de objetos, antroplogos, socilogos, historiadores e filsofos vm buscando compreender qual o processo de sua construo social. Basicamente, seus estudos se dividem em dois eixos de anlise: a dos mecanismos lingsticos que operam a transformao dos objetos em representaes de valores abstratos e a das prticas institucionais e polticas de apropriao e classificao desses objetos.

Krzystof Pomian, a partir do exame da natureza simblica das colees, conclui que a linguagem que possibilita que objetos representem experincias distantes no tempo e no espao. Ou seja, para que um simples objeto seja transformado em um smbolo de identidade devem ser acionados alguns mecanismos sociais que estruturem suas formas de representao e percepo. Pomian denomina de invisvel tudo aquilo que tais objetos tm a capacidade de evocar atravs de sua presena ou visibilidade: acontecimentos histricos, deuses, lugares distantes ou modos de vida. Essa oposio entre o invisvel e o visvel , para o filsofo, a que existe entre aquilo de que se fala e aquilo que se apercebe, entre o universo do discurso e o mundo da viso (1982: 68). Um conjunto de casas classificadas como patrimnio pode assim representar o passado de uma cidade ou boas relaes de vizinhana.

No entanto, o poder de evocao desses objetos ser sempre limitado, como adverte

Susan Stewart, visto que eles nunca alcanaro uma representao completa daquilo que

pretendem mediar. Para ela, justamente o fato de o objeto ser uma codificao pela linguagem de uma experincia distanciada - um sistema onde a significao opera no de objeto para objeto, mas alm dessa relao, metonimicamente, de objeto para evento/experincia (1984: 136) - que o torna capaz de evocar uma lembrana de um tempo ou lugar invisvel, sem, no entanto, jamais recuper-lo por inteiro.

A coleo, por ser uma categoria de pensamento, se encontra inserida em um sistema relativo de valorao de objetos que varia de acordo com as transformaes intelectuais e institucionais da sociedade. E como todo sistema de representao precisa ser socialmente compartilhado para ser eficaz, poderosas prticas institucionais e polticas so postas em movimento para se apropriarem de objetos e transform-los em smbolos de identidades coletivas. Clifford (1994) aponta que s possvel obter um distanciamento dos processos arbitrrios de classificao das colees e das relaes de poder que legitimam a apropriao dos objetos em nome de critrios artsticos ou cientficos com a sua constante contextualizao scio-cultural. Para ele, uma coleo ideal aquela que expe os processos histricos, econmicos e polticos de sua produo, mostrando ao espectador que, nas representaes, as categorias belo, cultural e autntico so sempre variveis.

No caso das prticas que envolvem a categoria patrimnio, Gonalves tambm demonstra que recursos narrativos especficos so utilizados para acionar determinadas concepes de tempo e cultura e sustentar a apropriao de objetos e sua classificao em colees. Segundo o autor, os idelogos do patrimnio se utilizam de tticas discursivas de representao para valorizar os aspectos entendidos como tradicionais e autnticos das coletividades, excluindo de seus discursos tudo o que hbrido ou inautntico. Para ele, a tentativa de permanncia cultural reflete uma concepo de temporalidade na qual a histria vista como um processo incontrolvel de destruio (1999: 25), sendo que nessa retrica do discurso preservacionista a perda reconhecida como um fato histrico exterior e no como um princpio estruturador interno ao prprio discurso, residindo justamente a a sua eficcia simblica e social (Gonalves,1996).

De moradia a patrimnio cultural

Para que a moradia considerada at ento comum fosse enunciada como um patrimnio cultural, um lento e nada consensual processo de disputas conceituais se desenvolveu no Brasil. Foi somente no final da dcada de 1970 que bens considerados sem extraordinrios valores histricos ou artsticos comearam a ser valorizados pelosrgos dedicados preservao da identidade e da memria nacionais. Uma das principais foras impulsionadoras dessa inflexo foi a emergncia em mbito mundial do conceito antropolgico de cultura.

A percepo da noo de cultura como fundamental na constituio de um patrimnio nacional comeou a se delinear no fim da Segunda Guerra Mundial, quando a Unesco foi criada para tentar diminuir os conflitos entre as naes atravs da promoo do dilogo entre suas mltiplas culturas. Na busca pela valorizao da diversidade cultural, o patrimnio passou a ser compreendido como algo que deveria representar, alm das grandes obras de cada nao, as suas mais variadas manifestaes humanas. A partir desse momento, duas concepes se afirmaram: que uma nao no culturalmente homognea, mas constituda de culturas e sub-culturas; e que a noo de cultura congrega bens materiais e tambm imateriais, como hbitos, costumes e tradies (Abreu, 2003).

No Brasil, alguns contornos desse novo conceito de cultura e patrimnio j estavam presentes na proposta de criao do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional - SPHAN apresentada por Mrio de Andrade ao ministro da Educao Gustavo Capanema2 em 1936. No entanto, os critrios de classificao dos bens patrimoniais brasileiros defendidos pelo poeta modernista foram preteridos pela concepo de nao de Rodrigo Melo Franco de Andrade, primeiro a assumir, em 1937, a direo do SPHAN. Em seu discurso, a nao era narrada como uma totalidade cultural que devia ser representada por bens histricos e artsticos que valorizassem suasdimenses singulares e tradicionais.

Foi somente com a entrada de Alosio Magalhes na direo do SPHAN, em 1979, que a nao comeou a ser percebida e gradualmente representada como heterognea, e opatrimnio como eminentemente cultural. Na poltica de preservao que ento

2 Sobre a participao de Mrio de Andrade na elaborao do projeto de lei que criou o SPHAN, verChagas, 2003.

despontava, a sociedade brasileira passou a ser percebida como composta por uma grande diversidade cultural que deve ser protegida da homogeneizao que os processos de desenvolvimento tecnolgicos e econmicos poderiam gerar. No projeto de poltica cultural idealizado por Magalhes, os bens culturais eram os portadores da identidade nacional e de sua autenticidade, devendo ser utilizados como instrumentos para o desenvolvimento autnomo do pas e contra a massificao cultural provocada pelo consumo dos produtos industrializados do primeiro mundo. Como aponta Gonalves, diferentemente de Rodrigo, Alosio v a fonte dessa autenticidade no numa tradio concebida de maneira globalizante, mas na heterogeneidade cultural, o que equivale a uma concepo pluralista da tradio (1996: 108).

Com a mudana de percepo do que deveria ser valorizado, transformaram-se tambm os alvos das polticas de preservao. Na busca pelas diversas manifestaes culturais, o SPHAN ampliou o seu campo de atuao para novas reas, buscando a identificao da cultura popular, do cotidiano das comunidades e das formas autnticas de ser brasileiro. Alm de igrejas catlicas, fortes militares, bustos de heris nacionais e edificaes de estilos arquitetnicos consagrados, uma srie de outros bens materiais e tambm imateriais comeou a ser inventariado e arrolado como patrimnio nacional.

E nesse processo, antroplogos e socilogos passaram a ser considerados especialistas fundamentais para operar a traduo das diversas linguagens culturais e para certificar a autenticidade das mltiplas identidades brasileiras. Dentro desse novo quadro social, poltico e conceitual, a preservao da habitao comum foi percebida como relevante culturalmente. Diferente dos monumentos histricos e artsticos, sua preservao no se baseava na valorizao de um passado entendido como tradicional e homogneo, nem em caractersticas arquitetnicas excepcionais. Mesmo sendo a moradia um bem material, sua importncia foi atribuda aos variados modos de vida que ela era capaz de representar, ou seja, ao seu valor imaterial de testemunho de uma poca e de sua comunidade.

a partir desse conjunto de operaes sociais que a moradia transformada em patrimnio cultural e passa a representar metonimicamente um modo de vida valorizado por seus aspectos harmnicos e coerentes. Discursivamente construda como objeto-smbolo de memria e identidade, a moradia passa a ser alvo de medidas de

preservao para que no sejam destrudos ou descaracterizados vestgios materiais

de uma poca, determinadas relaes de vizinhana ou tradies locais.

No entanto, so muitos os pontos de conflito que esta poltica patrimonial gera, como pode ser observado no conjunto de termos de valores opostos utilizados pelos diversos atores sociais envolvidos com as APACs para se referirem aos mesmos aspectos da preservao: uns consideram as casas antigas e outros, velhas; prdios altos so chamados de espiges ou de modernos; para uns a cidade est sendo preservada e protegida do adensamento e para outros engessada e impedida de crescimento; a vizinhana dos bairros est tendo suas caractersticas mantidas ou sendo elitizadas; e a utilizao da lei de preservao entendia como um instrumento dos moradores contra a especulao imobiliria ou como uma decretao imposta pelo prefeito.

Ou seja, se por um lado esse tipo de preservao de bem cultural proposto pelos especialistas do patrimnio imbudo de uma concepo democrtica e pluralista de sociedade e nao, por outro, ele catalisa uma guerra de representaes e lugares, interferindo diretamente na configurao de espaos fsicos e simblicos da cidade e nos direitos privados dos proprietrios das moradias.

