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A REBELDIA POR TRS DAS LENTES PARTICIPAO POLTICA JUVENIL NO CENTRO DE MDIA INDEPENDENTE NO BRASIL

CARLOS ANDR DOS SANTOS

ORIENTADORA PROFa DRa JANICE TIRELLI PONTE DE SOUSA

FLORIANPOLIS. DEZEMBRO DE 2010

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA POLTICA

A REBELDIA POR TRS DAS LENTES PARTICIPAO POLTICA JUVENIL NO CENTRO DE MDIA INDEPENDENTE NO BRASIL

Dissertao submetida ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia Poltica da Universidade Federal de Santa Catarina para a obteno do Grau de Mestre em Sociologia Poltica. Carlos Andr dos Santos Orientadora Profa Dra Janice Tirelli Ponte de Sousa

Florianpolis 2010

CARLOS ANDR DOS SANTOS A REBELDIA POR TRS DAS LENTES PARTICIPAO POLTICA JUVENIL NO CENTRO DE MDIA INDEPENDENTE NO BRASIL Esta Dissertao foi julgada adequada para obteno do Ttulo de Mestre, e aprovada em sua forma final pelo Programa de Ps-Graduao em Sociologia Poltica. Florianpolis, 3 de dezembro de 2010. ________________________ Prof. Dr. Ricardo Virgilino Coordenador do Curso Banca Examinadora: ________________________ Prof Dra Janice Tirelli Ponte de Sousa Orientadora Universidade Federal de Santa Catarina ________________________ Prof Dra Marlcia Valria da Silva Universidade Federal do Piau ________________________ Prof. Dr. Itamar Aguiar Universidade Federal de Santa Catarina ________________________ Profa Dra Marcia Grisotti Universidade Federal de Santa Catarina

Aos meus pais, Carlos Francisco Avila dos Santos e Noeli Vidal dos Santos. A minha namorada, Ana Rosa Sant' Anna de S. Aos ativistas da Rede CMI e da Rdio Tarrafa. Aos pesquisadores do Ncleo de Pesquisa da Juventude Contempornea.

AGRADECIMENTOS

Aos ativistas da Rede CMI e da Rdio Tarrafa, por sua generosidade, o apoio e os momentos de alegria do caminhar lado a lado por uma vida mais digna. A minha famlia, pais, namorada, irmos, cunhado, pela pacincia, apoio e carinho. Aos pesquisadores e pesquisadoras do Ncleo de Pesquisa da Juventude Contempornea, por todas as horas de trabalho compartilhado, pelas rebeldias acadmicas e no acadmicas. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico. Universidade Federal de Santa Catarina. Ao Departamento de Ps-Graduao em Sociologia Poltica. Aos pesquisadores e pesquisadoras do Ncleo de Pesquisa sobre a juventude contempornea. minha orientadora, Dra Janice Tirelli Pontes de Sousa. Aos professores do Departamento de Sociologia Poltica da UFSC. Aos amigos Camila Betoni, Juacir Neto, Rodrigo Mineiro, Joo Vella, Ericson, Paque, Daniel, Leonardo, Mosca, Mosco, Yuri, Felippe Mattos, Pablo Valrio, Felipe Mattos. Aos voluntrios da rede CMI Brasil. A todos que direta ou indiretamente contriburam para que fosse possvel concretizar mais essa etapa na minha vida.

La libertad es como la maana. Hay quienes esperan dormidos a que llegue, pero hay quienes desvelan y caminan la noche para alcanzarla. (Subcomandante Marcos)

RESUMO O Estudo desenvolvido na linha de pesquisa Geraes, gnero, etnia e educao buscou compreender e analisar a participao poltica da juventude na mdia radical alternativa (DOWNING 2002), a partir da dcada de 90, por meio da anlise das aes coletivas dos jovens inseridos no Centro de Mdia Independente Brasil, uma rede mundial de produtores e produtoras de mdia, nascida no movimento de resistncia global ao capitalismo. Ao lado das rdios livres e comunitrias, dos coletivos de vdeo popular, da imprensa alternativa, do software livre e outras formas de apropriao de meios de comunicao pelos movimentos de contestao, o CMI Brasil expressa a necessidade social e poltica de ter livre acesso troca de informaes e produo cultural, livre associao e, sobretudo, de construir solues frente o monoplio dos meios de comunicao de massa em prol de uma sociedade mais justa e igualitria. Palavras-chave: Juventude, Participao Poltica, Mdia Radical.

ABSTRACT The study developed by the research line "Generations, gender, ethninicy and education" sought to compreehend and analyze the political participation of the youth in radical alternative media (DOWNING, 2002) from the 90's, through the analysis of collective actions of the young inserted into Indymedia Brazil, a global network of producers of media born in the movement of global resistance to capitalism - and next to the community and free radios, the popular video collectives, the alternative press, the free software and other forms of ownership of media by the protest movements - the IMC Brazil expresses the social and political need for free exchange of information and cultural production, of free association and, especially, to build solutions facing the monopoly of the mass media to promote a more just and egalitarian society. Keywords: Youth; Political Participation; Radical Media.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABERT Associao Brasileira de Rdio e Televiso A20 Ao Global dos Povos 20 de Abril ACPIMSA Assemblia da Associao Cultural dos Povos Indgenas do Mdio Solimes e Afluentes AGP Ao Global dos Povos AL - Alagoas ALCA rea de Livre Comrcio das Amricas AM - Amazonas AMIMSA Assemblia da Associao das Mulheres Indgenas do Mdio Solimes e Afluentes ANATEL Agncia Nacional de Comunicaes ANMCLA Associao Nacional de Meios Comunitrios, Livres e Alternativos ATTAC Association pour la Taxation des Transactions pour lAide aux Citoyens BID Banco Interamericano de Desenvolvimento BIRD Banco Interamericano de Desenvolvimento BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social CAT Community Activist Technology CDC Cult the of Dead Cow CGA-DF Convergncia de Grupos Autnomos do Distrito Federal CMI Centro de Mdia Independente CMP Central de Movimentos Populares DIP Departamento de Imprensa e Propaganda EDET - Rede Nacional de Investigao e Tecnologia ES Esprito Santo EUA Estados Unidos das Amricas EZLN Exrcito Zapatista de Libertao Nacional FBI - Federal Bureau of Investigation FCC Federal Communication Commission FHC Fernando Henrique Cardoso FLP Frente de Luta Popular FMI Fundo Monetrio Internacional IFSM I Frum Social Mundial

IMC Independent Media Center IPEA Instituto de Pesquisa Avanados MDT Movimento dos Trabalhadores Desempregados MLS Movimento de Luta Socialista MLST Movimento de Libertao dos Sem Terra MPL Movimento do Passe Livre MST Movimento dos Trabalhadores Sem Terra OMC Organizao Mundial do Comrcio ONGs Organizaes No Governamentais ONU Organizao das Naes Unidas OTH Hellenic Telecommunications Organization PA - Par PFL Partido da Frente Liberal PL Partido Liberal PMDB Partido do Movimento Democrtico Brasileiro PNCSAT Projeto Nova Cartografia Social da Amaznia em Tef PRD Partido Revolucionrio Democrticos PSDB Partido da Social Democracia Brasileira PT Partido dos Trabalhadores PTB Partido Trabalhista Brasileiro SBT Sistema Brasileiro de Televiso SC Santa Catarina SETUF Secretaria de Transporte Urbano de Florianpolis TAO Organizing for Autonomous Telecomms TICAN Terminal de Integrao de Canasvieiras TICEN Terminal de Integrao do Centro UE Unio Europia

SUMRIO INTRODUO .............................................................................. 1 DA MIDIATIZAO DA POLTICA AS POSSIBILIDADES DAS NOVAS MEDIAES POLTICAS ................................... 1.1 A Indstria Cultural .............................................................. 1.1.1 Benjamin e a Reprodutibilidade Tcnica .......................... 1.1.2 Marcuse, Revoluo e Tcnica .......................................... 1.2 Notas sobre o Poder de Criar e Destruir das Sociedades Contemporneas .................................................................. 1.3 A Comunicao e a Poltica na Idade Mdia .................. 2 A TEORIA DA MDIA RADICAL ALTERNATIVA E DA MDIA TTICA ............................................................................ 2.1 Culturas e Resistncia na Mdia Radical ........................ 2.2 As Mdias Tticas ................................................................. 2.3 Onde Flaca o Digital na Mdia Radical Alternativa? .......... 2.4 Mdia Radical Alternativa e Software Livre .................. 3 AS JUVENTUDES CONTEMPORNEAS E SUAS NARRATIVAS POLTICAS .......................................................... 3.1 As Juventudes .................................................................. 3.1.1 Juventude e Consumo ................................................... 3.1.2 A Contracultura como Estado Nascente ...................... 3.1.3 A Contracultura ........................................................... 3.1.3.1 A Contracultura do Movimento Punk ....................... 3.2 Sociedades Complexas e as Juventudes ......................... 3.2.1 O Desafio Simblico das Juventudes Contemporneas 3.3 As Novas Sociabilidades Polticas Juvenis .................... 3.4 A Juventude, as Aes Coletivas e a Mdia Radical Contempornea .............................................................. 15 19 20 23 27 37 44

51 55 60 63 72

79 81 84 88 93 95 99 107 110 116

4 A GLOBALIZAO, SUAS CONSEQNCIAS E O PODER IMPERIAL ........................................................................ 4.1 A Globalizao .................................................................... 4.2 O Poder Imperial ................................................................. 4.3 O Neoliberalismo: Origem e Implantao .......................... 4.4 O Neoliberalismo na Amrica Latina .................................. 4.5 O Neoliberalismo no Brasil ................................................. 4.5.1 Os Donos da Mdia no Brasil ............................................ 4.5.2 O Social Liberalismo do Governo Lula ............................ 4.5.3 O Coronelismo Eletrnico ................................................. 5 O CLICO MUNDIAL DE PROTESTOS ................................... 5.1 O Novo Ciclo de Resistncia ............................................... 5.2 Os Ventos Avanam sobre o Territrio Rebelde ................ 5.3 A Produo de Sentidos no Novo Ciclo de Protestos .......... 5.4 Os Dias de Ao Global e o Brao Armado do Estado ....... 5.5 A Mdia Radical Alternativa e a Resistncia Global ........... 6 INDYMEDIA: A REBELDIA DOS CORPOS POR TRS DAS LENTES ................................................................................. 6.1 As TVs Comunitrias e o Acesso Livre nos Estados Unidos 6.1.1 O Fogo e a Palavra Rebelde ............................................. 6.1.2 Do Cyberpunk ao Hacketivismo ...................................... 6.2 A Histria do Centro da Mdia Independente ..................... 6.2.1 Algumas Notas sobre a Represso ................................... 6.2.2 O que Brad Will e Lnin Call Tinham em Comum ........ 6.3 Os Sites e as Estruturas da Rede na Rede Indymedia ......... 6.4 Como se Organiza a Rede Indymedia .................................. 6.5 A Tomada de Deciso por Consenso e por Horizontalidade . 6.6 A Poltica Editorial no Brasil .............................................. 6.7 Como se Financia a Rede Indymedia .................................. 6.7.1 Formas de Financiamento da Rede CMI no Brasil .......... 6.8 A Histria da Rede CMI no Brasil ...................................... 6.8.1 A Rdio de Tria e a Formao do CMI em Florianpolis 6.8.2 As Revoltas e a Reconquista da Cidade ........................... 6.8.3 O CMI Tef e a Flor da Palavra nem Centro e nem Periferia ............................................................................. 6.9 Quem So os Voluntrios do CMI no Brasil .......................

