Dissertação - Era Uma Vez: Contando Histórias na Educação ...E… · era uma vez: contando...
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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ERA UMA VEZ: CONTANDO HISTÓRIAS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
BRANCA MONTEIRO CAMARGO
PIRACICABA , SP 2011
ERA UMA VEZ: CONTANDO HISTÓRIAS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
BRANCA MONTEIRO CAMARGO PROF. DR. RENATA CRISTINA OLIVEIRA BARRICHELO CUNHA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNIMEP como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação.
PIRACICABA , SP 2011
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Profa. Dra. Renata Cristina Oliveira Barrichelo
Cunha – UNIMEP (orientadora).
__________________________________________
Profa. Dra. Maria Augusta Hermengarda Wurthmann
Ribeiro - UNESP – Rio Claro
__________________________________________
Profa. Dra. Maria Nazaré da Cruz - UNIMEP
Dedico este trabalho a Sueli, a
Patrícia e a todos os professores e
crianças na esperança de que as
histórias possam ser fonte de
conhecimento e possam contribuir
para a criação e imaginação de
todos nós.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente agradeço à Profa. Dra.Renata Barrichelo Cunha pela
orientação, pelo carinho, pela paciência, pelas incansáveis correções, enfim
por todo o apoio dado durante o mestrado.
Gostaria de agradecer também à banca, Profa. Dra. Maria Nazaré da
Cruz e Profa. Dra. Maria Augusta H. W. Ribeiro por aceitarem participar de
minha qualificação e defesa de mestrado e pelas críticas que fizeram com que
este trabalho crescesse.
Agradeço a todos os professores e funcionários do Programa de Pós -
Graduação da UNIMEP, especialmente à Elaine e à Ge. Ao CNPq pela bolsa
concedida.
À Julia, Patrícia e à Sueli por terem me recebido na escola e por terem
me dado a oportunidade de realizar minha pesquisa.
À Carmelina de Toledo Piza, que conheci em um momento bastante
difícil de minha vida e que me ajudou a encontrar um caminho e a me lembrar
como as histórias eram e são importantes para mim. E a me lembrar também
de como eu gosto delas. Me ajudou a ver que eu podia manter a criança que
existe dentro de mim sem deixar de crescer. Foi assim que passei a ser a Tia
Branca, contadora de histórias.
Gostaria de fazer um agradecimento especial aos meus pais, por
acreditarem em mim, por me fazerem nunca desistir de minhas conquistas e de
mim mesma. Meu pai sempre dizia “você consegue, minha filha, faça, que você
vai chegar lá”, lá onde, eu não sei dizer, mas acredito que é onde eu quiser.
Minha mãe também acreditava e acredita em mim, por isso, hoje,
agradeço a ela pelos ensinamentos, pelas broncas, pela força de vontade, pela
paciência, por todos os cuidados que tinha e tem comigo e por todo amor que
nos deu.
Agradeço ao Matheus, pelo amor, pelo carinho, por me dar forças, pelo
incentivo, pelo apoio durante todo este percurso e pelo companheirismo. Por
me aguentar do início ao final da dissertação. Te Amo!
À Tia Ana por tudo o que é para mim, por sermos parecidas e pelo
abstract.
À Doca minha segunda mãe. Sei que ela vai vibrar por mais esta minha
conquista.
Aos meus irmãos, Rita e Fernandinho; ou Fernandão, que entre tapas e
beijos também me ajudaram nesta empreitada. As minhas irmãs postiças
Pricilla e Aline pelo carinho e pelo amor.
Gostaria de agradecer à minha Avó e ao meu Avô pelas histórias
contadas para mim e para meus primos, histórias inventadas, reais; enfim
todos os tipos de histórias que me fizeram me apaixonar por elas. Minha avó
contava e conta histórias de sua família, histórias que fazem parte da história
do Brasil e meu avô outras histórias, as inventadas por ele ou que se lembrava
da infância.
Dizia meu Avô: “Em São João da Boa Vista tinha mar quando eu era
criança, pegava onda e passava por debaixo do túnel, por isso, é que fiquei
careca”. Essa é uma das histórias que ele conta aos netos.
À Bia, ao Felipe, à Julia, ao Mauro, à Lúcia, ao Fabrício (Geleia), à
Renata Ceribelli, à Renata Pucci, à Daniela Zampieri, à Danuza Ciloto, à Ana
Paula Camargo, à Gyslaine, que me deram apoio e que cada um, de sua forma
e maneira, me ajudaram nesta empreitada.
Ao Rudy e à Lê, que mesmo distantes, sei que estão aqui presentes,
presentes em nossos corações: - Podemos fazer via Skype?
À Ana Paula, à Evani e à Gê por todos os conselhos, puxões de orelha e
carinho.
À Celaine que me ajudou a superar as crises, me ouvindo e sempre me
deixando mais calma e mais tranqüila.
À Nalva pelos quitutes gostosos e preocupação para comigo.
A todos os meus outros amigos que também estiveram presentes neste
momento em meu coração. Emília, mesmo a gente não se vendo... gostaria de
agradecer pela força e por me ajudar a acreditar que eu chegaria onde eu
quisesse chegar.
RESUMO Este estudo tem por objetivo conhecer os encaminhamentos e intervenções de professoras, quando contam histórias, para alunos da Educação Infantil. A investigação é relevante porque além de contribuir para o aumento do conhecimento da área, pode nos ajudar a refletir sobre uma prática pedagógica extremamente importante para a inserção da criança na história cultural e das significações de seu grupo social. Para responder a questão da investigação - Quais os encaminhamentos feitos pelas professoras nos momentos de contar histórias para as crianças na sala de aula? - utilizei observações videogravadas e registradas em diário de campo de duas professoras que contavam semanalmente histórias para os seus alunos de 4 a 5 anos, de uma escola de educação infantil, do interior do estado de São Paulo. O referencial teórico adotado nesse estudo destaca as contribuições da Literatura Infantil (LAJOLO, 1994; MACHADO, 2004; RIBEIRO, 2007; ZILBERMAN, 2003, 2005, 2009) e da interação social para o desenvolvimento e aprendizagem das crianças (VIGOTSKI, 2000, 2007, 2009; KRAMER, 2006, 2009; PINO, 2000; GÓES, 2000). As análises dos encontros das professoras com as crianças, com base na abordagem microgenética (GÓES, 2000), apontam que contar histórias não é algo espontâneo e natural para essas professoras, mas resultado de elaborações pessoais e de uma formação que não levou em conta a apreciação literária do texto. As professoras participantes dessa pesquisa, ao apresentarem e dialogarem sobre as leituras com as crianças, demonstraram preocupação em transmitir regras de comportamento e boas maneiras, bem como explicação dos significados de palavras, estabelecendo interações orientadas por perguntas que buscavam avaliar a compreensão das crianças em relação à história contada, mantendo assim a atenção das mesmas. O diálogo e as ações pedagógicas, em muitos episódios, estiveram mais voltados para manter o silêncio dos alunos e para garantir a transmissão de orientações e informações para as crianças. Faz-se necessário repensar a formação de professores de modo que a rotina de contar histórias na Educação Infantil possa efetivamente cumprir com seu papel de levar as crianças a um mundo simbólico, imaginativo, criativo e reflexivo. Palavras-chave: Educação Infantil, Literatura Infantil e Formação de Professores.
ABSTRACT
This study seeks a better understanding of the orientation of interventions by teachers when they are telling stories to primary school children. This investigation is relevant because besides increasing the body of Educational knowledge, it can help us to think about an extremely important pedagogic practice, namely the giving to children knowledge about their cultural history and of their meaning in their social group. In order to answer the main question of this investigation - Which are the orientations the teachers use when they tell stories to the children in the classroom? - I used video recorded observations and registers in a field diary of two teachers who were telling weekly stories to 4 to 5 years old pupils from a Primary School from the interior of the state of Sao Paulo. The theoretical references adopted in this study emphasise the contributions in Children Literature of LAJOLO (1994), MACHADO (2004), BROOK (2007) and ZILBERMAN (2003, 2004, 2005, 2009) and of the studies of social interaction for children development and learning (VIGOTSKI, 2000, 2007, 2009; KRAMER, 2006, 2009; PINO, 2000; GÓES, 2000). The analysis of the meetings between teachers and children, based upon the microgenetic approach (GÓES, 2000), pointed out that telling stories is not an spontaneous and natural action for these teachers, but it is a result of personal elaboration and of a background that did not take into account the literary appreciation of the text. The teachers, while presenting and talking to the children about the stories, demonstrated a preoccupation in transmitting rules of behavior and good manners, as well as explanations of the meaning of words. The teachers established interactions with the children followed by questions aimed at evaluating the understanding of the story by the children, keeping their interested attention. The dialogue and the pedagogic actions, in many episodes, were preferentially directed to keep pupils silent to guarantee the transmission of information to the children. It is therefore necessary to re-think teachers' formation so that the routine of story telling in Primary Schools can effectively achieve the role of taking the children to a symbolic, imaginative, creative and reflexive world. Key-words: Primary School Children, Children Literature and Teacher Training.
SUMÁRIO
ERA UMA VEZ... BRANCA.............................. .................................................09
CAPÍTULO 1: O Tesouro das Histórias................ ..........................................15
1.1. A Literatura Infantil na Escola............... .................................................. 17
1.2. A Educação Infantil e o Contar Histórias ..... .........................................20
CAPÍTULO 2: Eu e Outro: Nossa História............. .........................................28
CAPÍTULO 3: A Escola, Sueli, Patrícia e as Crianças ..................................38
CAPÍTULO 4: A Casa, A Margarida, os Brinquedos e ou tras Histórias......46
4.1. Relevância do Texto Literário na Perspectiva d as Professoras.........47
4.2. Interações a partir do Texto Literário........ .............................................55
OS GRÃOS DE MILHO E OS GAFANHOTOS.................. ...............................62
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................... ........................................65
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ERA UMA VEZ... BRANCA Era uma vez... Branca. Esse nome tem uma história. Era o nome de
minha bisavó – avó da minha mãe e do meu pai também – sim, eles são primos
e a avó em comum chamava-se Branca.
Branca também é nome de personagens de histórias infantis, como
“Branca Flor”, “Branca de Neve, “Linda Branca”.
Na minha infância eu conhecia apenas a história da “Branca de Neve”,
mas com o passar dos anos fui descobrindo outras histórias e outras
personagens com o nome: Branca.
Uma vez minha mãe contou que a tia Ana me levou ao teatro para
assistir “Branca de Neve e os Sete Anões”. No final da peça, quando o Príncipe
ia beijar a Branca de Neve, que estava no caixão, levantei-me no meio da
plateia, subi na cadeira e abri os braços achando que o Príncipe ia me beijar.
As histórias sempre me fascinaram e encantaram.
No ano passado, em 2010, meus pais foram para Portugal e minha mãe
encontrou lá um livro com contos tradicionais açorianos que tinha uma história
“nova” para mim, “Linda Branca”. Mais uma história de reis, príncipes e
palácios e que termina com um poema da Ilha de São Miguel, Açores:
Quem o disse está aqui, Que o quer saber, vá lá, Sapatinhos de manteiga Escorregam, mas não caem (MIMOSO, 2010, p. 48).
E, continuando a história...
Quando criança, eu, Branca, gostava muito de brincar na rua, de brincar
de boneca, de brincar de Barbie, de brincar de casinha e muitas outras coisas
mais... Mas não gostava muito de ir à escola.
Venho de uma família de muitos professores. A bisa Branca era
professora primária. Minha avó materna, professora de história, e meu avô
materno, professor de histologia. Sem contar que meus pais também são
professores.
Estudei em várias escolas, numa época em que o movimento
construtivista de Piaget tinha muita força. Acreditava-se que era necessário
respeitar o ritmo de desenvolvimento da criança, preparar o ambiente para a
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criança aprender, sem forçá-la, e esperar que ela amadurecesse. Estudei o
primeiro ano em uma escola “alternativa”, eu gostava era de ficar no balanço
em vez de ficar na sala de aula estudando. Nem preciso dizer que me deixaram
o ano todo balançando e não passei para o 2º ano.
Depois fui estudar em outras escolas. Em minha vida escolar estudei em
escolas laicas, escola espírita e escola metodista – escolas que eram
“alternativas” e tradicionais. Tive, com isso, experiências diversas, que me
ensinaram a ver que não existe uma única forma de ensinar e de aprender.
Eu gostava muito de histórias de todos os tipos – contos de fadas, de
encantamento, tradicionais, folclóricos, de animais, histórias de vida...
Gostava muito de ouvir as histórias que minha bisavó Celina contava,
eram histórias de sua infância. Imaginava o tamanho da casa, os jardins da
casa, o quarto, a varanda do quarto, os irmãos, os empregados, as peripécias
de minha bisavó. Lembro-me das histórias como se a Bisa estivesse me
contado há minutos atrás!
Ouvia histórias sempre antes de dormir, minha mãe contava-as todos os
dias.
Meu pai também contava histórias quando eu pedia, mas ele misturava
todos os contos de fadas e eu ficava brava com ele: – “Pai, não é assim, você
está misturando a Branca de Neve com a Cinderela”. Gostava muito quando
ele contava a história da “Gotinha”: “Era uma vez uma gotinha, que morava
numa nuvem, com seus pais, familiares e amigos...”. E a história revelava todo
o ciclo da água e os problemas da poluição. Ah! Esqueci de dizer que meu pai
é biólogo e dá aulas sobre poluição. Assim, a história da gotinha caindo em um
rio sujo e fedido me ensinou a entender como a poluição causa estragos na
natureza.
Acabei aprendendo a ler, lendo as histórias do Mico Maneco, da Ana
Maria Machado (1988), com minha mãe. Acho que as histórias sempre me
atraíram.
Fiz Fonoaudiologia na UNIMEP e, durante os estágios, comecei a
atender crianças. Contava histórias para elas e vi que isso ajudava muito no
desenvolvimento da sua linguagem. Sem contar o interesse que uma história
sempre desperta.
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Assisti a uma apresentação de contação de histórias da Carmelina de
Toledo Piza. Fiquei encantada com a forma como ela contava as histórias e
descobri que a contadora também era professora e que dava cursos de
contadores de histórias na minha cidade.
Fui fazer o curso. Tive aulas todas às segundas-feiras à noite, durante
quatro meses. Ia para as aulas toda contente, sempre pensando em milhões de
histórias.
Durante o curso, aprendi com a Carmelina a olhar para os olhos das
pessoas quando estamos contando histórias, a deixar que elas nos levem a
fantasiar as histórias, imaginando-as, pois, dizia ela, “quando criamos a nossa
fantasia da história fazemos com que as pessoas se envolvam mais com elas”.
Assim, comecei a contar histórias. A primeira história que contei durante
o curso foi “Chapeuzinho Amarelo”, do Chico Buarque (2003), e contava junto
com uma colega de turma, a Raquel. Lembro-me que eu contava uma parte e
ela contava outra. Eu não conseguia contar a história sozinha, nem ela, porque
as duas faziam parte. Até hoje sinto dificuldade em contar esta história, pois eu
sempre sinto falta de alguma coisa, alguma coisa na maneira de contar a
história. Sinto falta da Raquel!
Depois, comecei a contar outras histórias, que eu lembrava que faziam
parte da minha infância. Gosto muito de contar “A Cidade dos Cachorros”, uma
história inventada pelo meu avô, que contava para minha mãe e que depois
minha mãe passou a me contar também. Ouvia-a contar e ouvia-o contar. Meu
avô contava muitas histórias...
A cidade dos cachorros contava a história de Alice, uma menina que
queria muito ter um cachorrinho e que o ganhou no dia de seu aniversário. Ela
ficou tão feliz com o presente que não conseguia dormir de tanto que pensava
nele. Seguindo o cachorrinho que pulou pela janela de seu quarto, ela chega a
uma cidade em que todos eram cachorros: o guarda era cachorro, o pipoqueiro
era cachorro, a professora era cachorro e por aí ia. Na escola, a professora
começou a ensinar: au-au, au-au, au-au e todos repetiam: au-au, au-au, au-au.
Alice ia falando junto com eles para aprender aquela nova língua.
Quando Alice já estava quase aprendendo a falar naquela língua, sua
mãe veio acordá-la para ir à escola. Tudo tinha sido um sonho e Alice reclama
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com a mãe que a tinha acordado bem na hora em que já estava aprendendo a
falar a língua do au-au.
