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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MSICA
MESTRADO INTERINSTITUCIONAL UFBA / EMBAP REA DE CONCENTRAO: EXECUO MUSICAL
MARGARETH MARIA MILANI
PRELDIOS TROPICAIS DE GUERRA-PEIXE: UMA ANLISE ESTRUTURAL E SUA PROJEO NA CONCEPO INTERPRETATIVA DA OBRA
Salvador 2008
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MARGARETH MARIA MILANI
PRELDIOS TROPICAIS DE GUERRA-PEIXE: UMA ANLISE ESTRUTURAL E SUA PROJEO NA CONCEPO INTERPRETATIVA DA OBRA
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Msica da Escola de Msica da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Msica. rea de Concentrao: Execuo Musical Orientadora: Prof. Dr. Diana Santiago da Fonseca
Salvador 2008
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Catalogao na publicao elaborada por Mauro Cndido dos Santos CRB 1416-9.
Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)
.
C289m Milani, Margareth Maria. Preldios tropicais de Guerra-Peixe: uma anlise estrutural e sua projeo na concepo interpretativa da obra / Margareth Maria Milani. Salvador, 2008. 236f. apndice + 1 DVD + anexo.
Orientador: Prof. Dr. Diana Santiago da Fonseca. Dissertao (Mestrado em Execuo Musical) Universidade Federal da
Bahia - Programa de Ps-Graduao em Msica. 2008. Inclui bibliografia.
1. Performance musical - Teses. 2. Interpretao musical - Teses.
3. Anlise musical - Teses. 4. Anlise Teses. 5. Harmonia - Teses. I. Fonseca, Diana Santiago da. II. Universidade Federal da Bahia. Programa de Ps-Graduao em Msica. III. Ttulo.
CDU 786.2:781.68
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Dine
Por ter contribudo na minha formao musical e pessoal.
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AGRADECIMENTOS
Ao Giampiero, pelo companheirismo compartilhado.
Aos meus pais, Osmar e Marlia, pela delicadeza com que cuidaram da minha
casa e do meu jardim durante minha estada em Salvador.
minha orientadora, Prof Dr Diana Santiago, pelas observaes claras e
pontuais, objetivas e eficientes, proporcionando o encaminhamento do trabalho.
Aos meus colegas e amigos Carlos Alberto Assis pelo apoio analtico, Leilah
Paiva e Srgio Andr pelo apoio pianstico.
Ao amigo Oswaldo Aranha por ter colocado a minha disposio seu acervo
fonogrfico.
Aos colegas da Escola de Msica e Belas Artes do Paran, pelo incentivo.
Ao Departamento de Instrumentos Polifnicos DIP, por propiciar a reduo
da minha carga horria semanal em sala de aula, contribuindo enormemente para a
concluso desta dissertao.
As bibliotecrias da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ);
Universidade do Rio de Janeiro (UNI-RIO); Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG); e da Fundao Biblioteca Nacional (BN), que me enviaram o material que
solicitei, com muita gentileza, dedicao e prontido.
Direo da EMBAP, aos coordenadores do MINTER, da EMBAP e da
UFBA, s secretrias da EMBAP e da UFBA e aos demais envolvidos neste projeto
que se disponibilizaram e participaram com empenho e dedicao, meu
agradecimento.
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Na interpretao se faz presente a diferena que habita em cada um de ns,
onde o intrprete se presentifica deixando sua marca,
impossibilitando que se faa na performance um cpia original da obra,
mas sim, tornando-a nica e irrepetvel, um ato singular.
Marlia Laboissire
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RESUMO
Este trabalho trata de questes relativas s interfaces entre anlise, interpretao e performance na coleo de peas denominada Preldios Tropicais do compositor brasileiro Csar Guerra-Peixe (1914-1993). Propondo uma reflexo abrangente sobre o entrelace das trs atividades, procuramos delimitar o quanto possvel, atravs da anlise de uma obra, constituir possibilidades interpretativas. Uma contextualizao histrica do compositor, encontrada no segundo captulo, propiciou o levantamento de informaes pertinentes trajetria estilstica de Guerra-Peixe. O referencial analtico da coleo foi elaborado a partir de textos de autores como Persichetti, Bent, Piston, Kostka e Payne, Schoenberg, Antenor Ferreira Corra entre outros. O marco terico da investigao analtica das dez peas da coleo foi o livro do prprio Guerra-Peixe, Melos e harmonia acstica princpios de composio musical; quanto s questes pertinentes ao modalismo, foi a obra da professora Ermelinda Paz, O Modalismo na Msica Brasileira. Consideraram-se as tendncias contemporneas da pesquisa em msica, que questiona uma perspectiva interpretativa absoluta de uma obra de arte. Atravs da transposio da trade citada (anlise, interpretao e performance), verificou-se a possibilidade e a pertinncia na construo de um panorama entre conhecimentos levantados e sua projeo na obra, criando caminhos e princpios para uma prtica interpretativa e performtica da coleo. O captulo final, atuando como elemento catalisador das reflexes anteriormente feitas, prope referncias e conexes entre o ato de analisar, interpretar e executar a obra Preldios Tropicais em sua ntegra. Palavras-chave: Guerra-Peixe. Preldios Tropicais. Msica para Piano. Anlise. Interpretao. Performance. Harmonia. Procedimentos ps-tonais. Nacionalismo. Material Folclrico.
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ABSTRACT
This paper perceives the issues regarding the interfaces between analysis, interpretation and performance of the piece collection named Preldios Tropicais by the Brazilian composer Csar Guerra-Peixe (1914-1993). In order to present a holistic reflexion on the bond of these three activities, this paper endeavored to delimitate as much as possible, by analyzing one work, to constitute interpretative possibilities. A historical contextualization, found in the second chapter, has allowed the finding of information pertinent to Guerra-Peixes stylistic trajectory. The collections analytical referential was elaborated from texts of authors such as Persichetti, Bent, Piston, Kostka and Payne, Schoenberg, Antenor Ferreira Corra, among others. The established theoretical framework of the 10 piece collection analytic investigation was Guerra-Peixes own book, Melos e harmonia acstica princpios de composio musical; regarding the issues related to modalism, it was the teachers Ermelinda Paz book, O Modalismo na Msica Brasileira. The contemporary music research tendencies were herein considered, discussing an absolute interpretative perspective on a work of art. By transposing the cited triad (analysis, interpretation and performance), it has been detected the possibility and relevance of a panorama construction among the found knowledge and its projection within the piece, originating paths and principles for an interpretative and performable practice of the collection. The closing chapter, acting as a catalyst element of the previously conducted reflexions, proposes references and links between the acts of analyze, interpret and execute the Preldios Tropicais work integrally. Keywords: Guerra-Peixe. Preldios Tropicais. Piano Music. Analysis. Interpretation.
Performance. Harmony. pos-tonal Procedures. Nationalism. Folkloric Material.
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LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 exemplo de dissonncias resolvidas............................................ 83
1 A Preldio Tropical n. 1 Cantiga de Folia de Reis...................................... 83
FIGURA 2 exemplo de sentido cadencial..................................................... 83
2 A Preldio Tropical n. 1 Cantiga de Folia de Reis...................................... 83
2 B Preldio Tropical n. 1 Cantiga de Folia de Reis...................................... 84
FIGURA 3 exemplo de bordadura................................................................... 84
3 A Preldio Tropical n. 10 Tangendo........................................................... 84
3 B Preldio Tropical n. 10 Tangendo........................................................... 84
FIGURA 4 exemplo de cnone......................................................................... 84
4 A Preldio Tropical n. 9 Polqueada............................................................ 84
FIGURA 5 exemplo de estrutura cromtica.................................................... 85
5 A Preldio Tropical n. 9 Polqueada........................................................... 85
FIGURA 6 exemplo de melodia em graus conjuntos relaes de 2as....... 85
6 A Preldio Tropical n. 5 Pequeno Bailado................................................. 85
6 B Preldio Tropical n. 8 Cantiga Plana...................................................... 85
6 C Preldio Tropical n. 8 Cantiga Plana...................................................... 86
6 D Preldio Tropical n. 10 Tangendo.......................................................... 86
FIGURA 7 exemplo de ostinato....................................................................... 86
7 A Preldio Tropical n. 2 Marcha Abaianada.............................................. 86
7 B Preldio Tropical n. 6 Reza-de-Defunto................................................. 86
7 C Preldio Tropical n. 7 Tocata................................................................. 87
FIGURA 8 exemplo de trades deformadas.................................................... 87
8 A Preldio Tropical n. 5 Pequeno Bailado................................................. 87
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FIGURA 9 exemplo de acordes em quartas................................................... 88
9 A Preldio Tropical n. 5 Pequeno Bailado................................................. 88
FIGURA 10 exemplo de superposio de acordes.......................................... 88
10 A Preldio Tropical n. 4 Ponteado de Viola............................................. 88
10 B Preldio Tropical n. 5 Pequeno Bailado............................................... 89
10 C Preldio Tropical n. 8 Cantiga Plana.................................................... 89
10 D Preldio Tropical n. 9 Polqueada......................................................... 89
FIGURA 11 exemplo de estrutura modal.......................................................... 90
11 A Preldio Tropical n. 2 Marcha Abaianada............................................ 90
11 B Preldio Tropical n. 2 Marcha Abaianada............................................ 90
FIGURA 12 exemplo de estruturas com caractersticas folclricas.............. 90
12 A Preldio Tropical n. 1 Cantiga de Folia de Reis................................... 90
12 B Preldio Tropical n. 1 Cantiga de Folia de Reis................................... 90
FIGURA 13 exemplo de Harmonia Acstica mistura de sonoridades........ 91
13 A Preldio Tropical n. 3 Persistncia....................................................... 91
13 B Preldio Tropical n. 5 Pequeno Bailado............................................... 91
13 C Preldio Tropical n. 5 Pequeno Bailado............................................... 92
13 D Preldio Tropical n. 7 Tocata............................................................... 92
FIGURA 14 exemplo de quintas ocas.............................................................. 99
