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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA MESTRADO INTERINSTITUCIONAL UFBA / EMBAP ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: EXECUÇÃO MUSICAL MARGARETH MARIA MILANI PRELÚDIOS TROPICAIS DE GUERRA-PEIXE: UMA ANÁLISE ESTRUTURAL E SUA PROJEÇÃO NA CONCEPÇÃO INTERPRETATIVA DA OBRA Salvador 2008

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MSICA

    MESTRADO INTERINSTITUCIONAL UFBA / EMBAP REA DE CONCENTRAO: EXECUO MUSICAL

    MARGARETH MARIA MILANI

    PRELDIOS TROPICAIS DE GUERRA-PEIXE: UMA ANLISE ESTRUTURAL E SUA PROJEO NA CONCEPO INTERPRETATIVA DA OBRA

    Salvador 2008

  • MARGARETH MARIA MILANI

    PRELDIOS TROPICAIS DE GUERRA-PEIXE: UMA ANLISE ESTRUTURAL E SUA PROJEO NA CONCEPO INTERPRETATIVA DA OBRA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Msica da Escola de Msica da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Msica. rea de Concentrao: Execuo Musical Orientadora: Prof. Dr. Diana Santiago da Fonseca

    Salvador 2008

  • Catalogao na publicao elaborada por Mauro Cndido dos Santos CRB 1416-9.

    Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)

    .

    C289m Milani, Margareth Maria. Preldios tropicais de Guerra-Peixe: uma anlise estrutural e sua projeo na concepo interpretativa da obra / Margareth Maria Milani. Salvador, 2008. 236f. apndice + 1 DVD + anexo.

    Orientador: Prof. Dr. Diana Santiago da Fonseca. Dissertao (Mestrado em Execuo Musical) Universidade Federal da

    Bahia - Programa de Ps-Graduao em Msica. 2008. Inclui bibliografia.

    1. Performance musical - Teses. 2. Interpretao musical - Teses.

    3. Anlise musical - Teses. 4. Anlise Teses. 5. Harmonia - Teses. I. Fonseca, Diana Santiago da. II. Universidade Federal da Bahia. Programa de Ps-Graduao em Msica. III. Ttulo.

    CDU 786.2:781.68

  • Dine

    Por ter contribudo na minha formao musical e pessoal.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Giampiero, pelo companheirismo compartilhado.

    Aos meus pais, Osmar e Marlia, pela delicadeza com que cuidaram da minha

    casa e do meu jardim durante minha estada em Salvador.

    minha orientadora, Prof Dr Diana Santiago, pelas observaes claras e

    pontuais, objetivas e eficientes, proporcionando o encaminhamento do trabalho.

    Aos meus colegas e amigos Carlos Alberto Assis pelo apoio analtico, Leilah

    Paiva e Srgio Andr pelo apoio pianstico.

    Ao amigo Oswaldo Aranha por ter colocado a minha disposio seu acervo

    fonogrfico.

    Aos colegas da Escola de Msica e Belas Artes do Paran, pelo incentivo.

    Ao Departamento de Instrumentos Polifnicos DIP, por propiciar a reduo

    da minha carga horria semanal em sala de aula, contribuindo enormemente para a

    concluso desta dissertao.

    As bibliotecrias da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ);

    Universidade do Rio de Janeiro (UNI-RIO); Universidade Federal de Minas Gerais

    (UFMG); e da Fundao Biblioteca Nacional (BN), que me enviaram o material que

    solicitei, com muita gentileza, dedicao e prontido.

    Direo da EMBAP, aos coordenadores do MINTER, da EMBAP e da

    UFBA, s secretrias da EMBAP e da UFBA e aos demais envolvidos neste projeto

    que se disponibilizaram e participaram com empenho e dedicao, meu

    agradecimento.

  • Na interpretao se faz presente a diferena que habita em cada um de ns,

    onde o intrprete se presentifica deixando sua marca,

    impossibilitando que se faa na performance um cpia original da obra,

    mas sim, tornando-a nica e irrepetvel, um ato singular.

    Marlia Laboissire

  • vii

    RESUMO

    Este trabalho trata de questes relativas s interfaces entre anlise, interpretao e performance na coleo de peas denominada Preldios Tropicais do compositor brasileiro Csar Guerra-Peixe (1914-1993). Propondo uma reflexo abrangente sobre o entrelace das trs atividades, procuramos delimitar o quanto possvel, atravs da anlise de uma obra, constituir possibilidades interpretativas. Uma contextualizao histrica do compositor, encontrada no segundo captulo, propiciou o levantamento de informaes pertinentes trajetria estilstica de Guerra-Peixe. O referencial analtico da coleo foi elaborado a partir de textos de autores como Persichetti, Bent, Piston, Kostka e Payne, Schoenberg, Antenor Ferreira Corra entre outros. O marco terico da investigao analtica das dez peas da coleo foi o livro do prprio Guerra-Peixe, Melos e harmonia acstica princpios de composio musical; quanto s questes pertinentes ao modalismo, foi a obra da professora Ermelinda Paz, O Modalismo na Msica Brasileira. Consideraram-se as tendncias contemporneas da pesquisa em msica, que questiona uma perspectiva interpretativa absoluta de uma obra de arte. Atravs da transposio da trade citada (anlise, interpretao e performance), verificou-se a possibilidade e a pertinncia na construo de um panorama entre conhecimentos levantados e sua projeo na obra, criando caminhos e princpios para uma prtica interpretativa e performtica da coleo. O captulo final, atuando como elemento catalisador das reflexes anteriormente feitas, prope referncias e conexes entre o ato de analisar, interpretar e executar a obra Preldios Tropicais em sua ntegra. Palavras-chave: Guerra-Peixe. Preldios Tropicais. Msica para Piano. Anlise. Interpretao. Performance. Harmonia. Procedimentos ps-tonais. Nacionalismo. Material Folclrico.

  • viii

    ABSTRACT

    This paper perceives the issues regarding the interfaces between analysis, interpretation and performance of the piece collection named Preldios Tropicais by the Brazilian composer Csar Guerra-Peixe (1914-1993). In order to present a holistic reflexion on the bond of these three activities, this paper endeavored to delimitate as much as possible, by analyzing one work, to constitute interpretative possibilities. A historical contextualization, found in the second chapter, has allowed the finding of information pertinent to Guerra-Peixes stylistic trajectory. The collections analytical referential was elaborated from texts of authors such as Persichetti, Bent, Piston, Kostka and Payne, Schoenberg, Antenor Ferreira Corra, among others. The established theoretical framework of the 10 piece collection analytic investigation was Guerra-Peixes own book, Melos e harmonia acstica princpios de composio musical; regarding the issues related to modalism, it was the teachers Ermelinda Paz book, O Modalismo na Msica Brasileira. The contemporary music research tendencies were herein considered, discussing an absolute interpretative perspective on a work of art. By transposing the cited triad (analysis, interpretation and performance), it has been detected the possibility and relevance of a panorama construction among the found knowledge and its projection within the piece, originating paths and principles for an interpretative and performable practice of the collection. The closing chapter, acting as a catalyst element of the previously conducted reflexions, proposes references and links between the acts of analyze, interpret and execute the Preldios Tropicais work integrally. Keywords: Guerra-Peixe. Preldios Tropicais. Piano Music. Analysis. Interpretation.

    Performance. Harmony. pos-tonal Procedures. Nationalism. Folkloric Material.

  • ix

    LISTA DE FIGURAS

    FIGURA 1 exemplo de dissonncias resolvidas............................................ 83

    1 A Preldio Tropical n. 1 Cantiga de Folia de Reis...................................... 83

    FIGURA 2 exemplo de sentido cadencial..................................................... 83

    2 A Preldio Tropical n. 1 Cantiga de Folia de Reis...................................... 83

    2 B Preldio Tropical n. 1 Cantiga de Folia de Reis...................................... 84

    FIGURA 3 exemplo de bordadura................................................................... 84

    3 A Preldio Tropical n. 10 Tangendo........................................................... 84

    3 B Preldio Tropical n. 10 Tangendo........................................................... 84

    FIGURA 4 exemplo de cnone......................................................................... 84

    4 A Preldio Tropical n. 9 Polqueada............................................................ 84

    FIGURA 5 exemplo de estrutura cromtica.................................................... 85

    5 A Preldio Tropical n. 9 Polqueada........................................................... 85

    FIGURA 6 exemplo de melodia em graus conjuntos relaes de 2as....... 85

    6 A Preldio Tropical n. 5 Pequeno Bailado................................................. 85

    6 B Preldio Tropical n. 8 Cantiga Plana...................................................... 85

    6 C Preldio Tropical n. 8 Cantiga Plana...................................................... 86

    6 D Preldio Tropical n. 10 Tangendo.......................................................... 86

    FIGURA 7 exemplo de ostinato....................................................................... 86

    7 A Preldio Tropical n. 2 Marcha Abaianada.............................................. 86

    7 B Preldio Tropical n. 6 Reza-de-Defunto................................................. 86

    7 C Preldio Tropical n. 7 Tocata................................................................. 87

    FIGURA 8 exemplo de trades deformadas.................................................... 87

    8 A Preldio Tropical n. 5 Pequeno Bailado................................................. 87

  • x

    FIGURA 9 exemplo de acordes em quartas................................................... 88

    9 A Preldio Tropical n. 5 Pequeno Bailado................................................. 88

    FIGURA 10 exemplo de superposio de acordes.......................................... 88

    10 A Preldio Tropical n. 4 Ponteado de Viola............................................. 88

    10 B Preldio Tropical n. 5 Pequeno Bailado............................................... 89

    10 C Preldio Tropical n. 8 Cantiga Plana.................................................... 89

    10 D Preldio Tropical n. 9 Polqueada......................................................... 89

    FIGURA 11 exemplo de estrutura modal.......................................................... 90