Quem não gostaria de saber o que dizem os cachorros? Acho que esse
é um sonho de muitas crianças e de alguns adultos também. Talvez por isso a
história me encantasse tanto e, hoje, continua a encantar as crianças para as
quais a conto. A história falava do sonho e da realidade e do que pode ser
realizado em um e em outro lugar. Que sabedoria a do meu avô!
À medida que fui crescendo aprendi que as histórias mudam com o
tempo e que nelas são incorporadas características e valores sociais da época
em que são contadas.
Durante o curso de contação de histórias da Carmelina, um grupo de
meninas contou “A Verdadeira História dos Três Porquinhos”, de Jon Scieszka
(2005). Eu até então não conhecia esta história e me apaixonei por ela. Passei
depois a contá-la e hoje a sei de cor. Essa nova história traz outras
possibilidades de avaliação de quem é bom e de quem é mau. A versão
contada pelo lobo cria a dúvida e mostra que nem sempre o lobo é mau. Assim,
a narrativa trata de novos valores e características dos novos tempos.
Hoje conto muitas histórias em eventos como Natal, Dia das Crianças,
Páscoa, em escolas etc. Outro dia uma colega de mestrado me chamou para
contar histórias na escola em que ela trabalha. Fui levando um carrinho cheio
de curiosidades para as crianças. De dentro dele eu tirava objetos, adornos e
contava as histórias. Neste dia me lembro de contar: “A Cidade dos
Cachorros”, “Branca de Neve”, versão dos Irmãos Grimm (1989); “A Menina do
Leite”, de Jean de La Fontaine (2010); “A Girafa e o Mede-Palmo”, da Lucia
Pimentel Goes (1997) e o “Castelo Amarelo” de Malba Tahan (1964).
Inscrevi-me no início de 2009 no Programa de Pós-Graduação em
Educação da UNIMEP para fazer o mestrado, na expectativa de desenvolver
um projeto de pesquisa que pudesse englobar o desenvolvimento de
linguagem das crianças e, ao mesmo tempo, as histórias infantis. Ingressei no
Núcleo de Formação de Professores e, depois de muitas histórias e leituras, fui
observar duas professoras de uma escola pública municipal contando histórias
para seus alunos de cinco anos.
Meu projeto inicial da dissertação já apontava como tema as histórias
infantis, mas ainda não era claro pra mim o que exatamente eu queria estudar.
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Aos poucos fui delimitando melhor meu objetivo, com a ajuda de meus
professores e de meus colegas do Núcleo, optando por focalizar o professor
em suas práticas pedagógicas que envolvessem a apresentação da literatura
para crianças da Educação Infantil.
Assim, procurei conhecer como duas professoras contam as histórias
para seus alunos. Busco analisar na dissertação o modo como organizam os
grupos de crianças e conduzem a contação das histórias.
O foco de análise no papel do professor pode trazer contribuições para
conhecermos os contextos de trabalho em sala de aula e pensarmos sobre a
formação dos professores para a prática de contar histórias na Educação
Infantil.
A perspectiva teórica adotada neste estudo é a histórico-cultural. Os
estudos realizados nesta perspectiva destacam a importância da história e da
cultura para a constituição e funcionamento humano. Assim, fundamentada em
Vigotski (1993; 2007; 2009), Bakhtin (1995; 2003); Luria, Vigotski e Leontiev
(1977) e em autores contemporâneos (GÓES, 1997; 2000); FREITAS, 2002;
PINO, 2000; SMOLKA, 2009; SMOLKA E NOGUEIRA, 2002; TUNES et al.,
2005) que assumem esta orientação, destaco que é na vida coletiva e no
caráter social do comportamento que a criança encontra material para a
formação de suas funções internas. Os professores e alunos participantes são
considerados, portanto, sujeitos históricos, vivendo situações escolares
concretas, que trazem marcas da cultura e que participam ativamente da
realidade histórica e social.
Para a discussão sobre a literatura infantil baseio-me em autores que
discutem (BRAGA, 2000; BRANDÃO et al, 2006; CADERMATORI, 2009;
CERISARA, 2000; CHINEN, 1989; FREIRE e SILVA, 2009; KRAMER, 2006 e
2009; LAJOLO, 1994; LAZIER, 2010; MACHADO, 2004; OLIVEIRA, 1995;
OLIVEIRA e SILVA, 2008; ONGARI e MOLINA, 2003; PASCHOAL e
MACHADO, 2009; PENNAC, 1993; RAMOS, PANOZZO e ZANOLLA, 2008;
RIBEIRO, 2007; RIBEIRO, GOLSALVES e ZANELA, 2005; SAWAYA, 2000;
VALDES e COSTA, 2010; ZILBERMAN, 2003, 2005 e 2009).
A fim de organizar a apresentação deste estudo, orientado pela questão
“Quais os encaminhamentos feitos pelas professoras n os momentos de
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contar histórias para as crianças na sala de aula?” , organizei o texto em
quatro capítulos.
No primeiro capítulo, “Os Tesouros das Histórias Infantis”, recorro aos
autores, citados anteriormente, que abordam a literatura e a educação infantil,
mostrando o papel importante das histórias e do professor para o
desenvolvimento da criança. Em seguida, no capítulo 2, “Eu e o Outro: Nossa
História” eu apresento conceitos importantes da perspectiva histórico cultural
sobre a natureza social e constitutiva da linguagem. No capítulo 3, “A escola,
Sueli, Patrícia e as Crianças”, introduzo os atores (professores e alunos), a
escola e os caminhos metodológicos do trabalho de campo. No capítulo 4, “A
Casa, A Margarida, Os Brinquedos e outras Histórias”, eu apresento os dados
de meus registros e as análises realizadas a partir das teorias que embasam
esse estudo. Por fim, teço algumas considerações em “Os Grãos de Milho e os
Gafanhotos”, indicando as possíveis contribuições da pesquisa.
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CAPÍTULO 1 – O TESOURO DAS HISTÓRIAS INFANTIS
Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência? (BENJAMIN, 1987, p.114).
Inicio este capítulo apresentando as perguntas de Benjamin (1987) em
seu texto “Experiência e Pobreza”, escrito em 1933. No texto, o autor conta a
parábola de um velho que em seu leito de morte revela aos filhos que tem um
tesouro enterrado em seus vinhedos. Assim, os filhos cavam, cavam, mas não
encontram nada. No entanto, no outono, suas vinhas produzem mais do que
qualquer outra da região. Os filhos compreendem então o que o pai quis dizer –
ele transmite uma experiência: “a felicidade não está no ouro, mas no trabalho”.
A leitura do ensaio, escrito por Benjamin, denunciando a pobreza de
experiências e a miséria introduzida pelo desenvolvimento da técnica,
sobrepondo-se ao homem, traz contribuições importantes para a discussão
proposta neste capítulo, qual seja, o contar histórias e a Literatura Infantil.
As histórias revelam significados figurativos sobre experiências
acumuladas por gerações anteriores. Assim também, a Literatura Infantil
contém sentidos ocultos que encantam ao mesmo tempo em que ajudam a
compreender os valores, sentimentos, experiências e as características da
história social da humanidade.
A Literatura é rica porque permite descobrir o sujeito na sua
subjetividade e originalidade única, recria de uma maneira singular a sua
percepção de mundo (SAWAYA, 2000). Segundo esta mesma autora,
Benjamin “localiza nas narrativas infantis um lugar privilegiado onde a
experiência está em conjunção com a memória, com os conteúdos do
inventário pessoal e do passado coletivo” (p.38).
Machado (2004) também ressalta a importância de contar histórias,
narrar o mundo encantado, o maravilhoso, uma vez que a realidade do conto
promove o encontro entre pessoas e a atualização de valores humanos.
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Para Zilberman (2009), “caracterizando a experiência fundamental da
realidade, a leitura pode ser qualificada como mediadora entre cada ser
humano e seu presente” (p.41).
Na mesma perspectiva, Lajolo (1994) entende que é à literatura que se
“confiam os diferentes imaginários, as diferentes sensibilidades, valores e
comportamentos através dos quais uma sociedade expressa e discute,
simbolicamente, seus impasses, seus desejos, suas utopias” (p.106).
Histórias estão, portanto, diretamente relacionadas à nossa vida.
Conforme Ribeiro (2007),
a nossa própria vida é uma história, engastada em outras e na grande história da humanidade, porque construída por fatos que a vão tecendo, por personagens, além do principal, que se vão agregando à narrativa, compondo-a, pelos espaços por onde vivemos e pelo tempo da nossa vida (p. 79).
Contar histórias, mesmo entre adultos, é uma arte milenar e universal
(MACHADO, 2004). Desde os tempos antigos, mesmo antes da escrita, os
homens contavam histórias. Segundo Braga (2000), “numa civilização sem
escrita ou com uma utilização ainda restrita, o poeta tinha um papel
fundamental: narrar o passado, contar a história” (p.84).
As histórias contadas através de gerações transmitem os conhecimentos,
valores e sentimentos dos mais velhos para os mais novos, permitindo que as
novas gerações entrem em contato com aquilo que faz parte da história e da
cultura do seu grupo social (MACHADO, 2004).
Brandão et al.(2006), estudando as interlocuções entre crianças e adultos
idosos, destacam a importância das histórias para o desenvolvimento infantil.
Os autores enfatizam a relevância de programas que incentivem os idosos a
contar histórias para crianças e, dessa forma, promovam as narrativas entre
gerações.
A relação entre a memória humana e o processo de significação foi
bastante enfatizada por Vigostki (2007), quando o autor analisou a emergência
de funções mentais complexas, como a atenção voluntária e o pensamento
racional. Vigostki (2007), discorrendo sobre a memória e o ato de pensar, nos
lembra que “a verdadeira essência da memória humana está no fato de os
seres humanos serem capazes de lembrar ativamente com a ajuda de signos“
17
(p.50). descrevendo seus experimentos com crianças de diferentes idades e
adultos, relaciona os signos ao ato de lembrar. Nesse sentido, os mais velhos
têm um papel importante na significação do mundo para os mais jovens. São
os mais velhos que permitem a lembrança da história passada, que tornam
acessível aos jovens conhecer e significar a história da humanidade. Por isso
são importantes programas escolares, tais como os de Brandão et al.(2006),
que permitam o encontro das gerações no interior da escola, tornando
acessível aos jovens o conhecimento e a história dos mais velhos.
Conforme ressalta Chinen (1989) na introdução de seu livro “... E foram
felizes para sempre. Contos de Fadas para Adultos”, os contos “narram a
trajetória de vida do ser humano” (p. 9). Segundo o autor, esse é um tipo
específico de história que rompe com a realidade e, por meio da imaginação,
oferece uma visão profunda dos anseios da humanidade.
Podemos pensar em muitos outros tipos de histórias, como as histórias
mitológicas dos gregos, os contos de terror ou tragédia, as histórias literárias
de criação pessoal, os contos do folclore popular, enfim, uma variedade grande
de histórias que encantam e são transmitidas de uma geração a outra.
Para Ribeiro, Gonçalves e Zanella (2005) “o ato de ler pode ser um ato
transformador quando questiona, busca e inquieta a vida dos seres humanos, e
traz em si uma característica fundamental: a de formar sujeitos” (p.47).
1.1. A Literatura Infantil na Escola
A história da Literatura Infantil, que nasceu no século XIX, pode ser
conhecida através livro “Como e porque ler a Literatura Infantil Brasileira”, de
Zilberman (2005).
A autora nos conta que os primeiros livros escritos para crianças foram
adaptações da Literatura Européia, ou melhor, dos contos de fadas (Branca de
Neve, Cinderela, Chapeuzinho Vermelho...) que foram adaptados para que as
crianças pudessem ler, pois até então só adultos tinham acesso a livros.
Assim, o Brasil passou a traduzir estas adaptações para o português. Nas
palavras da autora:
18
No começo, a literatura infantil se alimenta de obras destinadas a outros fins: aos leitores adultos, gerando adaptações; aos ouvintes das narrativas transmitidas oralmente, que se convertem nos contos para crianças; ou ao público de outros países, determinando, nesse caso, traduções para a língua portuguesa. Há um outro segmento que vale a pena criar: as obras destinadas à escola (ZILBERMAN, 2005, p.18).
Ainda segundo a autora, Monteiro Lobato (1882-1948) foi um dos
primeiros a escrever livros para as crianças brasileiras e é um dos grandes
escritores da Literatura Infantil Brasileira. Quem não se lembra da boneca de
pano falante, Emilia? Ou da Menina do Nariz Arrebitado, a Narizinho?
Para Zilberman (2005), Lobato criou muitos personagens de
características muito próprias e nunca modificadas. Escreveu seu primeiro livro
para crianças em 1921 - “Reinações de Narizinho” - e o último escrito por ele
foi “Os Doze Trabalhos de Hércules”.
Zilberman (2005) esclarece que “Lobato não estava só”, pois outros
escritores também começaram a escrever livros para crianças, como Viriato
Correia, Graciliano Ramos, Erico Veríssimo, entre outros.
Foi na época das publicações de Monteiro Lobato que ocorreu a Ditadura
Militar (1964 a 1985), momento em que as pessoas eram “proibidas” de se
expressar. A cultura, o teatro e o cinema eram cerceados e muitos artistas
foram presos ou deportados por se oporem ao regime.
A literatura infantil era ainda pouco conhecida e por isso foi “esquecida”
pelos agentes da ditadura e utilizada pelos escritores para se expressarem
contra este governo, uma vez que não passavam pela censura.
Na década de 70, segundo Zilberman (2005), as obras literárias foram
liberadas para serem utilizadas em sala de aula como instrumento de ensino do
professor, assim eles não precisavam mais se utilizar somente do livro didático.
No entanto, a visão do papel da literatura era muito conservadora e havia uma
predominância de uma perspectiva moralista ou pedagógica nos textos
literários. (ZILBERMAN, 2005, p. 51).
Essa visão conservadora e o uso da literatura como um instrumento para
ensinar outros objetivos pedagógicos é objeto de preocupação de Zilberman
(2005), uma vez que desconsidera o valor da literatura por, sua própria
natureza.
19
Seguindo a mesma linha de argumentação, Cadermatori (2009) destaca
a importância do texto literário em si mesmo dizendo que
conceitos de indiscutível importância, postos em circulação com os melhores intuitos educativos, são endereçados aos textos de literatura infantil e colocados onde não cabem. A literatura não tem - e não pode ter – compromisso com a transmissão de antídotos a males sociais variados, seja sexismo, racismo, desigualdade social, poluição ambiental e outros. Tampouco lhe cabe a difusão de noções de saúde, higiene, religião, ecologia, história. Ou o texto é pragmático ou é literário. Ou é doutrinário ou é estético. Uma coisa e também outra não consegue ser. Livros em que predominam intenções ideológicas, e que tem por objetivo primordial transmitir informações de ordem prática, não privilegiam a fantasia nem a aventura individual do leitor com os sentidos múltiplos que um texto literário é capaz de suscitar. Se prevalecer o intuito de pregação, o texto fica impedido de, ao mesmo tempo, ampliar e matizar seus efeitos de sentido (p.48-49).
Existe, no entanto, uma relação entre a literatura e a escola, pois
de fato, tanto a obra de ficção como a instituição do ensino estão voltadas à formação do indivíduo ao qual se dirige. Embora se trate de produções oriundas de necessidades sociais que explicam e legitimam seu funcionamento, sua atuação sobre o recebedor é sempre ativa e dinâmica, de modo que este não permanece indiferente a seus efeitos. Que essa é a meta da educação é fartamente conhecido, enfatizando-se em tal caso a finalidade conformadora a padrões de existência e pensamento em vigor (ZILBERMARN, 2003, p. 25).
Isto significa que tanto a escola como a literatura têm uma finalidade
sintetizadora. Para Zilberman (2003), a literatura sintetiza uma realidade
próxima ao que o leitor vive no seu cotidiano, ajudando-o a se conhecer
melhor. Também a escola sintetiza, transformando uma realidade viva, nas
diferentes disciplinas ou áreas do conhecimento.
O “perigo” do uso da Literatura como algo pedagógico e educativo foi
muito bem ressaltado por Pennac (1993) em seu livro “Como um Romance”.