***

A proposta dessa dissertao de mestrado analisar os diversos usos da categoria patrimnio pelos especialistas dos rgos pblicos de preservao e sua re-apropriao pelos moradores das localidades. Para compreender as disputas em torno da definio da categoria patrimnio nos rgos pblicos brasileiros, abordo no primeiro captulo as principais concepes que guiaram a atuao dos especialistas do SPHAN na abertura do primeiro processo de tombamento federal de uma habitao coletiva: a Avenida Modlo, localizada no Centro da cidade do Rio de Janeiro.

No segundo captulo, apresento um breve mapeamento das transformaes da categoria patrimnio na legislao de preservao ambiental e cultural da cidade do Rio de Janeiro, as imbricaes dessa legislao com a urbanstica e algumas das distintas utilizaes da categoria nos discursos dos especialistas da prefeitura e dos moradores da cidade. Dispenso maior ateno criao das recentes APACs e arena pblica de

debate por elas conformada, atravs da anlise das reportagens que foram publicadas nos jornais dirios e que deram visibilidade aos diferentes atores sociais envolvidos na questo.

No terceiro e ltimo captulo, apresento as percepes de moradores atingidos e solicitantes sobre a decretao das APACs. Os termos atingidos e solicitantes, que diferenciam qualitativamente esses moradores, foram utilizados por mim para acentuar formas distintas de vivenciar a preservao de uma moradia: no primeiro caso, os proprietrios s so comunicados da preservao de seu imvel pelo rgo responsvel no fim do processo, ou seja, eles no participam da deciso; e no segundo, orgo pblico procurado pelos moradores para avaliar a possibilidade de seu imvel ser includo na lista de bens tombados e preservados pela APAC. Analiso nesse captulo como as concepes de patrimnio dos diferentes moradores operacionalizam valores que perpassam por todos os domnios de sua vida: moral, esttico, econmico, jurdico, fisiolgico etc., se apresentando como um fato social total (Mauss, s/d).

Por fim, considero importante informar que sou carioca e que como moradora da cidade do Rio de Janeiro vivenciei muitas transformaes de sua paisagem, transformaes essas que, com o passar do tempo, foram por mim naturalizadas. Perceber a cidade como um processo de construo e classificao constante fez com que me interessasse cada vez mais pelas disputas fsicas e simblicas pelo controle de seus territrios. E se nesse universo to rico de possibilidades de pesquisa escolhi a questo do patrimnio como objeto de anlise foi porque nela percebi claramente a produo de tenses sociais que impeliam seus habitantes a expressarem valores e sensibilidades sobre seu local de moradia.

CAPTULO 1

O PRIMEIRO TOMBAMENTO

Sobrado, servido e casas da Avenida Modlo

Fotos de Edgar Jacintho da Silva / 1983. IPHAN/DID/Arquivo Noronha dos Santos.

A Avenida Modlo foi o primeiro tombamento realizado pelo SPHAN de uma habitao coletiva3. Localizada na Rua Regente Feij, centro da cidade do Rio de Janeiro, a avenida composta por um sobrado e oito casas trreas. O acesso Avenida permitido pelo porto do sobrado, que leva servido e s casas, dispostas de formacontgua do lado direito do lote, ocupando-o at o fim de seus limites territoriais. No

3 As moradias que so nomeadas corriqueiramente como coletivas nos estudos patrimoniais so as que se opem noo de habitao isolada ou unifamiliar. Essa classificao utilizada para se referir a inmeras tipologias: cortios, estalagens, avenidas, vilas, hotis, casas de penso, prdios de apartamentos etc.

lado esquerdo do lote, se encontram pequenas reas utilizadas como depsito ou lavanderia, que so definidas por paredes laterais e pertencem a cada uma das casas, como uma extenso de seus limites frontais.

O Processo de Tombamento da Avenida Modlo foi aberto pelo SPHAN em abril de

1983, com o nmero 1.085-T-83, e foi encerrado em maio de 1986. Ele composto por

84 pginas datilografadas e tem como contedo as propostas e tramitaes oficiais dos especialistas do SPHAN. Alm do Processo, o tombamento da Avenida Modlo tambm possui um Inventrio, composto por 89 pginas e pelo projeto Vilas e Congneres, onde se encontram mais detalhadas as etapas dos estudos realizados sobre as caractersticas patrimoniais do bem. Arquitetos, historiadores e socilogos participaram das diferentes etapas de elaborao e discusso do tombamento, produzindo registros fotogrficos, pesquisas no local, entrevistas com os moradores e levantamento de material bibliogrfico e fontes histricas que tornassem mais precisas a precedncia do imvel.

A anlise do tombamento da Avenida Modlo ser aqui apresentada diacronicamente, seguindo os discursos apresentados pelos especialistas durante o desenvolvimento do Processo. Nele, h basicamente trs tipos de classificao discursiva: pedido de tombamento, informao e ofcio. Essa classificao se baseia na espcie de contedo que o texto apresenta e tambm na posio institucional de quem profere o discurso. O pedido de tombamento a anlise de um bem proposto como relevante para o tombamento, produzido por especialista de uma das Divises Regionais do SPHAN; a informao todo tipo de estudo ou anlise do bem que tramite internamente no rgo e seja realizada por seus especialistas; e o ofcio caracteriza as tramitaes legais entre as distintas instncias governamentais envolvidas no tombamento.

A proposta dessa anlise que, a partir do entendimento dos patrimnios culturais como gneros de discursos, isto , como formas de expresso que partem de um grupo ou indivduo e so direcionadas a outros discursos, seja possvel, como sugere Gonalves (2002), compreender como construda e disputada significativamente a categoria patrimnio, e como outras concepes podem ser operacionalizadas por ela: concepes norteadoras da hierarquia temporal do bem tombado; da nao por ele representada; dos

valores por ele significados; e da percepo do espao pblico onde esse bem se encontra inserido.

1.1. A proposta de um bem histrico e autntico

A proposta de tombamento da Avenida Modlo foi apresentada em 29.04.1983 ao subsecretrio do SPHAN, o arquiteto Antnio de Alcntara, pelo diretor da 6 Diretoria Regional do SPHAN, Glauco Campello, que anexou a ela a exposio do arquiteto Edgar Jacintho da Silva e algumas fotografias da avenida. Nesta primeira tramitao oficial, os materiais considerados pelo diretor da 6 DR como relevantes para a abertura do processo de tombamento oferecem pistas sobre as concepes de patrimnio que norteiam sua atuao: ele considera que a importncia do bem em questo se d principalmente pelas especificidades de sua tipologia, ou seja, por sua capacidade de representar algo atravs de suas caractersticas formais (quesito preenchido pelo arquiteto); e pela permanncia de sua integridade fsica com o passar do tempo (caracterstica que pode ser observada pelas fotografias). Edgar da Silva inicia a proposta de tombamento com o seguinte pargrafo:

O conjunto de habitao coletiva denominado Avenida Modlo, situado na Rua Regente Feij n 55 (rea do Corredor Cultural, setor 4.1) configura um exemplar tipolgico de expressiva representatividade como testemunho vivo da dinmica urbana, quando no virar do sculo caracterizou esta faixa da cidade como rea perifrica do ento ncleo citadino, de dimenso restrita.

Ele considera que a representatividade do bem reside em sua capacidade de testemunhar um aspecto imaterial: a dinmica urbana. Atravs de sua codificao lingstica, o objeto transformado em um smbolo que testemunha algo ausente, no caso um processo scio-econmico. O tempo passado de grande relevncia no pedido de preservao, na medida em que o outro valor atribudo ao bem o de ser tambm o testemunho do virar do sculo. A seguir, o arquiteto explicita melhor o que considera ser a dinmica urbana representada pela Avenida, utilizando novamente em seu discurso um sistema de hierarquia temporal.

A peculiaridade deste trecho da trama urbana reside na sua proposta, expressa no tempo, como rea de ocupao mista, ou seja, de finalidade residencial a par de

outras destinaes como a localizao de pequenas oficinas de produo manufatureira e outras atividades de apoio aos interesses do comrcio. E esta particularidade se acentuava pelo padro econmico das moradias coletivas que serviam, poca, s classes de menor poder aquisitivo integrantes da pequena burguesia constituda principalmente dos artfices, dos funcionrios pblicos e entre outras da ento prestigiosa classe caixeiral ou empregados no comrcio, que em conjunto eram at ento consideradas sustentculos da vida socioeconmica da incipiente metrpole.

Seu discurso valoriza o carter popular do bem tombamento, o que amplia o leque de grupos sociais representados pelo patrimnio nacional, mas o afirma como testemunho vivo que deve a sua peculiaridade ou particularidade a um tempo ou uma poca. O bem no sugerido para tombamento por haver uma valorizao de sua atualidade, das experincias que so ali vividas por seus moradores no tempo presente. Embora a proposta integre as classes de menor poder aquisitivo ao passado histrico da cidade, ela confere valor somente a esse passado. Adiante, Edgar da Silva apresenta os aspectos arquitetnicos do bem que, em sua opinio, lhe conferem significao.