    11 A Preldio Tropical n. 2 Marcha Abaianada............................................ 90

    11 B Preldio Tropical n. 2 Marcha Abaianada............................................ 90

    FIGURA 12 exemplo de estruturas com caractersticas folclricas.............. 90

    12 A Preldio Tropical n. 1 Cantiga de Folia de Reis................................... 90

    12 B Preldio Tropical n. 1 Cantiga de Folia de Reis................................... 90

    FIGURA 13 exemplo de Harmonia Acstica mistura de sonoridades........ 91

    13 A Preldio Tropical n. 3 Persistncia....................................................... 91

    13 B Preldio Tropical n. 5 Pequeno Bailado............................................... 91

    13 C Preldio Tropical n. 5 Pequeno Bailado............................................... 92

    13 D Preldio Tropical n. 7 Tocata............................................................... 92

    FIGURA 14 exemplo de quintas ocas.............................................................. 99

    14 A Preldio Tropical n. 7 Tocata............................................................... 99

    FIGURA 15 exemplo de acordes com quarto grau acrescentado e uso do trtono............................................................................................... 99

    15 A Preldio Tropical n. 1 Cantiga de Folia de Reis................................... 99

    FIGURA 16 exemplo de acordes sem tera e com segundo e quarto grau acrescentado................................................................................... 100

    16 A Preldio Tropical n. 3 Persistncia....................................................... 100

    FIGURA 17 exemplo de trades deformadas ou manchadas........................ 100

    17 A Preldio Tropical n. 4 Ponteado de viola.............................................. 100

  • xi

    17 B Preldio Tropical n. 7 Tocata............................................................... 101

    FIGURA 18 exemplo de dissonncias.............................................................. 101

    18 A Preldio Tropical n. 7 Tocata............................................................... 101

    FIGURA 19 exemplo de sobreposio de acordes.......................................... 101

    19 A Preldio Tropical n. 4 Ponteado de Viola............................................. 101

    19 B Preldio Tropical n. 7 Tocata............................................................... 102

    19 C Preldio Tropical n. 10 Tangendo........................................................ 102

    FIGURA 20 exemplo de estrutura modal.......................................................... 108

    20 A Preldio Tropical n. 10 Tangendo........................................................ 108

    FIGURA 21 exemplo de estruturas de carter folclrico teras duplas..... 108

    21 A Preldio Tropical n. 2 Marcha Abaianada............................................ 108

    21 B Preldio Tropical n. 2 Marcha Abaianada............................................ 108

    21 C Preldio Tropical n. 6 Reza-de-Defunto............................................... 109

    FIGURA 22 exemplo de ritmo de baio............................................................. 109

    22 A Preldio Tropical n. 4 Ponteado de Viola............................................. 109

    FIGURA 23 exemplo de citao....................................................................... 109

    23 A Preldio Tropical n. 6 Reza-de-Defunto............................................... 109

    FIGURA 24 exemplo de superposio modal e tonal...................................... 110

    24 A Preldio Tropical n. 2 Marcha Abaianada............................................ 110

    24 B Preldio Tropical n. 2 Marcha Abaianada............................................ 110

  • xii

    SUMRIO

    1 Introduo................................................................................................. 13

    2 Guerra-Peixe e sua trajetria composicional........................................ 21

    2.1 Guerra-Peixe dodecafonista.......................................................... 23

    2.2 Guerra-Peixe nacionalista............................................................. 31

    2.3 Guerra-Peixe e a leitura de Mrio de Andrade.............................. 35

    2.4 Guerra-Peixe musiclogo.............................................................. 37

    2.5 Guerra-Peixe professor................................................................. 39

    2.6 Guerra-Peixe msico popular........................................................ 41

    2.7 Guerra-Peixe e outras influncias................................................. 44

    2.8 Guerra-Peixe, uma fuso de idias............................................... 51

    3 Signos, Interpretao, Anlise e Performance...................................... 55

    4

    Procedimentos composicionais ps-tonais e sua relao com a

    obra Preldios Tropicais........................................................................ 75

    4.1 Estruturas harmnicas tonais em Guerra-Peixe............................ 83

    4.2 Estruturas harmnicas modais...................................................... 102

    4.3 Estruturas fraseolgicas: motvicas, formais e rtmicas................ 112

    5 Consideraes Interpretativas................................................................ 116

    6 Consideraes Finais............................................................................. 127

    Referncias............................................................................................... 133

    Apndice I Anlise dos Preldios Tropicais..................................... 145

    Apndice II DVD com a execuo integral da obra.......................... 221

    Anexo Excertos das partituras.......................................................... 222

  • 1. INTRODUO

    O presente estudo tem como objeto de investigao a obra pianstica de

    Csar Guerra-Peixe denominada Preldios Tropicais. A coleo consta de uma srie

    de 10 Preldios escritos nos anos de 1979 (n 1, 2, 3 e 4), 1980 ( n 5, 6, 7), e

    1988. (n 8, 9, 10)1 Estes preldios possuem ttulos sugestivos tais como: 1

    Cantiga de Folia de Reis; 2 Marcha Abaianada ; 3 Persistncia ; 4 Ponteado

    de Viola ; 5 Pequeno Bailado ; 6 Reza-de-Defunto ; 7 Tocata ; 8 Cantiga

    Plana ; 9 Polqueada ; 10 Tangendo, 2 dando-nos a impresso de inspirao

    folclrica e popular obra.

    O ano de 1979 marca, tambm, o incio da srie de dez Preldios Tropicais, editados pela Irmos Vitale. Na ocasio, em conversa,

    Guerra-Peixe se expressaria de maneira enftica, definindo o termo tropicalismo, como a fauna, a flora, enfim toda a cultura dos trpicos em torno de nossas vidas. Os Preldios Tropicais, portanto, no s

    retratam nossa cultura, como resumem a vivncia musical do compositor. (SERRO, p. 73)3

    Atravs da anlise integral da obra Preldios Tropicais sob o ponto de vista

    harmnico e formal, bem como da contextualizao histrica e estilstica do

    compositor, pretendeu-se coletar dados na tentativa de fundamentar uma

    interpretao criativa e original, de leitura reflexiva, e atravs dela elaborar a

    1 PUBLIFOLHA, ART EDITORA. Enciclopdia da Msica Brasileira. 2 ed, So Paulo, p. 375, 1998.

    (Verbete: DUPRAT, Rgis & CORREIA, Srgio Nepomuceno Alvim),

    2 Editora dos Preldios Tropicais a irmos Vitale, sendo que os de n 7 e 10 tm sua edio

    esgotada.

    3 SERRO, Ruth. Msica para piano. In: FARIA, A.; BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-

    Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 63-85, 2007.

  • 14

    performance da obra, contemplando diversas facetas e entrelinhas, entremeando os

    conhecimentos levantados a fim de atingir maior fruio e coerncia esttica na

    execuo da coleo.

    Situar a obra de um compositor brasileiro sob um posto de vista cientfico,

    interpretativo e performtico, resgatar a memria cultural deste msico e do pas.

    Dos 10 Preldios Tropicais escritos por Guerra-Peixe (os primeiros datam de 29

    anos atrs), os de n 7 e n 10 esto em edio esgotada.4 No arquivo da Biblioteca

    Nacional, no Rio de Janeiro, consta no acervo do n 1 ao n 7, o que significa que os

    trs ltimos no esto disponveis ao pblico.5

    Guerra-Peixe, depois de tantos percursos diferentes em seu estilo de compor,

    encontrou na renovao dos mtodos de aproveitamento do folclore ptrio, como

    diria MRIO DE ANDRADE, uma msica nacional sem nacionalismo, (apud FARIA,

    p. 40)6 usando valores estticos do folclore, porm trabalhando-os livremente,

    renovou a corrente nacionalista.

    Em todas as fases percorridas, aprofundou nas questes que lhe pareciam essenciais e construiu, de forma racional e apaixonada, sua posio na msica brasileira. Como resultado de seu temperamento integrador, Guerra-Peixe se exprimiu simultaneamente e com naturalidade entre prticas musicais distintas, historicamente hierarquizadas. A msica popular urbana, [...] proveu a Guerra-Peixe conhecimento dos quais ele jamais se abdicou. Convivendo com msicas e msicos de formao social e intelectual distintas, bem como com outras expresses artsticas, o compositor pode somar conhecimentos e inspiraes traduzidos em sua criao musical. (ASSIS, 2006:110)7

    Segundo FARIA, Guerra-Peixe procurava delimitar e fixar os elementos

    recolhidos com uma atitude consciente diante do material, e da composio. As

    tentativas de sntese e fuso dos elementos nordestinos com elementos sulistas que

    4 Uma cpia do Preldio n 10 foi gentilmente cedida por Leilah Paiva Professora de Piano da

    Escola de Msica e Belas Artes do Paran. Uma cpia do Preldio n 7 foi gentilmente enviada mim pela Bibliotecria da Biblioteca Nacional.

    5 Durante a pesquisa uma cpia dos Preldios 8, 9 e 10 foi remetida Biblioteca Nacional, no Rio de

    Janeiro, a fim de complementar o acervo do compositor.

    6 FARIA, Antonio Guerreiro de. Modalismo e forma na obra de Guerra-Peixe. In: FARIA, A.; BARROS,

    L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 29-45, 2007.

    7 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: Conciliaes estticas e culturais na

    produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.

  • 15

    manifestavam diferenas e tambm pontos de contato, demonstraram que a

    delimitao e a fixao dos elementos j estavam completas e sob domnio.

    (1997:80)8

    FARIA, que ao efetuar ampla pesquisa sobre o compositor, obtendo acesso a

    fontes primrias ao escrever sua Dissertao de Mestrado, Guerra-Peixe: sua

    evoluo estilstica luz das teses andradeanas, comenta que os arquivos pessoais

    de Guerra-Peixe encontram-se alocados na residncia de Jane Guerra-Peixe,

    sobrinha neta do compositor, e que por testamento a inventariante do esplio.