Nele o autor conta a história de um garoto que, quando criança, amava ler, lia
muitas histórias de literatura infantil. Este garoto foi crescendo e na
adolescência passa a não se interessar mais pela leitura, pois na escola
começa a ser obrigado a ler aquilo que não lhe interessa. A partir desta história
o autor vai mostrando como a escola suprime a experiência de prazer do ato de
leitura.
20
No entanto, é preciso destacar que, “enquanto instituições, a escola e a
literatura podem provar sua utilidade quando se tornarem o espaço para a
criança refletir sobre sua condição pessoal” (ZILBERMAN, 2003, p. 24).
1.2. A Educação Infantil e o Contar Histórias:
No Brasil, a Educação Infantil nem sempre teve o reconhecimento de
hoje. As diferentes maneiras de se pensar a infância exerceram forte influência
sobre a escolaridade das crianças de zero a seis anos. Algumas mudanças na
educação foram decorrentes de transformações sociais mais abrangentes,
como a urbanização da sociedade, a participação da mulher no mercado de
trabalho e as mudanças nas estruturas familiares. Todos esses fatores
influenciaram na forma de se pensar e de se educar a criança pequena.
Nas sociedades mais antigas não havia o conceito de infância, segundo
Richter (1977 apud ZILBERMAN, 2003), uma vez que as crianças trabalhavam
e viviam junto com os adultos, com os quais também participavam de todos os
eventos sociais, políticos e culturais, sem que houvesse distinção.
É só a partir do século XVI e XVII, com o nascimento do pensamento
pedagógico moderno, que novas perspectivas educacionais começam a
repercutir na educação de crianças pequenas (OLIVEIRA, 1995).
A preocupação com a Educação Infantil por instituições educacionais
que não a família, no Brasil, só teve início no final do século XIX, por volta de
1895 e início do século XX (PASCHOAL e MACHADO, 2009). Antes disso, a
educação da criança ficava restrita ao ambiente familiar.
A sociedade civil e os órgãos governamentais incluíram a Educação
Infantil de 0 a 6 anos na Constituição Federal somente em 1998. A partir desse
momento, a Educação Infantil passou a ser, de um ponto de vista legal,
considerada dever do Estado e direito da criança (BRASIL, 1998).
Tradicionalmente, as creches eram vistas em todo o mundo como um
espaço apenas para crianças de baixa renda, e tinham características
essencialmente assistencialistas, com a finalidade de cuidar da saúde da
criança e criar estratégias que combatessem a pobreza, ao mesmo tempo em
21
que resolviam os problemas sociais destas crianças (ONGARI e MOLINA,
2003).
Essa visão assistencial foi fortemente combatida pelos educadores que
defenderam a necessidade de que houvesse mais preocupação com a
educação da criança.
No Brasil, a ênfase no cuidado essencialmente físico e com as
condições de saúde da criança também permeou durante muitos anos a
Educação Infantil.
Os Referenciais Curriculares da Educação Infantil (1998) apontam a
necessidade de uma mudança de paradigma, ou seja, propõem uma ênfase
maior no caráter pedagógico.
Cerisara (2000), ao analisar a Educação Infantil e as implicações
pedagógicas do modelo histórico-cultural, conclui que existe a
necessidade de uma Educação Infantil que vincule a dimensão do cuidar à do educar, que dialogue com a família e com a escola, que não fragmente as atividades realizadas com as crianças e que reafirme a intencionalidade educativa destas atividades (p.78).
A autora destaca a importância de superar as polarizações entre o
assistir e o educar que, segundo ela, foram construídas historicamente e que
deveriam ser pensadas conjuntamente. Para ela, o caráter assistencial não
pode negar o trabalho educacional e vice-versa.
Oliveira e Silva (2008), discutindo o papel do percurso do professor da
Educação Infantil, lembra-nos que, quando a Lei de Diretrizes e Bases
(LDB/1996) definiu o professor como o profissional que deveria atuar na
Educação Infantil, atribuiu a ele “a função de cuidar e de educar crianças em
creches e pré-escolas” (p.128).
Paralelamente à discussão teórica da função da Educação Infantil,
vivemos no Brasil um movimento constante de mudanças das políticas
educacionais que acabam refletindo nas práticas desenvolvidas nas escolas.
As Diretrizes Curriculares de Educação Infantil do MEC (BRASIL, 2000)
e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei no 9.394/1996),
estabelecem de forma incisiva o vínculo entre o atendimento às crianças de
zero a seis anos e a educação. A partir de 2006, segundo a Lei n. 11.274/2006
(BRASILIA, 2007), com a ampliação do ensino fundamental obrigatório para
22
nove anos, a Educação Infantil passa a compreender a faixa etária de 0 a 5
anos.
A Educação Infantil é considerada a primeira etapa da educação básica,
sendo esta dividida em duas partes: as creches atendem as crianças de 0 a 3
anos, e as escolas de Educação Infantil atuam com as crianças de 3 a 5 anos.
Ambas têm como finalidade o desenvolvimento integral da criança até os cinco
anos de idade.
Segundo Kramer (2009), a situação atual da Educação Infantil no Brasil
enfrenta muitos desafios tanto para os profissionais como para as políticas
sociais:
Questões relativas à situação política e econômica e à pobreza extrema das nossas populações, questões de natureza urbana e social, sem falar nos problemas específicos do campo educacional que, cada vez mais, assumem proporções enormes e têm implicações alarmantes, exigindo respostas firmes e rápidas, nunca fáceis. Múltiplas são também as possibilidades de abordar o tema e suas diferentes facetas. Hoje vivemos um paradoxo de ter um conhecimento teórico avançado sobre a infância, ao passo que assistimos com horror à incapacidade de nossa geração de lidar com as populações infantis e juvenis (KRAMER, 2009, p. 270)
Segundo a autora, temos assistido ao longo desse século a um
crescimento sobre a compreensão da criança nos campos da Psicologia, da
Psicanálise e também nos estudos sobre a infância nas diversas áreas do
saberes. Com isso, aprendemos que as visões sobre a infância são de
natureza social e historicamente construídas, e que a inserção da criança na
escola e os papéis que os professores desempenham variam de acordo com
as formas de organização social.
Kramer acrescenta que outras áreas, como a Sociologia e a
Antropologia, também têm estudado a infância. Segundo ela:
este século assistiu à busca de uma psicologia baseada na história e na Sociologia: as idéias de Vygotsky e o debate com a teoria de Piaget mostram esse avanço e revolucionam os estudos da infância. Mas as crianças (no plural) e a Infância (esse ser tão singular) deveriam ocupar muito mais o tempo e o espaço de nossas preocupações, afinal, se existe uma história humana é porque existe uma infâ ncia (KRAMER, 2009, p.271, grifo meu).
Kramer (2009) também nos diz que:
As crianças são sujeitos sociais e históricos marcados pelas contradições da sociedade em que vivemos. A criança não é filhote do homem, ser em manutenção biológica; ela não se resume a ser alguém que não é, mas que se tornará (adulto no dia em que deixar de ser criança!). Contra essa percepção, que é infantilizadora do ser humano,
23
tenho defendido uma concepção que reconhece o que é especifico da infância – seu poder de imaginação, fantasia e criação -, mas entende as crianças como cidadãs, pessoas que produzem cultura e são nela produzidas, que possuem um olhar critico que vira pelo avesso a ordem das coisas, subvertendo essa ordem. Esse modo de ver as crianças pode ensinar não só a compreender as crianças, mas também a ver o mundo do ponto de vista da criança. Pode nos ajudar a aprender com elas (p. 271-272).
Em seu artigo sobre a educação infantil no contexto das políticas
educacionais no Brasil, Kramer (2006) destaca a importância de se considerar
a Educação Infantil e o Ensino Fundamental “como instâncias indissociáveis do
processo de democratização da educação brasileira, e destaca a relevância
desta articulação no que se refere às crianças e ao trabalho pedagógico nas
creches, pré-escolas e escolas” (p.797). Reafirma a necessidade da formação
de professores e a constante reflexão sobre as políticas públicas para a
viabilização de uma prática pedagógica qualificada.
Segundo Valdez e Costa (2010), nos séculos XVIII e XIX, as histórias
eram usadas para ensinar virtudes, valores morais, boas maneiras, boas lições,
ensinamentos cristãos. Alguns desses objetivos perduram até os dias de hoje,
embora com sentidos modificados, e outros objetivos foram introduzidos. Isso
ocorre porque os valores e costumes do grupo social mudam e as histórias
revelam a natureza dinâmica dessas relações sociais. O fato é que as histórias
ocupam um espaço significativo na educação infantil (GÓES, 1997;
ZILBERMAN, 2003; RIBEIRO, 2007).
Segundo Machado (2004), a história convida à imaginação, cria um
espaço de significação que propicia a aprendizagem, o acesso à linguagem do
imaginário, à imaginação simbólica, à cultura e à educação.
A autora nos diz que o “Era uma vez...”, o “faz de conta que eu era...” e o
“agora eu era o herói...” são frases que nos remetem às histórias e nos fazem
lembrar delas. Ressalta que a história só irá existir quando estiver sendo
contada ou sendo lida para as pessoas e destaca que, conforme a história vai
sendo contada, vai sendo atualizada de acordo com o contador. Isto imprime
uma característica dinâmica às histórias.
Para Machado (2004), “o ‘Era uma vez’ é uma singularidade de um
momento que está sendo único dentro da narração da história e um passado
24
mítico, que está fora do tempo, com um presente único para a pessoa que está
presenciando (ouvindo) a história” (p. 23).
Acredito que o momento de contar histórias e também o trabalho que se possa fazer com elas têm uma função, digamos, em si e ao mesmo tempo uma função ligada ao papel que o exercício da imaginação desempenha no processo de construção de conhecimento como um todo (...). O contar histórias e trabalhar com elas como uma atividade em si possibilita um contato com constelações de imagens que revela para quem escuta ou lê a infinita variedade de imagens internas que temos dentro de nós como configurações de experiência (MACHADO, 2004, p. 27).
Conforme apontado por Machado (2004),
uma história é uma idéia narrativa em desenvolvimento. Assim como um trem, uma locomotiva que puxa todos os outros vagões a ela ligados, também a história tem um núcleo inicial a partir do qual ela se desenvolve até o desfecho final. Uma necessidade, dificuldade ou busca; um rapto, tarefa ou desafio, são núcleos possíveis, vagões da frente que tratam de estabelecer a primeira parte da seqüência narrativa (p. 44).
A característica dinâmica e imaginativa das histórias pode ser observada
nas modificações que podemos constatar ao longo do tempo. Hoje, por
exemplo, temos contos de fadas às avessas, tais como “Deu a Louca na
Chapeuzinho” (EDWARD, 2007) e a “Verdadeira História dos Três Porquinhos”
(SCIESZKA, 2005), que têm suas origens em contos tradicionais transmitidos
de geração a geração. Esses contos diferem significativamente dos contos
tradicionais da “Chapeuzinho Vermelho” e dos “Três Porquinhos”, pois trazem
elementos novos, influências dos novos tempos, que são incorporados ao
enredo tradicional.
Machado (2004) nos explica, por meio de um conto, a forma como olha as
histórias, buscando conhecimento, aventura, mistério, amor, significação etc.
Ao mesmo tempo, sente que as histórias contadas não influenciam somente as
pessoas que as escutam, mas também o contador da história, que acaba se
deixando levar pelo mundo imaginário da mesma.
Ainda segundo Machado (2004), as histórias podem ser usadas como
ponto de partida para a aprendizagem de conteúdos escolares, mas de
maneira que não sejam reduzidas a meras estratégias escolares, pois é
fundamental que a criança aprenda a buscar a significação da história, do
conto que está sendo contado para ela e que, com isso, aprenda a gramática; e
25
não o contrário. Dessa forma, para a autora, o conhecimento passa a ser
conquistado, tornando-se maior do que os mecanismos de composição de uma
narrativa e/ou de uma gramática.
Esse aprendizado é significativo para nós quando ressoa, conversa com nossa história pessoal, quer dizer, é produto de uma ação conjunta de pensamento, sentimento, percepção, intuição e sensação. Tudo isso junto realiza uma forma, uma imagem interna ou um conjunto delas. Mas é preciso que possamos enxergar na escuridão de nossa mina, passear com familiaridade pela nossa coleção, saber que são imagens que se repetem e variam infinitamente (MACHADO, 2004, p. 31).
A professora que conta histórias tem um papel fundamental para o
desenvolvimento da criança. É a professora quem organiza as crianças para a
atividade, é ela quem escolhe a história que será contada, é na relação com ela
que as crianças podem construir seus sentidos e significados.
Para Zilberman (2003), o critério para seleção dos textos deve ser a
qualidade estética, relacionada com uma visão original da realidade. Um texto
inovador, na sua perspectiva, é aquele que apresenta o mundo no qual a
criança convive diariamente, mas que, ao mesmo tempo, desconhece. Reduzir
uma leitura à veiculação de normas de obediência e bom comportamento é
ignorar uma das contribuições inestimáveis da literatura: ocupar as lacunas do
texto com a própria experiência existencial.
A importância da literatura para o desenvolvimento infantil é destacada
quando tomamos como base a perspectiva histórico-cultural de
desenvolvimento humano. Nessa perspectiva, entende-se o desenvolvimento
como um processo de incorporação da experiência geral da humanidade,
mediada pela prática social, pela interação com o outro. Assim, a prática de
contar histórias pelo professor constitui parte desse processo de incorporação.
Segundo Valdez e Costa (2010),
ao oferecer uma linguagem capaz de seduzir, a literatura infantil pode ocupar um bom espaço na vida das crianças. Se levarmos em conta que nesse período se inicia o caminho para o mundo dos livros, podemos arriscar e dizer que uma criança que tem contato com livros tende a ser um adulto leitor (p. 163).
26
As autoras destacam, contudo, que não basta contar histórias na escola
sem um planejamento e organização anterior. É importante considerar o como
contar a história, uma vez que para promover o desenvolvimento é primordial
investir na relação da criança com o adulto.
Em suas palavras,
não basta somente ter boa vontade e gostar de literatura. É preciso ser leitor crítico e conhecer não somente as obras literárias, como também debater, ler, discutir e pesquisar a respeito de diferentes temas que envolvam a infância e suas necessidades (VALDEZ E COSTA, 2010, p. 163).
Segundo Góes (1997), estudos tais como os de Astington (1989) e
Lucariello (1989), indicam que “as experiências com narrativas, em vários
contextos, são instâncias de refinamento da cognição” (p.18). Segundo a
autora, nesses estudos voltados para a forma de narração ficcional, os autores
argumentam que “ao lidar com as ações de personagens e com as situações
de trama, a criança estaria construindo teoria sobre a mente, sobre situações
cotidianas regulares (canônicas) e sobre mundos possíveis” (GÓES, 1997,
p.18).
Ao contar uma história, o professor pode procurar incorporar os
significados e as ações elaboradas e acumuladas pelo grupo social na vida de
seus alunos. Os gestos, palavras, expressões usados pelo professor podem
contribuir para consolidar sentidos e abrir espaço para novas significações.
Assim, no desenvolvimento da criança, os sentidos e significados elaborados
vão se modificando de uma maneira ativa com a participação das crianças e do
professor.
Conforme apontado por Lazier (2010),
a fantasia oferece o suporte que auxiliará a criança na sua forma de entender, conviver, interagir e agir no mundo. Para uma história ser interessante, prender a atenção, conseguir entreter e despertar curiosidade da criança, não é necessário que seja nova para ela, mas que desperte emoções, que sugira soluções, que nem sempre serão aparentes, e que fale na linguagem que a criança se encontra. As crianças querem e precisam reviver a fantasia, pois esta propicia imaginar um mundo com outras possibilidades (p. 46).
Assim, é importante destacar o papel do professor como aquele que
intermedia as experiências vividas pelas crianças com aquilo que foi produzido
27
pela sociedade. Acompanhar as histórias pode ajudar a criança a elaborar suas
experiências e colocar-se no lugar do outro (LAZIER, 2010).
A autora destaca também que:
Contar história é mensagem de arte, beleza e emoção, capaz de projetar a criança para além do universo cotidiano, criando a vida que ainda poderá ser vivida. Por isto a expressão, improvisação, pausas, altura da voz, emoção, ritmo e olhar são elementos fundamentais ao se contar uma história, pois eles darão o tom, levarão o ouvinte a imaginar e dar sentido ao que se está ouvindo (p. 46).