A edificao foi erguida no ano de 1888 e apresenta-se praticamente ntegra, preservando a autenticidade exigvel como condio de monumento histrico e alm do mais exibindo as galas artsticas ao gosto do chamado estilo ecltico; tudo isso somado a alguma nobreza qualitativa do material e mo de obra pelo emprego da pedra de cantaria em toda a altura do paramento do pavimento trreo, nos enquadramentos das envasaduras de arco pleno, nas bacias e consolos das sacadas; valores estes acrescidos dos laivos da serralharia dos gradis e o apuro da obra de marcenaria das esquadrias.

O arquiteto atribui o poder de evocao do imvel s suas caractersticas fsicas, relacionando a imaterialidade da experincia passada materialidade da habitao. Segundo seu discurso, um patrimnio : um bem que mantm formalmente a sua ligao com o passado atravs da integridade fsica de sua construo; dotado de umaautenticidade4 que pode ser observada na manuteno material de seus aspectos formais

4 O uso corrente do termo autenticidade relaciona-o idia de verdade, de genuinidade, intimidade. Seja se referindo a objetos de arte, a bens culturais ou a experincias pessoais, muitos estudiosos utilizam esta noo como algo inquestionvel e imanente ao prprio objeto de estudo. Sobre a problematizao do uso da noo de autenticidade para a classificao de obras de arte, ver Benjamim (1975). Sobre a utilizao da noo na construo narrativa de bens culturais que compem os chamados patrimnios

iniciais, possuindo assim a capacidade de mediar metonimicamente esse tempo passado e histrico; e deve o seu valor tambm aos seus mritos artsticos que podem ser avaliados por seu enquadramento em um estilo acadmico de arquitetura e pela boa qualidade do material e da mo de obra utilizados.

Por fim, o arquiteto embasa a proposta de tombamento do bem dizendo ser ele pertencente a uma categoria de monumento arquitetnico que no consta at agora com similar no elenco dos bens tombados postos sob a tutela do Poder Pblico, e por sua significao como referncia no contexto da gnese urbana da antiga Capital do Pas. Ou seja, argumenta a favor de seu ineditismo tipolgico dentro do quadro de atuao do SPHAN e novamente afirma sua significao histrica.

Edgar da Silva tambm relembra o fato da Avenida Modlo estar inserida no permetro do Corredor Cultural5 para justificar que no ato de sua inscrio se considere como espao visual de enquadramento do bem tombado, o alinhamento de edificaes em que o mesmo se integra. interessante aqui o aparecimento da categoria espao visual que o arquiteto utiliza em seu discurso para sugerir a preservao dos prdios vizinhos Avenida. A idia de espao visual desvenda uma abrangncia maior dasconcepes de autenticidade e integridade enunciadas pelo especialista, j que para ele tambm relevante que o entorno do bem possa evocar o passado e aumentar conseqentemente a sensao do espectador estar presenciando um testemunho vivo da histria da cidade.

Anexadas ao pedido de tombamento, as fotografias podem ser lidas como um discurso imagtico utilizado para legitimar a proposta do arquiteto. Elas priorizam os aspectos arquitetnicos da Avenida e ressaltam o sistema de hierarquia temporal norteado para o passado, na medida em que no retratam pessoas ou atividades sendo desenvolvidas no local, deixando claro que no a ocupao presente dos moradores o objeto da propostade preservao. O arquiteto inclui de forma secundria em seus registros fotogrficos o

nacionais, ver Gonalves (1988) e Handler (1985). E sobre o uso da noo na classificao das experincias pessoais, mais especificamente s relacionadas ao turismo, ver MacCannel (1976).5 O Corredor Cultural, do qual faz parte a Avenida Modelo, foi um projeto patrimonial desenvolvido pela prefeitura do Rio de Janeiro em 1979, no Centro da cidade, e considerado pioneiro na preservao de uma ambincia cultural. Esse projeto ser melhor detalhado no capitulo 2 desta dissertao.

espao aberto da avenida que utilizado por seus moradores como lavanderia e depsito dos mais variados objetos.

Segundo pesquisa desenvolvida por outros especialistas do SPHAN no decorrer do processo da Avenida Modlo, esses adendos ainda no existiam em 1976, quando um estudo realizado por estudantes de arquitetura da UFRJ registrou o espao como um ptio de uso comum. A no valorizao pelo arquiteto das caractersticas desse puxadinho, tanto na descrio textual quanto nas fotografias da Avenida Modlo, nos sugere que, dentro do sistema de representaes patrimoniais deste especialista, o que no havia sido construdo na poca que o imvel deveria testemunhar considerado inautntico, merecendo assim ser esquecido em sua representao verbal, imagtica e, conseqentemente, patrimonial.

1.2. Os desafios de uma viso integradora

Uma poltica cultural descentralizada

Em 24.08.1983 o subsecretrio do SPHAN, Antnio de Alcntara, enviou coordenadora do Setor de Tombamento - ST, a arquiteta Dora de Alcntara, a Informao n 81/83, onde tecia algumas consideraes iniciais sobre a proposta de tombamento da Avenida Modlo. Sua exposio apresenta um resumo das razes que, para ele, fundamentaram a proposta do arquiteto Edgar da Silva:

-Trata-se de exemplar tipolgico de expressiva representatividade da dinmica urbana do virar do sculo, portanto, exemplar significativo da gnese da cidade do Rio de Janeiro;-A edificao apresenta-se praticamente ntegra, preservando a autenticidade exigvel como condio de monumento histrico;-As caractersticas estilsticas e a qualidade do material e de mo de obra empregados, principalmente nos servios de cantaria, serralheria e marcenaria acrescentam edificao valores que justificam o seu tombamento sob o ponto de vista artstico;-Quanto utilidade, o conjunto ainda serve como apoio s atividades comerciais locais.

O subsecretrio do SPHAN prossegue a sua argumentao sem questionar a validade desses quatro pontos destacados, indicando concordar com a valorizao do bem por suas caractersticas arquitetnicas e histricas. No entanto, no ltimo ponto enumerado desse trecho, Antnio de Alcntara interpreta que o arquiteto Edgar da Silva se referiu a atual utilizao do imvel em sua proposta de tombamento, apesar do texto original ser claro ao se referir poca da construo do imvel, numa reafirmao da valorizao temporal do passado significado pelo bem. Mas ele no vai se prender a esse ponto no restante de sua Informao.

Nos pargrafos que se seguem, Antnio de Alcntara se dedica mais particularmente a comentar de forma positiva o fato de a Avenida Modlo estar inserida no permetro do Corredor Cultural da prefeitura do Rio de Janeiro e de o arquiteto ter sugerido tambm a preservao do entorno do imvel. Ele salienta como sendo muito oportuna a ao conjunta da 6 DR com os rgos municipais e cita o trecho das Diretrizes para Operacionalizao da Poltica Cultural do MEC referente ao princpio da Descentralizao:

O mecanismo fundamental dessa diretriz a articulao dos nveis municipal, estadual e federal, atravs da efetiva interao de instituies oficiais, entidades privadas e representantes do fazer e do pensamento das comunidades os legtimos portadores do conhecimento de contextos especficos.

Aps essa citao, o subsecretrio justifica a incluso da Avenida em um processo de tombamento complementar preservao do Corredor Cultural por considerar que nesse programa no est bem definida a extenso do conceito de Preservao quando aplicado a um exemplar que engloba diversas edificaes, com diferentes tipos de tratamento de fachada. Em sua opinio, o tombamento de uma avenida j preservada em mbito local possibilitaria que o SPHAN participasse da ao dos rgos municipais, entidades privadas e comunitrias na regio, conforme sugerido pelo Ministrio de Educao e Cultura.

O subsecretrio ento prope a realizao de um estudo mais aprofundado do universo cultural a qual o bem pertence, por ainda no estar certo da importncia do tombamento da Avenida Modlo, considerando-se a abrangncia maior, a nvel

nacional da atuao do SPHAN. Contando com a colaborao de dois estagirios, ele realiza um exame na documentao disponvel nos arquivos e biblioteca do rgo pblico e faz contato com algumas pessoas que esto estudando o problema. A partir dos dados coletados, Antnio de Alcntara sugere alguns parmetros que podem ser utilizados na formao de um projeto-piloto a ser aplicado no municpio do Rio de Janeiro.

Aps uma breve introduo histrica sobre o que ele classifica como Conjuntos de Habitao e Habitaes Coletivas, o subsecretrio do SPHAN apresenta uma extensa lista de itens a serem preenchidos num estudo mais cuidadoso onde essa viso histrica seja abordada sob o ponto de vista econmico, social, urbanstico e arquitetnico. No entanto, no aparece neste projeto-piloto um novo espao de debate com a populao, nem mesmo com os moradores da Avenida Modlo. Na concepo de descentralizao cultural do diretor, a participao direta da comunidade na discusso da validade do tombamento do imvel desconsiderada. No seu entendimento de conformao de espao pblico, a mediao dos rgos locais de preservao parece ser suficiente para garantir a representatividade das aes do SPHAN.

Preservando os aspectos populares

Porm esse esquecimento da pesquisa das experincias cotidianas dos moradores da Avenida e de suas relaes com o imvel no passou despercebido pela coordenadora do ST, Dora de Alcntara, que enviou, em 29.08.1983, a Informao n 86/83 para o subsecretrio do SPHAN. Em seu texto ela chama a ateno, em primeiro lugar, para a novidade do tema.