14 A Preldio Tropical n. 7 Tocata............................................................... 99
FIGURA 15 exemplo de acordes com quarto grau acrescentado e uso do trtono............................................................................................... 99
15 A Preldio Tropical n. 1 Cantiga de Folia de Reis................................... 99
FIGURA 16 exemplo de acordes sem tera e com segundo e quarto grau acrescentado................................................................................... 100
16 A Preldio Tropical n. 3 Persistncia....................................................... 100
FIGURA 17 exemplo de trades deformadas ou manchadas........................ 100
17 A Preldio Tropical n. 4 Ponteado de viola.............................................. 100
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17 B Preldio Tropical n. 7 Tocata............................................................... 101
FIGURA 18 exemplo de dissonncias.............................................................. 101
18 A Preldio Tropical n. 7 Tocata............................................................... 101
FIGURA 19 exemplo de sobreposio de acordes.......................................... 101
19 A Preldio Tropical n. 4 Ponteado de Viola............................................. 101
19 B Preldio Tropical n. 7 Tocata............................................................... 102
19 C Preldio Tropical n. 10 Tangendo........................................................ 102
FIGURA 20 exemplo de estrutura modal.......................................................... 108
20 A Preldio Tropical n. 10 Tangendo........................................................ 108
FIGURA 21 exemplo de estruturas de carter folclrico teras duplas..... 108
21 A Preldio Tropical n. 2 Marcha Abaianada............................................ 108
21 B Preldio Tropical n. 2 Marcha Abaianada............................................ 108
21 C Preldio Tropical n. 6 Reza-de-Defunto............................................... 109
FIGURA 22 exemplo de ritmo de baio............................................................. 109
22 A Preldio Tropical n. 4 Ponteado de Viola............................................. 109
FIGURA 23 exemplo de citao....................................................................... 109
23 A Preldio Tropical n. 6 Reza-de-Defunto............................................... 109
FIGURA 24 exemplo de superposio modal e tonal...................................... 110
24 A Preldio Tropical n. 2 Marcha Abaianada............................................ 110
24 B Preldio Tropical n. 2 Marcha Abaianada............................................ 110
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SUMRIO
1 Introduo................................................................................................. 13
2 Guerra-Peixe e sua trajetria composicional........................................ 21
2.1 Guerra-Peixe dodecafonista.......................................................... 23
2.2 Guerra-Peixe nacionalista............................................................. 31
2.3 Guerra-Peixe e a leitura de Mrio de Andrade.............................. 35
2.4 Guerra-Peixe musiclogo.............................................................. 37
2.5 Guerra-Peixe professor................................................................. 39
2.6 Guerra-Peixe msico popular........................................................ 41
2.7 Guerra-Peixe e outras influncias................................................. 44
2.8 Guerra-Peixe, uma fuso de idias............................................... 51
3 Signos, Interpretao, Anlise e Performance...................................... 55
4
Procedimentos composicionais ps-tonais e sua relao com a
obra Preldios Tropicais........................................................................ 75
4.1 Estruturas harmnicas tonais em Guerra-Peixe............................ 83
4.2 Estruturas harmnicas modais...................................................... 102
4.3 Estruturas fraseolgicas: motvicas, formais e rtmicas................ 112
5 Consideraes Interpretativas................................................................ 116
6 Consideraes Finais............................................................................. 127
Referncias............................................................................................... 133
Apndice I Anlise dos Preldios Tropicais..................................... 145
Apndice II DVD com a execuo integral da obra.......................... 221
Anexo Excertos das partituras.......................................................... 222
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1. INTRODUO
O presente estudo tem como objeto de investigao a obra pianstica de
Csar Guerra-Peixe denominada Preldios Tropicais. A coleo consta de uma srie
de 10 Preldios escritos nos anos de 1979 (n 1, 2, 3 e 4), 1980 ( n 5, 6, 7), e
1988. (n 8, 9, 10)1 Estes preldios possuem ttulos sugestivos tais como: 1
Cantiga de Folia de Reis; 2 Marcha Abaianada ; 3 Persistncia ; 4 Ponteado
de Viola ; 5 Pequeno Bailado ; 6 Reza-de-Defunto ; 7 Tocata ; 8 Cantiga
Plana ; 9 Polqueada ; 10 Tangendo, 2 dando-nos a impresso de inspirao
folclrica e popular obra.
O ano de 1979 marca, tambm, o incio da srie de dez Preldios Tropicais, editados pela Irmos Vitale. Na ocasio, em conversa,
Guerra-Peixe se expressaria de maneira enftica, definindo o termo tropicalismo, como a fauna, a flora, enfim toda a cultura dos trpicos em torno de nossas vidas. Os Preldios Tropicais, portanto, no s
retratam nossa cultura, como resumem a vivncia musical do compositor. (SERRO, p. 73)3
Atravs da anlise integral da obra Preldios Tropicais sob o ponto de vista
harmnico e formal, bem como da contextualizao histrica e estilstica do
compositor, pretendeu-se coletar dados na tentativa de fundamentar uma
interpretao criativa e original, de leitura reflexiva, e atravs dela elaborar a
1 PUBLIFOLHA, ART EDITORA. Enciclopdia da Msica Brasileira. 2 ed, So Paulo, p. 375, 1998.
(Verbete: DUPRAT, Rgis & CORREIA, Srgio Nepomuceno Alvim),
2 Editora dos Preldios Tropicais a irmos Vitale, sendo que os de n 7 e 10 tm sua edio
esgotada.
3 SERRO, Ruth. Msica para piano. In: FARIA, A.; BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-
Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 63-85, 2007.
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performance da obra, contemplando diversas facetas e entrelinhas, entremeando os
conhecimentos levantados a fim de atingir maior fruio e coerncia esttica na
execuo da coleo.
Situar a obra de um compositor brasileiro sob um posto de vista cientfico,
interpretativo e performtico, resgatar a memria cultural deste msico e do pas.
Dos 10 Preldios Tropicais escritos por Guerra-Peixe (os primeiros datam de 29
anos atrs), os de n 7 e n 10 esto em edio esgotada.4 No arquivo da Biblioteca
Nacional, no Rio de Janeiro, consta no acervo do n 1 ao n 7, o que significa que os
trs ltimos no esto disponveis ao pblico.5
Guerra-Peixe, depois de tantos percursos diferentes em seu estilo de compor,
encontrou na renovao dos mtodos de aproveitamento do folclore ptrio, como
diria MRIO DE ANDRADE, uma msica nacional sem nacionalismo, (apud FARIA,
p. 40)6 usando valores estticos do folclore, porm trabalhando-os livremente,
renovou a corrente nacionalista.
Em todas as fases percorridas, aprofundou nas questes que lhe pareciam essenciais e construiu, de forma racional e apaixonada, sua posio na msica brasileira. Como resultado de seu temperamento integrador, Guerra-Peixe se exprimiu simultaneamente e com naturalidade entre prticas musicais distintas, historicamente hierarquizadas. A msica popular urbana, [...] proveu a Guerra-Peixe conhecimento dos quais ele jamais se abdicou. Convivendo com msicas e msicos de formao social e intelectual distintas, bem como com outras expresses artsticas, o compositor pode somar conhecimentos e inspiraes traduzidos em sua criao musical. (ASSIS, 2006:110)7
Segundo FARIA, Guerra-Peixe procurava delimitar e fixar os elementos
recolhidos com uma atitude consciente diante do material, e da composio. As
tentativas de sntese e fuso dos elementos nordestinos com elementos sulistas que
4 Uma cpia do Preldio n 10 foi gentilmente cedida por Leilah Paiva Professora de Piano da
Escola de Msica e Belas Artes do Paran. Uma cpia do Preldio n 7 foi gentilmente enviada mim pela Bibliotecria da Biblioteca Nacional.
5 Durante a pesquisa uma cpia dos Preldios 8, 9 e 10 foi remetida Biblioteca Nacional, no Rio de
Janeiro, a fim de complementar o acervo do compositor.
6 FARIA, Antonio Guerreiro de. Modalismo e forma na obra de Guerra-Peixe. In: FARIA, A.; BARROS,
L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 29-45, 2007.
7 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: Conciliaes estticas e culturais na
produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.
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manifestavam diferenas e tambm pontos de contato, demonstraram que a
delimitao e a fixao dos elementos j estavam completas e sob domnio.
(1997:80)8
FARIA, que ao efetuar ampla pesquisa sobre o compositor, obtendo acesso a
fontes primrias ao escrever sua Dissertao de Mestrado, Guerra-Peixe: sua
evoluo estilstica luz das teses andradeanas, comenta que os arquivos pessoais
de Guerra-Peixe encontram-se alocados na residncia de Jane Guerra-Peixe,
sobrinha neta do compositor, e que por testamento a inventariante do esplio.
O material encontra-se guardado, mas no tecnicamente catalogado e acondicionado de maneira apropriada. Os documentos constituem-se em originais; so anotaes diversas, cadernos contendo coleta de material folclrico, pesquisas inditas, apostilas datilografadas, originais de obras, rascunhos de obras, enfim, um material que se constitui em campo farto para a pesquisa musicolgica e que merece especial ateno de entidades interessadas em auxiliar a preservao de nossa memria. (p. 5-6)9
Randolf Miguel, violonista, compositor e professor, aluno e amigo de Guerra-
Peixe, colheu depoimentos de viva voz do compositor, um total de cem horas de
gravao, registrando opinies pessoais, dados da trajetria profissional,
confidncias de carter particular, enfim, histrias da vida de Guerra-Peixe. Estes
depoimentos encontram-se guardados no arquivo pessoal de Miguel, em sua
residncia e so fontes ricas em informaes. (p. 6)10
GRIFFITHS, em seu ndice temtico apresentado na obra Enciclopdia da
Msica do Sculo XX, relaciona os compositores do sc XX aos seus pases de
origem, trazendo apenas um nome para o Brasil: Heitor Villa-Lobos. (p. xiii)11
GORDON, em seu livro sobre a histria da literatura para instrumentos de teclado
tambm no cita o compositor, tendo apenas referendado Ernesto Nazareth, Villa-
Lobos, Lorenzo Fernandez, Mignone, Guarnieri e Claudio Santoro. (p. 414-418)12 No
catlogo HINSON, um dos mais importantes sobre o repertrio pianstico, apenas
8 FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.
Dissertao de Mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.