É preciso esclarecer aqui, que quando falamos da importância da leitura
de textos literários em sala de aula, não estamos falando do uso das histórias
como, simplesmente, uma atividade para ocupar um espaço do cotidiano
escolar. Nem, tampouco, estamos falando do uso didático que está mais
preocupado com o ensino de características gramáticas e com a estrutura
formal do texto do que com os significados e sentidos nele contido.
Segundo Ramos, Panozzo e Zanolla, 2008,
a literatura apresenta um sentido para o mundo e para a existência e “pode ser entendida como uma tomada de consciência do mundo concreto que se caracteriza pelo sentido humano dado a esse mundo pelo autor” (Bordini; Aguiar, 1993, p. 14). O texto literário representa e apresenta a existência humana, com todas as suas dimensões: a alegria, o sofrimento, a angústia, o medo, a morte... A essência humana está presente nessas obras. Essa característica da literatura lhe confere uma importante função: tornar o mundo compreensível ao leitor, permitir-lhe vivenciar outros contextos e tempos (p. 4).
Para Paulo Freire (FREIRE e SILVA, 2009), ler significa “adentrar nos
textos, compreendendo-os na sua relação dialética com os seus contextos e o
nosso contexto” (p. 20).
Neste capítulo mostrei a preocupação dos autores com a valorização da
natureza do texto literário como uma possibilidade de compartilhar
conhecimentos entre gerações e, principalmente, como possibilidade de
expressão simbólica de sentimentos e vivências. Conforme destacado pelos
autores citados vemos que o uso da literatura na escola nem sempre privilegia
esta visão do texto literário o que mostra a necessidade de uma avaliação da
formação do professor que considere este aspecto.
28
CAPITULO 2 – EU E O OUTRO: NOSSA HISTÓRIA
O que é o homem? Para Hegel é o sujeito lógico. Para Pavlov é o soma, organismo. Para nós é a personalidade social: o conjunto de relações sociais, encarnado no indivíduo (VIGOTSKI, 2000, p.33).
As proposições de Vigotski1 (1993, 2007, 2009) e a perspectiva
histórico-cultural são fundamentais para a análise que me proponho neste
estudo. Suas considerações sobre o desenvolvimento humano, as relações
sociais, o papel do outro e a importância da análise de processos nos ajudam a
compreender as relações vividas por professores e alunos em processos de
ensino-aprendizagem.
Introduzo este capítulo com uma citação do próprio Vigotski, escrita em
apontamentos feitos pelo autor em 1929 e apresentada na versão portuguesa,
pela primeira vez, sob o título de Manuscrito de 1929, na Revista Educação e
Sociedade (2000). Nela, Vigotski expressa sua ideia da natureza social do
homem. O homem é constituído nas e pelas relações sociais e isso implica em
uma maneira específica de olhar para a formação pessoal de cada um.
Compreender a constituição do homem nessa perspectiva me parece
importante, uma vez que neste estudo vou focalizar professoras contando
histórias para seus alunos e é preciso considerar que estas professoras trazem
marcas de suas próprias e singulares histórias de vida.
Vigotski, na sua perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento
humano, destaca a existência do homem em uma condição histórica,
estabelecida a partir das relações materiais e pelo modo como produzem seus
meios de vida. Assim, assumimos neste estudo “os sujeitos como históricos,
datados, concretos, marcados por uma cultura como criadores de ideias e
consciência que, ao produzirem e reproduzirem a realidade social são ao
mesmo tempo produzidos e reproduzidos por ela” (FREITAS, 2002, p.22).
Nesta perspectiva, as relações sociais, são de extrema importância.
Segundo Pino (2000), Vigotski nos lembra que ao invés de nos perguntarmos
como a criança se comporta deveríamos “perguntar como o meio social age na
1 A grafia do nome do autor varia em diferentes traduções. Optei por uma só forma, porém preservando as indicações diferenciadas nas Referências Bibliográficas.
29
criança para criar nela as funções superiores e de origem e de natureza
sociais” (p. 52).
Ao descrever o aparecimento do gesto de apontar no bebê, Vigotski
(2007) nos dá indícios de como as ações da criança passam de um plano
intersubjetivo (relações sociais) para um plano intrasubjetivo (individuação).
Vigotski (2007) chama esse processo de internalização, ou seja, a
reconstrução interna de uma operação externa. Diz ele que, inicialmente, um
gesto não é nada mais do que uma tentativa sem sucesso da criança pegar
alguma coisa.
A criança tenta pegar um objeto colocado além de seu alcance; suas mãos, esticadas em direção àquele objeto, permanecem paradas no ar. Seus dedos fazem movimentos que lembram o pegar. Nesse estágio inicial, o apontar é representado pelo movimento da criança, movimento este que faz parecer que a criança esta apontando um objeto – nada mais que isso. Quando a mãe vem em ajuda da criança, e nota que seu movimento indica alguma coisa, a situação muda fundamentalmente. O apontar torna-se um gesto para os outros. A tentativa mal sucedida da criança engendra uma reação, não do objeto que ela procura, mas de uma outra pessoa (VIGOTSKI, 2007, p. 57).
Este exemplo dado por Vigotski (2007) demonstra, segundo ele, uma
série de transformações: a reconstrução de uma atividade externa
internamente; a transformação do interpessoal em intrapessoal e o resultado
de um processo de desenvolvimento.
A relação com o outro constitui a base de toda a teoria proposta por de
Vigotski . Segundo Góes (2000), é pelo conceito de “zona de desenvolvimento
proximal” que Vigotski discute os mecanismos pelos quais nessa relação com o
outro, as experiências de aprendizagem criam o desenvolvimento.
Vigotski (1977) afirma que: “o que a criança pode fazer hoje com o
auxílio dos adultos, podê-lo-á fazer amanhã por si só” (p.44). O que caracteriza
a zona de desenvolvimento proximal é justamente a distância entre o nível de
desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução
independente de problemas e o nível de desenvolvimento potencial através da
solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com
companheiros mais capazes.
Ao observar professoras contando histórias para seus alunos e as
interações entre eles, é preciso considerar o importante papel do outro no
processo de desenvolvimento e aprendizagem. As professoras e as crianças
30
trazem suas experiências e suas histórias e vão partilhando entre si gestos e
conhecimentos que poderão fazer a criança avançar no seu desenvolvimento.
Importante destacar que a natureza social do desenvolvimento humano
está intimamente relacionada com o conceito de cultura.
Para Vigotski (2000), de uma maneira mais geral, “todo cultural é social”
(p. 26). Segundo Pino (2000), isso significa que
o social é, ao mesmo tempo, condição e resultado do aparecimento da cultura. É condição porque sem essa sociabilidade natural a sociabilidade humana seria historicamente impossível e a emergência da cultura seria impensável. É porém resultado porque as formas humanas de sociabilidade são produções do homem, portanto obras culturais (p. 53).
A cultura, nesse sentido, é compreendida como a prática social que
ocorre nas relações entre os sujeitos, na sociedade em que vivem e, ao mesmo
tempo, no produto do trabalho social. Assim, a cultura é a totalidade das
produções humanas, quer dizer, tudo aquilo que é construído pelo homem
(técnicas, artes, ciência, tradições, instituições sociais e práticas sociais). Disso
decorre que cultura é “tudo que, em contraposição ao que é dado pela
natureza, é obra do homem” (PINO, 2000, p. 54).
As relações sociais e o “simbólico” são importantes na perspectiva de
Vigotski, pois “o símbolo é uma criação do homem, como instrumento, e, como
tal, faz parte da ordem da cultura e não da natureza, tendo assim uma
existência independente do organismo” (PINO, 2000, p.55).
Podemos considerar que as histórias infantis são produzidas pelos
homens e carregam valores e conhecimentos da cultura e da história do grupo
social. Através delas a criança pode entrar em contato com aquilo que seu
grupo social produziu ao longo de sua história. Isso quer dizer que o grupo
transmite valores, conceitos que vão ser “aprendidos” e elaborados pela
criança. Assim, elas vão significando o mundo.
As histórias também revelam o caráter dinâmico de mudanças nos
sentidos e no conhecimento do grupo social. Elas vão sendo modificadas de
acordo com a realidade vivida. Podemos ver isso, por exemplo, em histórias
como “A Verdadeira História dos Três Porquinhos” (SCIESZKA, 2005) –
versão contada pelo Lobo Mau, ou “Deu a Louca na Chapeuzinho Vermelho”
(EDWARDS, 2007) - inspirada no clássico “Chapeuzinho Vermelho” (Irmãos
Grimm,1989). Ambas trazem novos sentidos para as antigas histórias. A
31
professora quando conta essas versões está ajudando a criança a significar um
conhecimento de mundo dinâmico e real.
Olhar para as histórias contadas e compartilhadas pelos professores e
seus alunos sob a perspectiva histórico-cultural significa analisar os processos
de interação vivenciados por eles no momento da contação da história,
relacionando-os às experiências vividas por ambos.
Isto significa que “o desenvolvimento cultural passa, necessariamente,
através do ‘outro’ [e que...] o mediador entre o indivíduo e o ‘outro’ é a
significação que este atribui às ações naturais daquele” (PINO, 2000, p.55).
O contar histórias na escola se diferencia do contar histórias fora dela.
Uma das implicações das ideias de Vigotski para a educação formal é que esta
constitui uma via de acesso da criança ao conhecimento científico. E este
conhecimento faz parte do mundo cultural. Assim, segundo Pino (2000), “a
educação formal é algo necessário, não apenas desejável, para o
desenvolvimento cultural da criança, o que a transforma em um direito
fundamental” (p. 58).
É importante considerar que dependendo da ação pedagógica os
efeitos produzidos podem ou não corresponder aos conhecimentos
pretendidos, podem gerar êxitos ou fracassos (GÓES, 1997).
Segundo Góes, tanto nos êxitos como nos fracassos “é na dinâmica dos
processos interpessoais, nas trocas dialógicas com outras pessoas em torno
de objetos, nas instâncias de produção e compreensão da palavra, que o aluno
desenvolve o significado desta” (GÓES, 1997, p. 21).
Além de via de acesso a conceitos diversos, a escola é o lugar de novas
significações. Lugar que amplia o universo da criança e que extrapola o campo
da simples observação e percepção. E essa possibilidade é dada pela
linguagem.
Assim, podemos dizer que o contar histórias pode viabilizar a troca de
experiências e conhecimentos, além de permitir a construção de novos
sentidos e dar asas à imaginação.
Vigotski também aborda, em seus estudos, a imaginação e a criação na
infância. Suas considerações são bastante importantes para o estudo, aqui
desenvolvido, sobre o contar histórias na educação infantil.
Segundo Smolka (2009),
32
Vigotski enfoca e analisa a imaginação como uma formação especificamente humana, intrinsecamente relacionada à atividade criadora do homem, e fala do trabalho pedagógico orientado para a experiência estética (SMOLKA, 2009, p.7).
Em sua obra “Imaginação e Criação na Infância” (publicado em 1930
pela primeira vez, a partir da reunião de palestras feitas por Vigotski a pais e
professores), Vigotski chama a atenção para a importância da experiência para
a criança “criar bases suficientemente sólidas para a sua atividade de criação”
(VIGOTSKI, 2009, p.23). Discorrendo sobre a relação entre fantasia e
realidade, Vigotski desenvolve a ideia de que a fantasia não se opõe à
memória, mas apoia-se nela. Isso significa que as experiências reais vividas
pelas crianças é que vão levar à fantasia e à imaginação.
Segundo Vigotski (2009), a criação não se refere apenas às grandes
obras históricas,
mas por toda parte em que o homem imagina, combina, modifica e cria algo novo, mesmo que esse novo se pareça a um grãozinho, se comparado às criações dos gênios. Se levarmos em conta a presença da imaginação coletiva, que une todos esses grãozinhos não raro insignificantes da criação individual, veremos que grande parte de tudo que foi criado pela humanidade pertence exatamente ao trabalho criador anônimo e coletivo de inventores desconhecidos (p. 16).
A ênfase dada por Vigotski na dimensão coletiva e histórica da criação
humana é um ponto fundamental a ser considerado quando olhamos para o
caráter coletivo do contar histórias em sala de aula.
Outro aspecto importante que merece destaque é o fato de que só posso
criar, imaginar, a partir daquilo que conheço, com que tive contato. Nas
palavras de Vigotski, “é preciso uma grande reserva de experiência anterior
para que desses elementos seja possível construir imagens” (VIGOTSKI, 2009,
p.24).
Quando o professor conta histórias para as crianças, ele lhes transmite
conhecimentos e valores que vão ser experimentados por elas por meio das
experiências anteriores que elas trazem; quer dizer, é por meio daquilo que
elas já sabem que as crianças criarão suas fantasias e imaginação. Quando o
professor conta a história, ele traz as maneiras e formas que ele tem de ver
aquela história, suas experiências, sua imaginação e fantasia, e isso exercerá
um papel importante no desenvolvimento das crianças.
33
É com base nesse pressuposto que considero importante conhecer
como o professor da educação infantil organiza o contar histórias para as
crianças e compreender quais aspectos podem ser aprofundados na formação
de professores para que as histórias possam se constituir em vias de acesso
ao conhecimento e à imaginação.
Segundo Vigotski (2009), a imaginação
transforma-se em meio de ampliação da experiência de um indivíduo porque, tendo por base a narração ou a descrição de outrem, ele pode imaginar o que não viu, o que não vivenciou diretamente em sua experiência pessoal (p. 25).
Sendo assim, podemos pensar que ao contar histórias o professor pode
possibilitar aos seus alunos, através dos textos partilhados, o conhecimento de
sua experiência, do autor ou da experiência do grupo social, permitindo às
crianças a base necessária para sua criação ou imaginação.
Conforme explicitado por Vigotski (2009), a imaginação é constituída,
orientada e ampliada pela experiência de outros.
Se ninguém nunca tivesse visto nem descrito o deserto africano e a Revolução Francesa, então uma representação correta desses fenômenos seria completamente impossível para nós. É devido ao fato de que a minha imaginação, nesses casos, não funciona livremente, mas é orientada pela experiência de outrem, atuando como se fosse por ele guiada, que se alcança tal resultado, ou seja, o produto da imaginação coincide com a realidade (p.24-25).
Assim, também os alunos, através dos professores, podem conhecer e
imaginar coisas que nunca viram ou vivenciaram. Suas imaginações e criações
se orientam e se constituem pela experiência de outrem.
Outro conceito importante para o estudo aqui desenvolvido é o de
mediação. Segundo Smolka e Nogueira (2002):
A mediação concebida como princípio teórico possibilita (...) a interpretação das ações humanas como social e semioticamente mediadas, mesmo quando essas ações não implicam a presença visível e a participação imediata de outro (p.83).
Para essas autoras, a noção de mediação, na perspectiva histórico-
cultural é distinta de outros enfoques teóricos, porque está articulada à noção
de significação.
É a emergência da significação, enquanto produção de signos e sentidos, que viabiliza um novo princípio, ao mesmo tempo regulador da conduta e gerador de novas formas de atividade. A significação é uma chave para pensar a conversão das relações sociais em funções mentais (SMOLKA e NOGUEIRA, 2002, p. 83).
34
Isto significa que os sentidos vão sendo produzidos dialeticamente nas
relações sociais, por meio da linguagem, num processo dialógico: de uma
pessoa para outra, de uma sociedade para outra, da professora para seus
alunos, dos alunos para a professora. O conhecimento é mediado pela
experiência do outro.
O outro e o meio agem na criança para que ela desenvolva as funções
superiores, o que significa que a escola tem papel relevante nesse
desenvolvimento.
Fica evidente a relevância do conceito de mediação para a discussão da
prática de contar histórias no espaço escolar. Nesse sentido, destaco as
considerações feitas por Tunes et al. (2005) que, fundamentados na
perspectiva histórico-cultural, problematizam o ato de ensinar. Os autores
apontam a importância da
identificação entre ação docente e mediação, de modo a caracterizar aquilo a que corresponde, segundo nossa ótica, o trabalho desenvolvido pelo professor, tendo como foco o conceito de zona proximal de desenvolvimento (p.689).