119 119 123 126 132 134 138 142 145 151 153 162 167 171 177 179 181 187 194 198 207 214 218 222 224 227 229 233 234 248 253 258 266

6.9.1 Sobre Os Partidos, os Sindicatos e o Movimento Estudantil ............................................................................ 6.9.2 O CMI e os Movimentos Sociais ...................................... 6.9.3 As Mdias Digitais e o Ativismo ....................................... 6.10 As Mudanas no CMI no Brasil de 2006 a 2009 .........,..... 6.10.1 O Refluxo do CMI no Brasil ............................................ 6.10.2 A Cooptao Estatal e Mercadolgica das Mdias Livres Ps-Seatle no Brasil ....................................................... 6.10.3 A Cultura Livre e o Capitalismo ..................................... 6.11 Estamos com Problemas Tcnicos ..................................... 6.12 Consenso e Dissensos no CMI do Brasil ........................... CONSIDERAES FINAIS .......................................................... REFERNCIAS .............................................................................. ANEXOS .........................................................................................

275 278 283 285 288 291 295 306 312317 327 351

LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Relao dos Polticos com Outorgas de TV Aberta e o Tipo de Atuao e Partido ............................................... Figura 2 - Logo CMI ................................................................. Figura 3 - Logo Indymedia Biotecnologia ............................... Figura 4 - CMI Chiapas ............................................................ Figura 5 - A Estrutura Virtual ................................................... Figura 6 - Arquitetura da rede Indymedia ................................ Figura 7 - Arquitetura da Rede P2P e Twiki ............................. Figura 8 - Artigos da Publicidade Aberta ............................... Figura 9 - Editoriais .................................................................

147 218 218 218 219 221 221 310 311

LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Despesas da rede global Indymedia ............................. Tabela 2 - Contedo total de artigos publicados no CMI Brasil de 2001 a 2009, Publicao aberta (P.A), Editoriais (Ed), artigos enviados para lixo aberto (L.A) e artigos enviados para o lixo fechado (L.F) .................................................................................. 230

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15INTRODUO O novo, o velho e o velho travestido de novo (Brech) so largamente alvo do imaginrio sociolgico na contemporaneidade, marcam o existir de cada gerao, a forma tentacular que o campo dos medias influi no campo poltico, e ainda, o papel da participao juvenil na poltica. Esse estudo apenas uma pequena contribuio dissertativa acerca da temtica juvenil e de sua participao na poltica contempornea, que coloca em evidncia como a juventude tm se apropriado dos meios tcnicos (mdia) para construir sua trajetria, sua viso de mundo, novas formas de sociabilidade e sua ao poltica. Realizado no Ncleo de Pesquisa sobre a Juventude Contempornea do Programa de Ps-Graduao em Sociologia Poltica da Universidade Federal de Santa Catarina com apoio do CNPq, entre 2007 e 2010, o estudo procurou compreender e analisar criticamente a participao poltica na mdia radical alternativa (DOWNING, 2002), a partir da dcada de 90, atravs da anlise das aes coletivas protagonizadas por jovens inseridos no Centro de Mdia Independente Brasil (CMI). Ao lado das comunitrias e rdios livres, dos vdeos populares, da imprensa alternativa, do software livre e outras formas de apropriao de meios de comunicao pelos movimentos de contestao, o CMI se constitui da necessidade social e poltica de ter livre acesso troca de informaes e produo cultural, livre associao e, sobretudo, de construir solues frente ao monoplio dos meios de comunicao de massa. Apesar da rede do Centro de Mdia Independente no se constituir mundialmente de redes de associativismo exclusivamente juvenil, no Brasil os jovens so a grande maioria de seus membros, que procuram guiar suas aes coletivas no campo da militncia de esquerda de forma diferenciada das geraes de militantes que os antecederam. A escolha do CMI como sujeito de pesquisa foi motivada pela trajetria acadmica do pesquisador e pela longevidade do CMI como veculo de mdia radical, algo incomum no Brasil, muitas dessas iniciativas no chegam durar um ano. No ano de 2005, sob orientao da Dra Janice Tirelli Pontes de Sousa, pesquisou-se a relao entre a participao juvenil dos jovens nas aes coletivas do movimento de resistncia global e o crescimento da rede CMI no Brasil. Apesar do enfoque e os objetivos serem diferentes do presente estudo, havia-se observado naquela poca que os jovens

16organizados no CMI Brasil estavam gradativamente mudando seus objetivos conforme os desdobramentos dos conflitos localmente situados. Em 2007, com ingresso no Ncleo de Pesquisa sobre a Juventude Contempornea desenvolveu-se o Projeto Juventudes e Suas Narrativas Atravs dos Tempos, onde se teve a oportunidade de aprofundar teoricamente e debater os modos de ser jovem, desafios e formas de participao poltica na contemporaneidade, e levar esse debate para jovens de escolas pblicas. A longevidade do CMI no Brasil permite visualizar as mudanas dessas novas formas de participao poltica da juventude dentro de uma conjuntura, enquanto as aes coletivas contra o neoliberalismo no Brasil estavam em refluxo e gradativamente as aes coletivas de cunho local e por direito a cidade, protagonizadas por jovens, passam a ter visibilidade. O perodo corresponde, tambm, s mudanas na vida dos jovens ativistas, os quais iniciaram sua participao poltica em meados dos anos 2000. Anos marcados pelo forte apelo por conformidade, gerado pelas tentativas de cooptao estatal e da indstria cultural do ativismo desenvolvido por esses atores. Na busca de compreender e analisar, criticamente os sentidos, que os jovens membros do CMI do sua a participao poltica, utilizamos mtodos pesquisa qualitativa: entrevistas por roteiro semiestruturado e a anlise de uma vasta documentao disponvel no banco de dados do CMI na Internet. As entrevistas com os voluntrios de Braslia, Curitiba e Florianpolis foram realizadas presencialmente entre maio e dezembro de 2009, j as entrevistas com voluntrios de Tef, no Amazonas, e So Paulo foram realizadas por e-mail, e no caso de dvidas do entrevistador foram utilizados os programas de mensagens instantneas (MSN, Pidgin, AMSN, Empathy) e o telefone, durante o decorrer do mesmo perodo. Para a seleo dos entrevistados e entrevistadas foi utilizado como critrio a participao do voluntrio ou voluntria nos coletivos locais ativos e, a participao de atividades em perodos onde o coletivo possua grande visibilidade na comunidade ativista, como foram os casos do Camarada D, do CMI Florianpolis, e Sandino, do CMI So Paulo. O roteiro de perguntas semi-estruturado foi dividido em trs partes, que correspondem: identificao do voluntrio ou voluntria e as atividades que desenvolve na rede CMI; o sentido que d sua

17participao poltica; e finalmente questes sobre a democratizao dos meios de comunicao. A anlise das entrevistas foi realizada separando os assuntos por temtica e relacionadas documentao da rede (carta de princpios e de unio da rede Brasil e Global, poltica editorial, e-mails disponveis nos bancos de dados das listas abertas e editoriais produzidos pelos coletivos locais do CMI). Durante o processo tambm foram utilizadas outras fontes: como artigos produzidos por colaboradores do CMI; atas de reunies dos coletivos autnomos; e as estatsticas produzidas por uma voluntria do coletivo tcnico do CMI. Para a anlise da documentao, como os editorais, vdeos, udios, cartas de apresentao de coletivos, de princpios de unio global e nacional, poltica e editorial, foram divididos entre snteses dos princpios polticos e organizacionais e as descries de trajetrias e narrativas, posteriormente apresentadas no corpo do texto. Tambm foram utilizados e-mails disponveis nos arquivos abertos das listas do CMI, ocultando o endereo eletrnico a fim de manter a privacidade do voluntrio. No primeiro captulo apresentado as questes relativas tcnica, mdia e poltica sob a tica da Escola de Frankfurt, a relao entre tcnica e autogesto pelo anarco-ecologista Murray Boockchin e as contribuies de Antnio Canelas Rubim sobre a mdia e a poltica na contemporaneidade. Nesse segundo captulo, dedicado Teoria Mdia Radical Alternativa criada por Downing (2002), s consideraes sobre a mdia ttica e da relao dos meios virtuais com a mdia radical e s observaes dos autores sobre as especificidades das mdias alternativas e de seus ativistas, quanto ao seu papel na contestao ao estabelecido, suas especificidades organizacionais e importncia. Destacando que os modelos de ao coletiva no so transportados de uma poca para outra e nem importados de outros contextos locais sem alterao. Prossegue-se com o terceiro captulo, o qual traz as consideraes sobre o conceito sociolgico de juventude, as especificidades e os desafios da juventude contempornea em um mundo globalizado, onde os fluxos de informao so constituintes de novas formas de sociabilidade. Nesse captulo recortamos os sujeitos que sero alvos de nossa investigao, os jovens contestadores independentes (SOUSA, 2003), que participam dos coletivos e organizaes autnomas anticapitalistas. Nesse quarto captulo, A Globalizao, suas Conseqncias e o Poder Imperial, identifica-se quem so os adversrios e lgicas

18regressivas, provenientes do capitalismo global, que os movimentos de contestao desafiam. Delineamos como funciona a estrutura monopolista brasileira e como o governo brasileiro, mesmo os democraticamente eleitos, se beneficiam desta estrutura comunicacional, a qual perdura na radiodifuso brasileira a mais de 40 anos. O quinto captulo, O Ciclo Mundial de Protestos, percorre-se as contribuies de vrios autores sobre os movimentos sociais e aes coletivas, que contestam aquilo dado como inevitvel por muitos idelogos do neoliberalismo e neo=conservadorismo, a globalizao de cima para baixo, a vitria do capitalismo e o fim da luta de classes. Nesse captulo h uma caracterizao dos protestos contra o neoliberalismo como um ciclo, que tanto modifica os movimentos sociais de base territorial, como constri laos entre os povos do norte e do sul em busca de outra globalizao, produzindo sentidos desatados da hegemonia capitalista. O sexto e ltimo captulo, dedicado a exposio do trabalho de campo, a descrio da trajetria do CMI, nesses quase 10 anos de existncia, seus desafios, as mudanas sofridas e o sentido, que seus voluntrios do sua participao poltica, que nosso maior objetivo na busca de compreender e analisar as novas sociabilidades polticas das aes coletivas. E por fim, constam as consideraes finais e as referncias, alm dos anexos utilizados na elaborao do presente estudo.*