9 Ibid.
10 Ibid.
11 GRIFFITHS, Paul. A msica moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
12 GORDON, Stewart. A history of keyboard literature. Music for the piano and its forerunners. EUA:
Schirmer, 1996.
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sete dos dez preldios so citados, alm de nenhuma outra obra para piano de
Guerra-Peixe. Podemos vislumbrar atravs da constatao acima, a escassez de
informao sobre os compositores brasileiros no meio musical internacional. (p.
362)13
A pesquisa em msica um veculo de divulgao de saberes artsticos e
valores estticos, podendo alm de resgatar a memria da msica brasileira,
proporcionar ao msico o aprofundamento na compreenso da organizao do
discurso musical e sua natureza sonora, possibilitando-lhe descobertas, como o
carter abstrato, sensvel e racional da msica, assim como as contribuies dos
compositores atravs de suas diversas abordagens e concatenaes, e a
transformao esttica e histrica feita por eles.
DEMO comenta sobre a amplitude da pesquisa na reformulao do
conhecimento dizendo que:
Pesquisa pode significar condio de conscincia crtica e cabe como componente necessrio de toda proposta emancipatria. Para no ser mero objeto de presses alheias, mister encarar a realidade com esprito crtico, tornando-a palco de possvel construo social alternativa. A, j no se trata de copiar a realidade, mas de reconstru-
la conforme nossos interesses e esperanas ... (p. 10)14
A fundamentao terica para o desenvolvimento do presente trabalho teve o
intuito de contextualizar o compositor dentro da esttica e das tendncias histricas
que propiciaram o desenvolvimento de sua obra, a fim de dar maior amplitude e
coerncia na interpretao dos dados obtidos com a anlise da obra como um todo
e das peas individualmente, evitando maior discrepncia quanto ao universo
artstico do compositor.
COPLAND comenta que se examinarmos a questo do carter artstico de
cada compositor, descobriremos que este formado por dois elementos distintos: a
personalidade individual do artista e as influncias do tempo em que ele viveu. [...]
seja qual for a personalidade de um compositor, ela se expressa dentro da moldura
da sua prpria poca. (p. 159)15
13
HINSON, Maurice. Guide to the pianists repertoire. 3 ed. EUA: Indiana University Press, 2000.
14 DEMO, Pedro. Pesquisa: princpio cientfico e educativo. 11 ed. So Paulo: Cortez, 2005.
15 COPLAND, Aaron. Como ouvir e entender a msica de hoje. Rio de Janeiro: Artenova, 1974.
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O Memorial escrito por Guerra-Peixe em 1971 e intitulado: Principais traos
evolutivos da produo musical foi importante fonte por conter informaes de
prprio punho do compositor.
Outra referncia foi o livro Maracatus do Recife, escrito pelo compositor em
1955, um marco representativo em sua trajetria de msico, compositor e
pesquisador. Alguns dos artigos publicados pelo compositor tambm foram
consultados.
Apesar das obras propostas para anlise neste projeto estarem situadas em
um perodo ps serialismo do compositor, no se pode ignorar o quo forte foi a
influncia do mestre Koellreuter em sua formao musical, diretamente com os
ensinamentos da tcnica serial e dodecafnica e tambm com as vrias discusses
estticas durante as aulas e dentro do grupo Msica Viva. O livro de Carlos Kater,
Msica Viva e H. J. Koellreutter, forneceu um excelente panorama da fase
dodecafnica de Guerra-Peixe ampliando o suporte analtico das obras na medida
em que se pode imaginar que este aprendizado no foi simplesmente descartado
pelo compositor, mas que gerou parte do amlgama da personalidade compositiva
de Guerra-Peixe. Segundo Henry BARRAUD, Por mais inslita que possa parecer,
uma obra de arte jamais sai do nada. um elo de uma cadeia; e s se consegue
atingi-la se forem seguidos todos os elos que levam at ela. (p. 11)16
Monografias, dissertaes, teses e o livro Guerra-Peixe. Um msico brasileiro,
de 2007, com inmeros artigos e depoimentos sobre o compositor, foram fontes
mpares para a elaborao do segundo captulo, onde encontramos dados sobre a
trajetria estilstica de Guerra-Peixe na Msica Brasileira, assim como para a
elaborao do captulo seis (denominado Consideraes Finais), que complementa
o captulo cinco onde foram feitas as consideraes interpretativas da coleo
Preldios Tropicais e finaliza o presente trabalho. Esta reviso de literatura propiciou
revelar outros universos sobre o compositor, informaes geralmente no
encontradas em biografias.
A obra de Mrio de Andrade foi decisiva em sua carreira tendo o compositor
encontrado na leitura do livro Ensaio sobre a msica brasileira, novo sentido sua
obra, nas palavras de GUERRA-PEIXE, comeando tudo de novo. (V:4)17 A leitura
16
BARRAUD, Henry. Para compreender as msicas de hoje. So Paulo: Perspectiva, s. d.
17 GUERRA-PEIXE, Csar. Memorial. Cpia datilografada, 1971.
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desta referncia teve o intuito de compreender a transformao esttica ocorrida
com o compositor.
A fim de constatar o quanto o ttulo dado a cada Preldio representou um
elemento esttico-temtico estrutural na concepo da obra, dado seu cunho
folclrico, foi feita pesquisa bibliogrfica sobre as manifestaes folclricas
brasileiras que influenciaram Guerra-Peixe.
A questo analtica foi embasada e abordada em autores consagrados na
rea de anlise harmnica, tais como Persichetti, Piston, Schoenberg, Kostka &
Payne e em novos autores como Antenor Ferreira Corra com seu livro editado em
2006, Estruturaes harmnicas ps-tonais, que muito contribuiu para a elaborao
analtica da obra. Como referendo principal, foi utilizada a obra de Guerra-Peixe:
Melos e harmonia acstica princpios de composio musical, uma apostila
pedaggica para o ensino da composio, transformada em livro e com
conhecimentos baseados na teoria composicional de Hindemith (encontrada nas
obras Practica de la composicion a dos voces e em The craft of musical
composition), partindo do ponto de vista que esta obra seria parte dos
procedimentos utilizados pelo compositor em suas prprias obras.
No que concerne s anlises do material modal a obra da professora
Emerlinda PAZ, O modalismo na Msica Brasileira, constituiu-se praticamente como
nico referendo devido ao pouco material disponvel na rea.
A sustentao analtica harmnica-modal e formal, feita de forma descritiva e
exemplificada, foi contemplada sob o foco da delimitao dos elementos tradicionais
de estruturao musical, bem como dos elementos estticos e sonoros de uma obra
do sc. XX. Relacionando o enfoque esttico e estilstico dado aos materiais sonoros
provenientes de uma tradio musical, com o material resultante da criao do
compositor, considerou-se o ato de analisar como um instrumento de leitura de
entrelinhas, que possibilita reflexo, criatividade e originalidade nas concepes
interpretativas.
A definio analtica de KATER & FERRAZ corroboram as observaes acima:
... devemos nos ater ao fato de que a reflexo analtica se constitui
num dos pontos fundamentais para a renovao, e no diluio, dos modos criativos do passado, remoto ou imediato. Seu poder renovador se estabelece justamente quando a anlise reflete as formas vivas e
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pulsantes da percepo e do pensamento musical contemporneos. (p. v)18
Artigos diversos tambm tiveram um papel importante na coleta de
informaes para a elaborao do captulo trs, que trata da relao entre os signos,
anlise e interpretao, por representarem opinies muitas vezes controversas, com
diferentes facetas estticas sobre o ato de analisar e interpretar, e por abordarem as
principais tendncias contemporneas em interpretao musical e performance.
Com a compilao de todos estes dados, tornou-se cabvel tentar estabelecer
um processo de reconhecimento e reavaliao do universo musical pretendido pelo
compositor na obra Preldios Tropicais, pois sob o ponto de vista de
KOELLREUTTER, [...] os componentes da obra musical no so
independentemente analisveis, mas representam um conjunto de inter-relaes
dinamicamente perceptveis em constante movimento. (p. 55)19
O trabalho est dividido em seis captulos; referncias; dois apndices, o
primeiro com as anlises descritivas e exemplificadas da coleo, o segundo com
um DVD gravado ao vivo com a obra integral; e um anexo com excertos das
partituras e observaes sobre possveis erros encontrados na edio.
No segundo captulo, denominado Guerra-Peixe e sua trajetria
composicional, encontramos um panorama estilstico do compositor, contemplando
informaes histricas relevantes, que contextualizaram a obra e o compositor, e
que referendaram a concepo interpretativa, bem como a performance da obra
Preldios Tropicais.
No terceiro captulo, denominado Signos, Interpretao, Anlise e
Performance, buscou-se encontrar em vrias reflexes artsticas que relacionam as
tarefas, amplitude e pluralidade, bem como a implicao destas nas escolhas feitas
pelo intrprete ou performer.
No quarto captulo, denominado Procedimentos composicionais ps-tonais e
sua relao com a obra Preldios Tropicais, encontra-se a reviso bibliogrfica que
referendou a anlise da obra, o pilar de sustentao de todo o trabalho analtico. Ao
buscar o esclarecimento de processos, idioma e traos composicionais, focamos
18
KATER, Carlos. FERRAZ, Silvio. Cadernos de anlise musical 4. So Paulo: Atravez, 1990.