Esses autores concluem que:
os conteúdos escolares somente estarão a serviço do desenvolvimento dos alunos se forem operados na conjuntura dos seus processos de significação, tendo em conta que a função primordial da educação é a de nutrir possibilidades relacionais (TUNES et al. 2005, p. 689).
Quando conta histórias, o professor interage com seus alunos, criando
diferentes possibilidades de construção de sentidos. O professor planeja ações
para seus alunos e compartilha com eles seus conhecimentos e experiências.
É nesse processo dialógico que ocorre o ensino e a aprendizagem.
Voltando ao texto de Tunes et al. (2005), podemos dizer que é nessa
relação que
ganham relevância as ações sociais que permitem aos indivíduos compartilharem a complexa rede de significados socialmente produzidos. Portanto, é na situação interpsicológica que brota o significado da relação pedagógica. Estão aí circunscritas, a um espaço relacional, as ações do professor e do aluno (p. 695).
A noção de mediação traz implícita a noção de dialogia. Segundo
Smolka e Nogueira (2002), enquanto
35
Vigotski focaliza o aspecto constitutivo da mediação semiótica no funcionamento psicológico, Bakhtin enfatiza o principio dialógico, destacando o caráter ideológico do signo que emerge nas interações e interlocuções histórica e culturalmente situada (p. 84).
Bakhtin concebe o diálogo como produto das relações entre as pessoas
e não apenas como uma simples fala de um determinado sujeito, mas, sim,
como um processo de trocas entre as pessoas. Os diálogos são construídos
por meio das conversas entre os sujeitos, daquilo que está sendo dito por um,
mas como parte de uma cadeia de enunciados anteriores e posteriores.
Segundo Bakhtin (1995),
toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor (p.113).
Essa afirmação tem um significado fundamental para o estudo aqui
desenvolvido, uma vez que ao contar uma história o professor participa da
cadeia interativa, trazendo elementos que o constituíram, mas provocando
reações ativas nos alunos que também trazem suas experiências e
compreensões. Juntos, professor e alunos vão, assim, participar ativamente
desse movimento, construindo novos significados.
As crianças, ao participarem da atividade de contar histórias, vão
construindo significados. As palavras vão ganhando sentidos e passam a fazer
parte da realidade interior da criança.
Nas histórias contadas, temos as vozes do grupo social maior, do qual
fazemos parte. Os valores, as tradições, os costumes, aparecem na voz do
professor e são compartilhados pelo grupo em sala de aula. Por sua vez, as
trocas entre o grupo refletem outras vozes que são das famílias, das
experiências de cada aluno e do professor, e que vão compor os enunciados
de todos e de cada um.
Para compreender os processos de mediação e internalização
envolvidos na atividade de contar histórias, pretendo considerar as
enunciações que se apresentam nas interações professor – aluno, aluno –
aluno e que, como nos mostra Bakhtin, envolvem um processo complexo de
entrelaçamento de ideias, valores, quereres.
36
Além disso, considero importante observar os significados que vão
sendo construídos no contexto da atividade de contar histórias e que terão um
papel fundamental na constituição dos alunos da educação infantil. A esse
respeito, Bakhtin nos lembra que inicialmente é do outro que me são dados os
sentidos e os significados que farão parte de mim mesmo.
Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em minha consciência, vem-me do mundo exterior, da boca dos outros (da mãe), etc. e me é dado com a entonação, com o tom emotivo dos valores deles. Tomo consciência de mim, originalmente, através dos outros: deles recebo a palavra, a forma e o tom que servirão à formação original da representação que terei de mim mesmo (BAKHTIN, 2003, p. 373).
Os alunos da educação infantil vão se constituir a partir dos significados
e sentidos produzidos nas interações desenvolvidas em sala de aula. O
professor ocupa um lugar diferente dos alunos nas trocas dialógicas, o que lhe
confere um papel importante como representante do grupo social.
Vigotski (1993) afirma que o desenvolvimento de conceitos e
significados das palavras pressupõe o desenvolvimento de muitas funções
intelectuais, tais como: a atenção deliberada, a memória lógica, o
desenvolvimento da abstração e a capacidade para comparar e diferenciar.
Segundo ele, esses processos complexos não podem ser dominados pela
criança apenas através da aprendizagem inicial.
Para Vigotski, o aprendizado escolar tem um papel extremamente
relevante na formação de conceitos pela criança. Todavia, considera
importante destacar o cuidado que o professor deve tomar ao ensinar conceitos
na escola já que a prática mostra que o ensino direto de conceitos é
impossível. Em suas palavras:
Um professor que tenta fazer isso geralmente não obtém qualquer resultado, exceto o verbalismo vazio, uma repetição de palavras pela criança, semelhante à de um papagaio, que simula um conhecimento dos conceitos correspondentes, mas que na realidade oculta um vácuo (VIGOTSKI, 1993, p. 72).
Vigotski (1993) conta como Tolstoi demonstrou a impossibilidade de um
conceito simplesmente ser transmitido pelo professor ao aluno:
Ele [Tolstoi] narra suas tentativas de ensinar a linguagem literária a crianças camponesas, “traduzindo” primeiro seu próprio vocabulário para a linguagem dos contos folclóricos e, depois, traduzindo a linguagem dos contos para o russo literário. Descobriu que não poderia ensinar às crianças a linguagem literária por meio de explicações artificiais, por
37
memorização compulsiva e por repetição, do mesmo modo que se ensina uma língua estrangeira. Tolstoi escreve: Temos que admitir que tentamos várias vezes... fazer isso, e que sempre nos deparamos com uma enorme aversão por parte das crianças, o que mostra que estávamos no caminho errado. Esses experimentos me deixaram com a certeza de que é impossível explicar o significado de uma palavra... Quando se explica qualquer palavra, a palavra “impressão”, por exemplo, coloca-se em seu lugar outra palavra igualmente incompreensível, ou toda uma série de palavras, sendo a conexão entre elas tão ininteligível quanto à própria palavra (p. 72)
Segundo o relato de Vigotski (1993), Tolstoi diz que o que a criança
necessita é de uma oportunidade para adquirir novos conceitos e palavras a
partir do contexto linguístico geral.
Quando ouve ou lê uma palavra desconhecida numa frase, de resto compreensível, e lê novamente em outra frase, começa a ter uma idéia vaga do novo conceito: mais cedo ou mais tarde ela... sentirá a necessidade de usar essa palavra – e uma vez que a tenha usado, a palavra e o conceito lhe pertencem... Mas transmitir deliberadamente novos conceitos ao aluno... é, estou convencido, tão impossível e inútil quanto ensinar uma criança a andar apenas por meio das leis do equilíbrio (TOLSTOI, 1903, p. 143, apud VIGOTSKI, p. 72, 1993).
As contribuições de Vigotski no estudo aqui desenvolvido nos ajudam a
compreender tanto o processo de desenvolvimento e aprendizagem vividos
pelos alunos, como as complexas relações históricas e culturais que envolvem
o ser professor.
A seguir, apresento os alunos e as professoras que participaram deste
estudo e que foram acompanhados durante a prática de contação de histórias -
uma situação singular vivida em sala de aula, mas que revela uma realidade de
âmbito muito maior.
38
CAPÍTULO 3: A ESCOLA, SUELI, PATRÍCIA E AS CRIANÇAS
Três irmãos (narra uma fabula oriental, difundida entre os quirquizes, tártaros, hebreus, turcos...) encontram um homem que perdeu um camelo – ou, em outras variantes, um cavalo. Sem hesitar, descrevem-no para ele: é branco, cego de um olho, tem dois odres nas costas, um cheio de vinho, o outro cheio de óleo. Portanto, viram-no? Não, não o viram. Então são acusados de roubo e submetidos a julgamento. É, para os irmãos, o triunfo: num instante demonstram como, através de indícios mínimos, puderam reconstruir o aspecto de um animal que nunca viram. Os três irmãos são evidentemente depositários de um saber de tipo venatório (mesmo que não sejam descritos como caçadores). O que caracteriza esse saber é a capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamente... (GINZBURG, 1989, p. 151 – 152).
O trabalho de campo desenvolvido neste estudo levou em consideração
que os alunos da educação infantil vão se constituindo a partir dos significados
e sentidos produzidos nas interações desenvolvidas em sala de aula, que a
literatura infantil pode ter um papel importante para a aprendizagem e o
desenvolvimento e que o professor ocupa uma posição importante como
mediador da cultura.
A pesquisa buscou responder a seguinte questão: Quais os
encaminhamentos feitos pelas professoras nos moment os de contar
histórias para as crianças na sala de aula?
Respondendo essa questão será possível discutir quais contribuições os
dados revelam para se pensar a formação do professor no que refere à
contação de histórias.
O estudo foi realizado em uma Escola Municipal de Educação Infantil –
EMEI de uma cidade do interior do Estado de São Paulo, que funciona em dois
períodos. No período da manhã ocorrem as “atividades pedagógicas”, isto é,
atividades dirigidas pela professora com objetivos de aprendizagem: as
crianças chegam à escola e tomam o café da manhã; em seguida, vão para a
sala de aula realizar as “atividades” propostas pela professora; no meio da
manhã, comem uma fruta e realizam mais algumas “atividades”. O horário de
almoço é às 11hs e, em seguida, algumas crianças vão embora. Já no período
39
da tarde, as crianças, filhas de mães que trabalham fora, ficam com as
monitoras. Após o almoço, elas têm o horário do sono; em seguida, realizam
brincadeiras e depois lancham. Dezessete horas é o horário de saída das
crianças.
A escola é composta por 11 salas de educação infantil, com crianças de
4 meses a 5 anos de idade. As salas são amplas. Nas paredes encontram-se
letras, números, desenhos, rotina do dia e da semana, nomes das crianças,
informações sobre o tempo, nome dos ajudantes etc. As salas têm entre 07 e
20 alunos, em todas há uma monitora que acompanha as atividades.
Nas salas do Pré I, II e III (de 3 a 5 anos) há a professora responsável
que acompanha as crianças durante todo o período da manhã. Algumas aulas
são dadas por outros professores: de educação física, de artes e de música.
Essas aulas têm entre 45 e 50 minutos. Em cada sala tem uma monitora que
auxilia a professora na rotina e com tarefas mais burocráticas: pegar
cadernetas, anotar recados, acertar os materiais, levá-los para xerocar, auxiliar
no lanche, nos passeios, na higiene. A rotina e o tipo de atividades variam
conforme a idade das crianças.
Quem me recebeu pela primeira vez na escola foi a diretora Julia2, no
final do ano de 2009. Em conjunto, escolhemos as salas do Pré III A e B para o
desenvolvimento do estudo, pois nessas salas já era realizada regularmente a
atividade de contar histórias. Conversei, então, com as professoras do Pré III A
e B (crianças de 4 a 5 anos), expliquei-lhes meu projeto de mestrado e lhes
perguntei se poderia desenvolvê-lo em suas salas. Comprometi-me em
providenciar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, para que
pudéssemos começar as observações das práticas de contar histórias.
No início de 2010, levei para a escola os Termos de Consentimento
Livre e Esclarecidos: para a diretora, para as professoras e monitoras e para 40
pais e/ou responsáveis pelas crianças das classes de Pré III. Após o
consentimento de todos os envolvidos na pesquisa, combinei com as
professoras do Pré III os dias e horários das observações e um dia para
conversarmos sobre suas trajetórias de formação e experiências com o contar
histórias.
2 O nome dos participantes é fictício para preservar suas identidades.
40
Comecei conversando com as professoras para conhecer suas histórias
de vida e suas experiências com histórias infantis e para saber o modo como
organizavam o contar histórias na escola.
A professora do Pré III A, Patrícia, tem 27 anos. Ela relatou que fez
Magistério em 1999, formou-se em Pedagogia em 2008 e, em 2009, fez um
curso de pós-graduação Lato Sensu. Revelou que atua na escola há 6 anos e
que nasceu em uma cidade do interior do estado de São Paulo. Também
mencionou que não se lembrava muito de ouvir histórias durante sua infância,
apenas que, de vez em quando, sua mãe lhe contava alguma antes de ela
dormir. Patrícia relatou gostar de ler aventuras, suspenses e outros tipos de
livros.
A professora do Pré III B, Sueli, tem 38 anos. Relatou que morava no
interior do Paraná com os pais, que eram agricultores e analfabetos, antes de
vir morar no interior do estado de São Paulo. Começou a frequentar a escola
com 7 anos e até então não tinha tido contato com livros de histórias. Não se
lembrou de ouvir histórias de livros quando criança, só “causos”, contados
algumas vezes por uma avó. Disse que, atualmente, lê a Revista Nova Escola
e jornais. Sueli contou ainda que se formou em Pedagogia e que começou a
trabalhar na escola como auxiliar e depois prestou concurso e passou a dar
aulas. Ela trabalha na escola há 8 anos e dá aulas há 6.
Depois de conhecer um pouco das experiências de vida das
professoras, dei início ao período de observação das turmas. Cada uma das
salas tinha 20 alunos na ocasião das observações.
Inicialmente, realizei duas observações preliminares, sem filmagem, das
professoras contando histórias – uma em cada classe – que foram registradas
somente em diário de campo, uma vez que ainda não havia recebido retorno
do documento de autorização assinado por todos os pais e/ou responsáveis.
Posteriormente, realizei uma observação, ainda preliminar, na sala do Pré III B,
filmada com uma filmadora Sony DCR-SX40, a fim de testar como faria as
filmagens: o posicionamento da câmera em sala de aula e o que filmar
(crianças e professora), de modo que a filmagem ficasse clara e favorecesse
as transcrições.
Ambas as professoras contavam histórias semanalmente e esta já era
uma prática desenvolvida por elas antes do início desta pesquisa.
41
As filmagens tomadas como material de análise e posteriormente
transcritas, compreendem 10 observações (5 filmagens em cada uma das
salas) ocorridas após a entrega dos termos de consentimento. Paralelamente
as filmagens foram feitos registros em diário de campo de todas as sessões de
observação. Em minhas anotações registrava os nomes das histórias, a origem
do livro, a organização do espaço antes de iniciar a filmagem, as conversas
que tinha com as professoras.
A tabela I apresenta as datas e as atividades de campo realizadas:
Tabela I – Observações e Filmagens realizadas nas salas de aula do Pré III A
e B, com as professoras Patrícia e Sueli, respectivamente.
Professora Data Identificação do Material
Descrição e Comentários
Patrícia1
24.05.2010
Gravação – 10 min. 58 s.
História Contada: WOOD, Audrey e Don. A Casa Sonolenta . São Paulo: Ática, 2009. (Coleção Abracadabra)
Sueli1
24.05.2010
Gravação – 9 min.19 s.
História Contada: ALMEIDA, Fernanda Lopes. A Margarida Friorenta . São Paulo: Ática, 2009. (Coleção Passa Anel)
Patrícia2 31.05.2010 Gravação – 11 min. 22 s.
História Contada: NEVES, André. Brinquedos. São Paulo: Mundo Mirim, 2009.
Sueli2
31.05.2010
Gravação – 13 min. 33 s.
História Contada: MAZZETTI, Maria. A baleia que fala feito gente grande . Belo Horizonte: Dimensão, 2009.
Patrícia3
07.06.2010
Sem filmagem
História Contada: AMORIN, Patrícia (adaptação). Branca de Neve. Edições Chocolate. Editora Sabida. Blumenau – SC, s/d.
Sueli3
07.06.2010
Gravação – 6 min. 59 s.
História Contada: AMORIN, Patrícia (adaptação). Branca de Neve. Edições Chocolate. Editora Sabida. Blumenau – SC, s/d.
Patrícia4
14.06.2010
Gravação – 8 min. 32 s.
História Contada: AMORIN, Patrícia (adaptação). Patinho Feio. Edições Chocolate. Editora Sabida. Blumenau – SC, s/d.
Sueli4
14.06.2010
Gravação – 7 min. 50 s.
História Contada: GUEDES, Avelino. O Sanduíche da Maricota . São Paulo: Uno Educação, 2009. (Coleção Girassol)
Patrícia5
21.06.2010
Gravação – 4 min. 30 s.
História Contada: Chapeuzinho Vermelho. Histórias Clássicas. Jaraguá do Sul – SC: Avenida, s/d.
Sueli5 21.06.2010 Gravação – 5 min. 1 s.