Trata-se, por um lado, de programa novo a ser beneficiado por medida de proteo individuada (no tombamento conjunto de Petrpolis, esto includas trs vilas operrias) e, por outro, de um tema que vem despertando interesse crescente, contando j com razovel bibliografia, bem como estudos em curso, a respeito, com que tivemos necessidade de entrar em contato, para informar sobre o processo, de maneira atualizada.

Um novo dado sobre o pedido de preservao da Avenida Modlo aparece nesta Informao na forma da categoria proteo individuada, que envolve algumas mudanas na valorao dos bens preservados pelo SPHAN. A preservao de uma nica habitao coletiva ainda no era prtica nesse rgo, mesmo que ela fosse considerada possuidora de notvel valor arquitetnico, como avalia a proposta do arquiteto Edgar da Silva. No entanto, outras obras arquitetnicas, como fortes, igrejas e prdios pblicos de estilo modernista, j haviam sido tombadas isoladamente por seus valores histricos e artsticos.

A diferena da Avenida Modlo para esses demais bens parece residir no fato de que a sua proposio muito mais uma tentativa de incluso de bens relacionados histria popular no Livro de Tombos do SPHAN do que de valorizao de seus aspectos formais, como enunciado pelo arquiteto Edgar da Silva. O caso citado por Dora de Alcntara das vilas petropolitanas indica no apenas uma diferena de quantidade, mas principalmente de qualidade do bem tombado. A preservao de trs vilas operrias no se justifica apenas pela noo de conjunto arquitetnico homogneo por elas formado, mas est diretamente relacionada com a histria de uma fbrica e de seu valor econmico e social para a cidade de Petrpolis e para o pas. Ela desenvolve mais adiante este ponto que parece ser o provocador de uma tenso das concepes de patrimnio atuantes dentro do SPHAN: a preservao de aspectos populares da cultura.

Tratando-se de um programa novo, no poderamos formar um juzo sobre a avenida proposta, isolada desse conjunto mais amplo, especialmente se considerarmos que se trata de um tombamento a nvel nacional, pois o universo amplo. A ttulo de exemplo, somente no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, so mais de 60 as vilas existentes e de variados tipos.Outro aspecto que nos preocupa diz respeito ao atendimento poltica cultural do MEC, expressa no III PSECD (1980/85), que indica a necessidade de valorizao cultural de maneira integrada, tanto os aspectos populares quanto os eruditos tendo que ser desenvolvidos.A preservao das manifestaes culturais populares, em termos arquitetnicos, muito oportuna, indispensvel mesmo se desejarmos guardar um quadro mais completo, mais fiel, dos perodos de nossa histria arquitetnica.

A coordenadora do ST coloca ento em debate quais seriam, para ela, as motivaes que estariam guiando o pedido de preservao da Avenida. Pois se elas fossem simplesmente materiais ou formais, poderiam ser aplicadas em diversas outras moradias. Mas no so. O que Dora de Alcntara desvenda que, dentro do SPHAN, a Avenida Modlo representa a implementao de uma concepo patrimonial baseada na valorizao cultural de maneira integrada, onde os aspectos populares participam da histria arquitetnica do pas. E so as dificuldades inerentes a essa concepo patrimonial integradora que ela aborda com maior nfase.

Essa preservao encerra, no entanto, complexidade maior porque atinge uma camada da populao, cuja linguagem cultural no nos suficientemente familiar para que nos sintamos seguros de estarmos criando benefcio para ela, com o tombamento. O nus que lhe advir dessa medida de proteo poder ser excessivamente pesado.O tombamento das vilas insere-se nessa problemtica. Mesmo sem um conhecimento mais abrangente, j temos idia de que exemplares como a Avenida Modlo, ou os cortios existentes na Rua Senador Pompeu, so antigos e expressivos, com interesse para preservao de um ponto de vista arquitetnico.Sentimos, porm, como indispensvel, no encaminhamento deste caso e de outros anlogos, que tenhamos assessoria de profissionais das reas de sociologia e de antropologia, para adequada conduo do problema.

Primeiramente, a coordenadora do ST destaca o no conhecimento pelos especialistas do SPHAN da linguagem cultural da camada da populao classificada como popular. De fato, o SPHAN, at a virada da dcada de 1980, no tinha como prtica o tombamento desse tipo de bem cultural. Assim, na poca da proposta de tombamento da Avenida Modlo no haviam sido desenvolvidos ainda critrios claros ou, no discurso de Antnio de Alcntara, parmetros de anlise das manifestaes populares, mesmo as arquitetnicas.

O segundo ponto levantado por Dora de Alcntara, a distncia dos especialistas do patrimnio em relao ao universo cultural no qual se insere a Avenida, aparece colocado de forma ainda mais enftica: no haveria somente um desconhecimento da linguagem cultural, mas tambm dos impactos, tanto positivos quanto negativos, que esse tombamento poder causar na vida cotidiana dessa camada da populao. nesse momento da reflexo que ela indica como conveniente a participao de

socilogos e antroplogos no processo de tombamento. Pois, para a coordenadora do ST, as questes envolvidas esto para alm da capacidade de reflexo de um estudo histrico ou arquitetnico do bem, devendo abarcar aspectos culturais e sociais que s podem ser analisados a partir do tempo presente.

Nesta Informao o processo de tombamento da Avenida debatido luz de novas concepes. O tempo valorizado agora tambm inclui o presente e no apenas o passado do imvel, ganhando ento importncia saber como ele utilizado e quais so e como vivem seus moradores; a nao passa a ser representada a partir de valores culturais e no apenas histricos e artsticos, sendo essa representao norteada para a incluso de uma parcela maior de atores sociais que reflitam os seus diversos aspectos populares e eruditos, tornando-a, portanto, uma nao entendida como heterognea; o espao pblico tambm se amplia com a entrada dos discursos dos moradores e de especialistas das Cincias Sociais, e no apenas da Arquitetura. Baseando-se nessas concepes inovadoras, a Dora de Alcntara prope um outro estudo a ser desenvolvido pelo SPHAN, alm daquele de vis histrico sugerido por Antnio de Alcntara, e tambm outra forma de encaminhamento poltico e institucional do tombamento.

O contacto com os moradores e (ou) proprietrios das vilas operrias petropolitanas, j tombadas, e da Avenida Modlo, que est parcialmente preservada, poderia ser objeto de um primeiro trabalho com profissionais daquelasreas.

Embora devam ser diferentes as situaes, variando para cada conjunto, algumas abordagens podero dar-nos umas primeiras indicaes quanto aos rumos mais acertados.Endossamos a idia de um projeto-piloto aplicado ao Municpio do Rio de Janeiro, pela 6 DR em que participem rgos municipais e esta DTC. Cremos que seria interessante um contato inicial com o Conselho Municipal de Proteo do Patrimnio Cultural do Rio de Janeiro e com o Instituto Estadual de Patrimnio Cultural que certamente podero articular, com a SPHAN, um eficiente trabalho, atendendo aos diferentes aspectos do problema e permitindo-nos conferir-lhes a soluo adequada.

Respondendo s demandas de estudo sobre a Avenida Modlo, a Informao n138/84 foi remetida em 31.10.1984 coordenadora do ST pela arquiteta Helena Mendes dos

Santos e por mais dois estagirios de Histria - Mrcia Regina Chuva e Roberto

Maldos.

No sentido de se respaldar o tombamento federal no conhecimento mais abrangente do universo cultural a que a edificao pertence, desenvolveu-se no Setor de Tombamento da DTC/SPHAN, um trabalho sobre os tipos de habitaes coletivas diretamente relacionadas s vilas, procurando-se caracterizar, classificar e estabelecer as relaes quanto evoluo dos diferentes tipos identificados.Das etapas desenvolvidas pelo trabalho resultaram o Relatrio e a Proposta para Levantamento, anexos a este processo. Ambos os documentos foram encaminhados s DRs, com a finalidade de inform-las sobre os objetivos do tombamento e auxili-las no caso de um provvel inventrio e, considerando-se os diferentes aspectos ligados problemtica abordada, foram contactados profissionais de Arquitetura, Histria, Sociologia e Antropologia que j vinham desenvolvendo pesquisas neste sentido, procedendo-se, paralelamente, o desenvolvimento de trabalhos e teses publicados sobre o tema.Do que foi apreendido na evoluo do trabalho, intitulado Vilas Brasileiras, podemos tirar algumas concluses que fundamentam a proposta de tombamento da Avenida Modlo.

A arquiteta Helena dos Santos prope, portanto, a apresentao da evoluo dos tipos identificados como similares s vilas. Para isso, ela encaminha no Relatrio estudos sobre a histria social das localizaes dessas habitaes coletivas, de suas tipologias e da forma como ocuparam os lotes urbanos. Tambm apresenta uma descrio arquitetnica do conjunto da Avenida Modlo e algumas informaes sobre o seu estado atual de conservao e ocupao. Por fim, exposto no Relatrio um Contexto Carioca para o Surgimento das Vilas e um Histrico da Rua Regente Feij. Todo o Relatrio acompanhado por plantas e mapas da cidade, alm de tabelas e grficos histricos.