19 KOELLREUTTER, H. J. Terminologia de uma nova esttica musical. Porto Alegre: Movimento,
1990.
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20
como referncia de base obra do prprio compositor Csar Guerra-Peixe, Melos e
harmonia acstica princpios de composio musical. Autores diversos que
contemplam as prticas de anlise harmnica tambm foram fonte de consulta.
O quinto captulo, denominado Consideraes interpretativas, apresenta uma
descrio de cada um dos preldios sob o ponto de vista interpretativo. Os recursos
esto descritos sob a tica do uso do pedal e sua ampla gama de possibilidades,
sonoridades, movimentos e gestos piansticos, entre o material motvico encontrado,
principalmente no que se refere aos elementos recolhidos da cultura popular e os
estilizados, elaborando a concepo artstica em relao ao leque de material
encontrado na investigao.
No ltimo captulo, denominado Consideraes finais, o texto atua como
elemento catalisador das reflexes anteriormente feitas, propondo referncias e
conexes entre o ato de analisar, interpretar e executar a obra Preldios Tropicais
em sua ntegra, possibilitando a articulao resultante das especulaes feitas com
o texto musical e suas implicaes analticas. Essas sugestes oportunizam
equilbrio e suporte concepo da obra, atravs da anlise e da contextualizao
histrica e estilstica do compositor, possibilitando um planejamento sonoro e a
construo do processo de interpretao e performance da coleo pelos pianistas
nela interessados.
No apndice I, propusemos a anlise descritiva e exemplificada sob o ponto
de vista estrutural, motvico e fraseolgico de cada um dos dez preldios, que
referendou e norteou as reflexes atravs da identificao dos elementos presentes
no idiomtico composicional e dos procedimentos estruturais empregados, tais
como: recursos tonais e modais, polarizaes harmnicas, princpio da semelhana
ou diferena, consonncias e dissonncias funcionais, organizao fraseolgica,
materiais motvicos e temticos utilizados.
O apndice II apresenta um DVD gravado ao vivo antes da defesa, dia 08 de
agosto de 2008 9:00 h, no Auditrio Bento Mossurunga, na Escola de Msica e
Belas Artes do Paran, em Curitiba, com a execuo integral da obra Preldios
Tropicais.
No anexo encontramos excertos das partituras e comentrios sobre erros
encontrados na edio.
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2. GUERRA-PEIXE E SUA TRAJETRIA COMPOSICIONAL
(1914, Petrpolis RJ / 1993, idem)
Compositor criativo, original, homem de personalidade forte, estudioso, violinista atuante, defensor tenaz dos direitos do msico, polemista por excelncia, uma figura da qual pode-se discordar algumas vezes, mas cujas opinies merecem sempre uma anlise meticulosa e profunda. (VIEIRA, p. 1)1
Csar Guerra-Peixe foi um msico de muitas facetas. Compositor, regente,
professor, violinista, pesquisador, musiclogo e folclorista, excelente arranjador e
orquestrador tanto de msica erudita quanto de msica popular.
Teve fases distintas em sua criao, buscando uma identidade prpria,
dialogando em diversos meios, em uma multiplicidade de sons, culturas e espaos,
misturando e transitando entre vrias prticas musicais, mesclando e fundindo
conhecimentos, externando a diversidade em sua produo. Nas palavras de Rosa
NEPOMUCENO, [...] brigou pelo direito de ser livre para navegar em mares abertos
e aportar nas mais diversas regies do Brasil sonoro. (p. 13)2
[...] msica tonal clssico-romntica, msica tonal-modal folclrica, msica tonal nacionalista, msica atonal-dodecafnica; rdios, orquestras, instituies de ensino, bares, cassinos, salas de concerto; artes plsticas, cinema, fotografia, literatura. Seu estilo e suas opes estticas expressam e so motivados por esta multiplicidade cultural, muito embora no fossem por ela determinados. (ASSIS, p. 13)3
1 VIEIRA, Sonia Maria. Caractersticas instrumentais na obra para piano de Csar Guerra-Peixe.
Dissertao de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, 1985, 112 fls.
2 NEPOMUCENO, Rosa. Csar Guerra-Peixe. A Msica sem fronteiras. Rio de Janeiro: Funarte,
2001.
3 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na
produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.
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O professor Newton Pdua forneceu os primeiros conhecimentos terico-
tcnicos que lhe possibilitaram o domnio do mtier (FARIA, p. 75)4. Nesta fase de
formao Guerra-Peixe comps 21 obras em estilo neo-clssico, sendo que 19 delas
esto excludas do seu catlogo e tm sua execuo interditada. Segundo ASSIS, o
compositor considerou-as anacrnicas e desprovidas da inventividade prpria ao
fazer artstico. (p. 116-117)5
Em Petrpolis estudou violino na Escola de Msica Santa Ceclia, com o
professor tcheco Gao Omacht, onde passou a lecionar como professor assistente
em 1930, aos dezesseis anos. Durante este perodo passou a ir semanalmente ao
Rio de Janeiro para estudar com Paulina d Ambrsio e em 1932 ingressou no
Instituto Nacional de Msica. Transfere-se definitivamente para o Rio em 1934
passando a tocar em restaurantes, bailes e gafieiras, comeando a compor msica
popular usando pseudnimos. As orquestras de baile, assim como as de cinema
mudo, foram grande fonte de aprendizado, onde costumava tocar de ouvido e
improvisar temas de jazz, tendo ainda muitas vezes, organizado as trilhas sonoras
dos filmes. (DUPRAT, p. 355)6
Em 1941 entrou para o Conservatrio Brasileiro de Msica, fundado por
Lorenzo Fernandez, onde, orientado por Newton Pdua, tornou-se o primeiro msico
no Brasil formado em Fuga e Contraponto nos moldes do Conservatrio de Paris e o
primeiro aluno do Conservatrio a concluir o curso de composio. (AGUIAR, p.
132)7
Inicia carreira radiofnica, outro laboratrio de formao. Compe diversas
trilhas sonoras para o cinema brasileiro, bem como para historinhas infantis. Arranjos
para o teatro de revista, rdio, televiso e discos. (MIGUEL, p. 18)8
4 FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.
Dissertao de Mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.
5 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na
produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.
6 PUBLIFOLHA, ART EDITORA. Enciclopdia da Msica Brasileira. 2
ed, So Paulo, p. 375, 1998.
(Verbete: DUPRAT, Rgis & CORREIA, Srgio Nepomuceno Alvim),
7 AGUIAR, Lcio. As mdias do So Maestro. In: FARIA, A.; BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.)
Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 129-146, 2007.
8 MIGUEL, Randolf. Guerra-Peixe, arranjador de msica popular. In: FARIA, A.; BARROS, L. O. C.;
SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 15-27, 2007.
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MARIZ considera o compositor como o grande nome da primeira gerao ps-
nacionalista pela excepcional experincia tanto no setor de msica erudita quanto no
setor de msica popular, sendo um msico de grande mtier. (p. 317)9
HORTA considera que Guerra-Peixe ocupa na msica brasileira uma posio
semelhante de Bartk na msica europia, foi o que mais sistematicamente
estudou o nosso folclore e trabalhou o seu instrumento at sentir-se capaz de
compor no que considera ser um idioma verdadeiramente nacional. (apud
McLEISH, p. 48)10
Nas palavras de sua amiga, a pianista Sonia Maria VIEIRA:
Signatrio do Manifesto Msica Viva de 1946, trilhou primeiramente o
caminho dodecafnico, abandonando-o mais tarde pela procura do nacional na Msica Brasileira. Para realizar esse intento, embrenhou-se pelo interior de Pernambuco e de So Paulo, convivendo diuturnamente com o fato folclrico, realizando trabalhos serssimos de pesquisa, dos quais resultaram livros e artigos [...] Esse conhecimento vivenciado por ele, to intensamente, foi digerido por sua sensibilidade, maturado e, como produto final, naturalmente incorporado sua msica. (p. 1-2)11
2.1 GUERRA-PEIXE DODECAFONISTA
Uma segunda fase do modernismo musical vem ento se instalar. As descobertas de novas perspectivas de organizao do espao musical e a criao de sintagmas originais de alturas, representadas notadamente pelo atonalismo, dodecafonismo, e explorao do serialismo, serviro de referncia para a produo de alguns compositores brasileiros. (KATER, p. 15)12
Em 1944, Guerra-Peixe entrando em contato com o msico Koellreutter,
engaja-se com a Msica Dodecafnica 13 e Serial, filiando-se ao grupo Msica Viva,
9 MARIZ, Vasco. Histria da Msica no Brasil. 6 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
10 McLEISH, Kenneth & Valerie. Guia do ouvinte de msica clssica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1993.
11 VIEIRA, Sonia Maria. Caractersticas instrumentais na obra para piano de Csar Guerra-Peixe.
Dissertao de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, 1985, 112 fls.
12 KATER, Carlos. Msica Viva e H. J. Koellreutter: movimentos em direo modernidade. So
Paulo: Musa Editora, Atravez, 2001.
13 O dodecafonismo surgiu em 1923, criado pelo compositor austraco Arnold Schoenberg. Segundo o
prprio Schoenberg a tcnica de composio foi uma decorrncia historicamente inevitvel, devido emergncia de sistematizao do atonalismo livre (ou suspenso como preferia Schoenberg), idioma musical caracterizado pelo abandono das relaes meldicas e harmnicas do sistema tonal, que j vinha sendo assistido em obras do romantismo tardio alemo de Wagner, mas sua expanso atribuda a Schoenberg. (ASSIS, p. 85) O dodecafonismo objetivava revises conceituais sobre
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24
contestando as correntes nacionalistas ortodoxas atravs de novas proposies: a
renovao esttica da msica brasileira.