História Contada: PAIVA, Guiomar. Dona Vassoura . Belo Horizonte: Lê, 2009.
Patrícia6
28.06.2010
Gravação – 5 min. 55 s.
História Contada: ZIRALDO. Tem Bicho No Circo. São Paulo: Melhoramentos, 2009. (Coleção Bichim)
42
Vygotski (1993, 2007) ao partir da premissa básica de que as funções
mentais superiores são constituídas no social, em um processo interativo
possibilitado pela linguagem e que antecede a apropriação pessoal, também vê
a pesquisa como uma relação entre sujeitos, relação essa que se torna
promotora de desenvolvimento mediado por um outro.
Como esta é uma pesquisa fundamentada na perspectiva histórico-
cultural, a questão formulada se orienta para a compreensão dos fenômenos
em toda a sua complexidade e em seu acontecer histórico. Isto é, não se criou
artificialmente uma situação para ser pesquisada, mas se foi ao encontro da
situação no seu acontecer, no seu processo de desenvolvimento, dando
atenção às minúcias do curso de transformação das ações dos sujeitos.
Assim, inicialmente procurei me manter na posição de observadora, sem
solicitar nenhuma conduta especial por parte das professoras. À medida que as
observações foram sendo realizadas e a partir de perguntas das professoras,
fiz alguns comentários. No entanto, procurei não interferir em como realizavam
a contação de histórias.
Segundo Freitas “não se cria artificialmente uma situação para ser
pesquisada, mas vai-se ao encontro da situação no seu acontecer, no seu
processo de desenvolvimento” (FREITAS, 2003, p. 27).
Embora não tenha ocorrido uma interferência direta minha na situação
observada, considero que a forma como olho para a pesquisa não pode ser
deixada de lado, pois olho do lugar social e histórico em que me situo e das
relações estabelecidas com os sujeitos pesquisados. É fato que a minha
posição como pesquisadora, que desenvolvia um estudo sobre o contar
histórias, foi uma condição que de certa maneira interferiu na conduta das
professoras.
Há, portanto, uma participação ativa tanto de mim como pesquisadora
quanto das professoras que foram pesquisadas – “disso resulta que
pesquisador e pesquisado têm oportunidade para refletir, aprender e
ressignificar-se no processo de pesquisa” (FREITAS, 2003, p. 28).
Considerar a pessoa pesquisada como sujeito implica compreendê-la como possuidora de uma voz reveladora da capacidade de construir um conhecimento sobre sua realidade que a torna co-participante do processo de pesquisa (FREITAS, 2003, p.28).
43
Estas considerações são importantes para a pesquisa aqui
desenvolvida, pois foi a partir das observações de uma situação social concreta
e das histórias de vida das professoras que a pesquisa foi construída. A
inserção do pesquisador no campo de investigação significou a imersão em
outra realidade “para dela fazer parte, levando para esta situação tudo aquilo
que o constitui como um ser concreto em diálogo com o mundo em que vive”
(FREITAS, 2003, p. 37).
Tomei como objetivo da pesquisa a análise de uma prática escolar
específica, mas que está relacionada a um contexto bem maior. Assim,
procurei relacionar a prática de contar histórias com a formação do professor e
com o contexto geral da educação.
A forma de abordagem escolhida para a análise dos dados foi baseada
no paradigma indiciário, apontado por Ginsburg (1989) como rico na
compreensão de processos singulares do funcionamento humano. Este autor
aponta a importância dos pormenores considerados negligenciáveis no estudo
dos fenômenos, apoiado nas formas de conhecimento do perito de arte, do
detetive e do psicanalista (Giovani Morelli, Conan Doyle,Sherlock Holmes e
Sigmund Freud). Carlo Ginsburg procura mostrar como uma intuição que vem
dos sentidos e supera o sensorial quando incorporada à ciência, pode atender
a demandas de rigor, mas um rigor que é necessariamente “flexível” (saber
conjetural). As formas de saber assumidas implicam uma atitude orientada
para casos individuais, que devem ser reconhecidos, compreendidos por meio
de sinais, signos, pistas, indícios ou sintomas. Apesar de privilegiar o singular,
nesta abordagem, não se abandona a ideia de totalidade. A realidade é
complexa e opaca, mas “existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que
permitem decifrá-la” (GINSBURG, 1989, p.177), que permitem buscar
interconexões e efetuar tentativas de compreensão da totalidade.
Resumidamente, pode-se dizer que a abordagem metodológica que
orienta este estudo é histórica, dialética e interpretativa.
Segundo Góes (2000), investigações que destacam contextos
educativos vêm recorrendo a uma abordagem metodológica chamada de
microgenética. Essa forma de análise é associada ao uso de videogravação,
envolvendo filmagem e transcrição. Pode ser “o caminho exclusivo de uma
44
investigação ou articular-se a outros procedimentos para compor, por exemplo,
um estudo de caso ou uma pesquisa participante” (p. 10).
Nas palavras de Góes (2000), a análise microgenética define-se como:
uma forma de construção de dados que requer a atenção a detalhes e o recorte de episódios interativos, sendo o exame orientado para o funcionamento dos sujeitos focais, as relações intersubjetivas e as condições sociais da situação, resultando num relato minucioso dos acontecimento (p. 9).
Nesse sentido, apesar de se privilegiar o singular dentro do estudo, a
ideia de totalidade não fica abandonada, pois o olhar se dirige para unidades
complexas, que se destacam (os sinais e os indícios) e vão permitir se decifrar
o singular.
A observação de duas professoras e a análise de suas práticas pode
parecer pouco para chegarmos a conclusões mais generalizantes sobre a
prática de contação de histórias na educação infantil. No entanto, a análise
desses casos únicos pode revelar pistas importantes sobre a formação das
professoras e sobre os processos de ensino-aprendizagem.
Segundo Góes (2000), Vigotski propõe a busca de uma análise por
unidades, definindo a unidade como “aquela instância de recorte que conserva
as propriedades do todo que se pretende investigar” (p. 14). Para Vigotski, “a
unidade é o componente vivo do todo” (GÓES, 2000, p. 14).
Zanella et al (2007) também refere-se à importância da análise por
unidade ao invés de análise por elementos. Segundo a autora, “Vygotski se
contrapõe à investigação científica pautada em elementos por fragmentarem o
objeto do estudo sem atingir a totalidade do fenômeno, alem do caráter não
dialético desse tipo de análise” (ZANELLA et al, 2007, p. 30).
Nas palavras de Vigotski:
Essas unidades, diferentemente dos elementos, não perdem as propriedades inerentes ao todo que devem ser objeto de explicação, senão que encerram em sua forma mais simples e primária essas propriedades do todo que tem motivado a análise (VIGOTSKI, 1991, p. 288 apud ZANELLA et al, 2007, p.30).
A partir das transcrições e dos registros em diário de campo, procurei
selecionar episódios para atender duas unidades temáticas construídas ao
longo da leitura do material:
4.1 Relevância do texto literário na perspectiva das professoras:
a) Regras Sociais e Boas Maneiras e b) Significado de Palavras.
45
4.2 Interações a partir do Texto Literário:
a) Diálogo através de Perguntas e Respostas e b) Diálogo unidirecional
ou Monólogo.
A primeira unidade refere-se aos episódios em que as professoras
revelaram alguns dos objetivos e importâncias que dão ao texto literário e à
prática de contar histórias. A segunda unidade apresenta episódios que
indicam como se dá a interação professor aluno durante a contação de
histórias.
46
CAPÍTULO 4 - A CASA, A MARGARIDA, OS BRINQUEDOS E
OUTRAS HISTÓRIAS
Eu era menino, vivia entre os livros do escritório do meu pai mas já desconfiava enormemente dos livros chamados cívicos. Ou seja: dos livros que, nas entrelinhas de suas histórias, queriam me ensinar a obedecer, a ser bem comportado, a respeitar os mais velhos, a temer a autoridade, a ser bem educado, essas coisas. Eu gostava era das historinhas que me encantavam e não me cobravam nada. Acho que foi aí que descobri que ia ser humorista: eu desconfiava de todas as verdades que queriam me impor (ZIRALDO, 1985, p. 31).
Conforme já apresentado no capítulo anterior, foram filmadas 10 (dez)
situações da prática de contar histórias, sendo 5 (cinco) da professora Patrícia,
do Pré III A e 5 (cinco) da professora Sueli, do Pré III B. Considerando a
questão que orienta este estudo, busco responder: Quais os
encaminhamentos feitos pelas professoras nos moment os de contar
histórias para as crianças na sala de aula?
Inicialmente fui a campo procurando olhar para como as professoras
interagiam com os alunos, criando diferentes possibilidades de construção de
sentidos e como intervinham para compartilhar com eles seus conhecimentos e
experiências. O referencial teórico adotado nesse estudo e discutido nos
capítulos 1 e 2 acerca das contribuições da Literatura Infantil e da interação
social para o desenvolvimento e aprendizagem das crianças sustentam essa
expectativa.
Durante as observações e, posteriormente, analisando as minhas
transcrições, constatei que as professoras eram movidas por outros objetivos
que não aqueles que eu considerei a priori e que determinariam a importância
do contar histórias na Educação Infantil.
Reconhecido isso, passei a organizar os dados de acordo com indícios
que me encaminharam às análises a partir de outras expectativas: a relevância
do texto literário na perspectiva das professoras e as interações produzidas ao
longo da contação das histórias.
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Para discutir as duas unidades, selecionei episódios das transcrições
que evidenciam aspectos relevantes para responder a questão da pesquisa e
os eixos propostos. Cabe ressaltar que procurei dados que conservassem as
propriedades do todo a ser investigado, conforme a abordagem microgenética
(GÓES, 2000).
4.1. Relevância do texto literário na perspectiva d as professoras:
Nesta unidade reúno episódios que mostram indícios de que as
professoras tinham como preocupação central transmitir às crianças valores
morais, tais como regras sociais e boas maneiras, e explicação do significado
de palavras usando a narrativa de forma a atender uma demanda didática de
ensino, acrescida a uma necessidade de cumprir uma rotina e ensinar algo
avaliado como pedagógico para as crianças.
Divido esta unidade em duas partes. Na primeira, apresento os
episódios relacionados à preocupação das professoras com as regras sociais e
de bom comportamento. Na segunda, apresento os episódios em que as
professoras valem-se do texto literário para explicar os significados das
palavras.
a) Regras Sociais e Boas Maneiras: Nos dois episódios abaixo a professora
Patrícia revela sua preocupação em ensinar valores e modos de
comportamentos.
Episódio 1: “Preguiça tem que ficar em casa”
Patrícia lê a história “A Casa Sonolenta” (WOOD, 2009), uma tradução
em que o autor faz uma relação do conceito “sonolenta” com o inverno
europeu. As ilustrações evidenciam esse aspecto e, por isso, a casa é azulada,
acinzentada e todos têm “muito sono”. A professora não discute essa relação
texto-imagem e, no final da história, chama a atenção das crianças para como
devem se comportar ao chegar à escola.
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Patrícia : Então, olha só, deixa eu contar uma coisa pra vocês, agora: quando vocês chegam na escola com preguiçinha de fazer lição, vocês ficam assim oh - mostrando as figuras do livro. Todos apagadinhos, pálidos, sem cor, com cara de fraco, mas aí o amigo chega morrendo de vontade de estudar, de aprender, de fazer lição, daí o amigo chega assim oh - mostra as figuras do livro. E a gente tá assim oh, com aquela preguiça e o nosso amigo tá assim oh, todo animado, com vontade de fazer lição. Daí a tia Patrícia chega: -com quem que a tia Patrícia vai ficar com vontade de ensinar? O aluno que assim - mostrando a figura e fazendo uma cara feliz? Ou o aluno que tá assim - mostrando a figura e fazendo cara de preguiça? Então, como que a gente tem que chegar na escola? Assim ou assim? - mostrando as figuras. Crianças: Assim – dizem as crianças, quando a professora mostra a figura colorida. Patrícia : Então, pra agente não chegar assim o que a gente tem que fazer com a preguiça? Dudu : Deixar lá em casa. Carol : Ou no carro. Patrícia : Deixar em casa – repetindo. E só pode pegar a preguiça de volta quando a gente for dormir. Quando a gente vier pra escola tem que deixar a preguiça em casa pra a gente entrar assim oh - mostrando a figura colorida. Combinado? Crianças : Combinado – respondem todas ao mesmo tempo. Episódio 2: “Tem que cuidar dos brinquedos”
“Brinquedos” (NEVES, 2009) é uma narrativa de um autor brasileiro
contada apenas através das ilustrações. Patrícia combina com as crianças que
a partir das figuras elas devem contar a história, mas na realidade é ela quem
conta. No final, a professora revela novamente sua preocupação em ensinar o
bom comportamento, agora em relação aos brinquedos.
Patrícia: E sabe por que eu contei essa história pra vocês? Carol: Por quê? Patrícia: Porque vocês têm um monte de brinquedos em casa, certo? Bruno: Eu tenho. Joana: Certo. Patrícia: Então, daí quando chega aqui na escola, vê um monte de brinquedo na caixa e não cuida, brinca de qualquer jeito, joga o brinquedo ao invés de guardar, né, Amanda? - fazendo sim com a cabeça. Ao invés de ajudar os amigos, né, Silene, joga lá de qualquer jeito, quebra o brinquedo, esconde o brinquedo dentro da caixa, na hora que vai brincar fica brigando com o amigo porque quer aquele brinquedo e aí vai chegar uma hora que vai acontecer com os nossos brinquedos a mesma coisa que aconteceu com esses dois - mostra a figura do livro que tem o desenho dos brinquedos quebrados. E vai acontecer com vocês a mesma coisa que aconteceu com esses dois irmãos aqui, oh - mostra a figura com o desenho dos irmãos brigando por causa dos brinquedos. Vocês não vão parar de brigar. Bruno: Igual os dois irmãos. Patrícia: Os brinquedos não vão parar de estragar e ai ó o que a gente vai ter que fazer?- mostra a figura com o desenho dos brinquedos sendo jogados no lixo. Joana: No lixo. Alice: Joga no lixo. Patrícia: Jogar tudo no lixo. E ai será que a gente vai ganhar mais brinquedo?
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Bruno: Não. Carol: Não. Öh!Tia,é igual [o que] a minha avó fez com os meus livrinhos que estrago, o meu irmão rasgou tudo e ela teve que jogar fora. Patrícia: Agora, oh, o que a gente tem que pensar: nós temos vários brinquedos aqui na sala, vários brinquedos em casa e tem um monte de criança que mora na rua que não tem brinquedo nenhum. Então, será que não era legal se a gente cuidasse muito bem dos nossos brinquedos? Guilherme: Sim. Crianças: Sim - dizem todas as crianças. Patrícia: Cuidasse com bastante carinho? Crianças: Sim - dizem todas as crianças novamente. Patrícia: E que cada vez que a gente ganhasse um brinquedo novo, a gente desse um usado pra uma criança da rua? Paulo: Oh, tia, sabe que eu tenho um monte de brinquedo na minha casa, mas eu nem quebro? Patrícia: Então, às vezes, a gente tem um monte de brinquedo em casa que a gente nem brinca mais, então, ao invés de deixar lá jogado, amontoado, ou deixar lá pra quebrar, a gente poderia dar pra criança que não tem brinquedo. Guilherme: Da rua. Patrícia: É, da rua. Porque a gente sempre tem monte. Então, quando tem um brinquedinho lá que a gente não gosta mais... Joana: Que não dê pra irmã... Patrícia: Exatamente. Então, o que será que a gente tem que fazer com os nossos brinquedos aqui da sala? Joana: Cuidar. Carol: Cuidar bem. Patrícia: E é só a Joana, a Carol, que precisam guardar o brinquedo? Crianças: Nãoooo - respondem todas as crianças. Patrícia: Quem precisa guardar o brinquedo? Crianças: Todo mundo - respondem todos. Patrícia: Então eu quero ver: a partir de hoje eu quero só ver se vocês vão cuidar dos brinquedos igual a menina e o menino cuidaram aqui, oh - mostra a figura do livro com o desenho das crianças que cuidaram dos brinquedos. Certo? Crianças: Certo - afirmam todas as crianças. Patrícia: Podem levantar - a professora levanta-se do chão.