    O material encontra-se guardado, mas no tecnicamente catalogado e acondicionado de maneira apropriada. Os documentos constituem-se em originais; so anotaes diversas, cadernos contendo coleta de material folclrico, pesquisas inditas, apostilas datilografadas, originais de obras, rascunhos de obras, enfim, um material que se constitui em campo farto para a pesquisa musicolgica e que merece especial ateno de entidades interessadas em auxiliar a preservao de nossa memria. (p. 5-6)9

    Randolf Miguel, violonista, compositor e professor, aluno e amigo de Guerra-

    Peixe, colheu depoimentos de viva voz do compositor, um total de cem horas de

    gravao, registrando opinies pessoais, dados da trajetria profissional,

    confidncias de carter particular, enfim, histrias da vida de Guerra-Peixe. Estes

    depoimentos encontram-se guardados no arquivo pessoal de Miguel, em sua

    residncia e so fontes ricas em informaes. (p. 6)10

    GRIFFITHS, em seu ndice temtico apresentado na obra Enciclopdia da

    Msica do Sculo XX, relaciona os compositores do sc XX aos seus pases de

    origem, trazendo apenas um nome para o Brasil: Heitor Villa-Lobos. (p. xiii)11

    GORDON, em seu livro sobre a histria da literatura para instrumentos de teclado

    tambm no cita o compositor, tendo apenas referendado Ernesto Nazareth, Villa-

    Lobos, Lorenzo Fernandez, Mignone, Guarnieri e Claudio Santoro. (p. 414-418)12 No

    catlogo HINSON, um dos mais importantes sobre o repertrio pianstico, apenas

    8 FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.

    Dissertao de Mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.

    9 Ibid.

    10 Ibid.

    11 GRIFFITHS, Paul. A msica moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

    12 GORDON, Stewart. A history of keyboard literature. Music for the piano and its forerunners. EUA:

    Schirmer, 1996.

  • 16

    sete dos dez preldios so citados, alm de nenhuma outra obra para piano de

    Guerra-Peixe. Podemos vislumbrar atravs da constatao acima, a escassez de

    informao sobre os compositores brasileiros no meio musical internacional. (p.

    362)13

    A pesquisa em msica um veculo de divulgao de saberes artsticos e

    valores estticos, podendo alm de resgatar a memria da msica brasileira,

    proporcionar ao msico o aprofundamento na compreenso da organizao do

    discurso musical e sua natureza sonora, possibilitando-lhe descobertas, como o

    carter abstrato, sensvel e racional da msica, assim como as contribuies dos

    compositores atravs de suas diversas abordagens e concatenaes, e a

    transformao esttica e histrica feita por eles.

    DEMO comenta sobre a amplitude da pesquisa na reformulao do

    conhecimento dizendo que:

    Pesquisa pode significar condio de conscincia crtica e cabe como componente necessrio de toda proposta emancipatria. Para no ser mero objeto de presses alheias, mister encarar a realidade com esprito crtico, tornando-a palco de possvel construo social alternativa. A, j no se trata de copiar a realidade, mas de reconstru-

    la conforme nossos interesses e esperanas ... (p. 10)14

    A fundamentao terica para o desenvolvimento do presente trabalho teve o

    intuito de contextualizar o compositor dentro da esttica e das tendncias histricas

    que propiciaram o desenvolvimento de sua obra, a fim de dar maior amplitude e

    coerncia na interpretao dos dados obtidos com a anlise da obra como um todo

    e das peas individualmente, evitando maior discrepncia quanto ao universo

    artstico do compositor.

    COPLAND comenta que se examinarmos a questo do carter artstico de

    cada compositor, descobriremos que este formado por dois elementos distintos: a

    personalidade individual do artista e as influncias do tempo em que ele viveu. [...]

    seja qual for a personalidade de um compositor, ela se expressa dentro da moldura

    da sua prpria poca. (p. 159)15

    13

    HINSON, Maurice. Guide to the pianists repertoire. 3 ed. EUA: Indiana University Press, 2000.

    14 DEMO, Pedro. Pesquisa: princpio cientfico e educativo. 11 ed. So Paulo: Cortez, 2005.

    15 COPLAND, Aaron. Como ouvir e entender a msica de hoje. Rio de Janeiro: Artenova, 1974.

  • 17

    O Memorial escrito por Guerra-Peixe em 1971 e intitulado: Principais traos

    evolutivos da produo musical foi importante fonte por conter informaes de

    prprio punho do compositor.

    Outra referncia foi o livro Maracatus do Recife, escrito pelo compositor em

    1955, um marco representativo em sua trajetria de msico, compositor e

    pesquisador. Alguns dos artigos publicados pelo compositor tambm foram

    consultados.

    Apesar das obras propostas para anlise neste projeto estarem situadas em

    um perodo ps serialismo do compositor, no se pode ignorar o quo forte foi a

    influncia do mestre Koellreuter em sua formao musical, diretamente com os

    ensinamentos da tcnica serial e dodecafnica e tambm com as vrias discusses

    estticas durante as aulas e dentro do grupo Msica Viva. O livro de Carlos Kater,

    Msica Viva e H. J. Koellreutter, forneceu um excelente panorama da fase

    dodecafnica de Guerra-Peixe ampliando o suporte analtico das obras na medida

    em que se pode imaginar que este aprendizado no foi simplesmente descartado

    pelo compositor, mas que gerou parte do amlgama da personalidade compositiva

    de Guerra-Peixe. Segundo Henry BARRAUD, Por mais inslita que possa parecer,

    uma obra de arte jamais sai do nada. um elo de uma cadeia; e s se consegue

    atingi-la se forem seguidos todos os elos que levam at ela. (p. 11)16

    Monografias, dissertaes, teses e o livro Guerra-Peixe. Um msico brasileiro,

    de 2007, com inmeros artigos e depoimentos sobre o compositor, foram fontes

    mpares para a elaborao do segundo captulo, onde encontramos dados sobre a

    trajetria estilstica de Guerra-Peixe na Msica Brasileira, assim como para a

    elaborao do captulo seis (denominado Consideraes Finais), que complementa

    o captulo cinco onde foram feitas as consideraes interpretativas da coleo

    Preldios Tropicais e finaliza o presente trabalho. Esta reviso de literatura propiciou

    revelar outros universos sobre o compositor, informaes geralmente no

    encontradas em biografias.

    A obra de Mrio de Andrade foi decisiva em sua carreira tendo o compositor

    encontrado na leitura do livro Ensaio sobre a msica brasileira, novo sentido sua

    obra, nas palavras de GUERRA-PEIXE, comeando tudo de novo. (V:4)17 A leitura

    16

    BARRAUD, Henry. Para compreender as msicas de hoje. So Paulo: Perspectiva, s. d.

    17 GUERRA-PEIXE, Csar. Memorial. Cpia datilografada, 1971.

  • 18

    desta referncia teve o intuito de compreender a transformao esttica ocorrida

    com o compositor.

    A fim de constatar o quanto o ttulo dado a cada Preldio representou um

    elemento esttico-temtico estrutural na concepo da obra, dado seu cunho

    folclrico, foi feita pesquisa bibliogrfica sobre as manifestaes folclricas

    brasileiras que influenciaram Guerra-Peixe.

    A questo analtica foi embasada e abordada em autores consagrados na

    rea de anlise harmnica, tais como Persichetti, Piston, Schoenberg, Kostka &

    Payne e em novos autores como Antenor Ferreira Corra com seu livro editado em

    2006, Estruturaes harmnicas ps-tonais, que muito contribuiu para a elaborao

    analtica da obra. Como referendo principal, foi utilizada a obra de Guerra-Peixe:

    Melos e harmonia acstica princpios de composio musical, uma apostila

    pedaggica para o ensino da composio, transformada em livro e com

    conhecimentos baseados na teoria composicional de Hindemith (encontrada nas

    obras Practica de la composicion a dos voces e em The craft of musical

    composition), partindo do ponto de vista que esta obra seria parte dos

    procedimentos utilizados pelo compositor em suas prprias obras.

    No que concerne s anlises do material modal a obra da professora

    Emerlinda PAZ, O modalismo na Msica Brasileira, constituiu-se praticamente como

    nico referendo devido ao pouco material disponvel na rea.

    A sustentao analtica harmnica-modal e formal, feita de forma descritiva e

    exemplificada, foi contemplada sob o foco da delimitao dos elementos tradicionais

    de estruturao musical, bem como dos elementos estticos e sonoros de uma obra

    do sc. XX. Relacionando o enfoque esttico e estilstico dado aos materiais sonoros

    provenientes de uma tradio musical, com o material resultante da criao do

    compositor, considerou-se o ato de analisar como um instrumento de leitura de

    entrelinhas, que possibilita reflexo, criatividade e originalidade nas concepes

    interpretativas.

    A definio analtica de KATER & FERRAZ corroboram as observaes acima:

    ... devemos nos ater ao fato de que a reflexo analtica se constitui

    num dos pontos fundamentais para a renovao, e no diluio, dos modos criativos do passado, remoto ou imediato. Seu poder renovador se estabelece justamente quando a anlise reflete as formas vivas e

  • 19

    pulsantes da percepo e do pensamento musical contemporneos. (p. v)18

    Artigos diversos tambm tiveram um papel importante na coleta de

    informaes para a elaborao do captulo trs, que trata da relao entre os signos,

    anlise e interpretao, por representarem opinies muitas vezes controversas, com

    diferentes facetas estticas sobre o ato de analisar e interpretar, e por abordarem as

    principais tendncias contemporneas em interpretao musical e performance.

    Com a compilao de todos estes dados, tornou-se cabvel tentar estabelecer

    um processo de reconhecimento e reavaliao do universo musical pretendido pelo

    compositor na obra Preldios Tropicais, pois sob o ponto de vista de

    KOELLREUTTER, [...] os componentes da obra musical no so

    independentemente analisveis, mas representam um conjunto de inter-relaes

    dinamicamente perceptveis em constante movimento. (p. 55)19

    O trabalho est dividido em seis captulos; referncias; dois apndices, o

    primeiro com as anlises descritivas e exemplificadas da coleo, o segundo com

    um DVD gravado ao vivo com a obra integral; e um anexo com excertos das

    partituras e observaes sobre possveis erros encontrados na edio.

    No segundo captulo, denominado Guerra-Peixe e sua trajetria

    composicional, encontramos um panorama estilstico do compositor, contemplando

    informaes histricas relevantes, que contextualizaram a obra e o compositor, e

    que referendaram a concepo interpretativa, bem como a performance da obra

    Preldios Tropicais.

    No terceiro captulo, denominado Signos, Interpretao, Anlise e

    Performance, buscou-se encontrar em vrias reflexes artsticas que relacionam as

    tarefas, amplitude e pluralidade, bem como a implicao destas nas escolhas feitas

    pelo intrprete ou performer.