191 DA MIDIATIZAO DA POLTICA AS POSSIBILIDADES DAS NOVAS MEDIAES POLTICAS A relao da comunicao midiatizada com a poltica ao longo da modernidade foi alvo de inmeros estudos nas cincias socais e humanas, que iam da influncia da mdia sobre os processos polticos mais visveis, como nas eleies, construo de uma socializao voltada para as necessidades de adequao do indivduo a uma racionalidade instrumental presente no modo de produo capitalista; da forma tentacular, que se apresenta no cotidiano alterando a noo de espao e tempo, a forma, que a estrutura monopolizada concede a poucos o papel de superdifusores de suas mensagens. O campo de estudos sobre comunicao se ramificou, reorganizou e reformulou, de forma no isolada do restante da sociedade1, nem das inovaes tecnolgicas que nos ltimos 30 anos proporcionaram mudanas significativas na vida das pessoas, mesmo daquelas que no tem acesso a muitas dessas inovaes, que mudaram a mdia estritamente cartesiana para uma mdia com possibilidades de interatividade inimaginveis h poucas dcadas atrs. No se toma aqui a tcnica moderna (mdia) de forma negativa, como apenas uma expresso da racionalidade instrumental, que conduz para a alienao e a barbrie. Optou-se por conduzir nosso olhar para mdia (tcnica) como forma de discurso enunciativo, que pode tanto guiar-se pela lgica da racionalidade instrumental, como tambm, pode reportar parcialmente a realidade em verses que visam ser libertrias e esclarecedoras. Entretanto, se inicia essa discusso debruando-nos sobre algumas das contribuies da teoria crtica sobre a tcnica e a indstria cultural, utilizando como primeira aproximao s consideraes de Adorno e Horkheimer, na Dialtica do Esclarecimento, e Benjamin, em A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Tcnica, entre o incio da dcada de 1930 at o fim da dcada 1940. Para posteriormente traarmos algumas notas sobre as contribuies de Herbert Marcuse, sobre a relao das tcnicas e os movimentos sociais, e de Murray Boockhin, acerca das tecnologias alternativas, a autogesto e a1As paixes sempre fizeram parte das reflexes de intelectuais, das propostas dos sujeitos polticos em disputa e daqueles que se dedicaram a pensar o papel da mdia na sociedade, seja satanizando-a, por possuir elementos prprios inerentes as suas diversas formas de linguagem, que pode ser usada para potencializar a manipulao do que reportado; seja atribuindo a mdia um papel fundamental na transparncia dos processos democrticos.

20autonomia, possibilitando uma primeira aproximao de como os movimentos sociais, culturais e de contraculturas utilizam amplamente esses recursos como forma de enunciar suas demandas, no s como recurso, mas tambm, como parte constituinte de sua forma de organizao e ao poltica. 1.1 A Indstria Cultural Em a Dialtica do Esclarecimento, Theodor Adorno e Horkheimer ofereceram um prognstico da modernidade, a qual afirmava que o projeto do esclarecimento teria degenerado no domnio da racionalidade instrumental em todas as esferas.No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posio de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. (ADORNO; HORKHEIMER, 1986, p.19).

A cincia e a tcnica, que teriam libertado o homem da viso mgica, foram perdendo seu potencial libertador atravs do modelo tcnico-cientfico adotado e patrocinado pela inspirao iluminista burguesa, dando lugar a uma forma sofisticada de dominao, criando outro mito. A razo no era capaz de avaliar a prpria irracionalidade produzida, essa razo desmistificada nada mais era que a razo instrumental baseada na desigualdade e opresso da sociedade capitalista. Nesse sentido, como observou Silva (1997), o progresso tcnico cientfico na modernidade desencantada, apresentada por Adorno e Horkheimer, conseguiu conciliar duas idias antagnicas, a subordinao e a autonomia:A realizao da autonomia da razo resultou no estabelecimento de um modelo de racionalidade ao qual se subordina todo o conhecimento e que se pe como requisito do prprio exerccio da razo. A hegemonia do paradigma, consolidada historicamente, implicou ento na inverso do valor a princpio implcito na prpria idia de autonomia. A expanso da atividade racional - o progresso - fica sendo ento a simples incorporao de novos contedos a um modelo formal de racionalidade que permanece invarivel

21nas suas grandes linhas. O exemplo mais radical desta idia de progresso cientfico a epistemologia positiva e os critrios de cientificidade que so por ela estabelecidos. O reconhecimento da verdade cientfica como valor fica na inteira dependncia da conformao do conhecimento ao modelo da objetividade fsicomatemtica (SILVA, 1997, p.2).

Como conseqncia da conciliao entre autonomia e subordinao, temos um modelo de realidade adaptada ao modelo de objetividade cientfica, reconhecido como racional, total e legtimo, que permite o humano operar os fenmenos em termos de subordin-los ao poder humano. Mesmo que isso implique no esvaziamento do sentido e da busca da felicidade preciso que as ceras estejam bem colocadas nos ouvidos para que os gritos das sereias no acordem a desconfiana em relao s bases do sistema que tornaria a barbrie insuportvel.O mito converte-se em esclarecimento e a natureza em mera objetividade. O preo que os homens pagam pelo aumento de seu poder a alienao daquilo o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida que pode manipula-los. O homem da cincia conhece as coisas na medida em que pode faz-las. assim que em-si torna para-ele. (ADORNO; HORKHEIMER, 1986, p. 24).

No captulo dedicado Indstria Cultural, na Dialtica do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer (1986) vo definir como as entidades culturais de sua poca j haviam se transformado em mercadoria, ao passo, que a prpria cultura se tornara uma indstria, referindo-se a padronizao, falsa idia de individualizao que os artefatos culturais passavam e as tcnicas de racionalizao da produo e distribuio utilizadas. A principal preocupao dos autores, em relao indstria cultural, est centrada na proposta de esclarecer como a interveno tcnica e os meios de reproduo em massa fizeram com que a cultura perdesse sua capacidade emancipatria, no capitalismo a cultura passa a ser mercadoria, descaracterizada enquanto manifestao artstica2.

2

O conceito de indstria cultural sistematizado na Dialtica do Esclarecimento, obra publicada pela primeira vez em 1947, do ponto de vista da trajetria intelectual dos autores, segue a

22Por meio da indstria cultural, a cultura passa a ser moldada para agradar aos padres da massa consumidora, onde a cultura de massa rebaixa o nvel dos produtos artsticos. Alm disso, a relao entre artista e pblico intermediada por tcnicos. Os produtos so carregados de uma ideologia dominante e provocam o conformismo. Para esclarecer aos homens, Adorno e Horkheimer (1986) procuram desvelar a atrofia da atividade do espectador, a degradao da cultura em diverso e dessublimao da arte, mais uma face da degenerao da cultura permeada pela racionalidade tcnica, que age como um cimento social da ordem existente. A atrofia do espectador se refere atrofia da imaginao e da espontaneidade do espectador, transformado em consumidor cultural, uma das sistematizaes mais polmicas dos autores. Adorno e Horkheimer (1986) afirmam que na indstria cultural o homem no passa de um instrumento de trabalho e consumo, tendo em vista, que a produo consecutiva de imagens no cinema, baseadas em clichs, no permite que as fantasias e o pensamento dos espectadores divaguem atravs do quadro da obra, o espectador adestrado para se identificar com a realidade passivamente. A degradao da cultura em diverso revela que a indstria cultural integra tempo de cio estrutura do mundo existente. Embora a produo de diverses e distrao, produzidas pela indstria cultural, proporcione uma fuga temporria s responsabilidades e a monotonia da vida cotidiana, mas no o faz de forma despropositada. A evaso no autentica, ela apenas distrai temporariamente os homens, tendo em vista que produtos da indstria cultural unicamente reproduzem e fortalecem a estrutura do mundo existente, operando sobre suas as convices do homem que passa a atribuir as causas das dificuldades e problemas da vida cotidiana a fatores naturais e ao acaso. Promovendo dessa forma um senso de fatalismo, de dependncia e obrigao. Adorno e Horkheimer (1986) apontam a dessublimao da arte como outra face da degenerao da cultura, em um movimento nico. Uma vez que indstria cultural banaliza a vida cotidiana, ela tambm retira da arte seus elementos emancipadores.

mesma linha de trabalhos anteriores realizados sobre o fenmeno do fortalecimento da cultura de massa, entre os quais, est includo Sobre o Jazz, de 1936, o ensaio O Fetichismo na Msica e regresso da audio, de 1938, Sobre a Msica Popular, de 1941, escritos por Adorno, e A nova arte e Cultura de Massa, escrito por Horkheimer, em 1941.

23Para os autores a dessublimao da arte possui uma histria prpria, seu ponto de partida quando a arte consegue desprender-se do mbito do sagrado, aproveitando da recente autonomia que o mercado lhe proporcionou. Ainda que a arte estivesse sob colocada no campo burgus, o artista era relativamente livre para criar o porvir e vender sua obra para sobreviver. Nesse sentido, os autores observam que arte possua uma esfera prpria ao qual no era necessariamente colocada a servio da ordem econmica existente. Para Adorno (1970), a arte moderna se define como anttese social da sociedade, por rejeitar os preceitos e modelos polticos, religiosos e ticos que pudessem a vir determinar previamente sua forma, passa, com a indstria cultural, a ser moldada para agradar aos padres da massa consumidora, a cultura de massa rebaixa o nvel dos produtos artsticos atravs da interveno da tcnica e os meios de reproduo em massa. Nesse sentido, para os autores, a arte perde sua capacidade emancipatria, passa a ser mercadoria, descaracterizada enquanto manifestao artstica, alm disso, a relao entre artista e pblico intermediada por tcnicos, onde os produtos so carregados de ideologia dominante, que provocam o conformismo. Pode-se sintetizar as proposies de Adorno e Horkheimer (1986) dizendo que os indivduos mergulhados na indstria cultural deixam de decidir autonomamente, aderindo assepticamente os valores impostos a ele, pela sociedade. A individualidade passa a ser substituda por uma pseudo- individualidade, pois a repetio, ubiqidade e estandardizao fazem da indstria cultural uma forma de controle psicolgico inaudito, assim como a cultura, a arte banalizada ao estatuto do consumo. O consumidor passa a acreditar que sujeito de seu consumo e no mero objeto da indstria cultural. A sociedade massificada a sociedade de consumidores da cultura reificada, busca a felicidade em produtos tidos como nicos, mas produzidos pela organizao racional da fbrica, seduz aos homens a acomodao e a busca de mais prazer no consumo. 1.1.1 Benjamin e a Reprodutibilidade Tcnica Em A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Tcnica, Walter Benjamin, analisa criticamente a entrada da arte na Era Industrial, como as tecnologias de reproduo da obra de arte proferiram uma nova prxis artstica, tendo em vista premissa marxista, que a infra-estrutura se modifica muito mais rpido que a estrutura.