Os dois episódios trazem informações e ensinamentos de bom
comportamento. Para Zilberman (2003), essa é uma redução da função da
Literatura Infantil, pois na sua perspectiva ela deve contribuir com o
conhecimento do mundo e do ser e “representa um acesso à circunstância
individual por intermédio da realidade criada pela fantasia do escritor” (p.29).
A autora defende que a literatura na sala de aula não pode ser usada
como “súdita do ensino bem comportado” (p.30) e argumenta a favor de “um
alargamento da dimensão de compreensão” (p.46), que vai além da
transmissão de informações e ensinamentos morais.
Nos episódios “Tem que deixar a preguiça em casa” e “Tem que cuidar
dos brinquedos”, vemos a intenção da professora em ensinar às crianças a
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postura ativa que se espera delas na escola e as atitudes de cuidado que
devem ter para com os brinquedos, subentendido aqui outros materiais da
escola e de casa.
Para promover uma visão de mundo autônoma e inquiridora, a ação
pedagógica precisa garantir a importância estética da literatura e se distanciar
do aspecto superficial de simplesmente incutir valores de boas maneiras.
Na ótica da professora, a literatura cumpre a função pedagógica de
transmitir normas; na ótica da criança é “um meio de acesso ao real, na medida
em que facilita a ordenação de experiências existenciais (...) e expansão do
domínio linguístico” (ZILBERMAN, 2003, p.46). Esta ideia traz implícito que “o
valor literário tão-somente emergirá da renúncia ao normativo” (p.69).
A seleção dos textos pela professora atende critérios, mesmo que estes
não estejam explícitos. No caso da professora Patrícia, podemos inferir, pelos
encaminhamentos feitos, sua preocupação com a orientação do
comportamento das crianças. Esse encaminhamento se distingue, portanto, da
proposição de Zilberman (2003) para quem “é necessário que o valor por
excelência a guiar esta seleção se relacione à qualidade estética” (p.26).
Assim, destacamos que o maior valor do texto literário está no seu valor
artístico e não na origem comprometida com o pedagógico.
b) Significado de Palavras: A seguir, apresento quatro episódios em que as
duas professoras mostram uma tentativa de organizar as falas das crianças, ao
mesmo tempo em que procuram ensinar o sentido ou o significado de algumas
palavras do texto para o grupo. Nesses episódios, a preocupação das
professoras não é com as lições de bom comportamento, mas a exploração do
vocabulário dos textos.
Episódio 3 – “Friorenta, por que será?”
A Professora Sueli empurra as mesas e cadeiras abrindo um espaço no
centro da sala. Em seguida, senta-se em roda com as crianças e começa a ler
a história de uma autora brasileira, “Margarida Friorenta” (ALMEIDA, 2009).
Inicia perguntando sobre o sentido da palavra “friorenta” e retoma o significado
da palavra no final do texto.
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Sueli: Hoje o nome da historinha é: “A Margarida Friorenta”. Jorge: Friorenta – diz devagar, tentando falar a palavra. Sueli: Margarida Friorenta, por que será? Elaine: Não sei. Sueli : O que será que ela sentia? Lívia: Frio. Jorge: Firirio. Sueli: Frio - aponta para uma das crianças. Então vamos ver por que ela tem esse nome, tá? - abre o livro. Sueli: Era uma vez uma margarida em um jardim - lê a primeira frase do livro, em seguida mostra a figura para as crianças. Uma criança fala e Sueli faz uma cara de brava e bate a mão na perna pedindo silêncio às crianças. Ela se mostra nervosa diante da câmera, coça a cabeça e faz cara de brava para outra criança. Amanda: Deixa eu ver, Tia. Crianças: Olha que linda! – dizem algumas crianças.
Ao final da leitura do livro a professora retoma a discussão inicial sobre o
termo “friorenta”.
Sueli : Vira a página. Foi lá e deu um beijo na margarida. Mostra as figuras. Elaine : Ah, que bonitinho. Sueli : A margarida parou de tremer e dormiram muito bem a noite toda - mostra as figuras. Jorge : É, e daí parou – diz uma criança. Lívia : Que bonitinho – diz outra criança. Sueli : Fala com uma criança que perguntou algo para ela, mas fica baixo e difícil de compreender. No dia seguinte, Ana Maria disse para a Borboleta Azul: - Sabe borboleta, o frio da margarida não era frio de casaco, não. E a borboleta respondeu: - Ah, entendi! - mostra as figuras. Elaine : Que bonitinho, bonitinho. Gabriel : Era o beijo - diz outra criança. Amanda : Era um beijo – imita outra criança. Sueli : Que será que ela tava precisando, então? Crianças: Beijo – respondem todas as crianças juntas. Sueli: E o que significa beijo? Jorge: Melhorar – responde uma criança. Sueli: Carinho, afeto, não é? Então, ela não tava com frio que ela queria blusa, queria cobertor, ela queria carinho, beijo de boa noite. A mamãe dá beijo de boa noite em vocês? Crianças: Dá – respondem várias crianças. Valter : Minha mãe não dá – diz uma criança. Sueli : Não? Crianças : Algumas crianças falam ao mesmo tempo. Sueli : Então, quando você for dormir, vai lá e dá um beijo nela, tá bom?
Episódio 4 – “Sonolenta e Aconchegante”
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A Professora Patrícia abre um espaço na sala de aula empurrando as
mesas e cadeiras para um canto da sala. Em seguida, senta-se em roda com
as crianças e lê o titulo do livro que trouxe, “A Casa Sonolenta” (WOOD, 2009),
perguntando às crianças se elas sabem o significado da palavra.
Patrícia: Eu vou contar para vocês uma história que se chama “A Casa Sonolenta” - mostra a capa do livro para as crianças. Patrícia : Alguém sabe o que quer dizer a palavra sonolenta? Alice: É que, é que, as pessoas dormem e não quer acordar mais. Patrícia : Muito bem, é isso mesmo. É uma casa que todo mundo só pensa em dormir, ninguém quer saber de acordar. Então, vamos lá - abre o livro e começa a ler. Era uma vez uma casa sonolenta onde todos viviam dormindo - mostra as figuras. Então, essa é a casa sonolenta. Dudu : Chovendo – diz uma criança. Patrícia : Chovendo umas cores bem fraquinhas. Até as cores estão com preguiça de aparecer aqui, oh. Crianças: Todas as crianças riem. Marcos: Tá com sono também – diz uma criança. Patrícia : Tá com sono também – repete o que a outra criança disse. Patrícia : Nessa casa tinha uma cama, uma cama aconchegante, numa casa sonolenta onde todos viviam dor... Crianças : ...mindo – dizem todas as crianças juntas. Patrícia : Mostra as figuras. Olha lá a cama aconchegante. Carol : Aconchegante – repetindo o que Patrícia disse. Patrícia : Cama aconchegante – diz a professora tentando ajudar a criança. Joana : E a gente dormir na cadeira – diz uma criança. Patrícia : Quer dizer que é gostoso ficar na cama. Nessa cama tinha uma avó, uma avó roncando, numa cama aconchegante, numa casa sonolenta, onde todos viviam dor... Crianças :...mindo. – dizem as crianças todas ao mesmo tempo.
Episódio 5 – “Que é que gruda no chão?”
Sueli lê a história “Dona Vassoura”, de um autor brasileiro (PAIVA,
2009). No meio da leitura aparece uma frase que fala sobre uma “sujeira” que
gruda e não sai. Assim, Sueli, a partir de uma pergunta, leva as crianças a
descobrirem a palavra chiclete.
Sueli: Minha maior inimiga é aquela sujeira teimosa, que gruda no chão feito cola e comigo se faz de gostosa - mostra a figura. Crianças: Riem. Sueli: Que é que gruda no chão? Crianças: Chiclete - dizem todas as crianças. Sueli: Faz sim com movimento de cabeça. Gabriel: Chiclete. Sueli: Chiclete, muito bem. Quando o dia é de festa me escondem com certeza, mas quando a festa termina lembram de mim pra limpeza, enquanto a música e gente
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sentem vergonha de mim, eu fico tão chateada de só ser lembrada no fim - mostra a figura. Amanda: E mancha. Elaine: E mancha também, claro, né? Valter: Ela ficou brava, tá cheio de negócio.
Episódio 6 – “Corcova e Juba”
Patrícia estava lendo a história “Tem Bicho no Circo”, do Ziraldo (2009),
e no momento em que aparece um camelo e um leão, ela aproveita e explica o
significado de corcovas e de juba para as crianças.
Patrícia: Vira a página. Este aqui é o camelo. Com a minha casa entre as suas corcovas - mostra a figura. Corcovas são estas duas montanhinhas que ele tem aqui nas costas - faz um movimento parecido com o braço ao mesmo tempo em que fala. É chamada de corcova. Silene: Corcova - repetindo a palavra nova. Patrícia: E esse é o rinoceronte com a minha maçã no nariz - mostra a figura. Crianças: Todas as crianças riem. Joana: Nossa! Guilherme: Tá colado. Patrícia: E atenção para o leão que traz a minha maçã na juba - mostra a figura. Silene: Na juba - repetindo o que Patrícia disse. Patrícia : Juba são esses cabelos que ele tem - ao mesmo tempo em que fala faz um movimento com o braço como se estive mostrando os cabelos do leão. Dudu: Bem grandão. Maçã bem grandão. Guilherme: Não, cabelão.
Nos episódios “Sonolenta e Aconchegante” e “Friorenta, por que será?”,
as professoras, ao introduzirem os temas das histórias que iriam contar,
instigam as crianças sobre os significados das palavras-chave que compunham
os títulos das histórias. Patrícia pergunta: - Alguém sabe o que quer dizer a
palavra sonolenta? E Sueli: - Margarida Friorenta, por que será?
Com o desenrolar da história e a partir das manifestações das crianças,
Sueli vai verbalizando o conceito de “friorenta” construído pelo grupo. Assim,
ela retoma, no final, o significado da palavra “friorenta” ampliando com as
crianças os sentidos contidos na história.
A professora diz: - Que será que ela tava precisando, então? E as
crianças respondem: - Beijo!. A partir daí a professora instiga as crianças a
pensarem em um novo significado para a palavra “friorenta”, relacionado a
carinho, afeto, beijo.
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Patrícia, como Sueli, inicia a história perguntando o significado de uma
palavra chave, ou seja, “sonolenta”, que as crianças associam com dormindo: -
É que, é que, as pessoas dormem e não quer acordar mais. No desenrolar da
história vão surgindo outras palavras que despertam a curiosidade das
crianças, como por exemplo, a palavra “aconchegante”, repetida por um dos
alunos e que leva a professora a explicar o sentido desta palavra na história. A
professora repete “aconchegante” e uma criança diz: - É a gente dormir na
cadeira - e a professora completa: - Quer dizer que é gostoso ficar na cama.
Nos episódios “O que é que Gruda no Chão” e “Corcova e Juba”, ambas
as professoras explicam os termos como uma estratégia para tornar a história
mais significativa para os alunos. Sueli faz isto através de perguntas em que dá
as características do objeto para que as crianças descubram o signo (palavra)
correspondente “Chiclete”. Inversamente, Patrícia parte das palavras (signos)
“Corcova e Juba” para explicar seus sentidos.
Semelhante ao destacado por Góes (1997), encontramos aqui situações
em que as professoras atuam “privilegiando propósitos instrucionais,
destacando temas e buscando estabilizar significados, focos e momentos de
elaboração” (p. 16).
Embora possamos pensar que as professoras ainda fazem uma leitura
pouco literária do texto e que poderiam explorar mais as histórias a fim de
despertar maior curiosidade, reflexão, imaginação, emoção em seus alunos,
vemos nos episódios apresentados ações de Sueli e Patrícia na tentativa de
buscar sentidos para essa prática na escola. Explorar esses significados pode
ser importante para a compreensão das histórias e os encaminhamentos são
pertinentes; a questão problemática é quando as professoras se limitam ao
trabalho com o vocabulário.
As ações da professoras, seus modos de agir, de se relacionar e de
colocar nas relações com as crianças e com o texto vêm historicamente se
construindo no contexto da formação do professor e da escola.
Vigotski (1993), ao se referir ao desenvolvimento da linguagem e do
pensamento, nos ajuda a entender as ações das professoras como algo que
tem origem no processo histórico e cultural e que por esta razão carregam
marcas da revolução histórica da sociedade humana.
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4.2. Interações a partir do Texto Literário:
Nesta outra unidade, reúno episódios que mostram indícios das
interações estabelecidas entre as professoras e seus alunos durante as
apresentações dos textos literários.
As professoras avaliam a compreensão das crianças através de
perguntas em relação à história contada, mantendo assim a atenção das
mesmas. Ao contrário do que eu esperava, encontrei pouco incentivo ao
diálogo e as ações pedagógicas parecem mais voltadas para manter o silêncio
dos alunos e transmitir informações para as crianças.
A unidade foi dividida em: a) diálogo através de perguntas e respostas e
b) diálogo unidirecional ou monólogo.
a) Diálogo através de Perguntas e Respostas: Apresento aqui episódios em
que Sueli e Patrícia revelam a preocupação em manter a atenção dos alunos
no texto e em verificar se as crianças estão compreendendo e lembrando
aquilo que é contado. Ambas fazem perguntas para as crianças com o intuito
de saber se seus alunos estão acompanhando a explicação dada e o texto
narrativo.
Episódio 7 – “Quem eram os meninos pequeninhos?”
Sueli termina de ler a história “Branca de Neve”, livro com uma versão
bastante resumida da narrativa original (AMORIN, s/d) e pergunta às crianças o
que elas se lembravam da leitura feita, pois depois as crianças fariam um
desenho da história contada.
Sueli : Quem eram os meninos lá, pequeninhos, que moravam na casinha? Crianças : Anões - respondem algumas crianças ao mesmo tempo. Sueli : Então, a gente fala que a história é Branca de Neve e os ... sete anões. Eliana: É. Sueli: É. E o que que a velhinha deu pra ela? Amanda: Maçã pra ela comer no almoço. Outras crianças falam ao mesmo tempo. Sueli: Agora, então, senta no cantinho bonitinho que a tia vai colocar a mesinha pra vocês desenharem.
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Episódio 8 – “Se tem um arco-íris quer dizer que tem o que no céu?”
Patrícia está contando a história “A Casa Sonolenta” (WOOD, 2009) e
nas ilustrações aparece um arco-íris, assim ela aproveita e explica às crianças
o que é e como ele se forma.
Patrícia: O que aconteceu com as cores da casa, já que todos estão acordados? - mostrando as figuras. Carol: Ficou colorida – diz uma criança. Patrícia: Ficou colorida – repetindo. Tá chovendo? Dudu: Não. Patrícia: Se tem um arco-íris quer dizer que tem o que no céu? Crianças: Sol – respondem todos. Patrícia: Sol - fala ao mesmo tempo em que as crianças. Então, olha só a diferença - voltando o livro para o começo e mostrando as figuras iniciais. Entre uma casa sonolenta onde todos estavam dormindo e uma casa colorida onde todos estavam acordados. Quando a gente fala que tá todo mundo com sono quer dizer que a gente ta com pregui... C: ... ça. – dizem todas as crianças.
Episódio 9 – “Todos nós somos diferentes?”
A professora Patrícia estava finalizando para as crianças a história
“Patinho Feio”, livro com uma narrativa muito resumida (AMORIN, s/d), quando
um de seus alunos pergunta onde está o Patinho Feio. Ela então aproveita o
momento e explica quem era o Patinho Feio e fala sobre as crianças serem
umas diferentes das outras e que elas não devem fazer discriminação.
Marcos: Uauu! Guilherme: Que grande! Bruno: Nossa, que grande. Como ele cresceu? Cadê o Patinho Feio, tia? Patrícia: Eu não acabei de falar que ele se tornou um cisne, Bruno? Bruno: É. Patrícia: Então. Silene: Olha ele ali na pedra. Patrícia: Isso quer dizer que ele estava no ninho errado, não quer dizer que ele era um patinho e se transformou em um cisne não. Ele era um filhote de cisne que foi parar em ninho de patos e quando ele nasceu, ele começou a achar que também era um pato e aí todos começaram a fazer diferença dele, só porque ele não era igual aos outros patinhos. Mas se a gente parar e olhar aqui pros nossos amigos, tem algum amigo igual a gente? Crianças: Não - respondem todos juntos. Patrícia: Todos nós somos diferentes, não somos? Crianças: Sim - respondem todas as crianças. Patrícia: E a gente tem que tirar sarro do amigo porque ele não é igual a gente? Crianças: Não - respondem todas as crianças.