    No quarto captulo, denominado Procedimentos composicionais ps-tonais e

    sua relao com a obra Preldios Tropicais, encontra-se a reviso bibliogrfica que

    referendou a anlise da obra, o pilar de sustentao de todo o trabalho analtico. Ao

    buscar o esclarecimento de processos, idioma e traos composicionais, focamos

    18

    KATER, Carlos. FERRAZ, Silvio. Cadernos de anlise musical 4. So Paulo: Atravez, 1990.

    19 KOELLREUTTER, H. J. Terminologia de uma nova esttica musical. Porto Alegre: Movimento,

    1990.

  • 20

    como referncia de base obra do prprio compositor Csar Guerra-Peixe, Melos e

    harmonia acstica princpios de composio musical. Autores diversos que

    contemplam as prticas de anlise harmnica tambm foram fonte de consulta.

    O quinto captulo, denominado Consideraes interpretativas, apresenta uma

    descrio de cada um dos preldios sob o ponto de vista interpretativo. Os recursos

    esto descritos sob a tica do uso do pedal e sua ampla gama de possibilidades,

    sonoridades, movimentos e gestos piansticos, entre o material motvico encontrado,

    principalmente no que se refere aos elementos recolhidos da cultura popular e os

    estilizados, elaborando a concepo artstica em relao ao leque de material

    encontrado na investigao.

    No ltimo captulo, denominado Consideraes finais, o texto atua como

    elemento catalisador das reflexes anteriormente feitas, propondo referncias e

    conexes entre o ato de analisar, interpretar e executar a obra Preldios Tropicais

    em sua ntegra, possibilitando a articulao resultante das especulaes feitas com

    o texto musical e suas implicaes analticas. Essas sugestes oportunizam

    equilbrio e suporte concepo da obra, atravs da anlise e da contextualizao

    histrica e estilstica do compositor, possibilitando um planejamento sonoro e a

    construo do processo de interpretao e performance da coleo pelos pianistas

    nela interessados.

    No apndice I, propusemos a anlise descritiva e exemplificada sob o ponto

    de vista estrutural, motvico e fraseolgico de cada um dos dez preldios, que

    referendou e norteou as reflexes atravs da identificao dos elementos presentes

    no idiomtico composicional e dos procedimentos estruturais empregados, tais

    como: recursos tonais e modais, polarizaes harmnicas, princpio da semelhana

    ou diferena, consonncias e dissonncias funcionais, organizao fraseolgica,

    materiais motvicos e temticos utilizados.

    O apndice II apresenta um DVD gravado ao vivo antes da defesa, dia 08 de

    agosto de 2008 9:00 h, no Auditrio Bento Mossurunga, na Escola de Msica e

    Belas Artes do Paran, em Curitiba, com a execuo integral da obra Preldios

    Tropicais.

    No anexo encontramos excertos das partituras e comentrios sobre erros

    encontrados na edio.

  • 2. GUERRA-PEIXE E SUA TRAJETRIA COMPOSICIONAL

    (1914, Petrpolis RJ / 1993, idem)

    Compositor criativo, original, homem de personalidade forte, estudioso, violinista atuante, defensor tenaz dos direitos do msico, polemista por excelncia, uma figura da qual pode-se discordar algumas vezes, mas cujas opinies merecem sempre uma anlise meticulosa e profunda. (VIEIRA, p. 1)1

    Csar Guerra-Peixe foi um msico de muitas facetas. Compositor, regente,

    professor, violinista, pesquisador, musiclogo e folclorista, excelente arranjador e

    orquestrador tanto de msica erudita quanto de msica popular.

    Teve fases distintas em sua criao, buscando uma identidade prpria,

    dialogando em diversos meios, em uma multiplicidade de sons, culturas e espaos,

    misturando e transitando entre vrias prticas musicais, mesclando e fundindo

    conhecimentos, externando a diversidade em sua produo. Nas palavras de Rosa

    NEPOMUCENO, [...] brigou pelo direito de ser livre para navegar em mares abertos

    e aportar nas mais diversas regies do Brasil sonoro. (p. 13)2

    [...] msica tonal clssico-romntica, msica tonal-modal folclrica, msica tonal nacionalista, msica atonal-dodecafnica; rdios, orquestras, instituies de ensino, bares, cassinos, salas de concerto; artes plsticas, cinema, fotografia, literatura. Seu estilo e suas opes estticas expressam e so motivados por esta multiplicidade cultural, muito embora no fossem por ela determinados. (ASSIS, p. 13)3

    1 VIEIRA, Sonia Maria. Caractersticas instrumentais na obra para piano de Csar Guerra-Peixe.

    Dissertao de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, 1985, 112 fls.

    2 NEPOMUCENO, Rosa. Csar Guerra-Peixe. A Msica sem fronteiras. Rio de Janeiro: Funarte,

    2001.

    3 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na

    produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.

  • 22

    O professor Newton Pdua forneceu os primeiros conhecimentos terico-

    tcnicos que lhe possibilitaram o domnio do mtier (FARIA, p. 75)4. Nesta fase de

    formao Guerra-Peixe comps 21 obras em estilo neo-clssico, sendo que 19 delas

    esto excludas do seu catlogo e tm sua execuo interditada. Segundo ASSIS, o

    compositor considerou-as anacrnicas e desprovidas da inventividade prpria ao

    fazer artstico. (p. 116-117)5

    Em Petrpolis estudou violino na Escola de Msica Santa Ceclia, com o

    professor tcheco Gao Omacht, onde passou a lecionar como professor assistente

    em 1930, aos dezesseis anos. Durante este perodo passou a ir semanalmente ao

    Rio de Janeiro para estudar com Paulina d Ambrsio e em 1932 ingressou no

    Instituto Nacional de Msica. Transfere-se definitivamente para o Rio em 1934

    passando a tocar em restaurantes, bailes e gafieiras, comeando a compor msica

    popular usando pseudnimos. As orquestras de baile, assim como as de cinema

    mudo, foram grande fonte de aprendizado, onde costumava tocar de ouvido e

    improvisar temas de jazz, tendo ainda muitas vezes, organizado as trilhas sonoras

    dos filmes. (DUPRAT, p. 355)6

    Em 1941 entrou para o Conservatrio Brasileiro de Msica, fundado por

    Lorenzo Fernandez, onde, orientado por Newton Pdua, tornou-se o primeiro msico

    no Brasil formado em Fuga e Contraponto nos moldes do Conservatrio de Paris e o

    primeiro aluno do Conservatrio a concluir o curso de composio. (AGUIAR, p.

    132)7

    Inicia carreira radiofnica, outro laboratrio de formao. Compe diversas

    trilhas sonoras para o cinema brasileiro, bem como para historinhas infantis. Arranjos

    para o teatro de revista, rdio, televiso e discos. (MIGUEL, p. 18)8

    4 FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.

    Dissertao de Mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.

    5 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na

    produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.

    6 PUBLIFOLHA, ART EDITORA. Enciclopdia da Msica Brasileira. 2

    ed, So Paulo, p. 375, 1998.

    (Verbete: DUPRAT, Rgis & CORREIA, Srgio Nepomuceno Alvim),

    7 AGUIAR, Lcio. As mdias do So Maestro. In: FARIA, A.; BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.)

    Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 129-146, 2007.

    8 MIGUEL, Randolf. Guerra-Peixe, arranjador de msica popular. In: FARIA, A.; BARROS, L. O. C.;

    SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 15-27, 2007.

  • 23

    MARIZ considera o compositor como o grande nome da primeira gerao ps-

    nacionalista pela excepcional experincia tanto no setor de msica erudita quanto no

    setor de msica popular, sendo um msico de grande mtier. (p. 317)9

    HORTA considera que Guerra-Peixe ocupa na msica brasileira uma posio

    semelhante de Bartk na msica europia, foi o que mais sistematicamente

    estudou o nosso folclore e trabalhou o seu instrumento at sentir-se capaz de

    compor no que considera ser um idioma verdadeiramente nacional. (apud

    McLEISH, p. 48)10

    Nas palavras de sua amiga, a pianista Sonia Maria VIEIRA:

    Signatrio do Manifesto Msica Viva de 1946, trilhou primeiramente o

    caminho dodecafnico, abandonando-o mais tarde pela procura do nacional na Msica Brasileira. Para realizar esse intento, embrenhou-se pelo interior de Pernambuco e de So Paulo, convivendo diuturnamente com o fato folclrico, realizando trabalhos serssimos de pesquisa, dos quais resultaram livros e artigos [...] Esse conhecimento vivenciado por ele, to intensamente, foi digerido por sua sensibilidade, maturado e, como produto final, naturalmente incorporado sua msica. (p. 1-2)11

    2.1 GUERRA-PEIXE DODECAFONISTA

    Uma segunda fase do modernismo musical vem ento se instalar. As descobertas de novas perspectivas de organizao do espao musical e a criao de sintagmas originais de alturas, representadas notadamente pelo atonalismo, dodecafonismo, e explorao do serialismo, serviro de referncia para a produo de alguns compositores brasileiros. (KATER, p. 15)12

    Em 1944, Guerra-Peixe entrando em contato com o msico Koellreutter,

    engaja-se com a Msica Dodecafnica 13 e Serial, filiando-se ao grupo Msica Viva,

    9 MARIZ, Vasco. Histria da Msica no Brasil. 6 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

    10 McLEISH, Kenneth & Valerie. Guia do ouvinte de msica clssica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

    1993.

    11 VIEIRA, Sonia Maria. Caractersticas instrumentais na obra para piano de Csar Guerra-Peixe.

    Dissertao de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, 1985, 112 fls.

    12 KATER, Carlos. Msica Viva e H. J. Koellreutter: movimentos em direo modernidade. So

    Paulo: Musa Editora, Atravez, 2001.

    13 O dodecafonismo surgiu em 1923, criado pelo compositor austraco Arnold Schoenberg. Segundo o

    prprio Schoenberg a tcnica de composio foi uma decorrncia historicamente inevitvel, devido emergncia de sistematizao do atonalismo livre (ou suspenso como preferia Schoenberg), idioma musical caracterizado pelo abandono das relaes meldicas e harmnicas do sistema tonal, que j vinha sendo assistido em obras do romantismo tardio alemo de Wagner, mas sua expanso atribuda a Schoenberg. (ASSIS, p. 85) O dodecafonismo objetivava revises conceituais sobre

  • 24

    contestando as correntes nacionalistas ortodoxas atravs de novas proposies: a

    renovao esttica da msica brasileira.