O Grupo, fundado em 1939 pelo msico alemo radicado no Brasil, pretendia
a renovao e a evoluo da linguagem musical. Defendia a introduo de tcnicas
contemporneas de composio, novas reflexes e o abandono dos processos ps-
romnticos. Koellreuter, um msico dotado de conhecimento sobre diversas prticas
musicais, e imbudo de um esprito questionador, propunha uma concepo artstica
universalista, integrada s correntes estticas da msica contempornea, alheia a
preconceitos e doutrinas. (NEVES, p. 101-103, passim)14
O musiclogo Vasco MARIZ comenta a importncia de Koellreutter no meio
musical brasileiro na medida em que instaurou a reflexo sobre o papel do msico e
da linguagem musical diante dos problemas poltico-sociais contemporneos. (apud
ASSIS, p. 118)15
Ana Cludia de ASSIS acredita que a semente lanada inconscientemente
por Koellreutter pode ser germinada porque o solo era fecundado pelo desejo e
entusiasmos dos jovens compositores em revigorar o ambiente musical daquela
poca.
Os dodecafonistas brasileiros tinham em comum o anseio pelo rompimento com as regras de um sistema conservador e indiferente s transformaes mundiais, compartilhando posicionamentos estticos-ideolgicos expressos tanto coletivamente por meio de manifestos e declaraes de princpios, como individualmente, por meio da criao musical. Cada compositor adepto ao dodecafonismo exprimia-se dentro de seu prprio estilo, este construdo a partir de suas experincias e impresses da realidade em transformao. (p. 242)16
Segundo NEVES, o papel de Koellreutter na evoluo musical de Guerra-
Peixe foi fundamental, libertando-o da linguagem tonal atravs do estmulo e impulso
que lhe dava o Grupo Msica Viva. O carter apaixonado do compositor levou-o a
discursividade e direcionalidade, forma e contedo, tempo e espao e uma concepo musical autnoma, desvinculada de qualquer significado extra-musical, msica com alto grau de abstracionismo. A msica dodecafnica no expressaria nenhum outro significado seno o puramente musical, da a legitimidade da srie geradora como idia unificadora.
14 NEVES, Jos Maria. Msica contempornea brasileira. So Paulo: Ricordi Brasileira, 1981.
15 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na
produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.
16 Ibid.
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25
dominar a nova tcnica em pouco tempo, com total espontaneidade, fazendo-o
representante mximo da nova escola e seu defensor mais ardente. (p. 102)17
Um manifesto publicado em maio 1944 e assinado por Guerra-Peixe, Claudio
Santoro, entre outros compositores ligados ao movimento, diz:
O grupo Msica Viva surge como uma porta que se abre produo
musical contempornea, participando ativamente da evoluo do esprito. A obra musical, como a mais elevada organizao do pensamento e sentimentos humanos, como a mais grandiosa encarnao da vida, est em primeiro plano no trabalho artstico do Grupo Msica Viva. (NEVES, p. 94)18
Segundo ASSIS, este foi um perodo histrico incomparvel em torno da
msica erudita no Brasil, onde se deu o mais significativo debate. Conceitos como
tradio e inovao, nacional e universal, carter social da msica, faziam-se
presentes nos discursos e nas realizaes dos msicos brasileiros, estes,
estimulados pelo ambiente poltico nacional e mundial.
[...] o discurso daqueles que ao aderir ao dodecafonismo, alimentaram a expectativa de renovar as formas de expresso tradicionalmente voltadas para o regionalismo. Ansiosos em romper com as regras de um sistema conservador e indiferente s transformaes mundiais, os msicos dodecafnicos compartilharam posicionamentos esttico-ideolgicos expressos tanto coletivamente por meio de manifestos e declaraes de princpios, como individualmente, por meio da criao musical. (ASSIS, p. 41-46, passim)19
Tamanha foi a fora da influncia desta nova esttica qual Guerra-Peixe
aderiu, que obras de sua juventude foram destrudas. Segundo Jos Maria NEVES:
A evoluo esttica do compositor teria como resultado um gesto apaixonado bem caracterstico de Guerra-Peixe: descontente com sua produo anterior, ele a destri integralmente (por esta poca Guerra-Peixe j havia composto dois Quartetos, uma Sinfonia, um Trio, um Quinteto e um Divertimento) como ele mais tarde haveria de querer destruir toda a sua produo dodecafnica.
17
NEVES, Jos Maria. Msica contempornea brasileira. So Paulo: Ricordi Brasileira, 1981.
18 Ibid.
19 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na
produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.
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NEVES, ainda comenta que suas obras de 1944 recusam qualquer
concesso sentimentalidade e facilidade de percepo, se inscrevendo dentro de
um atonalismo sistemtico que se afasta clara e intencionalmente de qualquer
vnculo tonal. (p. 102)20
Sobre o compositor, em uma publicao da Revista Msica Viva no ano de
1947, KOELLREUTTER se exprime:
A Sinfonia de Guerra-Peixe um exemplo de que o atonalismo no incompatvel com a expresso de sentimentos, com a paixo, com a graa, com o lirismo. [...] tem o valor de um manifesto e a significao de um ato de f nos destinos da msica brasileira, erudita e popular. uma obra ousada e revolucionria. (apud NEVES, p. 103)21
Sobre a mesma Sinfonia de Guerra-Peixe:
... esta Sinfonia pode ser considerada a fronteira de um novo
posicionamento esttico do compositor, que busca incluir e valorizar, dentro de sua concepo ainda dodecafnica, certos valores da
msica popular brasileira ... (NEVES, p. 103)22
Segundo ASSIS, Guerra-Peixe tentou criar uma msica cujas perspectivas
sonoras renovadoras no comprometessem o dilogo com o pblico, mas ao mesmo
tempo contribusse para despertar uma nova sensibilidade musical na sociedade de
sua poca, apropriando-se de prticas musicais tradicionais da cultura brasileira e
conciliando-as com outras prticas estranhas a esta cultura. (p. 14)23
Csar Guerra-Peixe, em 1944, ao optar pelo dodecafonismo assumiu, assim como seus colegas do Msica Viva, uma posio de compositor
esteticamente anti-nacional, afastando-se de uma tradio fundada na segunda metade do sculo XIX e prolongada at a primeira metade do sculo XX. A opo pelo dodecafonismo implicava propor novos valores esttico-musicais para o pblico brasileiro, este habituado afinao nacionalista, s consonncias da msica tradicional europia e aos ritmos da msica popular. Porm, adotar a tcnica dos doze sons de forma ortodoxa significava, para o compositor, distanciar-se
20
NEVES, Jos Maria. Msica contempornea brasileira. So Paulo: Ricordi Brasileira, 1981.
21 Ibid.
22 Ibid.
23 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na
produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.
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do dilogo com sua cultura. Era preciso flexibiliz-la, imprimindo-lhe uma cor nacional. (ASSIS, p. vi)24
Aos poucos desenvolveu sistemticas pessoais para conciliar a linguagem
dodecafnica com elementos musicais de outros contextos. Estas estratgias eram
justificadas pelo compositor como um meio de garantir a comunicabilidade com o
pblico, e ao mesmo tempo contribuir ampliando a viso esttica sobre Msica.
(ASSIS, p. 16)25
Segundo FARIA, Guerra-Peixe procurava um ambiente nacional para seu
dodecafonismo muito particular, procurando uma vertente nacional na nsia de uma
maior comunicao com o pblico.
Ainda segundo o autor, Guerra-Peixe utilizava meios e solues prprias na
tentativa de assegurar a comunicabilidade de suas idias atravs do dodecafonismo,
como a repetio de motivos ou clulas, a fixao de elementos temticos, o uso de
ritmos e motivos meldicos de vaga feio nacional, o estabelecimento de plos,
eixos ou centros tonais bastante disfarados como pontos referenciais na harmonia,
entre tantos outros, fundamentando uma organizao ou um cdigo serial
especfico, de referencial estranho ao dodecafonismo, este, passando mais a vigorar
como um processo de composio para Guerra-Peixe.
FARIA tambm comenta que estes artifcios utilizados pelo compositor
davam sinais de um nacionalismo embrionrio, como uma etapa experimental da
Fase Nacional que se seguiria, [...] ainda em processo de gestao, que mais tarde
se tornaria integrante de seu pensamento, configurando assim um procedimento de
estilo. (p. 18-33, passim)26
Segundo ASSIS, Guerra-Peixe props uma msica cujo carter polifnico e
dissonante, reverberasse na sociedade culturalmente pluralista do pas, reavaliando
o processo cultural homogeneizante em que se inseria a sociedade brasileira dos
24
ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.
25 Ibid.
26 FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.
Dissertao de mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.
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anos 1930 e 1940, do qual a esttica nacionalista fazia parte (p. 23)27. ASSIS
complementa com a informao de que o compositor passou a empregar uma
linguagem mais prxima ao atonalismo livre do que tcnica dos doze sons
propriamente dita, sendo que (p.144)28 tais estratgias o conduziram gradativamente
ao abandono do dodecafonismo e converso ao nacionalismo (p.44)29, pois ASSIS
declara que: as obras de Guerra-peixe compostas entre 1948 e 1949 refletem um
perodo de indefinio pessoal e mesmo coletiva, vivido pelo grupo naquele
momento. (p. 217)30
As discusses com Mozart de Arajo acentuaram ainda mais as incertezas de Guerra-Peixe em relao ao dodecafonismo. Devoto s idias de Mrio de Andrade expostas no Ensaio sobre a Msica Brasileira, Mozart de Arajo recuperou em Guerra-Peixe a lembrana de uma obra lida no final dos anos 1930, sensibilizando-o para os problemas apontados pelo poeta modernista, at ento totalmente resolvidos pelos compositores nacionalistas. O sentido social, responsvel em guiar as opes estticas dos compositores brasileiros, era uma das principais questes para Mrio de Andrade e, provavelmente, o ponto forte das argumentaes de Mozart de Arajo contra o dodecafonismo no Brasil. (ASSIS, p. 143)31
A tcnica dos 12 sons deixou de ser suficiente para desenvolver e expressar
sua arte onde clulas e esquemas rtmicos brasileiros j indicavam anteriormente um
clima sonoro e expressivo de carter nacional. Durante o perodo dodecafnico,
Guerra-Peixe acreditou na fuso de duas correntes estticas opostas, um
pseudonacionalimo, manejando a tcnica com certo desprendimento.