A moradia e sua dinmica cultural

A Informao n 147/84 foi enviada pela arquiteta Dora de Alcntara ao diretor da

Diviso de Tombamento e Conservao - DTC do SPHAN, Augusto Telles, em

20.11.1984 contendo as ltimas consideraes sobre o tombamento da Avenida Modlo

e, em anexo, toda a documentao relativa ao seu processo de pesquisa. Ela ressalta dois aspectos que considera como fundamentais para uma correta tomada de deciso em relao ao tombamento desta habitao coletiva.

1) Verificamos que, na maioria dos casos, os moradores possuem um nvel econmico-social bastante modesto. Preocupou-nos essa constatao porque o estabelecimento de um dilogo entre grupos de linguagem cultural diversa sempre delicado.Exemplificando, chamaramos a ateno para o gesto mais freqente observado, quando o morador de uma unidade de conjunto habitacional torna -se proprietrio da mesma. Ele procura, imediatamente, individualizar a unidade que possui, destacando-a das demais por meio de um novo tratamento. Torna-se, ento, difcil opor-lhe a necessidade de manuteno da homogeneidade do conjunto; fica- nos mesmo a dvida quanto validade cultural da medida impeditiva das alteraes pretendidas.

A preocupao da arquiteta em estabelecer um dilogo entre os moradores da Avenida e os especialistas do SPHAN, j citada na Informao n 86/83, exemplificada nesse momento de concluso de estudos com a possibilidade de um morador se tornar proprietrio de uma unidade do conjunto habitacional e desejar realizar modificaes em sua moradia. Segundo de Dora de Alcntara, tal impedimento de transformao questionvel, j que ela considera a interveno do morador em sua propriedade uma caracterstica tambm representativa de seu universo cultural.

Na concepo da arquiteta sobre a atuao do SPHAN relevante o limite da propriedade privada, no apenas por seus aspectos legais, mas principalmente pelos aspectos culturais e sociais que tal propriedade representa para seus moradores, ou seja, pela forma como ela vivenciada cotidianamente. Ela cita ainda a experincia de pesquisadores de Recife que, levando em considerao tal questo, se negaram a incluir medidas de proteo para vilas e habitaes congneres na proposta de legislao urbana que elaboraram.

Dora de Alcntara trata aqui de uma questo que estar sempre presente nas discusses sobre a preservao de moradias: a transformao da propriedade. Embora a arquiteta indique que s a vivncia do problema poder elucidar a validade cultural da medida de

preservao, ela se mostra bastante cautelosa quando sugere que somente sejam tombados conjuntos que, alm de especialmente expressivos, pertenam a um proprietrio nico, circunstncia em que, obviamente, o problema referido no ocorre; a homogeneidade do conjunto , obrigatoriamente, mantida, nesses casos.

Percebemos ento que, no por acaso, a Avenida Modlo, primeiro exemplar de habitao coletiva tombado pelo SPHAN, de propriedade do Estado do Rio de Janeiro. Ainda assim, a arquiteta prope, para uma anlise mais profunda deste e de outros aspectos do intercmbio com tais comunidades, que seja desenvolvido um exerccio de dilogo atravs de projetos de acompanhamento de tombamentos desse tipo de conjuntos habitacionais para que novas aes possam ser mais fundamentadas. Ou seja, mesmo tomando todas as precaues possveis para no interferir no universo cultural dos moradores, Dora de Alcntara considera necessrio um acompanhamento constante para a compreenso de quais devem ser os limites de atuao do SPHAN.

O segundo ponto destacado pela arquiteta em sua Informao aborda as caractersticas histricas e sociais da Avenida Modlo, alm de reforar o ainda restrito conhecimento dos especialistas do SPHAN sobre o tema vilas e habitaes congneres.

2) Outro aspecto diz respeito ao quadro, ainda relativamente restrito que possumos, dessas habitaes a nvel nacional. No recebemos suficientes informaes das Diretorias Regionais.Fica claro, no entanto, que a maior ocorrncia se d nos dois grandes centros urbanos: Rio de Janeiro e So Paulo. A poca de origem a mesma (em torno de1880); em So Paulo, apenas conjuntos com padro construtivo muito modesto; no

Rio de Janeiro, alm destes, tambm alguns mais elaborados.

Dora de Alcntara conclui a sua Informao posicionando-se favoravelmente ao tombamento da Avenida e indicando a necessidade de um estudo sobre o tratamento fsico que ser dado ao conjunto e que dever contemplar o produto do dilogo que se venha a estabelecer com o a pequena comunidade de seus moradores.

Aps o encerramento dos estudos e a aprovao da medida patrimonial pelo ST, o diretor da DTC, Augusto Telles, encaminhou o processo ao Conselho Consultivo do SPHAN. O Conselho aprovou a medida e em 13.08.1985 o Ministro da Cultura, Alosio

Pimenta, homologou o tombamento da Avenida Modlo. A partir desse momento, foram enviados ofcios para a inscrio da Avenida no Livro do Tombo das Belas Artes e para comunicar ao governador e ao prefeito do Rio de Janeiro o tombamento do bem. As tramitaes oficiais se encerraram em 30.05.1986.

1.3. O patrimnio e a representao da nao

Do momento de criao do SPHAN at a valorizao do conceito de habitao por esse

rgo, muitas noes do que deveria pertencer ao patrimnio nacional foram debatidas por seus especialistas com o objetivo de construir uma identidade e uma memria que consideravam autenticamente brasileiras. Empreendimentos polticos e ideolgicos diversos foram postos em movimento para a preservao de bens significados metonimicamente como representativos da cultura nacional, bens que, segundo os especialistas do patrimnio, assegurariam a permanncia dessa cultura. Discursivamente, tal poltica cultural se estruturou no que Gonalves (1996) cunhou de retrica da perda, recurso narrativo que constri a percepo da histria como um processo de constante destruio de uma cultura brasileira entendida como ntegra e harmnica e que legitima as aes patrimoniais como as salvadoras da memria nacional.

Mas nem sempre os bens preservados que testemunham fatos histricos, pessoas e locais considerados importantes para a conformao da memria e da identidade nacionais articulam a mesma narrativa sobre a nao. Diferentes concepes de identidade nacional podem ser flagradas concorrendo entre si ou tambm mescladas nos discursos dos especialistas do patrimnio. Como nos sugere Gonalves (2002) em seu trabalho sobre as narrativas patrimoniais brasileiras, existem basicamente dois modelos de discurso que guiam seus especialistas - o da monumentalidade e o do cotidiano.

O discurso da monumentalidade pode ser observado de forma mais predominante nos processos de tombamento encaminhados a partir dos anos 1930, durante a direo do SPHAN por Rodrigo Melo Franco de Andrade. J o discurso do cotidiano vai aparecer mais presente a partir dos anos 1970, na gesto de Alosio Magalhes. Embora possamos ter como referncia esses dois importantes articuladores do patrimnio, a finalidade da classificao desses modelos discursivos auxiliar na anlise das

narrativas dos diversos especialistas envolvidos com a questo, onde esses modelos comumente no aparecem de forma pura e nem datados em determinado perodo das prticas patrimoniais.

Em linhas gerais, o discurso da monumentalidade norteado por um entendimento tradicional de nao. Os bens por ele considerados representativos so aqueles valorizados por serem testemunhos de um passado harmnico e autntico e por trazerem agregados a si consagrados valores histricos e artsticos. Segundo essa modalidade discursiva, a conservao e a permanncia desses bens fariam com que a nao no perdesse a sua ligao com sua memria e identidade, ambas vistas a partir de uma existncia homognea. Como a nao percebida como tradicional e culturalmentenica, ou seja, sem conflitos quanto sua representao, os especialistas que atuam segundo esse discurso no consideram importante a discusso com a sociedade sobre os processos de preservao e tombamento de bens, e o espao pblico que se conforma a partir da basicamente monoltico.

Por sua vez, o discurso do cotidiano norteado pelo tempo presente, ou seja, pela valorizao das experincias e manifestaes observveis na vida cotidiana dos diversos segmentos da sociedade. A nao entendida como sendo composta por mltiplos grupos e os bens que devem represent-la so significados a partir de valores culturais que dem conta dessa diversidade. Por ser um discurso baseado no tempo presente, os bens preservados no esto fadados a permanecerem imutveis, pelo contrrio, eles so entendidos como parte de uma dinmica cultural que os colocam em constante transformao, fazendo deles bens transitrios. O espao pblico que se conforma a partir desse discurso tende, assim, a ser um espao polifnico, que agregue representao da nao variados grupos, suas culturas e seus pontos de vista.

No processo de tombamento da Avenida Modlo, podemos notar claramente diferentes concepes patrimoniais nos discursos dos especialistas do SPHAN. Fazendo um breve apanhado do que foi visto ponto a ponto nos principais estudos e anlises desses especialistas, temos um quadro mais ntido das variaes das noes de nao que ainda hoje se encontram em disputa nos debates sobre as aes patrimoniais. O que se observa que, durante o processo de tombamento da Avenida Modelo, ela foi entendida a partir

de variadas perspectivas, que ora se encaminhavam para um discurso monumentalista,

ora para um discurso do cotidiano.