    O Grupo, fundado em 1939 pelo msico alemo radicado no Brasil, pretendia

    a renovao e a evoluo da linguagem musical. Defendia a introduo de tcnicas

    contemporneas de composio, novas reflexes e o abandono dos processos ps-

    romnticos. Koellreuter, um msico dotado de conhecimento sobre diversas prticas

    musicais, e imbudo de um esprito questionador, propunha uma concepo artstica

    universalista, integrada s correntes estticas da msica contempornea, alheia a

    preconceitos e doutrinas. (NEVES, p. 101-103, passim)14

    O musiclogo Vasco MARIZ comenta a importncia de Koellreutter no meio

    musical brasileiro na medida em que instaurou a reflexo sobre o papel do msico e

    da linguagem musical diante dos problemas poltico-sociais contemporneos. (apud

    ASSIS, p. 118)15

    Ana Cludia de ASSIS acredita que a semente lanada inconscientemente

    por Koellreutter pode ser germinada porque o solo era fecundado pelo desejo e

    entusiasmos dos jovens compositores em revigorar o ambiente musical daquela

    poca.

    Os dodecafonistas brasileiros tinham em comum o anseio pelo rompimento com as regras de um sistema conservador e indiferente s transformaes mundiais, compartilhando posicionamentos estticos-ideolgicos expressos tanto coletivamente por meio de manifestos e declaraes de princpios, como individualmente, por meio da criao musical. Cada compositor adepto ao dodecafonismo exprimia-se dentro de seu prprio estilo, este construdo a partir de suas experincias e impresses da realidade em transformao. (p. 242)16

    Segundo NEVES, o papel de Koellreutter na evoluo musical de Guerra-

    Peixe foi fundamental, libertando-o da linguagem tonal atravs do estmulo e impulso

    que lhe dava o Grupo Msica Viva. O carter apaixonado do compositor levou-o a

    discursividade e direcionalidade, forma e contedo, tempo e espao e uma concepo musical autnoma, desvinculada de qualquer significado extra-musical, msica com alto grau de abstracionismo. A msica dodecafnica no expressaria nenhum outro significado seno o puramente musical, da a legitimidade da srie geradora como idia unificadora.

    14 NEVES, Jos Maria. Msica contempornea brasileira. So Paulo: Ricordi Brasileira, 1981.

    15 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na

    produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.

    16 Ibid.

  • 25

    dominar a nova tcnica em pouco tempo, com total espontaneidade, fazendo-o

    representante mximo da nova escola e seu defensor mais ardente. (p. 102)17

    Um manifesto publicado em maio 1944 e assinado por Guerra-Peixe, Claudio

    Santoro, entre outros compositores ligados ao movimento, diz:

    O grupo Msica Viva surge como uma porta que se abre produo

    musical contempornea, participando ativamente da evoluo do esprito. A obra musical, como a mais elevada organizao do pensamento e sentimentos humanos, como a mais grandiosa encarnao da vida, est em primeiro plano no trabalho artstico do Grupo Msica Viva. (NEVES, p. 94)18

    Segundo ASSIS, este foi um perodo histrico incomparvel em torno da

    msica erudita no Brasil, onde se deu o mais significativo debate. Conceitos como

    tradio e inovao, nacional e universal, carter social da msica, faziam-se

    presentes nos discursos e nas realizaes dos msicos brasileiros, estes,

    estimulados pelo ambiente poltico nacional e mundial.

    [...] o discurso daqueles que ao aderir ao dodecafonismo, alimentaram a expectativa de renovar as formas de expresso tradicionalmente voltadas para o regionalismo. Ansiosos em romper com as regras de um sistema conservador e indiferente s transformaes mundiais, os msicos dodecafnicos compartilharam posicionamentos esttico-ideolgicos expressos tanto coletivamente por meio de manifestos e declaraes de princpios, como individualmente, por meio da criao musical. (ASSIS, p. 41-46, passim)19

    Tamanha foi a fora da influncia desta nova esttica qual Guerra-Peixe

    aderiu, que obras de sua juventude foram destrudas. Segundo Jos Maria NEVES:

    A evoluo esttica do compositor teria como resultado um gesto apaixonado bem caracterstico de Guerra-Peixe: descontente com sua produo anterior, ele a destri integralmente (por esta poca Guerra-Peixe j havia composto dois Quartetos, uma Sinfonia, um Trio, um Quinteto e um Divertimento) como ele mais tarde haveria de querer destruir toda a sua produo dodecafnica.

    17

    NEVES, Jos Maria. Msica contempornea brasileira. So Paulo: Ricordi Brasileira, 1981.

    18 Ibid.

    19 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na

    produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.

  • 26

    NEVES, ainda comenta que suas obras de 1944 recusam qualquer

    concesso sentimentalidade e facilidade de percepo, se inscrevendo dentro de

    um atonalismo sistemtico que se afasta clara e intencionalmente de qualquer

    vnculo tonal. (p. 102)20

    Sobre o compositor, em uma publicao da Revista Msica Viva no ano de

    1947, KOELLREUTTER se exprime:

    A Sinfonia de Guerra-Peixe um exemplo de que o atonalismo no incompatvel com a expresso de sentimentos, com a paixo, com a graa, com o lirismo. [...] tem o valor de um manifesto e a significao de um ato de f nos destinos da msica brasileira, erudita e popular. uma obra ousada e revolucionria. (apud NEVES, p. 103)21

    Sobre a mesma Sinfonia de Guerra-Peixe:

    ... esta Sinfonia pode ser considerada a fronteira de um novo

    posicionamento esttico do compositor, que busca incluir e valorizar, dentro de sua concepo ainda dodecafnica, certos valores da

    msica popular brasileira ... (NEVES, p. 103)22

    Segundo ASSIS, Guerra-Peixe tentou criar uma msica cujas perspectivas

    sonoras renovadoras no comprometessem o dilogo com o pblico, mas ao mesmo

    tempo contribusse para despertar uma nova sensibilidade musical na sociedade de

    sua poca, apropriando-se de prticas musicais tradicionais da cultura brasileira e

    conciliando-as com outras prticas estranhas a esta cultura. (p. 14)23

    Csar Guerra-Peixe, em 1944, ao optar pelo dodecafonismo assumiu, assim como seus colegas do Msica Viva, uma posio de compositor

    esteticamente anti-nacional, afastando-se de uma tradio fundada na segunda metade do sculo XIX e prolongada at a primeira metade do sculo XX. A opo pelo dodecafonismo implicava propor novos valores esttico-musicais para o pblico brasileiro, este habituado afinao nacionalista, s consonncias da msica tradicional europia e aos ritmos da msica popular. Porm, adotar a tcnica dos doze sons de forma ortodoxa significava, para o compositor, distanciar-se

    20

    NEVES, Jos Maria. Msica contempornea brasileira. So Paulo: Ricordi Brasileira, 1981.

    21 Ibid.

    22 Ibid.

    23 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na

    produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.

  • 27

    do dilogo com sua cultura. Era preciso flexibiliz-la, imprimindo-lhe uma cor nacional. (ASSIS, p. vi)24

    Aos poucos desenvolveu sistemticas pessoais para conciliar a linguagem

    dodecafnica com elementos musicais de outros contextos. Estas estratgias eram

    justificadas pelo compositor como um meio de garantir a comunicabilidade com o

    pblico, e ao mesmo tempo contribuir ampliando a viso esttica sobre Msica.

    (ASSIS, p. 16)25

    Segundo FARIA, Guerra-Peixe procurava um ambiente nacional para seu

    dodecafonismo muito particular, procurando uma vertente nacional na nsia de uma

    maior comunicao com o pblico.

    Ainda segundo o autor, Guerra-Peixe utilizava meios e solues prprias na

    tentativa de assegurar a comunicabilidade de suas idias atravs do dodecafonismo,

    como a repetio de motivos ou clulas, a fixao de elementos temticos, o uso de

    ritmos e motivos meldicos de vaga feio nacional, o estabelecimento de plos,

    eixos ou centros tonais bastante disfarados como pontos referenciais na harmonia,

    entre tantos outros, fundamentando uma organizao ou um cdigo serial

    especfico, de referencial estranho ao dodecafonismo, este, passando mais a vigorar

    como um processo de composio para Guerra-Peixe.

    FARIA tambm comenta que estes artifcios utilizados pelo compositor

    davam sinais de um nacionalismo embrionrio, como uma etapa experimental da

    Fase Nacional que se seguiria, [...] ainda em processo de gestao, que mais tarde

    se tornaria integrante de seu pensamento, configurando assim um procedimento de

    estilo. (p. 18-33, passim)26

    Segundo ASSIS, Guerra-Peixe props uma msica cujo carter polifnico e

    dissonante, reverberasse na sociedade culturalmente pluralista do pas, reavaliando

    o processo cultural homogeneizante em que se inseria a sociedade brasileira dos

    24

    ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.

    25 Ibid.

    26 FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.

    Dissertao de mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.

  • 28

    anos 1930 e 1940, do qual a esttica nacionalista fazia parte (p. 23)27. ASSIS

    complementa com a informao de que o compositor passou a empregar uma

    linguagem mais prxima ao atonalismo livre do que tcnica dos doze sons

    propriamente dita, sendo que (p.144)28 tais estratgias o conduziram gradativamente

    ao abandono do dodecafonismo e converso ao nacionalismo (p.44)29, pois ASSIS

    declara que: as obras de Guerra-peixe compostas entre 1948 e 1949 refletem um

    perodo de indefinio pessoal e mesmo coletiva, vivido pelo grupo naquele

    momento. (p. 217)30

    As discusses com Mozart de Arajo acentuaram ainda mais as incertezas de Guerra-Peixe em relao ao dodecafonismo. Devoto s idias de Mrio de Andrade expostas no Ensaio sobre a Msica Brasileira, Mozart de Arajo recuperou em Guerra-Peixe a lembrana de uma obra lida no final dos anos 1930, sensibilizando-o para os problemas apontados pelo poeta modernista, at ento totalmente resolvidos pelos compositores nacionalistas. O sentido social, responsvel em guiar as opes estticas dos compositores brasileiros, era uma das principais questes para Mrio de Andrade e, provavelmente, o ponto forte das argumentaes de Mozart de Arajo contra o dodecafonismo no Brasil. (ASSIS, p. 143)31

    A tcnica dos 12 sons deixou de ser suficiente para desenvolver e expressar

    sua arte onde clulas e esquemas rtmicos brasileiros j indicavam anteriormente um

    clima sonoro e expressivo de carter nacional. Durante o perodo dodecafnico,

    Guerra-Peixe acreditou na fuso de duas correntes estticas opostas, um

    pseudonacionalimo, manejando a tcnica com certo desprendimento.