24Para esse autor, a arte sempre foi reprodutvel, afinal o que os homens faziam sempre podia ser imitado por outros homens, como os discpulos que imitavam os mestres em exerccios para difuso das obras, e por terceiros, que apenas visavam os lucros obtidos atravs da sua comercializao. Em contraste, a reproduo tcnica da obra de arte representa um processo novo, que se vem desenvolvendo na histria intermitentemente, atravs de saltos separados por longos intervalos, mas com intensidade crescente (BENJAMIN, 1985, p. 166). A reprodutibilidade tcnica um fato novo, pois os aparatos tecnolgicos permitiam de forma acelerada que uma mesma obra fosse reproduzida vrias vezes de forma idntica3. . A reproduo no dependia da responsabilidade artstica, agora cabiam unicamente ao olho (...) que apreende muito mais rpido que a mo que desenha (BENJAMIN, 1985, p.1967). O sentido de autenticidade de uma coisa, definida pelo autor como uma quintessncia de tudo que foi transmitido pela tradio, a partir de sua origem, desde a sua durao material at seu testemunho histrico (BENJAMIN, 1985. p. 1968), vai se perdendo, j que depende da materialidade da obra quando ela se esquiva do homem, ao mesmo momento, que se perde esse testemunho, porm tambm desaparece a autoridade da coisa e seu peso tradicional. Para Benjamin (1985), a autenticidade da obra de arte, que lhe conferia certa autoridade, sempre teve fundamento teolgico, mesmo nas artes mais profanas sua funo social nunca se separou do ritual, o burgus se comporta diante da obra profana como um sacerdote do objeto sagrado, aderindo contemplao do objeto, que o afasta da multido e dos problemas terrenos do cotidiano. Segundo esse mesmo autor, o que a poca da reprodutibilidade tcnica fez foi acelerar a destruio de sua aura definida como uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a apario nica de uma coisa distante por mais perto que esteja. Em um processo que autor afirma ser mais sintomtico e que tem significao muito alm da esfera da arte. Benjamin (1985) explica que a:Cada dia se torna mais irresistvel a necessidade de possuir o objeto, to perto quanto possvel, na

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Lembrando que Benjamin est escrevendo na dcada de 1930, onde a indstria cultural ainda no havia se consolidado ou sofrido as modificaes que nos deparamos nos dias de hoje, apesar disso, o autor possui um alto grau de criatividade e de atualidade como veremos no decorrer dessa exposio.

25imagem, ou antes, na cpia, na sua reproduo. Cada dia fica mais ntida a diferena ente a reproduo, como ela nos oferecida pelas revistas ilustradas e pelas atualidades cinematogrficas, e a imagem. Nesta, a unidade e a durabilidade se associam to intimamente como, na reproduo, a transitoriedade e repetibilidade. Retirar o objeto do seu invlucro, destruir sua aura, a caracterstica de uma forma de percepo cuja capacidade de captar o semelhante no mundo to aguda, que graa a reproduo ela consegue capt-lo at no momento nico (BENJAMIN, 1985, p.170).

Entretanto, para Benjamin (1985), assim como no sculo do XIX, onde a fotografia modificou a relao entre autenticidade e obra de arte, pela possibilidade de manipulao e multiplicao da obra original, emancipando pela primeira vez a arte da tradio e do ritual, o cinema, que surge no incio do sculo XX, acrescenta uma caracterstica importante em relao industrializao da obra de arte como prxis moderna. O cinema, para Benjamin (1985), incentivava o espectador a no ser um receptor passivo diante das experincias, ao trazer as imagens to de perto, que causavam uma sensao de serem coisas quase tteis, afastando-se da qualidade contemplativa e sagrada da aura da arte tradicional e da arte burguesa, como seus modos tambm contemplativos e reverentes de exibio pblica. Neste ponto visualiza-se diferena entre Benjamin e Adorno e Horkheimer (1986) sobre as conseqncias da reprodutibilidade tcnica e sobre a arte moderna. Apesar de no afirmarem que a comunicao de massa nica a dar significado s aes humanas e individualizao na modernidade. Adorno e Horkheimer subvalorizam as mediaes virtuais de sua poca, supervalorizando de forma quase elitista a arte burguesa tida como erudita. Para Benjamin (1985), a pintura, a escultura e o teatro so portadores no s de qualidades positivas, mas tambm de um valor aurtico da autoridade tradicional moderna, que domina os homens e os colocam a servio boquiaberto da contemplao. A reprodutibilidade tcnica, presente primeira na fotografia e depois no cinema, exaltada nos trabalhos de Benjamin, como explica Palhares (2008), por engendrar um tipo novo de arte muito mais compatvel com os desafios da sociedade contempornea, onde a tcnica colocada a favor da emancipao, j que a representao do homem

26pelo aparelho, ou seja, a auto-alienao humana encontrou uma aplicao altamente criadora. Nesse sentido, essa autora afirma que Benjamin analisa se por um lado a tcnica acelera o declnio da aura, revolucionando o mbito da tradio, tendo em vista o valor do nosso patrimnio cultural, o qual no tem sentido se a experincia no est ligada a ns. Por outro lado, a autora ainda afirma que por meio da reproduo tcnica a obra deslocada do seu espao original e interlevada integrada a novas configuraes, tornando-se mesmo objeto de uma recepo em massa e como diz a autora: livre da interpretao tradicional, as obras de arte podem responder a novas funes, dentre as quais talvez a funo artstica se torne secundria (PALHARES, 2008, p. 27). Segundo Benjamin, o cinema introduz, naquele jogo harmonioso entre homem e natureza, a nica possibilidade da tcnica realizar na sociedade contempornea sua vocao emancipatria, presente no que o autor definiu como segunda tcnica na edio francesa do ensaio. Como explica a autora, Palhares (2008),(...) em Rua de Mo nica, no ensaio intitulado A caminho do planetrio, Benjamin afirma que a dominao da relao entre a natureza e a humanidade, d sentido tcnica e no a dominao da natureza (...). Essa relao est encontra-se ainda no seu comeo. A dominao das foras da natureza pertence linguagem da primeira tcnica. Por isso, a funo decisiva da arte atual consiste na iniciao neste jogo harmonioso, que verdadeira tendncia da segunda tcnica e isto vale sobre tudo para o filme (PALHARES, 2008, p. 29).

Benjamin (1985) observa que h aspectos ou ngulos do real e dos objetos que nos circundam apenas da forma objetiva. So visveis apenas atravs de cortes e recursos tcnicos (ampliao, reduo, cmera lenta etc.) e esses aspectos tcnicos que nos permitem que um olhar histrico se transforme em um olhar poltico. Entretanto, no devemos considerar que o autor faz uma defesa ingnua da reproduo tcnica como progressista. Em diversos segmentos do ensaio sobre reprodutibilidade tcnica e de uma conferncia intitulada Produtor como Autor, de 1934, Benjamin (1985) demonstra ser necessrio, fundamental, que o escritor, o cmera, o fotgrafo, etc. estejam dispostos a refletir com clareza o processo produtivo, sem essa reflexo no adianta nada a tendncia poltica. A proposta do autor que a nova percepo da realidade se d

27atravs da utilizao do uso da produo da imagem tecnicamente reprodutvel, onde a construo da imagem deve possui um olhar deliberadamente poltico na sua construo4. Embora, a reflexo dos trabalhadores da indstria cultural e mesmo dos ativistas da mdia alternativa sobre o processo de produo miditica no nos parea ser um elemento suficientemente forte para o desocultamento de todas as formas de dominao presentes na indstria cultural5, como pode-se ver mais adiante com as contribuies de Downing (2003), deve-se levar em considerao que as proposies de Benjamin (1985), no presente debate, possuem uma significativa relevncia, por conseguir visualizar na mediao tcnica e na sua reprodutibilidade, elementos radicalmente democrticos, que se afastam do elitismo contido na interpretao de Adorno e Horkheimer (1986) em relao obra de arte burguesa. Para Martn-Barbero (2003), Benjamin pioneiro da mediao fundamental, que permite pensar historicamente a relao da transformao das condies de produo e as mudanas no espao da cultura, ou seja, as transformaes do sensorium dos modos de percepo e da experincia social. Para Benjamin no se pode entender o que se passa culturalmente com as massas sem considerar suas experincias, suas percepes e os usos. 1.1.2 Marcuse, Revoluo e Tcnica A trajetria de Herbert Marcuse foi marcada por uma forte atuao poltica e por uma relao conflituosa com Adorno e

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A proposta de Benjamin vai de encontro s propostas das vanguardas artsticas, como o dadasmo e o surrealismo, onde a destruio da aura se manifesta contra a arte expositiva contemplativa. O objetivo da mediao e reprodutibilidade tcnica colocada a servio da emancipao, para surtir efeito, deve ir alm da troca da mensagem, ou seja, deve estar imbricada de uma nova prxis comunicacional, que aponte para construo de uma nova percepo sobre a realidade, mediada pela comunicao em total desacordo com os realismos de esquerda e direita. So exemplos : O realismo socialista, decretado como nica expresso esttica revolucionria na unio sovitica, em 1934, durante Congresso dos Escritores Soviticos e o uso da estetizao da poltica, feita pelos nazistas, iniciada em 1933 e que teve como ponto culminante a Exposio arte degenerada, em 1937, organizada pelo Partido Nacional Socialista. Obras de artistas plsticos, como Matisse, Picasso e George Gorsz, foram expostas tendo por objetivo de condenar publicamente a arte moderna. 5 Devemos levar em considerao que a proposta de Benjamin produto de certo otimismo em relao s inovaes tecnolgicas do incio do sculo XX, muito comum em certos intelectuais de sua poca.