Mais do que definir como legtimo um outro discurso patrimonial, a anlise do processo de tombamento da Avenida Modlo tenta iluminar algumas questes concernentes prtica patrimonial de preservao de habitaes no pas. Ela indica como os usos das categorias patrimnio e nao podem variar completamente mesmo quando proferidos por especialistas de um mesmo rgo patrimonial e em direo a um nico objeto e contexto scio-cultural. E que tais categorias podem ser estruturadoras de diferentes discursos de construo da memria e da identidade nacional, interferindo na vida da populao e na projeo de seu futuro.

No pedido de tombamento feito pelo arquiteto Edgar da Silva, o tempo passado norteia a valorizao do bem, entendido dessa forma como representante de uma tradio nacional que deve, atravs da medida de preservao, permanecer ntegro e inalterado (ou autntico) para testemunhar a sua histria. Sendo uma narrativa guiada pela monumentalidade, os valores que so agregados ao bem so todos relacionados a sua materialidade, tais como integridade, autenticidade, estilo, galas artsticas e qualidade de execuo arquitetnica. E embora haja a proposta de incluso de uma manifestao entendida como popular nos quadro dos patrimnios do SPHAN, ela no significa uma percepo diversificada de nao, visto que se remete ao passado e aos aspectos histricos e artsticos do bem. Sendo um bem tradicional, sua representao no percebida como possivelmente conflituosa e, conseqentemente, a participao de outros atores sociais que no os especialistas do SPHAN no citada, sugerindo a conformao de um espao pblico monoltico.

Na Informao n 81/83 assinada pelo subsecretrio do SPHAN, o arquiteto Antnio de Alcntara, reafirmada a valorizao da Avenida Modlo pelos seus aspectos histricos e artsticos atravs da proposio de um estudo norteado para o conhecimento do passado do bem e de suas caractersticas formais. Mas, diferente da proposta do arquiteto Edgar da Silva, h o indicativo de uma ampliao do espao pblico de discusso com a entrada de outros grupos interessados no tombamento, tais como especialistas de rgos municipais e estaduais, representantes de entidades privadas e representantes comunitrios. Essa ampliao, no entanto, toda norteada para uma

concepo tradicional de nao, onde no se coloca em discusso a utilizao cotidiana do bem por seus moradores nem a pertinncia cultural do tombamento.

a Informao n 86/83 que traz diferentes concepes de patrimnio e nao ao processo de tombamento da Avenida Modlo, se aproximando de uma abordagem discursiva cotidiana. Nela, a coordenadora do ST do SPHAN, a arquiteta Dora de Alcntara, introduz o tempo presente na discusso atravs da noo de universo cultural do bem. Com esse termo, ela assinala a necessidade do estudo das atividades cotidianas dos moradores da Avenida e assume a nao como basicamente heterognea, composta por mltiplas e pouco conhecidas (especialmente para os especialistas do SPHAN) realidades culturais. Por reconhecer a nao como diversificada, ela reafirma a necessidade dos bens tombados serem guiados por uma tentativa de representao dos aspectos tanto populares quanto eruditos da cultura nacional. Sua nfase recai, portanto, sobre os aspectos culturais do bem, e no mais sobre os aspectos histricos e artsticos evocados pelos dois especialistas anteriores. E para dar conta do universo cultural a ser investigado pelo rgo patrimonial, ela sugere que se amplie mais o espao pblico de debate, com a entrada de especialistas das reas de sociologia e antropologia e com a participao efetiva dos moradores no processo de tombamento.

Os estudos apresentados na Informao n 138/84 pela arquiteta Helena Mendes dos Santos podem ser considerados conciliatrios dos discursos monumentalista e cotidiano propostos anteriormente. Neles, h uma preocupao de abordar tanto as questes referentes histria e arquitetura do bem quanto seus aspectos culturais. Nessa conciliao, no entanto, h a predominncia de um espao pblico polifnico e diversificado, j que foram consideradas as avaliaes de socilogos sobre as caractersticas scio-culturais da Avenida e seus moradores puderam expressar as suas opinies e expectativas em relao ao tombamento.

A Informao n 147/84 encerra o ciclo de debates sobre a proposta de tombamento da Avenida Modlo destacando novamente a valorizao dos aspectos culturais do bem. Nela, a coordenadora do ST, a arquiteta Dora de Alcntara, questiona mais especificamente a noo de permanncia e autenticidade do bem defendidas pelo discurso de vis monumentalista. Para a arquiteta, a dinmica cultural onde um bem se acha inserido deve ser mais bem compreendida para que seja culturalmente vlido o

tombamento. Na sua percepo de bem patrimonial como uma representao das manifestaes e experincias cotidianas, as transformaes fsicas desse bem no so necessariamente entendidas como algo negativo, mas como o reflexo de seu carter cultural e diverso. E o espao pblico deve ser sempre o mais amplo e gregrio possvel para que haja um constante dilogo entre a atuao dos especialistas do SPHAN e as demandas da populao envolvida com o tombamento.

1.4. Um estudo sociolgico sobre a comunidade

O trabalho entitulado Vilas e Congneres, coordenado pela arquiteta Dora de Alcntara e disponvel apenas no Inventrio da Avenida Modlo, foi concludo aps o seu tombamento, em dezembro de 1986, e buscou estabelecer um dilogo com os seus moradores a fim de encaminhar a restaurao das habitaes. O trabalho composto por dois textos: Projeto de Estudo de Vilas e Congneres e Relatrio Final sobre o Estudo de Caso: Avenida Modlo, sendo que este dividido nos blocos Levantamento Social dos Habitantes do Conjunto Avenida Modlo e Levantamento Arquitetnico. Desse conjunto de estudos, no ser analisado aqui o texto sobre as caractersticas arquitetnicas do bem, por ser ele estritamente tcnico e pouco elucidativo quanto s concepes patrimoniais norteadoras das aes dos especialistas do SPHAN.

A introduo do Projeto de Estudo de Vilas e Congneres apresenta os objetivos gerais da pesquisa como: formar quadros comparativos de exemplares, estimular os moradores a participarem na preservao de seu patrimnio e obter uma experincia interdisciplinar. A existncia do projeto justificada pela necessidade de estudo destes programas (...) insuficientemente contemplados pela proteo institucional e do estabelecimento de contato com os moradores de vilas e congneres atravs de profissionais com experincia em trabalhos com comunidades. Como se ver adiante, a categoria comunidade ser a norteadora do enfoque terico dos estudos dos especialistas da rea de Cincias Sociais e tambm se revestir de uma forte carga ideolgica atravs do desejo de que a populao se envolva na preservao do patrimnio.

A elaborao do Levantamento Social dos Habitantes do Conjunto Avenida Modlo foi coordenada por um socilogo, Srgio Gil Marques dos Santos, com a colaborao de um estagirio de sociologia, Antnio Luigi Negro. Nele, so duas as categorias que formam a base da explanao terica sobre a Avenida: patrimnio e comunidade. Srgio dos Santos comea a Apresentao do bem caracterizando os moradores da Avenida Modlo como funcionrios pblicos que obtiveram uma concesso do governo estadual para l morarem, mediante comprovao de no possurem recursos suficientes para alugar imveis a preo de mercado.

Srgio dos Santos faz ento um histrico da ocupao social da Avenida, destacando que desde a dcada de 1960, quando o imvel foi comprado pelo governo do Estado da Guanabara, no h um contato da administrao estadual com os moradores, seja no intuito de verificar a necessidade de reformas, seja no de controlar o fluxo de habitantes. O socilogo conclui que foi por causa dessa falta de controle do Estado que a rea se tornou refgio de assaltantes, traficantes e toxicmanos, sendo ocupada por patrulhas da Polcia Militar durante trs anos consecutivos, o que teria acarretado, segundo ele, um imenso desprestgio para os moradores do local em suas relaes com a vizinhana da regio.

Esse histrico do passado problemtico dos habitantes da Avenida ser utilizado mais adiante no discurso de Srgio dos Santos, quando ele ento avaliar o papel que o SPHAN pode desempenhar com o tombamento de bens da cultura popular. At o fim de sua anlise, ser sempre reforada a idia do patrimnio como educador da populao e incentivador da produo de um sentimento de pertena atravs da unio de sua comunidade em torno de um objetivo comum: a preservao do bem patrimonial. Nos dois ltimos pargrafos da Apresentao, o socilogo inicia um comentrio sobre o que ele considera ser uma mudana da relao dos moradores com seu local de moradia com a possibilidade da restaurao da Avenida.

Segundo depoimento de moradores mais antigos, aps o tombamento decretado pela SPHAN em 1983, a situao melhorou um pouco, (...) situada numa rea movimentada diuturnamente no Centro da Cidade do Rio de Janeiro e considerada antro de marginais, a Praa Tiradentes, os moradores da Avenida Modlo anseiam em ser diferentes. Como funcionrios pblicos, ainda que de baixa renda,

fazem questo de zelar por seu status, vendo na restaurao um instrumento de diferenciao da regio.