    Abandonando gradativamente o rigor da tcnica schoenberguiana e agregando sua linguagem musical mais e mais elementos da tradio musical brasileira, este compositor buscava coerncia entre

    seu posicionamento ideolgico ... e a obra que ele criava para contribuir na luta pela promoo do seu povo. (NEVES, p. 103)32

    27

    ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.

    28 Ibid.

    29 Ibid.

    30 Ibid.

    31 Ibid.

    32 NEVES, Jos Maria. Msica contempornea brasileira. So Paulo: Ricordi Brasileira, 1981.

  • 29

    Em seu Memorial, Guerra-Peixe afirma que em 1949, [...] reconhecendo que

    sua obra falta o necessrio sentido social, a que se refere Mrio de Andrade no

    Ensaio, encerra aqui a estrepitosa fase dodecafnica. (V, p. 4)33

    Segundo ASSIS, outros fatores concorreram para o encerramento da fase

    dodecafnica, tais como a insatisfao pessoal do compositor quanto recepo de

    suas msicas pelo pblico, seu envolvimento intenso com a msica popular e por fim

    o convite para trabalhar como arranjador e orquestrador na Rdio Jornal do

    Comrcio de Recife. (p. 143)34

    Guerra-Peixe conciliava as dissonncias dodecafnicas com as referncias rtmicas e harmnicas da msica popular, num processo contnuo de auto-alterao, buscando garantir a comunicabilidade com seu pblico. Mas, na medida em que as sonoridades dodecafnicas eram intencionalmente infiltradas pelo compositor em contextos scio-musicais que privilegiavam outro tipo de prtica musical como, por exemplo, as rdios, evidente que Guerra-Peixe buscava tambm interferir no gosto musical do pblico consumidor e, neste sentido, contribuir para o florescimento de uma nova sensibilidade musical. [...] em 1947, ao perceber que o resultado de suas experincias nacionalizantes estava prximo demais da esttica musical nacionalista (tambm tonal-modal), o compositor e seu projeto entraram em crise. (ASSIS, p. 242-244, passim)35

    Buscando respostas quanto universalidade da Msica e a comunicabilidade

    com o pblico, Guerra-Peixe sofre um embate dialtico entre razo e paixo. O

    processo de flexibilizao, a conciliao do dodecafonismo com elementos

    nacionais, a dicotomia entre o tratamento composicional e a criatividade popular,

    levam o compositor a afastar-se gradativamente da tcnica. O compositor e colega

    do Grupo Msica Viva, Edino KRIEGER comenta,

    [...] passou da condio de serialista convicto, do racionalismo de suas sries pan-intervalares, negao apaixonada do mesmo serialismo, quando outra razo o levou descoberta da enorme riqueza do universo sonoro do folclore nordestino, que pesquisou com uma profundidade indita, dissecou com uma racionalidade objetiva, e defendeu com o ardor de uma paixo juvenil. (prefcio)36

    33

    GUERRA-PEIXE, Csar. Memorial. Cpia datilografada, 1971.

    34 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na

    produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.

    35 Ibid.

    36 KRIEGER, Edino. Prefcio. In: FARIA, A; BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe.

    Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar , 2007.

  • 30

    Rompeu publicamente com Koellreutter passando a ser grande combatente

    da tcnica dodecafnica, a qual ele denominava falso modernismo, acumulando no

    seu plano e mapa musical valores da msica nacional.

    Outra coisa que foi bem com ele (referindo-se a Koellreutter): pensar, discutir, estabelecer uma esttica, e no s escrever as notas; fazia pensar. E foi como eu disse em uma entrevista: pensei tanto [...] que terminei deixando o dodecafonismo [...] (GUERRA-PEIXE apud FARIA, p.30)37

    Porm, segundo MIGUEL, embora re-negasse, posteriormente, sua msica

    serialista, como esttica possvel de ser nacionalizada, o compositor nunca negou a

    utilidade deste aprendizado. (p. 44)38

    ramos decididos apologistas do dodecafonismo curiosa espcie de msica que pretendamos deformar ao nosso modo, supondo, ento,

    produzir obra de cultura nacional ... quando em meiados (sic) de 1949, mudamos a nossa atitude esttica diante da msica brasileira e dos sentimentos humanos. (GUERRA-PEIXE, p. 10)39

    GUERRA-PEIXE em depoimento gravado no Museu da Imagem e do Som

    MIS, do Rio de Janeiro em 1992:

    Eu acabei com uma concepo que toda repetio seria um negcio mais ou menos elementar, e eu tava naquela de querer ser o refinado. Ento os meus temas no se repetiam nunca. Eles eram desenvolvidos, sempre modificados, mas nunca repetidos tal e qual. (apud MIGUEL, p. 27)40

    A pianista Ruth SERRO afirma:

    Ele era um artista maravilhoso e de grande viso, e eu sempre dizia que sua passagem pelo dodecafonismo tinha dado disciplina sua tcnica de compositor, importante para que ele se tornasse um dos

    37

    FARIA, Antonio Guerreiro de. Modalismo e forma na obra de Guerra-Peixe. In: FARIA, A.;

    BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 29-45, 2007.

    38 MIGUEL, Randolf. A estilizao do folclore na composio de Guerra-Peixe. Dissertao de

    Mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 2006, 107 fls.

    39 GUERRA-PEIXE, Csar. Maracatus do Recife. So Paulo: Ricordi, 1955.

    40 Op. cit.

  • 31

    maiores do Brasil. Anos e anos ouvindo isso, no fim da vida concordou comigo, embora no publicamente. (apud NEPOMUCENO, p. 27)41

    2.2 GUERRA-PEIXE NACIONALISTA

    A esttica nacionalista [...] foi a esttica musical oficial do Brasil durante toda a primeira metade do sculo XX e correspondia aos anseios de um projeto intelectual mais amplo, o de nacionalizao da cultura brasileira. (ASSIS, p. 41)42

    Sua fase dodecafnica iniciada em 1944 teve fim em 1949, quando

    impressionado com o Maracatu do Recife, abandona a orientao esttica de

    Koellreutter e passa a se interessar definitivamente pelo material folclrico brasileiro.

    [...] uma primeira tomada de conscincia, no s com a msica brasileira, mas, com a realidade daquilo que estava a procurar; na verdade um novo estilo, uma nova maneira de articular as idias que possibilitassem uma comunicao mais imediata com o pblico e tambm um caminho diferente do trilhado pelos demais compositores brasileiros. (FARIA, p. 32)43

    Segundo SERRO, o compositor decide interromper sua criao musical para

    se dedicar no s pesquisa bibliogrfica como ao trabalho de campo quando visita

    inmeras cidades pernambucanas. O processo de elaborao e assimilao se

    reflete de modo concreto: nos prximos trs anos no haveria uma composio

    sequer. (p. 66-67)44

    GUERRA-PEIXE comenta em entrevista [...] eu me aculturei como

    nordestino, mas foi proposital, o que em Antropologia Moderna chama-se

    enculturao. Uma aculturao deliberada, resolvida, determinada pela prpria

    pessoa. (apud OLIVEIRA, p. 91)45

    41

    NEPOMUCENO, Rosa. Csar Guerra-Peixe. A Msica sem fronteiras. Rio de Janeiro: Funarte,

    2001.

    42 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na

    produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.

    43 FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.

    Dissertao de mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.

    44 SERRO, Ruth. Msica para piano. In: FARIA, A.; BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-

    Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 63-85, 2007.

    45 OLIVEIRA, Nelson Salom de. A didtica no ensino de composio e orquestrao. In: FARIA, A.;

    BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 87-103, 2007.

  • 32

    O termo enculturao foi usado por Guerra-Peixe para designar o processo pelo qual passou, ao ouvir, coletar e vivenciar, na medida do possvel, os materiais que recolheu nas pesquisas de campo. Na verdade um conceito pertencente Antropologia. (FARIA, p. 36)46

    Como nacionalista, preocupou-se em renovar, atravs de solues e tcnicas

    criativas, o material folclrico de raiz, o popular e a msica urbana. Defendia a

    pesquisa in loco, tendo feito vrios apontamentos de campo, muitos no editados,

    estudando os aspectos menos divulgados do folclore brasileiro. Do prprio

    GUERRA: O nacionalismo no uma posio esttica, mas uma atitude dentro da

    qual podem caber as tendncias estticas mais diversas, e isso sem que entre em

    choque o interesse pela cultura nacional com as correntes mais avanadas. (apud

    OLIVEIRA, p. 91)47 Para o compositor o essencial era que a msica se identificasse

    como nacional atravs do resultado de sua criao.

    [...] quase nico na sua oficina de composio, uma das pouqussimas do pas, e na esttica musical que defende, um nacionalismo que no venha s da inspirao ou da inteno, mas sim do estudo permanente das matrizes folclricas. (HORTA, p. 254)48

    As pesquisas, bem como o estudo aprofundado das caractersticas tcnicas

    da arte popular brasileira e da msica folclrica, renderam a Guerra-Peixe um

    amparo singular na composio de sua obra, tornando-o capaz de reelaborar os

    elementos tirados da cultura popular mediante o uso de tcnicas de composio

    atualizadas, aliadas a sua lgica e imaginao criadora.

    Como compositor, Guerra-Peixe empenhou-se na produo de obras de carter nacionalista, buscando a utilizao de elementos do folclore, de maneira peculiar. Ele enfatizava a pesquisa e o contato com elementos da cultura popular principalmente os trabalhos de campo como forma de aprofundamento, para que se evitasse, dentre outros, os riscos no trato superficial do material folclrico. Ele dizia tambm da importncia de se vivenciar os fatos, absorver elementos de determinada cultura, criar hbitos mentais, para ento compor

    naturalmente. Acreditava que, com a vivncia adquirida pelo

    46

    FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.