Abandonando gradativamente o rigor da tcnica schoenberguiana e agregando sua linguagem musical mais e mais elementos da tradio musical brasileira, este compositor buscava coerncia entre
seu posicionamento ideolgico ... e a obra que ele criava para contribuir na luta pela promoo do seu povo. (NEVES, p. 103)32
27
ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.
28 Ibid.
29 Ibid.
30 Ibid.
31 Ibid.
32 NEVES, Jos Maria. Msica contempornea brasileira. So Paulo: Ricordi Brasileira, 1981.
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29
Em seu Memorial, Guerra-Peixe afirma que em 1949, [...] reconhecendo que
sua obra falta o necessrio sentido social, a que se refere Mrio de Andrade no
Ensaio, encerra aqui a estrepitosa fase dodecafnica. (V, p. 4)33
Segundo ASSIS, outros fatores concorreram para o encerramento da fase
dodecafnica, tais como a insatisfao pessoal do compositor quanto recepo de
suas msicas pelo pblico, seu envolvimento intenso com a msica popular e por fim
o convite para trabalhar como arranjador e orquestrador na Rdio Jornal do
Comrcio de Recife. (p. 143)34
Guerra-Peixe conciliava as dissonncias dodecafnicas com as referncias rtmicas e harmnicas da msica popular, num processo contnuo de auto-alterao, buscando garantir a comunicabilidade com seu pblico. Mas, na medida em que as sonoridades dodecafnicas eram intencionalmente infiltradas pelo compositor em contextos scio-musicais que privilegiavam outro tipo de prtica musical como, por exemplo, as rdios, evidente que Guerra-Peixe buscava tambm interferir no gosto musical do pblico consumidor e, neste sentido, contribuir para o florescimento de uma nova sensibilidade musical. [...] em 1947, ao perceber que o resultado de suas experincias nacionalizantes estava prximo demais da esttica musical nacionalista (tambm tonal-modal), o compositor e seu projeto entraram em crise. (ASSIS, p. 242-244, passim)35
Buscando respostas quanto universalidade da Msica e a comunicabilidade
com o pblico, Guerra-Peixe sofre um embate dialtico entre razo e paixo. O
processo de flexibilizao, a conciliao do dodecafonismo com elementos
nacionais, a dicotomia entre o tratamento composicional e a criatividade popular,
levam o compositor a afastar-se gradativamente da tcnica. O compositor e colega
do Grupo Msica Viva, Edino KRIEGER comenta,
[...] passou da condio de serialista convicto, do racionalismo de suas sries pan-intervalares, negao apaixonada do mesmo serialismo, quando outra razo o levou descoberta da enorme riqueza do universo sonoro do folclore nordestino, que pesquisou com uma profundidade indita, dissecou com uma racionalidade objetiva, e defendeu com o ardor de uma paixo juvenil. (prefcio)36
33
GUERRA-PEIXE, Csar. Memorial. Cpia datilografada, 1971.
34 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na
produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.
35 Ibid.
36 KRIEGER, Edino. Prefcio. In: FARIA, A; BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe.
Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar , 2007.
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30
Rompeu publicamente com Koellreutter passando a ser grande combatente
da tcnica dodecafnica, a qual ele denominava falso modernismo, acumulando no
seu plano e mapa musical valores da msica nacional.
Outra coisa que foi bem com ele (referindo-se a Koellreutter): pensar, discutir, estabelecer uma esttica, e no s escrever as notas; fazia pensar. E foi como eu disse em uma entrevista: pensei tanto [...] que terminei deixando o dodecafonismo [...] (GUERRA-PEIXE apud FARIA, p.30)37
Porm, segundo MIGUEL, embora re-negasse, posteriormente, sua msica
serialista, como esttica possvel de ser nacionalizada, o compositor nunca negou a
utilidade deste aprendizado. (p. 44)38
ramos decididos apologistas do dodecafonismo curiosa espcie de msica que pretendamos deformar ao nosso modo, supondo, ento,
produzir obra de cultura nacional ... quando em meiados (sic) de 1949, mudamos a nossa atitude esttica diante da msica brasileira e dos sentimentos humanos. (GUERRA-PEIXE, p. 10)39
GUERRA-PEIXE em depoimento gravado no Museu da Imagem e do Som
MIS, do Rio de Janeiro em 1992:
Eu acabei com uma concepo que toda repetio seria um negcio mais ou menos elementar, e eu tava naquela de querer ser o refinado. Ento os meus temas no se repetiam nunca. Eles eram desenvolvidos, sempre modificados, mas nunca repetidos tal e qual. (apud MIGUEL, p. 27)40
A pianista Ruth SERRO afirma:
Ele era um artista maravilhoso e de grande viso, e eu sempre dizia que sua passagem pelo dodecafonismo tinha dado disciplina sua tcnica de compositor, importante para que ele se tornasse um dos
37
FARIA, Antonio Guerreiro de. Modalismo e forma na obra de Guerra-Peixe. In: FARIA, A.;
BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 29-45, 2007.
38 MIGUEL, Randolf. A estilizao do folclore na composio de Guerra-Peixe. Dissertao de
Mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 2006, 107 fls.
39 GUERRA-PEIXE, Csar. Maracatus do Recife. So Paulo: Ricordi, 1955.
40 Op. cit.
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31
maiores do Brasil. Anos e anos ouvindo isso, no fim da vida concordou comigo, embora no publicamente. (apud NEPOMUCENO, p. 27)41
2.2 GUERRA-PEIXE NACIONALISTA
A esttica nacionalista [...] foi a esttica musical oficial do Brasil durante toda a primeira metade do sculo XX e correspondia aos anseios de um projeto intelectual mais amplo, o de nacionalizao da cultura brasileira. (ASSIS, p. 41)42
Sua fase dodecafnica iniciada em 1944 teve fim em 1949, quando
impressionado com o Maracatu do Recife, abandona a orientao esttica de
Koellreutter e passa a se interessar definitivamente pelo material folclrico brasileiro.
[...] uma primeira tomada de conscincia, no s com a msica brasileira, mas, com a realidade daquilo que estava a procurar; na verdade um novo estilo, uma nova maneira de articular as idias que possibilitassem uma comunicao mais imediata com o pblico e tambm um caminho diferente do trilhado pelos demais compositores brasileiros. (FARIA, p. 32)43
Segundo SERRO, o compositor decide interromper sua criao musical para
se dedicar no s pesquisa bibliogrfica como ao trabalho de campo quando visita
inmeras cidades pernambucanas. O processo de elaborao e assimilao se
reflete de modo concreto: nos prximos trs anos no haveria uma composio
sequer. (p. 66-67)44
GUERRA-PEIXE comenta em entrevista [...] eu me aculturei como
nordestino, mas foi proposital, o que em Antropologia Moderna chama-se
enculturao. Uma aculturao deliberada, resolvida, determinada pela prpria
pessoa. (apud OLIVEIRA, p. 91)45
41
NEPOMUCENO, Rosa. Csar Guerra-Peixe. A Msica sem fronteiras. Rio de Janeiro: Funarte,
2001.
42 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na
produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.
43 FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.
Dissertao de mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.
44 SERRO, Ruth. Msica para piano. In: FARIA, A.; BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-
Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 63-85, 2007.
45 OLIVEIRA, Nelson Salom de. A didtica no ensino de composio e orquestrao. In: FARIA, A.;
BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 87-103, 2007.
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O termo enculturao foi usado por Guerra-Peixe para designar o processo pelo qual passou, ao ouvir, coletar e vivenciar, na medida do possvel, os materiais que recolheu nas pesquisas de campo. Na verdade um conceito pertencente Antropologia. (FARIA, p. 36)46
Como nacionalista, preocupou-se em renovar, atravs de solues e tcnicas
criativas, o material folclrico de raiz, o popular e a msica urbana. Defendia a
pesquisa in loco, tendo feito vrios apontamentos de campo, muitos no editados,
estudando os aspectos menos divulgados do folclore brasileiro. Do prprio
GUERRA: O nacionalismo no uma posio esttica, mas uma atitude dentro da
qual podem caber as tendncias estticas mais diversas, e isso sem que entre em
choque o interesse pela cultura nacional com as correntes mais avanadas. (apud
OLIVEIRA, p. 91)47 Para o compositor o essencial era que a msica se identificasse
como nacional atravs do resultado de sua criao.
[...] quase nico na sua oficina de composio, uma das pouqussimas do pas, e na esttica musical que defende, um nacionalismo que no venha s da inspirao ou da inteno, mas sim do estudo permanente das matrizes folclricas. (HORTA, p. 254)48
As pesquisas, bem como o estudo aprofundado das caractersticas tcnicas
da arte popular brasileira e da msica folclrica, renderam a Guerra-Peixe um
amparo singular na composio de sua obra, tornando-o capaz de reelaborar os
elementos tirados da cultura popular mediante o uso de tcnicas de composio
atualizadas, aliadas a sua lgica e imaginao criadora.
Como compositor, Guerra-Peixe empenhou-se na produo de obras de carter nacionalista, buscando a utilizao de elementos do folclore, de maneira peculiar. Ele enfatizava a pesquisa e o contato com elementos da cultura popular principalmente os trabalhos de campo como forma de aprofundamento, para que se evitasse, dentre outros, os riscos no trato superficial do material folclrico. Ele dizia tambm da importncia de se vivenciar os fatos, absorver elementos de determinada cultura, criar hbitos mentais, para ento compor
naturalmente. Acreditava que, com a vivncia adquirida pelo
46
FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.