28Horkheimer, quando trabalhavam juntos no Instituto de Pesquisa Avanada, conhecido como Escola de Frankfurt. Entretanto, como salienta Terra (2008), as diferenas entre os autores possuem mais aspectos: o primeiro seria em relao filosofia do sculo XX, enquanto Adorno e Horkheimer parecem se distanciar da filosofia contempornea. Marcuse retoma aspectos da filosofia de Hurssel, Heidegger e mais tarde de Sartre, procurando ainda, de forma limitada, a tradio filosfica de elaborar mesmo que provisoriamente uma teoria; o segundo aspecto seria na forma de expressar sua teoria, enquanto Adorno e Horkheimer so mais sutis e sinuosos na sua elaborao, Marcuse prefere uma forma direta, tipicamente militante. O terceiro aspecto diz respeito ao perodo, enquanto os dois primeiros autores fazem um diagnstico da modernidade dialogando com a dcada de 1930, onde predominava a preocupao com o nazismo, o stalinismo e a indstria cultural, Marcuse vai tecer sua reflexo acompanhando os movimentos sociopolticos do ps-guerra e dos movimentos da dcada de 1960 e de 1970. Falar de emancipao humana na Escola de Frankfurt falar da proposta de pensar dialeticamente os conceitos em busca de tendncias e possibilidades da emancipao e os seus bloqueios, recorrendo e revigorando dessa forma a teoria marxista. Nesse sentido, devemos levar em conta que a publicao dos Manuscritos Econmicos e Filosficos de Marx, em 1932, exerceu uma forte influncia motivadora no trabalho de Marcuse. Inspirado, o autor alemo afirma em uma entrevista em 1969, quase 40 anos depois da sua primeira leitura dos manuscritos, que para uma sociedade ser verdadeiramente socialista indispensvel o desenvolvimento da tcnica e da cincia (MARCUSE. 1998), tendo em vista, que as relaes de produo podem ou facilitam as foras produtivas ou limitam o seu desenvolvimento, colocando em contradio com elas. Para Marcuse (1998), a diminuio do tempo de trabalho necessrio exige um estgio superior de desenvolvimento tcnico, diferente do que acontece na sociedade industrial, onde o progresso tcnico serve em grande parte para continuar e intensificar a submisso do homem ao trabalho, e ampliar o trabalho alienado e produzir uma tendncia totalitria nas sociedades industriais avanadas. Idias que vo ser desenvolvidas nas dcadas de 1940 a 1970, como observam Lenzi (2007) e Terra (2008). Como afirma Lenzi (2007), entretanto, apesar das diferenas tericas e temticas entre os autores da Escola Frankfurt, um dos pontos comuns que compartilhavam em suas reflexes, sobretudo, Adorno,

29Horkheimer e Marcuse, era a idia de haver uma tendncia totalitria nas sociedades avanadas, que no estava apenas circunscrita aos totalitarismos da Alemanha Nazista e nem na Rssia Stalinista. Diferente das interpretaes clssicas, como de Hanna Arentd, onde o totalitarismo estava restrito queles tempos e espaos, Marcuse oferece uma interpretao do totalitarismo como uma falsificao da idia de totalidade, numa equao total entre Estado e sociedade, por um lado, e entre Estado e sociedade e indivduo, por outro. Onde a caracterstica menos importante seria a presena de um Estado terrorista. Para esse autor, o filsofo alemo observa que a equao no se traduzia apenas na fuso entre Estado, Sociedade e Indivduo, mas sim em torno do mesmo interesse ou de um mesmo fim. Implicando tambm na unificao dos meios modo de produo, o mtodo e o equipamento tcnico utilizados nos trs mbitos a fim de alcanar uma finalidade una que, por sua vez, seria unificada por intermdio da prpria aplicao dos meios. Sendo que a complexidade e sofisticao da tcnica para Marcuse, seriam fundamentais na emergncia de uma situao totalitria no terrorista, uma vez que, o aparato tecnolgico funcionaria em um s tempo como mediador para unificao das finalidades e como aplicao dos meios para atingir uma finalidade unificada. O conceito de aparato tecnolgico fundamental para entender as desconfianas de Marcuse quanto tcnica na sociedade industrial, desenvolvido ainda nos anos 1940, o aparato designa instituies, os dispositivos e a organizao da indstria em uma situao social dominante. A designao tecnolgica definida como modo de produo, como a totalidade de instrumentos, invenes e dispositivos, que ao mesmo tempo um arranjo social e poltico, o qual poderia servir como instrumento de controle e dominao, e no apenas como uma cincia e tcnica aplicada. A distino que o autor faz entre tcnica e tecnologia reafirma a premissa marxiana, que sendo o avano da tcnica parte do desenvolvimento das foras produtivas, cujo progresso um fator importante para na criao de condies de possibilidades de um novo modo de produo. Nesse sentido, a tcnica, para Marcuse, em si um fator parcial, que pode tanto promover o autoritarismo tanto a liberdade, tanto a escassez quanto a abundncia, tanto a ampliao do trabalho alienado, quanto sua abolio. Como diz Lenzi (2007), para Marcuse na sociedade capitalista, ou seja, na situao social dominante, o aparato tecnolgico corresponde aplicao da tcnica com a finalidade de dominar e controlar as

30relaes sociais. Para que elas se perpetuem, atravs da reproduo ampliada da ordem social capitalista como um todo, em ltima instncia sua prpria reproduo, j que este aparato incorporaria em si esta ordem. Entretanto, para que o aparato tecnolgico cumpra seu papel na ampliao e perpetuao da dominao da sociedade capitalista, necessrio que as instituies e as entidades nas quais s relaes sociais se incorporam e se materializam, sejam ordenadas de forma semelhante aos equipamentos tcnicos, criando vrios outros aparatos e sistemas tcnicos (aparato comercial, militar, educacional, publicitrio etc.). Sem entrar detalhadamente nas consideraes marcusianas sobre os desdobramentos do aparato tecnolgico ao longo do desenvolvimento do capitalismo monopolista, pode-se resumidamente pontuar algumas proposies, sem o prejuzo para discusso posterior. A primeira que o Estado desempenha um papel fundamental na reproduo tanto do aparato tecnolgico como na sua manuteno, servindo como um meio para tecnificar no s s relaes econmicas, mas, tambm a sociedade como um todo. Na educao, por exemplo, as exigncias por eficincia e qualidade so traduzidas, segundo as diretrizes, um aparato tecnolgico semelhante ao da indstria, ou seja, ajustamento do indivduo s engrenagens da mquina escolar. O que garantem, segundo sucesso do produto final, no caso, o cidado consumidor. No livro One-Dimensional Man, publicado nos Estados Unidos, em 19646, Marcuse afirma que:(...) aparato impem suas exigncias econmica e polticas para a defesa e a expanso; ao tempo de trabalho e tempo livre, cultura material e intelectual. Em virtude do modo pelo qual organizou sua base tecnolgica, a sociedade industrial contempornea tende a organizar-se totalitria. Pois totalitria no apenas a coordenao poltica terrorista da sociedade, mas tambm uma coordenao tcnico-econmica no-terrorista que opera atravs da manipulao das necessidades e interesses adquiridos. Impedindo, assim, o surgimento de oposio eficaz ao todo. No apenas uma forma especfica

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Publicado pela primeira vez no Brasil como A ideologia da Sociedade Industrial, em 1969.

31de Governo ou de direo partidria constituiu um totalitarismo, mas tambm um sistema especfico de produo e distribuio do bem compatvel com o pluralismo de partidos, jornais e partidos contrabalanceados, etc. (MARCUSE, 1997, p. 24).

Marcuse (1979) vai afirmar que a regulao capitalista sobre a economia racionalizou suas crises estruturais diminuindo sua intensidade, retardando a revoluo socialista, mas no as necessidades dos homens. O homem cada vez tornava-se integrado a administrao das coisas, os tempos de trabalho e de lazer encontravam-se escravizados pelo aparato tecnolgico, que funciona como um meio pelo quais os indivduos tornam-se aptos ao consumo de coisas inteis. Marcuse (1979), ainda relata, nesse sentido:Os meios de transporte e comunicao em massa, as mercadorias, casa, alimento, roupa, a produo irresistvel da indstria de diverso e informao, trazem consigo atitudes e hbitos prescritos, certas reaes intelectuais e emocionais, que prendem os consumidores aos produtos. Os produtos doutrinam, manipulam, promovem uma falsa conscincia. Estando tais produtos disposio de maior nmero de indivduos e classes sociais, a doutrinao deixa de ser publicidade para tornarse um estilo de vida (MARCUSE, 1979, p.31-32).

Mediante a tendncia totalitria das sociedades industriais, o autor considera ser necessrio que haja uma transformao radical dessa sociedade em que se faz presente o sujeito revolucionrio, isso dependeria do amadurecimento de muitas foras, entre elas, a subjetividade da classe revolucionria e os novos usos da aparelhagem tcnica. Lenzi (2007) relata que Marcuse, nos anos 1950, mantm a distino de tcnica e tecnologia e que, ao longo dos anos 1960, o autor vai tornando-se cada vez mais crtico continuidade da tcnica burguesa em uma futura sociedade livre. Segundo esse autor, Marcuse vai compreender que a tcnica carrega consigo marcas da opresso e dominao sob ao qual foi produzida e que sua reutilizao numa sociedade livre levando-se em conta essa base objetiva algo questionvel. Dessa forma, como observa esse mesmo autor, Marcuse vai afirmar que a tcnica transborda seus limites. Ela mesma se transformando em tecnologia. O aparelho tcnico no aparece mais

32como neutro, mas sim como poltico, sendo concebido, desde o incio como parte de uma determinada ordem social, no caso, o capitalismo monopolista, ou seja:(...) na sociedade industrial avanada, a aplicao scio-poltica impregna-se nas prprias foras produtivas da sociedade, isto , na prpria tcnica vigente, impedindo-a de oferecer as possibilidades de transformao que at ento vislumbradas por Marcuse. As foras produtivas, em si prprias, tornar-se-iam ideolgicas (LENZI, 2007, p. 94).

Isso significa dizer que o descompasso entre as foras produtivas (tcnica) e as relaes de produo (tecnologia), ambas apontadas nas concepes marxianas como contradio necessria para revoluo, tende a desaparecer. Sendo para Marcuse, segundo Lenzi (2007), a distino entre tcnica e tecnologia tambm deixa de existir. A sociedade se guiaria, cada vez mais, em relao volta para a tendncia totalitria unificadora. A cientificidade e tcnica burguesa seriam apresentadas, por Marcuse, como formas de conhecimento e instrumentalizao da natureza e dos homens, no s determinadas socialmente em sua organizao e aplicao, mas tambm determinadoras da organizao social como um todo. Seguindo essa argumentao, a teoria marcusiana vai afirmar que uma sociedade emancipada no dependeria apenas de uma luta poltica, no sentido tradicional do termo, dependeria tambm de uma revoluo na cincia e na tcnica, produto da ao de sujeitos livres das necessidades repressoras e compensativas da sociedade capitalista, portador potencialmente de necessidades, metas e satisfaes essencialmente novas (LENZI, 2007, p.95). Esse autor enfatiza que Marcuse no deixa claro algumas de suas consideraes a respeito dessa exterioridade espacial dos sujeitos livres, seriam foras sociais sem uma indicao precisa, portadores de novas necessidades e objetivos, to novos, que as tcnicas no poderiam ser satisfeitas com a simples reutilizao das tcnicas existentes. Quanto classe revolucionria clssica, Marcuse (1979) observa que o proletariado descrito por Marx sofre uma mudana estrutural, iniciada no sculo XIX, e que no estgio atual da sociedade industrial o proletariado encontra-se integrado a sociedade de consumo e ao Estado de bem-estar social, perdendo assim a radicalidade necessria para insurgir-se. O olhar desse autor volta-se para as experincias alternativas de sua poca como possveis sujeitos, que apontariam tendncias para