Srgio dos Santos introduz o tpico Estudos de comunidade e patrimnio histrico enfatizando a insero recente dos profissionais de Cincias Sociais nas polticas pblicas patrimoniais e considera que a necessidade da participao desses novos especialistas foi ocasionada pela valorizao do papel da comunidade nos processos de tombamento. E, como base de comparao para o estudo de caso da Avenida Modelo, o socilogo utiliza um estudo desenvolvido no Catumbi pelo arquiteto Carlos Nelson Santos (1981).

No Catumbi, os moradores se mobilizaram, com o apoio da Igreja (no caso, a parquia do bairro), quando souberam da existncia de um plano urbanstico que transformaria completamente o local, expulsando-os. Enfrentaram uma luta de quase dez anos contra os poderes pblicos estadual e municipal, saindo parcialmente vencedores. Tratava-se, portanto, de um movimento organizado, com meta definida.No caso especfico da Avenida Modlo, a situao completamente

inversa do Catumbi. Tem-se aqui um conjunto arquitetnico j tombado por

rgo federal sendo proprietrio dos imveis e terreno o governo estadual.

A partir do exemplo do Catumbi e aps ter-se inserido no universo da Avenida Modlo, pode-se, a priori, colocar uma questo bsica que, respondida, permita um correto e adequado trabalho posterior na rea, qual seja, se, a par do movimento dos moradores do Catumbi, de ntido carter comunitrio, poder-se-ia entender a Avenida Modlo como comunidade.

O socilogo enfoca como questo mais relevante do estudo social do bem a averiguao da existncia da Avenida Modlo como uma comunidade. E conduz seu discurso para a compreenso dessa categoria como sendo o reflexo de um estado de harmonia e cooperao entre os moradores, condies que considera indispensveis para a conservao da propriedade tombada. No terceiro tpico do estudo, O conceito terico de comunidade, Srgio dos Santos apresenta um breve desenvolvimento do conceito sociolgico de comunidade. Ele demonstra como, em seu aparecimento, esse conceito era ligado apenas ao meio rural e se refere ao trabalho de Robert Redfield (1955) sobre o tema.

Redfiled define comunidade como um microcosmo fechado, denotativo de uma totalidade homognea (concepo holstica), com territrio fixo, onde todos se relacionam com todos, auto-suficientes em sua perspectiva interna e conscientes de seus papis sociais, sendo assim mnimas as possibilidades de mudana social.

Posteriormente, ele comenta que o conceito sofreu transformaes a partir da dcada de

1960 e cita o trabalho sobre as aldeias balinesas, escrito por Clifford Geertz (1967), como um dos que refutaram a avaliao de comunidade de Redfield.

(Geertz) diz que estas (aldeias) so peculiares, extraordinariamente diversas, tendo uma estrutura social complexa, sendo organizadas diferenciadamente e o que possui significncia em uma no tem a menor importncia em outra. A partir deste ponto, define sete planos de vivncia comunitria ou organizao social6:1) Orar no mesmo templo;

2) Residncia comum;

3) Propriedade da terra;

4) Pertencimento ao mesmo grupo de status social ou casta;

5) Parentesco;

6) Pertencimento comum em uma ou mais organizao voluntria;

7) Subordinao legal comum a uma administrao governamental.

Srgio dos Santos faz uma sntese do pensamento de Geertz dizendo que membros de uma localidade podem pertencer a comunidades diferentes, que no se insiram no mesmo espao geogrfico. E a partir desse momento articula a sua ttica de investigao cientfica para classificar a Avenida Modlo. Em sua avaliao, o conceito de comunidade desenvolvido por Geertz nos estudo da Ilha de Bali o mais adequado para analisar o caso da Avenida, por ser a que vem sendo utilizada correntemente pelos cientistas sociais que hora trabalham com o tema, mesmo quando em localidades urbanas.

O socilogo ento nomeia o terceiro tpico de seu relatrio com um ttulo bastante

sugestivo do que vir adiante: A Avenida Modlo: inexistncia de comunidade. E

6 A partir da minha leitura do texto original, considero que esta seria uma traduo mais corrreta dos sete planos propostos por Geertz: 1) a obrigao de participar do culto de um determinado templo; 2) a moradia comunitria; 3) a posse de uma plantao de arroz sobre um nico canal de gua; 4) a associao de membros relacionada ao status social ou casta; 5) laos de parentesco por consanginidade ou casamento; 6) a sociedade comum em uma ou outra organizao voluntria; 7) a subordinao legal comum a um nico governo administrativo oficial.

toma como premissa terica a conceituao de Geertz, tentando adapt-la ao caso estudado. Segundo Srgio dos Santos, a partir de uma anlise superficial das entrevistas realizadas com os moradores pode-se concluir que h na Avenida uma ausncia significativa de vrios itens constituintes de uma organizao comunitria. E assim, partindo da listagem proposta por Geertz para entender o funcionamentoestrutural da vida social das aldeias balineses7, o socilogo encaixa aquela distante

realidade social no estudo do cotidiano dos moradores da Avenida Modlo. Sua utilizao conceitualmente equivocada do trabalho de Geertz vai lev-lo a concluses simplistas e de carter predominantemente quantitativo.

Item por item, Srgio dos Santos apresenta suas descobertas sobre os costumes dos moradores das oito casas da Avenida e as relaes sociais ali encontradas. Resumidamente, so eles:1) A afinidade religiosa classificada como inexistente, j que o socilogo observou uma variedade de afiliaes religiosas. Os moradores da Avenida so catlicos, espritas, umbandistas, sincrticos e participantes de seita crist no catlica. Em seu conjunto eles no freqentam um local comum de orao;2) A residncia comum que obviamente se observa entendida como fora das circunstncias, j que a maioria dos moradores declarou no se misturar com seus vizinhos, donde o socilogo conclui que esse trao no enseja nenhum tipo de cooperao ou unio, suas prerrogativas de existncia de uma comunidade;3) Ele tambm considera que a propriedade da terra tambm no constituinte de

uma comunidade, j que o proprietrio do imvel o Estado;

4) Este item o socilogo avalia como complexo, j que todos os moradores pertencem mesma camada social. Porm, em sua avaliao, tal trao em vez de uni-los os distancia, j que, segundo a anlise dos depoimentos coletados, a pobreza em comum vivenciada negativamente como promiscuidade. Para Srgio dos Santos, nem o fato de serem todos funcionrios pblicos faz com quese observem afinidades entre os moradores.

7 No estudo sobre a vida balinesa, o que Geertz busca compreender so as estruturas sociais das aldeias a partir de seus sistemas sociais complexos, ao invs de seguir a tendncia de se estudar o universo rural como uma nica construo tipolgica. Ele chama a ateno para o fato de que aldeias contguas podem ser diferentemente organizadas. tentando alcanar essas diferenas que ele prope como recurso analtico a diviso da estrutura social em planos. Cada plano seria composto por um conjunto de instituies sociais baseadas numa total diferena de princpios de afiliao, ou seja, em maneiras distintas de agrupar os indivduos.

415) Neste item o socilogo breve: no h incidncia de parentesco.

6) Na anlise do socilogo no h quaisquer associaes voluntrias visando o bem comum, seja no referente manuteno do local de moradia, seja na realizao de reunies.7) Para ele, a subordinao a uma autoridade comum no se observa por causa da presena de invasores, moradores clandestinos e sublocatrios, ou seja, ele considera como autoridade comum apenas o governo estadual, proprietrio do imvel.

A concluso por parte do socilogo Srgio dos Santos da no existncia de uma comunidade no local colocada nos seguintes termos:

A partir da anlise da realidade atinente Avenida Modlo confrontada com os preceitos conceituais scio-antropolgicos, nota-se cabalmente a inexistncia de qualquer tipo de vivncia comunitria na vila, ou seja, seus habitantes, em nenhuma instncia, formam uma comunidade. O isolamento no interior da rea e o cultivo de amizades fora do local so marcas sintomticas desta situao.As disputas, que se puderam observar quando de nossa primeira reunio geral com os moradores, em torno de questes como consumo de gua, energia eltrica e, posteriormente, nas entrevistas, acerca dos comportamentos alheios, acirram, ainda mais, a separao. Exacerbando tal estado de coisas, um conflito latente entre os funcionrios pblicos (ativos ou inativos), concessionrios legais dos imveis e os clandestinos. interessante recordar que a primeira solicitao feita equipe de pesquisa foi no sentido de solucionar essa questo. Esse conflito impede com mais fora a formao de uma relao de comunidade.

O socilogo, portanto, considera que os moradores da Avenida Modlo se isolam dentro das suas casas e mantm relaes sociais apenas com pessoas de fora do local, donde conclui que eles no formam uma comunidade, embora cite diversas brigas e unies ocasionais que eles j haviam vivenciado na tentativa de modificar questes comuns referentes sua moradia. Para ele, a convivncia fruto dessas disputas e unies, causadas por questes como consumo de gua, de energia eltrica ou ocupao irregular do imvel, ao invs de assinalarem interesses comuns, demonstram distanciamento.