Dissertao de mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.
47 OLIVEIRA, Nelson Salom de. A didtica no ensino de composio e orquestrao. In: FARIA, A.;
BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 87-103, 2007.
48 HORTA, Luiz Paulo. Cadernos de msica: cenas da vida musical. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1993.
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compositor, algo se refletiria na obra, mesmo que no houvesse inteno em utilizar este ou aquele material. (OLIVEIRA, p. 91)49
Misturou em sua obra vrios gneros da msica brasileira, procedentes de
diversas localidades. Ruth SERRO, amiga do compositor, associa as
caractersticas pessoais de Guerra-Peixe genialidade. [...] uma imensa
curiosidade, aliada nsia do saber, investigar e criar, revelando valiosas
correlaes entre seus achados. (apud ELIAS)50
O emprstimo e o aproveitamento sonoro da cultura dita no erudita
concedeu sua obra um carter novo, um novo nacionalismo, vanguardista. Para
interpretar a obra de Guerra-Peixe desta fase, faz-se necessrio conhecer a
versatilidade do compositor.
ASSIS constata que [...] na medida em que ele se estabelecia nas pautas
musicais brasileiras, estimulava um processo de reviso dos princpios nacionalistas
tradicionais. (p. 18)51
Para interpretar bem Guerra-Peixe preciso conhecer o folclore pernambucano e paulista, a msica urbana do Rio de Janeiro, a idia do tropicalismo e ouvir muita msica popular de raiz e sua msica de concerto. S assim desenvolvemos uma familiaridade com sua linguagem musical. (SERRO apud ELIAS)52
Guerra-Peixe, atravs da coleta e pesquisa do folclore, da sistematizao e
do estabelecimento de tipologias prprias, desenvolve uma estilizao no
aproveitamento do material, diluindo-o sem deix-lo muito caracterstico (FARIA, p.
28)53. Ampliou o domnio de uma tcnica prpria que lhe permitisse a manipulao
49
OLIVEIRA, Nelson Salom de. A didtica no ensino de composio e orquestrao. In: FARIA, A.; BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 87-103, 2007.
50 SERRO, Ruth. Entrevista concedida Alexandre Elias. Disponvel em:
http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2826.1.shl
51 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na
produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.
52 Op. cit.
53 FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.
Dissertao de mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.
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do material folclrico de maneira mais livre, mas sem perda das caractersticas que o
compositor considerava principais. (FARIA, p. 39)54
O compositor se exprime acerca de sua msica:
Minha msica retrata artisticamente o folclore, isso no quer dizer tirar retrato trs por quatro para documentos. [...] fotografia artstica no sentido em que a fonte do material sonoro (isto , aquilo que focalizado) seja em termos de arte suficientemente reconhecvel ou pressentido pelo ouvinte leigo [...] isto diferente do copiar do folclore. (GUERRA-PEIXE apud FARIA, p. 39)55
Visando atingir um nacionalismo transcendente, um nacionalismo
inconsciente, como preconizava Mrio de Andrade, onde o carter brasileiro brotaria
espontaneamente na criao musical sem a necessidade de citaes diretas, como
faziam muitos compositores da gerao de Villa-Lobos, Guerra-Peixe alcanou uma
forma diferenciada de se expressar dentro da esttica nacionalista, onde configura a
multiplicidade ao invs da homogeneidade. (ASSIS, p. 160-162, passim)56
Ronaldo MIRANDA assim se expressa sobre o compositor: poucos
conseguiram como ele atingir uma admirvel conciso de linguagem, buscando na
simplicidade a sua arma mais eficaz [...] sem jamais cair nos chaves de um
nacionalismo fcil. (apud ASSIS, p. 163)57
Embora as duas primeiras fases sejam de importncia indiscutvel para o repertrio brasileiro, sem sombra de dvidas, a terceira e ltima fase, aquela que tem despertado nos estudiosos da msica brasileira, mais interesse esttico. (MIGUEL, p. 2)58
Agraciado com diversos prmios, como arranjador, regente de rdio,
compositor de trilhas de cinema, e por suas obras eruditas, tendo ainda diversas
delas estreadas por grandes orquestras e regidas por nomes expressivos no
54
FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.
Dissertao de mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.
55 FARIA, Antonio Guerreiro de. Modalismo e forma na obra de Guerra-Peixe. In: FARIA, A.;
BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 29-45, 2007.
56 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na
produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.
57 Ibid.
58 MIGUEL, Randolf. A estilizao do folclore na composio de Guerra-Peixe. Dissertao de
Mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 2006, 107 fls.
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exterior, recebendo alguns convites como do maestro Scherchen e do compositor
Copland para morar no exterior, Guerra-Peixe opta por no sair do pas e prosseguir
em suas descobertas musicais. (BARROS, p. 114-115)59
2.3 GUERRA-PEIXE E A LEITURA DE MRIO DE ANDRADE
A leitura do Ensaio sobre a Msica Brasileira, de Mrio de Andrade, foi
fundamental para que Guerra-Peixe pudesse nortear seu caminho composicional. (MIGUEL, p. 44)60
Segundo Antonio Guerreiro de FARIA, foi possvel estabelecer atravs de
pesquisa de campo, efetuada nos arquivos do compositor, que Guerra-Peixe teve
contato com as teses sustentadas por Mrio de Andrade (1893-1945) em torno da
segunda metade da dcada de 30, sendo que sobram evidncias de que a
influncia do musiclogo em sua formao esttica foi decisiva. (p. 4-16, passim)61
Seguindo o pensamento de Mrio de Andrade, o compositor reconhece a falta de sentido social em sua msica. A nica alternativa voltar e recomear sua trajetria. Nesta fase, ao traar os novos caminhos, leva consigo uma rica bagagem cultural e um excelente domnio da tcnica de composio. Seu primeiro passo, dentro do novo conceito, no entanto, trouxe muitas dvidas quanto trilha a seguir. (SERRO, p. 66)62
A leitura de Mrio de Andrade foi fundamental em sua trajetria. O Ensaio
sobre a msica brasileira, editado em 1928, calou os conflitos instalados no
compositor quando adepto da vertente dodecafnica. A fala de Andrade sobre a arte
nacional, j feita da inconscincia do povo e o desconhecimento da identidade
brasileira e do populrio nacional pelos compositores brasileiros soou como um
chamado para Guerra-Peixe se engajar em nova esteira, sem exotismo e nem
xenofobia, mas da msica verdadeiramente nacional, dos processos de criao
59
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Guerra-Peixe, a universalidade do nacional. In: FARIA, A.;
BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 111-128, 2007.
60 Op. cit.
61 FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.
Dissertao de mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.
62 SERRO, Ruth. Msica para piano. In: FARIA, A.; BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-
Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 63-85, 2007.
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musical pelos quais um compositor deveria passar para transcrever em sua msica
uma arte verdadeiramente nacional.
Nas palavras de Mrio de ANDRADE, [...] uma arte nacional j est feita na inconscincia do povo. O artista tem s que dar pros elementos j existentes uma transposio erudita que faa da msica popular, msica artstica, isto : imediatamente desinteressada. O critrio histrico atual da Msica Brasileira o da manifestao musical que sendo feita por brasileiro ou indivduo nacionalizado, reflete as caractersticas musicais da raa. Onde que estas esto? Na msica popular. (p. 16-20, passim)63
Ainda em ANDRADE: [...] o importante numa teoria da arte, saber
ultrapass-la. (apud FARIA, p. 23)64
NEVES constata que as muitas facetas que compunham a personalidade de
Mrio de Andrade tinham um trao em comum: o gosto pela pesquisa e a
curiosidade intelectual, o que explica a diversidade das direes seguidas pelo
artista, a riqueza de seu universo e a certeza com que ele abordava as solues,
sempre pessoais, dadas aos problemas estudados. Suas atividades ligadas
msica consolidaram-no como elemento de primordial importncia estruturao do
nacionalismo brasileiro e ao ensino da msica no Brasil. Convicto da necessidade de
dar carter social criao musical tornou-se o apstolo do nacionalismo. Para ele o
nacionalismo no representava o ideal da criao, mas uma fase necessria qual
os compositores deveriam submeter-se a fim de conformar a produo humana do
pas com a realidade nacional. Um movimento de renovao sob a bandeira do
nacionalismo populista. (p. 39-83, passim)65
FARIA comenta que o Ensaio sobre a Msica Brasileira contm um conjunto
de idias que expem caractersticas principais da msica brasileira quanto aos
aspectos: rtmico, meldico, harmnico, polifnico e formal. (p. 37)66
Em ASSIS, encontramos a afirmao que o Ensaio pode ser considerado o
trabalho terico-musical que inaugurou o nacionalismo modernista, tendo sido
63
ANDRADE, Mrio. Ensaio sobre a msica brasileira. So Paulo: Martins Editora, s. d.
64 FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.
Dissertao de mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.
65 NEVES, Jos Maria. Msica contempornea brasileira. So Paulo: Ricordi Brasileira, 1981.
66 Op. cit.
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adotado de forma diferente por msicos brasileiros de vrias geraes (p. 31)67. A
obra foi uma das razes da converso de Guerra-Peixe ao nacionalismo, por
expressar anseios de cunho social, abordando a funo da Msica na cultura
brasileira. As reflexes e discusses sobre msica nacionalista propostas no livro
eram diferenciadas em diversos aspectos do nacionalismo europeu do sc. XIX.