33emancipao: os movimentos contraculturais, estudantis e guerrilheiros latino-americanos da dcada de 1960. Embora apresentados como tendncias, as foras sociais que desencadearam significativas mudanas sociais e polticas no ocidente, neste perodo, fizeram que Marcuse oscilasse nas suas consideraes do pessimismo a exaltao dessas experincias, como observa Terra (2008). Segundo esse mesmo autor, apesar da dificuldade de apresentar um diagnstico do presente e de indicar uma classe revolucionria nos pases avanados, Marcuse se abre para mudanas comportamentais, culturais e polticas, indicando o potencial libertrio de trs foras essenciais. Na primeira fora essencial estaria contida no ataques das foras globais anticapitalistas, que se abrem em vrias frentes de luta nesse perodo. As lutas dos guerrilheiros latino-americanos e a luta pela emancipao na guerra do Vietn, segundo Terra (2008). Fez Marcuse acreditar que o proletariado terceiro mundo era uma ameaa real ao capitalismo. J na segunda fora essencial seria a confluncia da rebelio poltica e tnico-sexual, que se dirige contra moral dominante e liberao sexual, fazendo o autor refletir sobre os potenciais libertrios e dominantes presentes nessas lutas. Segundo Terra (2008) as crticas e possibilidades da liberao sexual, na teoria marcusiana, vo ser desenvolvidas nos conceitos de surplus-repression, presente em Eros e a Civilizao, e dessublimao repressiva, em A ideologia da Sociedade Industrial7. Em Eros e a Civilizao, Marcuse (1968) propem uma anlise das possibilidades e do desenvolvimento no repressivo das pulses8 em uma sociedade livre. Na teoria freudiana a represso das pulses uma condio fundamental para desenvolvimento da civilizao, tendo em vista, que a oposio entre razo e sensibilidade garantiria a realizao das potencialidades humanas, pois s sob o Logo dominante (faculdades superiores) e a represso das faculdades sensveis e naturais possvel

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Terra (2008) no desenvolve mais as idias de surplus repression e dessublimao repressiva ao longo do artigo. Desenvolveremos parcialmente a argumentao de Marcuse, para poupar o espao e o tempo destinado a essa exposio terica. 8 Sem nos aprofundarmos muito nas questes relativas leitura que Marcuse faz de Freud, podemos dizer que o encontro do autor com a teoria freudiana se prope ser ortodoxo. Como observa Pisani (2006), Marcuse no prope acrescentar categorias ou conceitos externos ao arcabouo terico.

34se desenvolver o trabalho socialmente til que garante a sobrevivncia do ser humano em um mundo exterior agressivo (PISANI. 2006). A oposio entre razo e sensibilidade, na teoria freudiana para Marcuse (1968), possibilita visualizarmos tanto a crtica ao princpio de realidade nas sociedades avanadas, onde a dominao da natureza se estabelece por uma imagem de reconciliao, como a busca por elementos libertrios para construo de sociedade livre onde no aja a represso a pulso sexual. Lembrando que Eros e Civilizao escrito no perodo em que Marcuse faz uma distino entre tcnica e tecnologia, o autor vai afirmar que a criao de um novo princpio de realidade pode ser construdo, j que nas teorias freudianas sobrevive a imagem do Logos de prazer e realidade, onde as potencialidades humanas podem ser realizadas. Em uma sociedade livre o princpio de realidade repressiva no necessrio, pois o trabalho socialmente til no separaria a razo da satisfao, haja vista o desenvolvimento atual da tecnologia permitiria as necessidades bsicas de serem supridas sem muito esforo. A imaginao tem papel fundamental na teorizao de Marcuse (1969), tendo em vista que o princpio de realidade estava presente na imagem ao quais os homens compreendiam o que significa liberdade9 e satisfao das suas necessidades. Se, para Freud, a imaginao reflete apenas imagens do passado sem volta e de um princpio de realidade repressivo, j que a civilizao depende da inibio da libido para manuteno da vida atravs do trabalho, para Marcuse a imagem evocada pela imaginao evoca a liberdade e a felicidade, que se ope a realidade repressiva. Nesse sentido, Marcuse (1969) tambm demonstra que a tenso entre pulso sexual e a sublimao repressiva, no capitalismo, conduzia os homens para imagens recalcadas da memria individual e coletiva, tabus de liberdade e a perverso sexual. Segundo o autor, em uma sociedade livre, a liberao da pulso sexual no conduziria para o fim da civilizao, como pensava Freud, as pulses de morte poderiam se transformar em pulses de vida, se a ao dos homens sobre a natureza (trabalho) e o seu tempo livre estivesse sob outras condies sociais.

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Como observa Pisani (2006), o conceito de dessublimao repressiva, de Marcuse, nos permite visualizar que as dinmicas sociedades contemporneas que, por um lado, possibilita uma maior liberdade e satisfao das necessidades, ao mesmo tempo, por outro lado, essa liberdade atua como um poderoso instrumento de dominao, sendo absorvida pelo sistema e adquirindo a funo de manipulao e controle dos indivduos, de suas conscincias, desejos e necessidades.

35Liberados do princpio de rendimento, do princpio de genitalidade e da sexualizao do corpo, que impregnam as relaes entre os homens, poderia haver uma nova sublimao sem a perda da sexualidade. Para esse autor, na teoria Freudiana, no haveria diferenciao entre trabalho alienado e no alienado, argumentando que se os obstculos colocados s pulses sexuais, produto da necessidade do trabalho na civilizao, e a necessidade de relaes durveis, entre as pessoas, fossem eliminadas, poderamos conduzir a fora libidinal em prol de outro processo, onde o corpo no visto apenas como instrumento de trabalho, onde a prpria concepo de libido e sexualidade se transforma, pois, livre dos princpios de rendimento a prpria sexualidade se transforma, regida no interior das novas instituies. Resumindo, pode-se dizer que em Marcuse, uma nova sociedade deve possuir elementos, onde a razo encontra aberta a sensibilidade e a sensibilidade razo e um novo estgio da civilizao. A liberao da pulso sexual s se torna possvel com uma revoluo, em todos os sentidos, no ao de um grupo isolado, apesar dos grupos que lutam por essa liberao poderem apresentar-se como antecipadores do que vem a seguir. A terceira fora social apresentada por Marcuse, segundo as consideraes de Terra (2008), a solidariedade, como a demonstrada pelos estudantes nas manifestaes contra a guerra do Vietn, nas revolues cubana e cultural chinesa, nas lutas dos povos negros dos Estados Unidos e do terceiro mundo. Assim como nas suas consideraes sobre a liberao sexual, tais fenmenos apresentavam caractersticas onde a poltica afetiva se encontrava poltica de ordem material. Apesar de Marcuse, como observa autor, ter se decepcionado pelas revoltas no terem se transformados em revolues, ele insiste na tese, de ser necessrio vincular a revoluo social a uma revoluo cientfica, no potencial emancipatrio da arte, da educao poltica e da radicalidade, presente nos movimentos de seu tempo, para pensar novos paradigmas para a revoluo. Embora os diagnsticos sobre a tcnica de Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamin, se distinguirem quanto s possibilidades da emancipao na modernidade, como vimos no decorrer dessa aproximao inicial com algumas das obras do pensamento crtico, algo comum entre os autores a proposta Escola de Frankfurt, que no cabe a teoria somente dizer como as coisas funcionam, mas sim, analisar o funcionamento concreto das coisas sob a luz de uma emancipao, ao

36mesmo tempo concretamente possvel e bloqueada pelas razes vigentes. Nesse sentido, como observa Nobre (2008), cabe a teoria crtica ser alvo de constantes revitalizaes, capazes no s de analisar o funcionamento do capitalismo, mas, sobretudo, entrever no tempo presente os elementos que permitem a visualizao dos limites e as possibilidades da superao da lgica de dominao. A constatao do progresso tcnico-cientfico, na modernidade, no resultou em libertao, mas na ampliao em submisso e conformismo, que penetra nas esferas humanas como uma tendncia totalitria. Culminou tambm com o abandono de idias da emancipao baseadas no triunfo da racionalidade e do progresso linear em sentido nico, porm, isso no implica em dizer que se abandonou o projeto do esclarecimento. Adorno, esse pensador que tradicionalmente se atribui um pessimismo inabalvel nos meios de comunicao de massa, nos anos 1960, reformula algumas de suas consideraes sobre os meios de comunicao de massa, onde salienta o uso da televiso, do rdio e do cinema para fins pedaggicos10, diferentes dos objetivos da indstria cultural. Segundo Terra (2008), Adorno, ao escrever Televiso como Ideologia, vai definir que a ideologia fornecida pela indstria cultural no poderia ser tomada automaticamente como aquela que afeta os telespectadores. Relativizando a tese de total integrao do indivduo a ideologia da indstria cultural, definida na Dialtica do Esclarecimento, Adorno vai tambm argumentar que na recepo existe uma enorme possibilidade, de uma srie, de reaes no previstas, porm, estas interpretaes no cabiam inteno do autor, como pensava Benjamin, mas as prprias caractersticas do medium tcnico11. Embora essa definio tenha um significado contraditrio em relao ao esquema terico anterior, presente na obra sobre o esclarecimento, a astcia das consideraes, em relao recepo,

A participao do autor em programas de rdio e televiso, nos anos 1960, demonstra a mudana de postura em relao aos meios de comunicao. O autor visa o uso da educao poltica como possibilidade de emancipar os indivduos em formao, das relaes de competio e individualismo, inerentes racionalidade instrumental do capitalismo presentes na escola. 11 A guinada na teoria de Adorno em relao, principalmente, ao cinema, para o mesmo autor, se d em decorrncia do contato, do autor, com o novo cinema alemo e com a proposta do cineasta e escritor Alexander Kluge em radicalizar a montagem dos filmes no cinema aproveitando os elementos da literatura modernista.

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37permite visualizarmos a descontinuidade histrica presente no uso das tcnicas miditicas de comunicao social. Acredita-se que as possibilidades da emancipao, usando a tecnologia, devem abranger tambm desenvolvimento de esquemas tericos capazes de interpretarem as novas possibilidades sociais, que se abrem hoje humanidade utilizando de uma sensibilidade capaz de articular a lgica social de um determinado quadro tcnico, como afirma Murray Bookchin (1985). 1.2 Notas sobre o Poder de Criar e Destruir das Sociedades Contemporneas Apesar do anarquismo no ter se consolidado como uma corrente poltica e filosfica dentro da academia, por um nmero enorme de questes que vo do desinteresse de muitos de seus expoentes pela academia, perda da hegemonia dentro do movimento operrio depois da revoluo de 1917; da falta de uma renovao da teoria poltica anarquista capaz de sistematizar alternativas, ao desprezo dos anarquistas pelo estado e a democracia burguesa, usaremos no decorrer do desenvolvimento terico algumas consideraes desta corrente. As contribuies do pensamento e as prticas anarquistas dentro das lutas sociais, hoje, principalmente entre os movimentos juvenis autonomistas e anticapitalistas, algo que se no prova vitalidade para os cientistas sociais mais cticos, pelo menos mostra novas questes a serem estudadas. Como sugere Marcos Nobre (2004), a teoria crtica deve apresentar dois requisitos: uma orientao para a emancipao e um comportamento crtico em relao ao conhecimento, produzido sob as condies do sistema de produo capitalista, buscando apreender a realidade social. Requisitos so preenchidos, a nosso ver, por Murray Bookchin, com sua mistura explosiva de anarquismo e ecologia social. Nesse sentido, pode-se dizer que apesar de Bookchin se encontrar em um campo historicamente situado e uma matriz poltica e filosfica diferente dos autores da Escola de Frankfurt, o autor compartilha com eles a preocupao sobre a tcnica, no que diz respeito, ao seu poder de dominao dos homens. No entanto, as preocupaes de Boockhin se debruam sobre o processo alarmante de degradao humana e ecolgica, que para ele traz tona uma srie de questes pertinentes a anlise da tcnica, que so elementos indispensveis para pensar a autogesto.