    Dissertao de mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.

    47 OLIVEIRA, Nelson Salom de. A didtica no ensino de composio e orquestrao. In: FARIA, A.;

    BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 87-103, 2007.

    48 HORTA, Luiz Paulo. Cadernos de msica: cenas da vida musical. Rio de Janeiro: Zahar Editores,

    1993.

  • 33

    compositor, algo se refletiria na obra, mesmo que no houvesse inteno em utilizar este ou aquele material. (OLIVEIRA, p. 91)49

    Misturou em sua obra vrios gneros da msica brasileira, procedentes de

    diversas localidades. Ruth SERRO, amiga do compositor, associa as

    caractersticas pessoais de Guerra-Peixe genialidade. [...] uma imensa

    curiosidade, aliada nsia do saber, investigar e criar, revelando valiosas

    correlaes entre seus achados. (apud ELIAS)50

    O emprstimo e o aproveitamento sonoro da cultura dita no erudita

    concedeu sua obra um carter novo, um novo nacionalismo, vanguardista. Para

    interpretar a obra de Guerra-Peixe desta fase, faz-se necessrio conhecer a

    versatilidade do compositor.

    ASSIS constata que [...] na medida em que ele se estabelecia nas pautas

    musicais brasileiras, estimulava um processo de reviso dos princpios nacionalistas

    tradicionais. (p. 18)51

    Para interpretar bem Guerra-Peixe preciso conhecer o folclore pernambucano e paulista, a msica urbana do Rio de Janeiro, a idia do tropicalismo e ouvir muita msica popular de raiz e sua msica de concerto. S assim desenvolvemos uma familiaridade com sua linguagem musical. (SERRO apud ELIAS)52

    Guerra-Peixe, atravs da coleta e pesquisa do folclore, da sistematizao e

    do estabelecimento de tipologias prprias, desenvolve uma estilizao no

    aproveitamento do material, diluindo-o sem deix-lo muito caracterstico (FARIA, p.

    28)53. Ampliou o domnio de uma tcnica prpria que lhe permitisse a manipulao

    49

    OLIVEIRA, Nelson Salom de. A didtica no ensino de composio e orquestrao. In: FARIA, A.; BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 87-103, 2007.

    50 SERRO, Ruth. Entrevista concedida Alexandre Elias. Disponvel em:

    http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2826.1.shl

    51 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na

    produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.

    52 Op. cit.

    53 FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.

    Dissertao de mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.

  • 34

    do material folclrico de maneira mais livre, mas sem perda das caractersticas que o

    compositor considerava principais. (FARIA, p. 39)54

    O compositor se exprime acerca de sua msica:

    Minha msica retrata artisticamente o folclore, isso no quer dizer tirar retrato trs por quatro para documentos. [...] fotografia artstica no sentido em que a fonte do material sonoro (isto , aquilo que focalizado) seja em termos de arte suficientemente reconhecvel ou pressentido pelo ouvinte leigo [...] isto diferente do copiar do folclore. (GUERRA-PEIXE apud FARIA, p. 39)55

    Visando atingir um nacionalismo transcendente, um nacionalismo

    inconsciente, como preconizava Mrio de Andrade, onde o carter brasileiro brotaria

    espontaneamente na criao musical sem a necessidade de citaes diretas, como

    faziam muitos compositores da gerao de Villa-Lobos, Guerra-Peixe alcanou uma

    forma diferenciada de se expressar dentro da esttica nacionalista, onde configura a

    multiplicidade ao invs da homogeneidade. (ASSIS, p. 160-162, passim)56

    Ronaldo MIRANDA assim se expressa sobre o compositor: poucos

    conseguiram como ele atingir uma admirvel conciso de linguagem, buscando na

    simplicidade a sua arma mais eficaz [...] sem jamais cair nos chaves de um

    nacionalismo fcil. (apud ASSIS, p. 163)57

    Embora as duas primeiras fases sejam de importncia indiscutvel para o repertrio brasileiro, sem sombra de dvidas, a terceira e ltima fase, aquela que tem despertado nos estudiosos da msica brasileira, mais interesse esttico. (MIGUEL, p. 2)58

    Agraciado com diversos prmios, como arranjador, regente de rdio,

    compositor de trilhas de cinema, e por suas obras eruditas, tendo ainda diversas

    delas estreadas por grandes orquestras e regidas por nomes expressivos no

    54

    FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.

    Dissertao de mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.

    55 FARIA, Antonio Guerreiro de. Modalismo e forma na obra de Guerra-Peixe. In: FARIA, A.;

    BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 29-45, 2007.

    56 ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na

    produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.

    57 Ibid.

    58 MIGUEL, Randolf. A estilizao do folclore na composio de Guerra-Peixe. Dissertao de

    Mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 2006, 107 fls.

  • 35

    exterior, recebendo alguns convites como do maestro Scherchen e do compositor

    Copland para morar no exterior, Guerra-Peixe opta por no sair do pas e prosseguir

    em suas descobertas musicais. (BARROS, p. 114-115)59

    2.3 GUERRA-PEIXE E A LEITURA DE MRIO DE ANDRADE

    A leitura do Ensaio sobre a Msica Brasileira, de Mrio de Andrade, foi

    fundamental para que Guerra-Peixe pudesse nortear seu caminho composicional. (MIGUEL, p. 44)60

    Segundo Antonio Guerreiro de FARIA, foi possvel estabelecer atravs de

    pesquisa de campo, efetuada nos arquivos do compositor, que Guerra-Peixe teve

    contato com as teses sustentadas por Mrio de Andrade (1893-1945) em torno da

    segunda metade da dcada de 30, sendo que sobram evidncias de que a

    influncia do musiclogo em sua formao esttica foi decisiva. (p. 4-16, passim)61

    Seguindo o pensamento de Mrio de Andrade, o compositor reconhece a falta de sentido social em sua msica. A nica alternativa voltar e recomear sua trajetria. Nesta fase, ao traar os novos caminhos, leva consigo uma rica bagagem cultural e um excelente domnio da tcnica de composio. Seu primeiro passo, dentro do novo conceito, no entanto, trouxe muitas dvidas quanto trilha a seguir. (SERRO, p. 66)62

    A leitura de Mrio de Andrade foi fundamental em sua trajetria. O Ensaio

    sobre a msica brasileira, editado em 1928, calou os conflitos instalados no

    compositor quando adepto da vertente dodecafnica. A fala de Andrade sobre a arte

    nacional, j feita da inconscincia do povo e o desconhecimento da identidade

    brasileira e do populrio nacional pelos compositores brasileiros soou como um

    chamado para Guerra-Peixe se engajar em nova esteira, sem exotismo e nem

    xenofobia, mas da msica verdadeiramente nacional, dos processos de criao

    59

    BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Guerra-Peixe, a universalidade do nacional. In: FARIA, A.;

    BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 111-128, 2007.

    60 Op. cit.

    61 FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.

    Dissertao de mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.

    62 SERRO, Ruth. Msica para piano. In: FARIA, A.; BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-

    Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 63-85, 2007.

  • 36

    musical pelos quais um compositor deveria passar para transcrever em sua msica

    uma arte verdadeiramente nacional.

    Nas palavras de Mrio de ANDRADE, [...] uma arte nacional j est feita na inconscincia do povo. O artista tem s que dar pros elementos j existentes uma transposio erudita que faa da msica popular, msica artstica, isto : imediatamente desinteressada. O critrio histrico atual da Msica Brasileira o da manifestao musical que sendo feita por brasileiro ou indivduo nacionalizado, reflete as caractersticas musicais da raa. Onde que estas esto? Na msica popular. (p. 16-20, passim)63

    Ainda em ANDRADE: [...] o importante numa teoria da arte, saber

    ultrapass-la. (apud FARIA, p. 23)64

    NEVES constata que as muitas facetas que compunham a personalidade de

    Mrio de Andrade tinham um trao em comum: o gosto pela pesquisa e a

    curiosidade intelectual, o que explica a diversidade das direes seguidas pelo

    artista, a riqueza de seu universo e a certeza com que ele abordava as solues,

    sempre pessoais, dadas aos problemas estudados. Suas atividades ligadas

    msica consolidaram-no como elemento de primordial importncia estruturao do

    nacionalismo brasileiro e ao ensino da msica no Brasil. Convicto da necessidade de

    dar carter social criao musical tornou-se o apstolo do nacionalismo. Para ele o

    nacionalismo no representava o ideal da criao, mas uma fase necessria qual

    os compositores deveriam submeter-se a fim de conformar a produo humana do

    pas com a realidade nacional. Um movimento de renovao sob a bandeira do

    nacionalismo populista. (p. 39-83, passim)65

    FARIA comenta que o Ensaio sobre a Msica Brasileira contm um conjunto

    de idias que expem caractersticas principais da msica brasileira quanto aos

    aspectos: rtmico, meldico, harmnico, polifnico e formal. (p. 37)66

    Em ASSIS, encontramos a afirmao que o Ensaio pode ser considerado o

    trabalho terico-musical que inaugurou o nacionalismo modernista, tendo sido

    63

    ANDRADE, Mrio. Ensaio sobre a msica brasileira. So Paulo: Martins Editora, s. d.

    64 FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.

    Dissertao de mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.

    65 NEVES, Jos Maria. Msica contempornea brasileira. So Paulo: Ricordi Brasileira, 1981.

    66 Op. cit.

  • 37

    adotado de forma diferente por msicos brasileiros de vrias geraes (p. 31)67. A

    obra foi uma das razes da converso de Guerra-Peixe ao nacionalismo, por

    expressar anseios de cunho social, abordando a funo da Msica na cultura

    brasileira. As reflexes e discusses sobre msica nacionalista propostas no livro

    eram diferenciadas em diversos aspectos do nacionalismo europeu do sc. XIX.