Mrio de ANDRADE propunha uma tomada de conscincia quanto ao seu papel
dentro do pas, onde todo compositor modernista nacional deveria evitar o cultivo da
expresso individual e se colocar a servio de uma obra interessada socialmente,
visto que toda arte exclusivamente artstica e desinteressada no tem cabimento
numa fase primitiva, fase de construo. (apud ASSIS, p. 63)68
Espcie de cartilha que no apenas guiava as diretrizes dos compositores nacionalistas como tambm os amparava em suas justificativas individuais quanto necessidade de compor msicas com carter nacional. (ASSIS, p. 63)69 [...] apreendendo os traos essenciais de um material dado [...] e tornando manifestos seus caracteres essenciais, foi possvel empregar material do populrio sem fazer citao literal. Isto possibilitou toda uma elaborao com propsitos artsticos, advinda do carter do tema popular, sem perda de substncia e tambm sem cair no extico ou pitoresco. (FARIA, p. 52)70
2.4 GUERRA-PEIXE MUSICLOGO
[...] a prtica de Guerra-Peixe em coletar e transcrever msica iniciou da dcada de 1930 [...] Curt Lange incentivava as coletas de Guerra-Peixe requisitando, constantemente, o envio de material musical popular, assim como os registros de melodias e ritmos brasileiros realizados pelo compositor [...] compromisso ao compositor de fomentar o acervo musicolgico de Curt Lange. (ASSIS, p. 148)71
Segundo MIGUEL, apesar de convites para estudos no exterior, Guerra-Peixe
decide se transferir para o Recife indo trabalhar na Rdio Jornal do Comrcio. Suas
67
ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.
68 Ibid.
69 Ibid.
70 FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.
Dissertao de mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.
71 Op. cit.
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veias de musiclogo e folclorista se manifestaram levando-o a elaborar um projeto
pessoal de mergulhar na cultura primitiva. (p. 5-6)72
O diferencial adotado por Guerra-Peixe foi, sem sombra de dvida, o sistema de interao com a manifestao in loco, pois o aprendizado
dos toques de percusso, bem como das formas de melodiar, foram suficientemente desenvolvidas pelo compositor. Algumas obras demonstram, evidentemente, uma fase de incerteza; num processo ainda primrio de absoro da essncia musical. No entanto, a partir de um determinado momento, a competncia se solidifica e simplifica-se, gerando, como resultado, obras que jamais deixaro dvidas sobre a inteno do compositor, e serviro de base para futuros pretendentes a esta magnfica rea da arte. (p. 43)73
Guerra-Peixe passou a coletar temas em Maracatus, Catimbs, Jongos,
Folias-de-Reis, congadas, modas de viola etc. Escreveu artigos e estudos
musicolgicos de relevada importncia. Publicou em 1955 um livro intitulado
Maracatus do Recife.
As pesquisas folclricas realizadas por Guerra-Peixe, em Pernambuco e So Paulo, impressionam pelo volume e qualidade do trabalho. Guerra-Peixe, muito detalhista, foi profundo na busca de informaes em todas as manifestaes que pesquisou. Todo o trabalho foi feito nos prprios terreiros, como demonstrou os documentos transcritos neste captulo. Infelizmente, uma parte muito pequena deste material foi publicada, e seu percentual maior ainda precisa ser recuperado e conhecido. (MIGUEL, p. 18)74
Segundo BARROS, Guerra-Peixe, ao decidir ir para o Recife estudar msica
in loco,
[...] d o salto qualitativo em relao a todos os outros folcloristas, inclusive Mrio de Andrade, que tinham feito observaes apressadas das manifestaes culturais do povo, sem a primeira exigncia do fazer antropolgico o trabalho de campo, a observao participante atenta e continuada dos fenmenos estudados. (p. 116)75
Alguns anos mais tarde, continua sua pesquisa no estado de So Paulo,
interior e litoral.
72
MIGUEL, Randolf. A estilizao do folclore na composio de Guerra-Peixe. Dissertao de
Mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 2006, 107 fls.
73 Ibid.
74 Ibid.
75 BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Guerra-Peixe, a universalidade do nacional. In: FARIA, A.;
BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 111-128, 2007.
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Em 1959 exerce a funo de chefe da seo de msica da Comisso Paulista de Folclore. Em 1960, toma parte numa expedio para pesquisa folclrica no norte de So Paulo, cujo resultado publicado em 1981 pela Funarte, O Folclore do Litoral Norte de So Paulo, por
Rossini Tavares Lima e outros. (AGUIAR, p. 142)76
Ainda em BARROS encontramos a informao de que Guerra-Peixe era um
leitor vido e sua formao como pesquisador teve embasamento na leitura de
autores consagrados da rea:
Lia e discutia a obra (completa) de Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Edison Carneiro, Srgio Buarque de Hollanda, Nina Rodrigues, Florestan Fernandes, Roger Bastide, Donald Pierson, Nelson Werneck Sodr e Mrio de Andrade como se tivesse curso de Cincias Sociais. Divertia-se quando eu lhe mostrava que suas intuies de pesquisador de campo eram metodologias consagradas nas Cincias Sociais. (p.
117)77
A autora tambm comenta que o livro Maracatus do Recife mostrou a
transformao do msico e musiclogo no grande etnomusiclogo brasileiro, que
mais contribuiu para este ramo da Antropologia no Brasil na segunda metade do
sculo XX. (p. 116)78
2.5 GUERRA-PEIXE PROFESSOR
Sntese, objetividade e senso prtico so fatores caractersticos e marcantes dos processos de ensino/aprendizagem adotados por Guerra-Peixe, ao longo da vasta carreira como professor. Alm de sua atuao em importantes centros de ensino musical do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, lecionou em carter informal, contribuindo para a formao de inmeros musicistas brasileiros. (OLIVEIRA, p. 87)79
Deixou uma classe de alunos excelentes, hoje, nomes expressivos da msica
brasileira erudita e popular, tais como Jos Maria Neves (aluno nos Seminrios de
Msica Pr-Arte), Jorge Antunes (aluno de composio na Pr-Arte), Guilherme
76
AGUIAR, Ernani. Guerra-Peixe, o orquestrador. In: FARIA, A.; BARROS, L. O. C.; SERRO, R.
(Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 77-86, 2007.
77 BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Guerra-Peixe, a universalidade do nacional. In: FARIA, A.;
BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 111-128, 2007.
78 Ibid.
79 OLIVEIRA, Nelson Salom de. A didtica no ensino de composio e orquestrao. In: FARIA, A.;
BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 87-103, 2007.
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40
Bauer (aluno de composio), Gilberto Carvalho (aluno de composio na Escola de
Msica da UFMG e hoje professor de composio da UFMG), Antonio Adolfo (aluno
de harmonia, contraponto e composio), Rildo Hora (aluno de teoria e solfejo),
Sivuca (aluno de harmonia), Roberto Menescal (aluno de teoria, harmonia e
contraponto), Snia Maria Vieira, Paulo Moura, Carlos Cruz, Ernani Aguiar, Baden
Powell, entre tantos outros.
Guerra-Peixe procurava no direcionar o pensamento do aluno a um ideal
esttico, mas lev-lo a buscar seu prprio caminho. Escreveu inmeras apostilas
para seus cursos de composio e sua didtica, mesmo priorizando a formao
acadmica e tradicional, mostrava-se criativa e inovadora: Junto todos numa sala e
mesma hora se quiserem. O iniciante aprende com os que esto mais adiante; e
estes observam nos trabalhos dos iniciantes as solues diversas que no haviam
usado. (GUERRA-PEIXE apud OLIVEIRA, p. 88)80
Muitas apostilas foram elaboradas pelo compositor como material de apoio s
suas aulas. Para as aulas de composio, Guerra-Peixe elaborou uma apostila
sobre Noes de esttica e Histria esttica da Msica, outra, intitulada Sumrio das
principais formas musicais, com informaes de carter histrico e estrutural, alm
de comentrios analticos de obras de compositores consagrados e de obras
prprias, entre tantas outras. Esse trabalho didtico do compositor reflete seus
estudos com o mestre Koellreutter, assim como denota sua dedicao ao ensino e
sua preocupao pedaggica com o processo. (OLIVEIRA, p. 97)81
[...] referindo-se de maneira respeitosa aos seus estudos com Newton Pdua, Guerra-Peixe valorizava a formao bsica, o ensino tradicional, porm recorrendo sempre a formas sintticas e dinmicas, visando agilizar os processos de ensino/aprendizagem. No ttulo de seu livro O Suficiente em Harmonia, ainda no publicado, podemos
perceber esta inteno. (OLIVEIRA, p. 88)82
Nas palavras de Antonio Guerreiro entendemos a importncia do magistrio
na vida profissional do compositor.
80
OLIVEIRA, Nelson Salom de. A didtica no ensino de composio e orquestrao. In: FARIA, A.; BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 87-103, 2007.
81 Ibid.
82 Ibid.
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41
Ao que parece a atividade no magistrio encantou Guerra-Peixe [...] pode-se supor que sua atividade no magistrio tenha re-alimentado sua carreira de compositor [...] O fato de ter lecionado composio, permite supor uma maior fermentao de idias. (FARIA, p. 82-83)83
Nos anos em que foi professor na UFMG (quase 10 anos), teve muitos alunos
e uma orquestra disposio para experimentar os trabalhos didticos,
empenhando-se para criar a 2. Grande Escola Mineira de Composio. (OLIVEIRA,
p. 96-97)84
ALIMONDA comenta a capacidade de ensinar do compositor atravs da
simplicidade [...] ele entra no campo da didtica, no uma didtica imvel,
fossilizada, mas ativa, vivente, at mesmo perturbadora. (p. 107)85
2.6 GUERRA-PEIXE MSICO POPULAR
Existe uma unanimidade quanto excelncia das orquestraes de Guerra-Peixe. Vrios fatores contriburam para isso: suas precocidades na participao em conjuntos instrumentais e na ousadia das composies juvenis para conjuntos; depois toda uma vida profissional de orquestrador