Na concepo de comunidade do socilogo, as relaes devem ser harmnicas e pautadas por critrios bastante estanques de atividades associativas. A convivncia,

mesmo que conflituosa, as fofocas, as associaes eventuais entre moradores legais e ilegais, nada disso considerado por ele como aspectos demonstrativos de relaes sociais decorrentes da proximidade territorial e do surgimento de interesses comuns. O socilogo, embora seja bem sucedido em apontar que uma localizao territorial no produz por si s uma comunidade, se equivoca ao no perceber claras relaes sociais entre os moradores da Avenida Modlo.

Sua avaliao da inexistncia de uma comunidade na Avenida se pauta por uma concepo muito prxima proposta por Redfiled de harmonia e coerncia scio- cultural. A indevida utilizao da proposta analtica de Geertz s evidencia o quanto este especialista do patrimnio se norteia pelas noes de homogeneidade de cultura popular que as polticas pblicas patrimoniais tm como forte tendncia. Esta percepo da cultura popular como harmnica e homognea fica ainda mais evidente na proposta de atuao de Srgio dos Santos para o SPHAN no caso da Avenida Modlo.

No tpico Metodologia: as etapas da pesquisa, Srgio dos Santos explica que o mtodo utilizado de abordagem aos moradores da Avenida foi de entrevista aberta, sem o uso do gravador para impedir eventuais inibies. Foram entrevistados os responsveis por cada uma das oito casas. O que ele destaca de mais significativo durante as visitas dos entrevistadores foi o que avaliou como uma mudana de comportamento por parte dos moradores da Avenida. O socilogo novamente enfatiza a participao positiva dos especialistas do SPHAN no cotidiano da Avenida e o papel redentor do tombamento da mesma e da elevao de seu status como patrimnio histrico tombado por um rgo federal, que possibilitaram que ela desenvolvesse uma vizinhana e se tornasse mais limpa e sem a aparncia de um cortio.

O que de alguma forma surpreendeu foi mudana de comportamento na vila. Com o desenrolar do trabalho, os moradores passaram a se freqentar, a comentar as perguntas feitas durante as entrevistas. Estas informaes foram prestadas em off e os contatos de vizinhana passaram a tornar-se ostensivos. A presena da equipe pesquisadora, em visitas quase dirias, atenuou sobremaneira os conflitos existentes; a vila ficou mais limpa sem o aspecto de cortio que se via no incio.

Ele finaliza o Levantamento Social com o item Proposta de atuao e concluso.

Em sua avaliao, existem trs dados bsicos que devem nortear a atuao do SPHAN

no caso da Avenida Modlo: 1) A propriedade do imvel e do terreno pertence ao governo estadual; 2) No h uma uniformidade jurdico-administrativa dos moradores da vila; 3) A vila no se constitui em comunidade na concepo scio-antropolgica do termo. Partindo dessas trs observaes, ele prope uma linha de ao durante o processo de restaurao do imvel.

1) (...) o primeiro item da proposta aponta na direo de iniciarem-se entendimentos com o governo estadual para que, como proprietrio do imvel, participe da restaurao, seja com recursos financeiros, materiais e ou humanos;2) Este entendimento com o governo estadual visaria tambm a resolver a questo dos moradores irregulares (...);3) Na medida em que no se pode considerar a vila como uma comunidade, deve- se desenvolver esforos no sentido de seus moradores tornarem-se participantes do processo de restaurao e zelosos de sua conservao.

Para o socilogo, esse processo de envolvimento dos moradores deve ser desdobrado nas seguintes etapas:

a) Como j foi apontado, a soluo dos moradores irregulares, muitos dos quais so desagregadores e desarticuladores de uma organizao comunitria (...);b) Articulao da SPHAN com moradores que se disponham a exercer um papel participante, aproveitando-se lideranas locais. (...) Estas lideranas seriam reforadas e reconhecidas pelos demais e respaldadas tanto pela SPHAN quanto pelo governo estadual.c) Ao educativa e preventiva junto a essas lideranas e aos demais moradores no intuito de incutir-lhes os conceitos e a importncia do patrimnio e os benefcios que o zelo, a conservao e a auto-fiscalizao realizados podem trazer.

Srgio dos Santos finaliza o seu trabalho de Levantamento Social dos Habitantes do Conjunto da Avenida Modlo concluindo que, se naquele momento ela no poderia ainda ser classificada como constituda por uma comunidade, os seus moradores possuam um potencial de formao comunitria que deveria ser aproveitado e explorado. Ou seja, aps toda pesquisa sobre o universo cultural dos habitantes da Avenida, ele entende que a participao comunitria deve ser harmnica e estruturada por princpios de homogeneidade cultural, mesmo que esta seja criada ou estimulada por agentes externos com um papel educador.

A busca pela comunidade integrada e educada permanecer como norteadora de muitas das concepes patrimoniais relacionadas moradia, como ser visto nos prximos captulos. E o conceito de comunidade continuar sendo utilizado para legitimar a valorizao da cultura popular pelos rgos patrimoniais brasileiros, embasar seus pedidos de preservao e tambm justificar a participao dos profissionais de Cincias Sociais. Mesmo que tais especialistas projetem uma realidade harmnica, como foi o caso de Srgio dos Santos e sua obsesso de tornar comunitria a Avenida Modlo para que ela pudesse ser de fato enunciada como um patrimnio cultural autntico.

CAPTULO 2

UMA DISPUTA PELOS LUGARES DA CIDADE

O Globo, 05/11/2001.

Jornal do Brasil, 25/07/2001.

O Globo, 26/07/2001.

O Globo, 05/08/2001.

Jornal do Brasil, 28/07/2001.

A nfase discursiva dos especialistas do SPHAN no encaminhamento do Processo do Tombamento da Avenida Modlo recaiu sobre a valorizao histrica, artstica e cultural de um conjunto de casas que seria capaz de representar um perodo do desenvolvimento urbano, uma forma especfica de ocupao do espao e um modo de vida peculiar a um determinado segmento da sociedade. Esse processo, no entanto, foi apenas uma das manifestaes, a primeira em mbito federal, de um ciclo de propostas de preservao de habitaes que surgiram com fora na dcada de 1980. Outras polticas de patrimnio baseadas na idia da diversidade cultural tambm pipocaram de forma localizada em rgos pblicos estaduais e municipais. Na cidade do Rio de Janeiro, particularmente com a criao de ambientes culturais pela prefeitura, o debate se ampliou e movimentou diferentes experincias individuais e coletivas de percepo e utilizao do espao.

2.1. O patrimnio e a cidade: primeiros passos

O primeiro programa patrimonial idealizado e implementado na cidade do Rio de Janeiro destinado a preservar reas de interesse cultural foi o Corredor Cultural do Centro. Nele, j havia a tentativa da representao de aspectos histricos, artsticos e culturais da vida da cidade atravs da preservao de um conjunto de edificaes. Seus estudos comearam em 1979 e foram concludos em 1983, tendo como resultado a preservao de cerca de 1.300 edificaes. Os critrios de preservao, bem como a orientao sobre as reformas necessrias dos bens, foram encaminhados pelo Escritrio Tcnico do Corredor Cultural, ligado administrativamente ao Instituto Municipal de Arte e Cultura Rio Arte IMAC/ RIOARTE.

Um dos principais articuladores do projeto foi o arquiteto Augusto Ivan de Freitas Pinheiro, atualmente subsecretrio municipal de Urbanismo e diretor do Instituto Pereira Passos. Ele concedeu, em maro de 2004, uma entrevista ao jornal Capital Cultural o Jornal do Centro da Cidade, onde explicitou as concepes patrimoniais que guiaram a seleo dos bens preservados.

A idia era a de preservar um conjunto de edificaes histricas no Centro da Cidade. Grosso modo, poderamos dizer que o Centro dispe de um conjunto arquitetnico importante da poca da Colnia, (...) uma rea da poca do Imprio (...) e finalmente um trecho que representaria a Repblica. (...) A idia era proteger e preservar estes trs perodos de nossa histria e tambm os monumentos arquitetnicos desta poca, que esto nestes lugares. Queramos preservar no s a arquitetura. O Corredor Cultural no tinha o objetivo de preservar apenas os prdios, mas tambm preservar um pouco da vida que ainda existia nesses prdios. (...) Tnhamos a percepo de que era preciso preservar um pouco de nossa vida e de nossa histria representada por estes ambientes.

No embalo dos debates em torno da criao do Corredor Cultural do Centro foi criada, em 1985, a rea de Proteo Ambiental APA dos bairros da Sade, Gamboa, Santo Cristo e parte do Centro, projeto que ficou conhecido pela abreviao SAGAS. Oarquiteto Luis Eduardo Pinheiro8, atual diretor do Departamento de Inventrio e

8 Entrevista concedida a mim em setembro de 2003.

Planejamento DIP/DGPC9, considera essa APA fundamental no processo de estabilizao das prticas patrimoniais de preservao de ambientes culturais na cidade, j que ela contou com uma grande mobilizao de seus moradores e com a participao de diversas instituies pblicas ligadas aos governos federal, estadual e municipal.