    Mrio de ANDRADE propunha uma tomada de conscincia quanto ao seu papel

    dentro do pas, onde todo compositor modernista nacional deveria evitar o cultivo da

    expresso individual e se colocar a servio de uma obra interessada socialmente,

    visto que toda arte exclusivamente artstica e desinteressada no tem cabimento

    numa fase primitiva, fase de construo. (apud ASSIS, p. 63)68

    Espcie de cartilha que no apenas guiava as diretrizes dos compositores nacionalistas como tambm os amparava em suas justificativas individuais quanto necessidade de compor msicas com carter nacional. (ASSIS, p. 63)69 [...] apreendendo os traos essenciais de um material dado [...] e tornando manifestos seus caracteres essenciais, foi possvel empregar material do populrio sem fazer citao literal. Isto possibilitou toda uma elaborao com propsitos artsticos, advinda do carter do tema popular, sem perda de substncia e tambm sem cair no extico ou pitoresco. (FARIA, p. 52)70

    2.4 GUERRA-PEIXE MUSICLOGO

    [...] a prtica de Guerra-Peixe em coletar e transcrever msica iniciou da dcada de 1930 [...] Curt Lange incentivava as coletas de Guerra-Peixe requisitando, constantemente, o envio de material musical popular, assim como os registros de melodias e ritmos brasileiros realizados pelo compositor [...] compromisso ao compositor de fomentar o acervo musicolgico de Curt Lange. (ASSIS, p. 148)71

    Segundo MIGUEL, apesar de convites para estudos no exterior, Guerra-Peixe

    decide se transferir para o Recife indo trabalhar na Rdio Jornal do Comrcio. Suas

    67

    ASSIS, Ana Cludia de. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliaes estticas e culturais na produo musical de Csar Guerra-Peixe (1944-1954). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2006, 268 fls.

    68 Ibid.

    69 Ibid.

    70 FARIA, Antonio Guerreiro de. Guerra-Peixe: sua evoluo estilstica luz das teses andradeanas.

    Dissertao de mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 1997, 131 fls.

    71 Op. cit.

  • 38

    veias de musiclogo e folclorista se manifestaram levando-o a elaborar um projeto

    pessoal de mergulhar na cultura primitiva. (p. 5-6)72

    O diferencial adotado por Guerra-Peixe foi, sem sombra de dvida, o sistema de interao com a manifestao in loco, pois o aprendizado

    dos toques de percusso, bem como das formas de melodiar, foram suficientemente desenvolvidas pelo compositor. Algumas obras demonstram, evidentemente, uma fase de incerteza; num processo ainda primrio de absoro da essncia musical. No entanto, a partir de um determinado momento, a competncia se solidifica e simplifica-se, gerando, como resultado, obras que jamais deixaro dvidas sobre a inteno do compositor, e serviro de base para futuros pretendentes a esta magnfica rea da arte. (p. 43)73

    Guerra-Peixe passou a coletar temas em Maracatus, Catimbs, Jongos,

    Folias-de-Reis, congadas, modas de viola etc. Escreveu artigos e estudos

    musicolgicos de relevada importncia. Publicou em 1955 um livro intitulado

    Maracatus do Recife.

    As pesquisas folclricas realizadas por Guerra-Peixe, em Pernambuco e So Paulo, impressionam pelo volume e qualidade do trabalho. Guerra-Peixe, muito detalhista, foi profundo na busca de informaes em todas as manifestaes que pesquisou. Todo o trabalho foi feito nos prprios terreiros, como demonstrou os documentos transcritos neste captulo. Infelizmente, uma parte muito pequena deste material foi publicada, e seu percentual maior ainda precisa ser recuperado e conhecido. (MIGUEL, p. 18)74

    Segundo BARROS, Guerra-Peixe, ao decidir ir para o Recife estudar msica

    in loco,

    [...] d o salto qualitativo em relao a todos os outros folcloristas, inclusive Mrio de Andrade, que tinham feito observaes apressadas das manifestaes culturais do povo, sem a primeira exigncia do fazer antropolgico o trabalho de campo, a observao participante atenta e continuada dos fenmenos estudados. (p. 116)75

    Alguns anos mais tarde, continua sua pesquisa no estado de So Paulo,

    interior e litoral.

    72

    MIGUEL, Randolf. A estilizao do folclore na composio de Guerra-Peixe. Dissertao de

    Mestrado. Universidade do Rio de Janeiro UNI-RIO, 2006, 107 fls.

    73 Ibid.

    74 Ibid.

    75 BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Guerra-Peixe, a universalidade do nacional. In: FARIA, A.;

    BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 111-128, 2007.

  • 39

    Em 1959 exerce a funo de chefe da seo de msica da Comisso Paulista de Folclore. Em 1960, toma parte numa expedio para pesquisa folclrica no norte de So Paulo, cujo resultado publicado em 1981 pela Funarte, O Folclore do Litoral Norte de So Paulo, por

    Rossini Tavares Lima e outros. (AGUIAR, p. 142)76

    Ainda em BARROS encontramos a informao de que Guerra-Peixe era um

    leitor vido e sua formao como pesquisador teve embasamento na leitura de

    autores consagrados da rea:

    Lia e discutia a obra (completa) de Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Edison Carneiro, Srgio Buarque de Hollanda, Nina Rodrigues, Florestan Fernandes, Roger Bastide, Donald Pierson, Nelson Werneck Sodr e Mrio de Andrade como se tivesse curso de Cincias Sociais. Divertia-se quando eu lhe mostrava que suas intuies de pesquisador de campo eram metodologias consagradas nas Cincias Sociais. (p.

    117)77

    A autora tambm comenta que o livro Maracatus do Recife mostrou a

    transformao do msico e musiclogo no grande etnomusiclogo brasileiro, que

    mais contribuiu para este ramo da Antropologia no Brasil na segunda metade do

    sculo XX. (p. 116)78

    2.5 GUERRA-PEIXE PROFESSOR

    Sntese, objetividade e senso prtico so fatores caractersticos e marcantes dos processos de ensino/aprendizagem adotados por Guerra-Peixe, ao longo da vasta carreira como professor. Alm de sua atuao em importantes centros de ensino musical do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, lecionou em carter informal, contribuindo para a formao de inmeros musicistas brasileiros. (OLIVEIRA, p. 87)79

    Deixou uma classe de alunos excelentes, hoje, nomes expressivos da msica

    brasileira erudita e popular, tais como Jos Maria Neves (aluno nos Seminrios de

    Msica Pr-Arte), Jorge Antunes (aluno de composio na Pr-Arte), Guilherme

    76

    AGUIAR, Ernani. Guerra-Peixe, o orquestrador. In: FARIA, A.; BARROS, L. O. C.; SERRO, R.

    (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 77-86, 2007.

    77 BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Guerra-Peixe, a universalidade do nacional. In: FARIA, A.;

    BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 111-128, 2007.

    78 Ibid.

    79 OLIVEIRA, Nelson Salom de. A didtica no ensino de composio e orquestrao. In: FARIA, A.;

    BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 87-103, 2007.

  • 40

    Bauer (aluno de composio), Gilberto Carvalho (aluno de composio na Escola de

    Msica da UFMG e hoje professor de composio da UFMG), Antonio Adolfo (aluno

    de harmonia, contraponto e composio), Rildo Hora (aluno de teoria e solfejo),

    Sivuca (aluno de harmonia), Roberto Menescal (aluno de teoria, harmonia e

    contraponto), Snia Maria Vieira, Paulo Moura, Carlos Cruz, Ernani Aguiar, Baden

    Powell, entre tantos outros.

    Guerra-Peixe procurava no direcionar o pensamento do aluno a um ideal

    esttico, mas lev-lo a buscar seu prprio caminho. Escreveu inmeras apostilas

    para seus cursos de composio e sua didtica, mesmo priorizando a formao

    acadmica e tradicional, mostrava-se criativa e inovadora: Junto todos numa sala e

    mesma hora se quiserem. O iniciante aprende com os que esto mais adiante; e

    estes observam nos trabalhos dos iniciantes as solues diversas que no haviam

    usado. (GUERRA-PEIXE apud OLIVEIRA, p. 88)80

    Muitas apostilas foram elaboradas pelo compositor como material de apoio s

    suas aulas. Para as aulas de composio, Guerra-Peixe elaborou uma apostila

    sobre Noes de esttica e Histria esttica da Msica, outra, intitulada Sumrio das

    principais formas musicais, com informaes de carter histrico e estrutural, alm

    de comentrios analticos de obras de compositores consagrados e de obras

    prprias, entre tantas outras. Esse trabalho didtico do compositor reflete seus

    estudos com o mestre Koellreutter, assim como denota sua dedicao ao ensino e

    sua preocupao pedaggica com o processo. (OLIVEIRA, p. 97)81

    [...] referindo-se de maneira respeitosa aos seus estudos com Newton Pdua, Guerra-Peixe valorizava a formao bsica, o ensino tradicional, porm recorrendo sempre a formas sintticas e dinmicas, visando agilizar os processos de ensino/aprendizagem. No ttulo de seu livro O Suficiente em Harmonia, ainda no publicado, podemos

    perceber esta inteno. (OLIVEIRA, p. 88)82

    Nas palavras de Antonio Guerreiro entendemos a importncia do magistrio

    na vida profissional do compositor.

    80

    OLIVEIRA, Nelson Salom de. A didtica no ensino de composio e orquestrao. In: FARIA, A.; BARROS, L. O. C.; SERRO, R. (Org.) Guerra-Peixe. Um msico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, p. 87-103, 2007.

    81 Ibid.

    82 Ibid.

  • 41

    Ao que parece a atividade no magistrio encantou Guerra-Peixe [...] pode-se supor que sua atividade no magistrio tenha re-alimentado sua carreira de compositor [...] O fato de ter lecionado composio, permite supor uma maior fermentao de idias. (FARIA, p. 82-83)83

    Nos anos em que foi professor na UFMG (quase 10 anos), teve muitos alunos

    e uma orquestra disposio para experimentar os trabalhos didticos,

    empenhando-se para criar a 2. Grande Escola Mineira de Composio. (OLIVEIRA,

    p. 96-97)84

    ALIMONDA comenta a capacidade de ensinar do compositor atravs da

    simplicidade [...] ele entra no campo da didtica, no uma didtica imvel,

    fossilizada, mas ativa, vivente, at mesmo perturbadora. (p. 107)85

    2.6 GUERRA-PEIXE MSICO POPULAR

    Existe uma unanimidade quanto excelncia das orquestraes de Guerra-Peixe. Vrios fatores contriburam para isso: suas precocidades na participao em conjuntos instrumentais e na ousadia das composies juvenis para conjuntos; depois toda uma vida profissional de orquestrador