38Entendida, por esse autor, apenas na esfera da apropriao dos meios de produo, mas tambm, na esfera poltica, no sentido de autogoverno12. Como explica o mesmo autor:A ecologia social, tal como a concebo, no mensagem primitivista tecnocrtica. Tenta definir o lugar da humanidade "na" natureza - posio singular, extraordinria - sem cair num mundo de caverncolas anti-tecnolgicos, nem levantar vo do planeta com fantasiosas astronaves e estaes orbitais de fico cientfica. A humanidade faz parte da natureza, embora difira profundamente da vida no humana pela sua capacidade de pensar conceitualmente e de comunicar simbolicamente. A natureza, por sua vez, no simplesmente cena panormica a olhar passivamente atravs da janela, a evoluo na sua totalidade, tal como o indivduo a sua prpria biografia e no a simples edio de dados numricos que exprimem o seu peso, altura, talvez "inteligncia" e assim por diante (BOOCKHIN, 1994)13.

Ainda para esse autor:Uma nova poltica deveria (...) implicar a criao duma esfera pblica "de base" extremamente participativa, no nvel da cidade, do campo, das aldeias e bairros. Decerto o capitalismo provocou destruio tanto dos vnculos comunitrios como do mundo natural. Em ambos os casos encontramo-nos face simplificao das relaes humanas e no humanas, sua reduo a formas interativas e comunitrias elementares. Mas onde existam ainda laos comunitrios e onde - mesmo nas grandes cidades - possam nascer interesses comuns, esses devem ser cultivados e desenvolvidos (Idem).

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O olhar crtico sobre o conceito de autogesto nos oferece uma viso privilegiada das prticas polticas dos jovens reunidos em redes de ativismo autnomo, tanto por sua popularidade no meio ativista juvenil, como dos processos de autogesto, esto em curso nas aes coletivas dos movimentos sociais anti- sistmicos em todo mundo. A data de nossa referncia da republicao e reviso feita pelo autor, em 1994, publicada pela Black Rose Books, Montreal. Disponvel em: http://www.anarchija.lt/images/pdf/ Murray%20Bookchin%20-%201993%20-%20What%20Is%20Social%20Ecology.pdf. Acesso em: 12 set. 2009.

39Para Boockhin (1985) a autogesto, desde sempre, esteve associada questo do desenvolvimento tcnico, no entanto, algumas das interpretaes sobre a tcnica entre os anarquistas tm deixado a desejar. No movimento operrio por considerar a fbrica como um espao privilegiado de ao e educao poltica, nas correntes primitivistas por negar a importncia da tecnologia nos processos de emancipao. Esse autor explica que os homens, os animais inteiramente sociais, desenvolveram um conjunto de valores, de instituies e de relaes culturais, que permitiram, ou no, o desenvolvimento de tcnicas, assim como, a interpretao que se faz sobre o seu uso. Para esse autor, muitas tcnicas e invenes foram fundamentais para o desenvolvimento do capitalismo. No entanto, lembra, que as mquinas a vapor j eram conhecidas pelos gregos, h dois mil anos, mas eram usadas meramente como brinquedo, tamanha era a importncia que tiveram os valores ticos e culturais da antiguidade sobre a evoluo das tcnicas em geral e, em particular, sobre todas as pocas no submetidas a uma lgica de mercado. No entanto, seu contrrio tambm de um simplismo inaceitvel, por negar as relaes das tcnicas existentes, em determinado perodo histrico, ou por exagerar sobre o papel da tcnica, na formao do pensamento e da sociedade, citando como exemplo Marshall MacLuhan e Jacques Ellul. Para esse mesmo autor, ainda que no possamos negar a sua influncia da tcnica e at o seu indispensvel contributo na criao das instituies sociais e das atitudes culturais, a partir do momento em que questionamos os problemas relacionados ao seu uso e desenvolvimento, nos deparamos com um nmero considervel de paradoxos, que no sero resolvidos com mero exerccio de retrica ou pela frmula moral mais conhecida. Boockhin (1985) d como exemplo, o sentido que se atribui autogesto nos dias de hoje, como se fosse um sinnimo de "controle operrio", "democracia industrial", "participao dos trabalhadores". Como explica o citado autor:O sentido altamente economicista que a palavra autogesto hoje evoca, no seno, por si mesmo, uma prova gritante do grau de apropriao que as palavras sofrem na sociedade industrial. O termo auto, enquanto prefixo, e a palavra gesto tornase, no plano das idias e dos sentidos, opostas uma outra. A idia de gesto tende a apagar a

40idia de autonomia. Pela influncia dos valores tecnocrticos sobre o pensamento, a autogesto, conceito fundamental a uma administrao libertria da vida e da sociedade, foi preterida a favor de uma estratgia de gesto eficaz e rentvel. Deste modo, a idia de autogesto cada vez mais tida em conta, mesmo pelos sindicalistas mais decididos, no por motivos de autonomia pessoal, mas por razes de funcionalidade econmica (BOOCKHIN, 1985, p.2).

Segundo esse autor, somos levados a pensar que o pequeno bonito, no porque podemos obter uma sociedade em escala humana, que cada um possa controlar, mas porque economizaremos energia. Nesse sentido, a autonomia e a autogesto so pensadas como componentes de uma sociedade industrial, resumindo-se em atitudes mais aptas a resolverem problemas econmicos e tcnicos do que problemas morais e sociais, (...) em uma sociedade que se nega individualidade do homem, que estabelece, afinal, os termos que devem ser utilizados por aqueles mesmos que a pretendem modificarem num sentido diferente e libertrio (BOOCKHIN, 1985, p.2). Ainda, esse mesmo autor ao definir os termos a sociedade se apropria de forma decisiva da opinio dos seus membros mais decididos, estabelecendo os parmetros das suas crticas e opinies "industrializa" a sua prpria oposio possvel. Para Boockhin (1985), h algo que tambm paradoxal na autogesto, que recusa pr em debate as suas bases de atuao tcnica, afinal, a simples eliminao da explorao econmica traz inevitavelmente, o fim da dominao social e da alienao cultural? (...) Podero as tcnicas atuais responder de forma adequada modificao e transformao desejada? (BOOCKHIN, 1985, p.3). Para esse autor, as respostas s questes abordadas, por noes como "controle operrio", "democracia industrial", "participao econmica", se tornam insuficientes, haja vista no haver argumentos mais claros e precisos para opor s idias funcionais de organizao econmica, que, cada vez mais, torna nua a natureza autoritria da tcnica. A idia de neutralidade da tecnologia atual, no sentido poltico e social, aceito por um conjunto muito vasto de idelogos e pensadores, criticada pelo autor pelo fato de colocar em debate para alm de todas as consideraes ticas e sociais. Infelizmente, quando as consideraes ticas sobre a tecnologia so isoladas, e no toma em conta um determinado contexto histrico ou

41social, o ponto de vista funcional tende identificar sobrepondo-se exatamente pelas mesmas razes acima apresentadas, pois tambm ele pressupe que a tecnologia no seno uma questo de concepo, um dado que , ou no, funcional. S muito recentemente vimos emergir um tipo novo de interrogao, ligada com a instalao de centrais nucleares, que se recusa a aceitar a tecnologia como um "dado", sem outras conseqncias. A noo de que o "tomo pacfico" intrinsecamente um "tomo agressivo" divulgou-se largamente depois do acidente na central Three Mile Island, em Harrisburg. Aquilo que foi mais significativo neste acidente foi, talvez, o fato dos antinucleares terem conseguido interessar as pessoas pelas novas tecnologias e pelas energias renovveis, que so ecologicamente mais ss e implicitamente mais humanas. A distino entre "boas" e "ms" tcnicas, isto , uma avaliao tica do desenvolvimento tcnico, pode ento fazer-se com uma acuidade desconhecida desde a primeira revoluo industrial (BOOCKHIN, 1985). Para esse autor, o debate sobre a tcnica, algo fundamental para movimentos emancipatrios que devem mergulhar num universo social de intenes, necessidades, desejos e de interaes, tendo em vista, que a tcnica constitui um dos mecanismos mais maleveis que a humanidade possui. Para ele, as instituies, os valores, os cdigos culturais, utilizados pelos seres humanos, com efeito, muito mais reticente mudana do que, propriamente, os instrumentos que os materializam. Seguindo esta argumentao, Boockhin (1985) examina algumas noes construdas com base na autogesto, particularmente na relao que mantm com o desenvolvimento tcnico. Para ele a noo de selfhood tem origem na concepo helnica de autonomia, isto , de autogoverno, o fato da autonomia na sociedade atual significar apenas independncia deve-se ao reducionismo mencionado anteriormente. Ainda para esse autor, a autonomia helnica estava intimamente relacionada idia de governo social, na capacidade do indivduo participar diretamente da sociedade em que vivia, antes mesmo de se ocupar de suas atividades econmicas, com efeito, o oikos (gesto da casa) era considerado uma atividade inferior, ainda que necessria, no interior da polis. Conforme o citado autor, a idia selfhood parece estar mais associada ao poder do indivduo no seio da comunidade do que propriamente gesto da existncia material. No entanto, a possibilidade de exercer poder social e dessa forma adquirir uma

42individualidade, pressupe uma liberdade material adquirida pela boa gesto do meio. Na noo de selfhood, as condies bsicas estavam asseguradas, segundo o autor, se exigia mais do que os homens de nossa poca possam considerar. Primeiro, por que a noo de selfhood implicava no reconhecimento da competncia do indivduo, tendo em vista que autonomia/autogoverno se tornaria uma palavra vazia se os membros da plis, no seu conjunto, se no fossem eles prprios, capazes de si mesmos, assegurarem a responsabilidade do governo. A educao poltica do cidado, baseada nos princpios de competncia individual, da inteligncia e, sobretudo, da retido cvica e moral, possui um papel importante nesse processo para o autor. Afinal, era s a ecclesia ateniense, espcie de assemblia popular de cidados, que se reunia pelo menos quarenta vezes por ano, que podia testar essa capacidade educativa, mas porque, a gora, na praa pblica, era a verdadeira escola. Nesse sentido, esse autor define que:(...) que a noo de selfhood teve a sua primeira e mais remota origem, numa poltica da personalidade, e no num processo de produo material. quase um absurdo, de natureza etimolgica, pretender dissociar o prefixo "auto" da capacidade de exercer um controle pessoal sobre a vida social. Sem o seu significado tico, as suas implicaes de natureza pessoal moral, a noo de selfhood arrisca dissolver-se numa espcie de individualismo, vazio e sem sentido, que lembra, por vezes, esse egosmo da personalidade humana que emerge superfcie da sociedade burguesa como os resduos das operaes industriais (BOOCKHIN, 1985, p. 4).

Argumentando que para autogesto ser outra coisa, que mero gerenciamento administrativo das tcnicas existentes e que para o trabalho se tornar uma atividade ldica e criativa, o autor defende a idia que os movimentos libertrios lidem com a tecnologia de uma forma muito idntica, e num contexto tico semelhante quela utilizada pelos grupos antinucleares, na sua relao com os recursos energticos. No seu livro, Post-Scarcity Anarchism (1977), Boockhin faz um relatrio do inventrio das tcnicas alternativas existentes, segundo critrios de seleo a partir do seu interesse ecolgico e da sua relao com a liberdade humana. Daquele momento at os dias de hoje, o autor

43afirma que acrescentaria mais experincias no seu inventrio e retiraria outras, que se tornaram adaptadas a sociedade autoritria e tecnocrtica. Salienta que uma nova tecnologia alternativa est sempre a emergir, no entanto, sendo que essa tecnologia to importante para o futuro quanto a fabrica no momento presente. Essa tecnologia traz consigo um critrio de seleo das tcnicas atualmente existentes. Para Boockhin (1985), no importante saber se uma pequena cooperativa alimentar pode substituir um supermercado, se um pomar comunitrio tem ou no capacidade para suplantar uma empresa agrcola industrial ou se um moinho de vento pode porventura produzir tanto como uma central nuclear. Para esse autor, o mais importante saber se essas tecnologias esto, de certo modo, proporcionando o ressurgimento de uma capacidade de autodeterminao pessoal, inacessvel s coisas maximizadas, e ainda que o ressurgimento de um sentimento de autocompetncia, que em geral negado ao cidado comum. Para ele a imagem da cidade enquanto fbrica, amplamente divulgada, j foi to longe, que as formas tcnicas e institucionais alternativas tm tambm de ser suficientemente radicais e profundas. Para que seja possvel, no entanto, preciso ir aos bairros e aos movimentos feministas e ecologistas e estar perto de todos aqueles que tenham j adquirido uma autonomia pessoal, cultural, sexual e cvica, onde possvel se encontrar uma nova sensibilidade, de uma nova competncia e de uma nova conscincia. A energia solar ou elica, bem como o pomar artesanal so opes tcnicas bem mais antigas que a fbrica (...) para que elas possam renascer hoje sob o nome de tecnologia popular ou alternativa, apenas o indcio de que h a necessidade de operar uma mudana no sistema social atual. Estas tcnicas alternativas do-nos hoje, justamente, o contexto possvel, e talvez histrico, para tal mudana social. Elas permitem que a autogesto seja efetivamente uma realidade viva e concreta, que traz do passado os aspectos mais positivos. Todos estes aspectos fazem delas realidades e, em certa medida, utopias, mas no simples vises. Finalmente, como dispositivos educativos comunitrios, elas tendem a desenvolver uma poltica de personalidade, s comparvel com aquela que o "grupo de afinidade" anarquista, entendido como arena educativa, pode desenvolver. Concluindo, o autor afirma que o surgimento das tcnicas alternativas atingiu um grau de importncia, nos dias atuais, que so s comparveis com o fim da sociedade tradicional, as vsperas do capitalismo. Ainda que as tecnologias alternativas possam ser engolidas

44pelo capitalismo, precisamos mais que a negao da tcnica ou sua incorporao pelo vis administrativo para produzir mudanas radicais na sociedade. Para esse autor, precisamos de esquemas tericos capazes de interpretar as novas possibilidades sociais que se abrem hoje humanidade, algo que s a sensibilidade libertria nos proporciona. Sem uma conscincia capaz de articular a lgica social de tal quadro tcnico, ficaremos assistindo as mais ricas possibilidades se perderem. Boockhin (1985) nos proporciona, assim como, as consideraes de Benjamin, Marcuse e porque no dizer Adorno, quando se abre as possibilidades do uso educativo da mdia de massa para fins educativos, um esboo sobre os limites e possibilidades das tcnicas. Agora cabe a ns, como cientistas sociais, pesquisadores, ativistas e a qualquer um, que aceite a tarefa de construir esquemas tericos capazes de interpretar as novas possibilidades sociais, faz-lo com tica e responsabilidade. Uma sensibilidade crtica, que possa considerar tanto tendncia libertria quanto os limites das alternativas propostas nos meios alternativos e contestatrios de produo de sentido, algo em constante renovao e disputa como veremos ao longo desse captulo. Nesse sentido, que procuramos esboar, nesse primeiro momento, as concepes de alguns tericos sobre a relao entre tcnica, mdia, dominao e emancipao, com o objetivo de esclarecer ao leitor algumas questes, que acreditamos ser pertinentes para esse debate. No entanto, importante fazermos algumas consideraes em relao s novas configuraes da poltica, no que Rubim (2000) chama de Idade Mdia, ou seja, com a compreenso da contemporaneidade como uma sociedade estruturada e ambientada pela comunicao, em suas profundas ressonncias sobre a sociabilidade contempornea em seus diversos campos (RUBIM, 2000, p.79). 1.3 A Comunicao e a Poltica na Idade Mdia Antnio Canelas Rubim, ao longo de suas anlises e revises bibliogrficas, tem desenvolvido uma importante contribuio para compreenso dos conflitos, entre as esferas polticas e a comunicao miditica. Esse autor no s critica os atores sociopolticos, que percebem a comunicao por sua face mais visvel: as mensagens transmitidas de

45maneira imediata e explcita14 (1992, p.120), onde a democratizao dos meios de comunicao se resume troca de sinais das mensagens transmitidas, como tambm, sugere contemporaneidade poltica afetada pela presena de novos espaos, formatos, ingredientes e pela redefinio de alguns de seus antigos componentes. A sociedade contempornea, para Rubim (1992), conforme sua complexidade e dimenso pblica, um espao social habitado e vivenciado por imagens construdas no cotidiano e imagens construdas de forma acelerada por meios de produo e difuso culturais, onde os atores scio-polticos s transitam de forma composta. Essa caracterstica vai repercutir diretamente sobre a atividade poltica, segundo trs elementos apresentados pelo autor sobre o debate da relao entre poltica e a construo da imagem. O primeiro elemento, do seu debate, afirma que a construo social de imagens, dos atores individuais e coletivos, torna-se um elemento indispensvel na atividade poltica, esse carter no deve ser visto tanto pela pertinncia ou da construo das imagens, mas pelas opes ticas e polticas envolvidas no processo da construo. O segundo elemento a inevitabilidade da construo de imagens sugere a necessidade do desenvolvimento de aes polticas especficas e essenciais no campo da comunicao. O terceiro elemento, do seu debate, afirma que comunicao midiatizada no pode, mais, se impor, como se acreditava antes, a comunicao midiatiza pode sim agendar temas e discusses, onde a possibilidade ampliada de manipulao aparece como componente da vida poltica. Esses novos elementos, apresentados por Rubim (1992), vo definir limites e interferncias na atividade poltica realizadas nas sociedades contemporneas. Desse modo, o autor sugere que para compreender a conjuntura concreta deve se levar em conta a dimenso imaginria dada pelas representaes visuais construdas pelo campo da comunicao miditica, relaes que nem sempre so transparentes ou se apresentam de forma simples em relao s configuraes polticas e econmicas da sociedade. As novas regras, do jogo dos cenrios da poltica e mdia, para o autor, no so mais majoritariamente definidas pelo campo da poltica, elas vem de esquemas prprios da comunicao miditica.

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9Segundo Rubim (1992), como conseqncia, essas crticas se divergem quanto aos contedos ideolgicos e polticos difundidos, mas apresentam como objetivo alcanado pela luta poltica a simples troca de sinais dos contedos tornados pblicos.

46Esse autor explica, que os processos da comunicao miditica em construir realidade no se remetem apenas aos fatos acontecidos, eles exigem o acionamento de regras prprias de produo, dos estoques culturais e do imaginrio social, o intercmbio entre essas esferas constroem o que real. Se no passado o imaginrio social de uma longa sedimentao dos estoques culturais, atualmente os meios sciotecnolgicos reciclam esses estoques culturais continuamente em uma velocidade jamais vista, e conseqentemente o imaginrio social. A velocidade corresponde, segundo Rubim (1992), adaptao da mdia a rapidez do capitalismo atual. A grande mdia, por ser constituda de empresas, necessita cada vez mais sustentar-se atravs de constantes reformulaes exigidas pelo mercado. Esse ritmo desenfreado da comunicao miditica, para se atender as exigncias do mercado, acaba por atropelar outras esferas sociais, que esto em ritmos diferentes. O mesmo acontece com a poltica, seus debates, incansveis discursos e mesmo pequenos atos de protesto ou realizaes, no parecem estar no ritmo exigido pela velocidade da seduo acelerada da novidade. Os momentos ordinrios da poltica quase desaparecem do cotidiano das pessoas, a no ser em momentos deliberativos, como eleies, rupturas de funcionamento regular da poltica, golpes e crises. As aceleraes so acompanhadas de outro processo, o controle e seleo pelo campo dos medias sobre aquilo que ser publicizado, funciona como um elemento regulador que se impe a outras esferas sociais as regras e s sanes para aqueles que querem servi-se dela. O carter seletivo impe discusses e a pertinncia de critrios sociais e especializados de seleo, no necessariamente coercitivos, dos materiais e serem disponibilizados. Os debates acerca dos gatekeepers e do newsmaking, com seus critrios de noticibilidade, oriundos das teorias da comunicao norte-americanas, podem ser aqui reclamados, como bons exemplos de estudos acerca da regulao do acesso e trnsito sociais da tele-realidade15 (RUBIM, 2001, p. 62). As alfndegas impostas, pelos meios de comunicao, e das instituies mercadolgicas acabam por delimitar a existncia pblica de

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A noo de telerrealidade, que Rubim (2001) sugere, serve para distinguir da realidade tradicionalmente concebida pela presena, proximidade, convivncia e localidade. A nova formao da realidade, possibilitada pelos espaos e tempos integrados pela rede eletrnica e associados s noes de desterritorializao, globalidade e distncia, como uma vivncia em tempo real produzida pelo intercmbio entre aparatos scio-tecnolgicos, imaginrio social e estoques culturais.

47um fato, de questes e demandas de setores da sociedade, onde o existir publicamente eminentemente importante para esfera poltica. Nesse sentido, percebe-se, que o autor ao longo do desenvolvimento de sua anlise assume a postura de no valorizar a telerrealidade, nem positivamente por sua capacidade libertadora, emancipadora, democratizante ou instauradora das potencilizadoras das capacidades humanas, nem negativamente pela suas caractersticas de controle, represso e regresso apontadas por Debord (1992), em A Sociedade do Espetculo16. Para Rubim (2002), a interpretao de Debord sobre o espetculo est prejudicada por interpretar espetculo com uma conotao sempre como negativa, em dois movimentos. O primeiro, iniciado por atribuir ao espetculo um determinismo econmico, voltado para o capitalismo econmico mercantilista, que interdita ao espetculo qualquer alternativa de realizao, econmica e/ou ideolgica, fora de uma din