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Patrícia: E vocês acham que os patinhos tinham que tirar sarro do Patinho Feio só porque ele era diferente? Crianças: Não - respondem todas as crianças. Patrícia: Então, toda vez que a gente receber um amigo novo, que seja diferente ou que tenha alguma dificuldade, a gente não tem que tirar sarro, não tem que maltratar, não tem que fazer nada disso, porque senão ele vai se sentir igual o Patinho Feio se sentiu. Então, a gente tem que dar carinho, dar apoio, oferecer a nossa amizade e a nossa companhia. Pra todos os nossos amigos, não importa se ele é um pouquinho diferente ou muito diferente. A nossa amizade, o nosso carinho, tem que ser sempre o mesmo, entenderam? Crianças: Sim - respondem todas as crianças. Patrícia: Ótimo.
Vemos nos três episódios apresentados acima a preocupação das
professoras em organizar a atividade de maneira instrucional. Isso é algo que
pode fazer parte da organização escolar. Segundo Góes (1997), nas trocas
dialógicas entre professores e alunos, “são sinalizados incentivos ou censuras
a formas de ser ou comportar-se, regras de convivência e critérios de
organização das relações nas atividades” (p.16-17).
Todavia, o que as situações observadas mostraram é que a ênfase dada
pelas professoras ao bom comportamento, transmissão de regras e na
imposição de valores sociais se sobrepõe à estética do texto literário. Para
Ribeiro (2005), “o ato de ler pode ser um ato transformador quando questiona,
busca e inquieta a vida dos seres humanos, e traz em si uma característica
fundamental: a de formar sujeitos” (p. 47).
Neste episódio a professora parece estar usando a literatura infantil para
ensinar boas maneiras e perde-se a riqueza do texto literário.
Nos episódios 10, 11, 12 e 13, também vemos as professoras usando
perguntas para manter a atenção dos alunos na história e para certificar-se de
que os mesmos estavam acompanhando a ideia que elas queriam transmitir.
Episódio 10 – “São crianças ricas?”
Patrícia está contando a história “Brinquedos” (NEVES, 2009), que é um
livro que não apresenta texto escrito, somente ilustração. No início da contação
da história, Patrícia diz às crianças que elas vão contá-la e faz isso através de
perguntas.
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Patrícia: São crianças ricas? Crianças: Nãoooooooooo - respondem todas as crianças. Patrícia: Nãooo. São crianças pobrezinhas. Que elas precisam...? Bruno: Trabalhar - fala completando o que Patrícia ia dizer. Patrícia: Trabalhar - repete a professora. Então, elas vão no lixo, pegam tudo que tem de reciclagem, que pode ser reaproveitado pra poder vender, procuram restos de comida pra não passar fome. São crianças bem pobrezinhas, que não podem ir na escola porque precisam trabalhar. Daí eles estão vendo o caminhão de lixo despejar todo o lixo e vão mexer no lixo novo. E olha o que é que eles encontram? Joana: Uma boneca. Patrícia: Uma boneca? Dudu: E um palhaço. Patrícia: E essa boneca e esse palhaço eram de quem? Carol: Da menina e do menino. Patrícia: Da menina e do menino que brigaram e que cuidaram do brinquedo? Crianças: Nãoooo - respondem todas as crianças. Clara: Que brigaram. Joana: Eles vão ver que tava rasgado o palhaço e a boneca. Olha lá - fala olhando para a figura do livro mostrada pela professora. Episódio 11 – “Agora é o Final”
Sueli termina de contar a história “O Sanduíche da Maricota” (GUEDES,
2009) e retoma a história fazendo perguntas às crianças antes da produção
dos desenhos.
Sueli: Agora é o final, ela ficou feliz porque ela conseguiu comer o sanduíche do jeito que ela queria. Que ela começou a fazer só coisas que ela gostava, aí cada um foi dando palpite, né? Quem que chegou primeiro na casa dela, quem lembra? Joana: O bode. Elaine: O bode. Sueli: Quem que chegou primeiro? O bode. E o que é que ele queria que colocasse? Lívia: Mato. Sueli: Mato. É capim. E aí foi chegando outros bichos depois. Quem chegou? Crianças: O gato - dizem todas as crianças. Sueli: E o que é que gato gosta de comer? Que é que ele queria? Crianças: Peixe - respondem todas as crianças. Sueli: Peixe. Ele queria uma sardinha e aí foi aumentando o sanduíche dela e no final a raposa queria comer quem? Crianças: A galinha - respondem todas as crianças. Sueli: E o que ela fez daí, ela...? Elaine: Jogou tudo que tava... Sueli: Espantou todo mundo e fez o sanduíche do gosto dela, é isso? Crianças: É - respondem todas as crianças. Joana: Olha a língua dela! Sueli: Óh, oh,o final. As crianças saem todas de seus lugares e começam a entrar umas na frente das outras. Sueli: Cada um no seu lugar! As crianças vão sentando em roda novamente e Sueli continua a falar.
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Sueli: Vamos desenhar agora “O Sanduíche da Maricota”. O nome da galinha como que era? Crianças: Maricota - respondem todas as crianças. Sueli: Eu tô vendo você. Então vamos sentar, continua sentado bonitinho, cada um no seu lugar, por favor.
Episódio 12 – “Quem ajuda a mamãe em casa?”
Sueli termina de contar a história “Dona Vassoura” (PAIVA, 2009) e, ao
final, retoma a mesma com as crianças através de perguntas para que depois
seus alunos possam desenhar a história contada.
Sueli: A história é de quem mesmo? Crianças: Da vassoura - respondem algumas as crianças ao mesmo tempo. Lívia: Ô tia, posso desenhar o que tem aí no final? Sueli: Vocês vão desenhar o que vocês quiserem. Lívia: Então eu vou desenhar o final. Jorge: Eu também. Sueli: Quem ajuda a mamãe em casa? Crianças: Eu - respondem todos levantando as mãos para cima. Sueli : Vocês usam a vassoura? É? Amanda : Eu varro a casa – fala ao mesmo tempo em que Sueli. Elaine: Eu lavo a casa com a minha vó. Crianças: Eu também - respondem outras crianças. As crianças começam a falar todas ao mesmo tempo, cada uma querendo contar uma coisa. Amanda: Eu tenho uma vassoura e um rodinho. Sueli: Muito bem. As crianças continuam a falar ao mesmo tempo. Sueli: Agora a tia Sueli vai montar as mesinhas e vocês vão desenhar a história, quero ver quem lembra, tem várias partes da história.
Encontramos mais uma vez nesses episódios pouco incentivo à reflexão,
imaginação e construção de sentidos estéticos frente ao texto literário.
Leite (2004), em seu estudo sobre o lugar da imaginação na educação
infantil, também encontrou
indícios do quanto o imaginário, tecido nas interfaces entre a ação da criança - seus processos de significação na e pela linguagem, carregada de sentidos -, acaba muitas vezes sendo negligenciado, em nome de uma forma de saber e de normas de conduta que são constituídas e valorizadas socialmente, no espaço institucional escolar. O saber de uma racionalidade objetiva e a disciplina, presentes nos enunciados das professoras e das crianças vão aos poucos sendo tecidos no contraponto com as manifestações imaginativas ocorridas na sala de aula (p. 80).
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b) Diálogo unidirecional ou Monólogo: Neste recorte apresentamos as falas
das crianças que não são articuladas pela professora Sueli. As crianças
mostram querer participar, mas Sueli continua a leitura da narrativa ou, então,
as crianças simplesmente escutam a história sem fazer nenhum comentário,
pois Sueli impõe o silêncio no momento da contação de histórias.
Episódio 13 – “A professora tem a palavra”
Sueli começa a contar a história “A Baleia que Fala Feito Gente Grande”
(MAZZETTI, 2009) e como o livro é mais longo, ela acaba não dando
oportunidade para as crianças falarem.
Sueli: O nome da história de hoje é “A baleia que fala feito gente grande”. Amanda: Fala? – pergunta uma criança. Sueli: Pede silêncio para a criança que perguntou, movimentando a mão em direção a ela e fazendo cara de brava. Começa a abrir o livro e virar as páginas. Silvio: Leia rápido – diz outra criança. Sueli : Era uma vez uma baleia que aprendeu a falar feito gente grande. Eu acho que foi por causa de um gargarejo que ela estava fazendo. Amanda : Tia, preciso tomar remédio – diz uma criança interrompendo a professora. Sueli : Vocês sabem, não é? Quando as baleias são pequeninhas todo mundo ensina para elas que gargarejo de espuma deve ser feito com muito cuidado. Espuma do mar faz mal para a baleia pequena e grande. Foi o que aconteceu com a baleia de nossa história. Ela se chama Lalá - mostra as figuras. C: Ah! - dizem algumas crianças. Amanda : Ô Tia, os dois tão espiando oh, do lado – diz outra criança. Sueli: Um dia, Lalá teve muita dor de garganta e começou a fazer gargarejo, mas não teve cuidado e engoliu um bocado de espuma do mar. Foi a conta. No dia seguinte começou a sentir uma coisa na garganta, pensou que fosse tosse, quando foi tossir falou, falou igualzinho qualquer pessoa, falou direitinho. Aquilo não podia ser verdade, nenhuma baleia sabe falar, nenhuma, mas era verdade sim. Lalá podia falar, podia falar o que bem entendesse. Lalá saiu por aí toda contente dando rabadas e brincando de esguicho. Mostra as figuras. Crianças : Riem. Amanda : Rabadas – repetem algumas crianças.
Episódio 14 – “A pregação”
Antes de começar a contar a história “O Sanduíche da Maricota”
(GUEDES, 2009), Sueli pede às crianças que façam silêncio enquanto ela lê o
livro, pois as crianças teriam que fazer um desenho da mesma após a contação
e pelo fato de estarem bastante agitadas naquele dia.
Sueli, em pé, começa a falar com as crianças.
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Sueli: Ooooh! Eu pego e vou embora e deixo vocês aqui com... Ooooh, presta atenção, porque tem bastante coisa, depois quero ver quem vai desenhar pra mim. A gente pede pra desenhar, vocês vai lá falar pra tia Branca ou pra tia Sueli que é que você fez. Faz um movimento com a mão em cima do livro como se estivesse apontando o desenho. Fiz isso aqui. Elaine: Errado. Sueli: E fez coisa que a tia não mandou, não falou que não tinha na história, é pra colocar no papel o que tem na historinha de hoje. Paulo, por favor, arruma a perninha. Paulo, isso, vai, colabora, pelo menos uma vez na vida. Então, nós vamos, a tia vai contar, depois eu dô o giz e a folhinha pra vocês desenharem a história, assim mesmo. Cada um vai fazer o seu, não precisa copiar do outro e nem ficar falando o que é que o outro tá fazendo, combinado? Sueli se senta para contar a história. Podemos notar nesses dois episódios que a professora privilegia a
ordem, o silêncio e a organização, impedindo a interação das crianças entre si
e com a história.
Sueli demonstra mais preocupação com a atividade que seria realizada
depois da contação da história, ou seja, o desenho, do que com o processo de
contar a história que estava se desenvolvendo.
Conforme apontado por Góes (1997), ao mediar o encontro da criança
com objetos, a professora pode atuar
privilegiando propósitos instrucionais, destacando temas e buscando estabilizar significados, focos e momentos de elaboração... Nas trocas dialógicas são sinalizados incentivos ou censuras a formas de ser ou comportar-se, regras de convivência e critérios de organização das relações nas atividades (p.16 - 17).
Essas sinalizações, todavia, devem ser feitas de maneira subordinada
às “esferas conceituais de caráter acadêmico” (GÓES, 1997, p. 17) e não
podem reduzir a relevância da direção principal, ou seja, não podem impedir o
diálogo. A perspectiva histórico-cultural de Vigotski nos ajuda a entender a
importância da interação social para o processo de desenvolvimento da
criança.
As análises realizadas nos conduziram a algumas reflexões sobre a
formação dos professores e sobre as contradições vividas pelas mesmas no
cotidiano escolar.
Aponto a seguir algumas dessas reflexões e contradições que abrem
caminhos para novos estudos que possam colaborar com as escolas,
professores e alunos.
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OS GRÃOS DE MILHO E OS GAFANHOTOS
Confrontando minhas expectativas, fruto de minhas leituras e
experiências e a realidade encontrada, pude reconhecer que o contar histórias
não é algo espontâneo e natural para as professoras, mas resultado de
aprendizagens, que dependem de experiências anteriores e de uma ação
educacional voltada para o sujeito social.
Na escola em que desenvolvi este estudo encontrei uma situação real,
diferente daquela que eu tinha inicialmente idealizado. As professoras e a
escola foram receptivas ao desenvolvimento da pesquisa e demonstraram em
vários momentos curiosidade sobre o que eu via e tudo que eu pude observar
se deve à disponibilidade de todas.
No entanto, constatei que a preocupação didática com as propostas
pedagógicas, somadas à falta de conhecimento sobre histórias e literatura
infantil, constituem limites para o professor atuar no enriquecimento da prática
de contar histórias de modo a possibilitar a seus alunos uma forma de
ampliação cultural, incentivo à imaginação e à criação.
Este fato evidencia que a formação profissional do professor contempla
poucas informações e experiências relacionadas à Literatura Infantil e ao
desenvolvimento infantil numa perspectiva social, cultural, afetiva, criativa e
histórica.
Isto pode indicar que não existe uma ênfase na formação dos
professores voltada para a importância da literatura infantil no desenvolvimento
das crianças. Embora não tenha sido objeto deste estudo a análise dos
currículos dos cursos de Pedagogia, os dados aqui apresentados me levam a
apontar para a necessidade de novos estudos que se preocupem com esta
análise.
Conforme destacado no início deste trabalho, a Literatura Infantil é rica
não só porque revela significados e experiências vividas por gerações
anteriores (BEIJAMIN, 1987), mas porque permite descobrir o sujeito na sua
subjetividade e originalidade única, recriando de uma maneira singular a sua
percepção de mundo (SAWAYA, 2000).
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Além disso, a Literatura Infantil aproxima o leitor de seu cotidiano,
ajudando-o a se conhecer melhor (ZILBERMAN, 2003) transformando sua vida
e colaborando para sua formação (RIBEIRO, 2005).
Voltando aos apontamentos de Machado (2004), apresentados no
capítulo em que falo sobre a literatura infantil, as histórias infantis convidam à
imaginação, criando um espaço de significação que propicia a aprendizagem e
o acesso ao mundo imaginário e simbólico. Essa característica das histórias
infantis precisa ser considerada se levarmos em conta a importância das
experiências anteriores para despertar a criação e a imaginação da criança
(VIGOTSKI, 2009).
Outro aspecto importante a ser destacado a partir deste estudo refere-se
a um olhar do micro para o macro, isto é, do contar histórias na sala de aula
para as políticas educacionais voltadas para a educação infantil. Se por um
lado as professoras são orientadas para práticas que despertem a imaginação
e a criação, por outro são pressionadas explícita ou implicitamente a levar seus
alunos a iniciarem o processo de alfabetização o mais rápido possível. Essas
contradições acabam levando as professoras a valorizarem muito mais o que é
chamado de pedagógico, isto é, as tarefas que preparam para a alfabetização
do que para uma construção de conhecimento de forma criativa e imaginativa.
O conjunto complexo de todos esses fatores parece restringir o contar
histórias a uma atividade essencialmente “didática e pedagógica”.
Retomando a questão que propus responder no início de meu estudo -
Quais os encaminhamentos feitos pelas professoras nos momentos de contar
histórias para as crianças na sala de aula? – chego ao final destacando a
complexidade daquilo que acontece na prática pedagógica e a
responsabilidade que temos com a formação dos professores.
As histórias contadas para os alunos do Pré III A e B com certeza
colaboraram para o desenvolvimento das crianças, mesmo considerando tudo
aquilo que poderia ter sido valorizado e que não o foi. As ações pedagógicas
podem ou não ter correspondido aos conhecimentos pretendidos, podem ter
gerado êxitos ou fracassos. O mais importante é que no processo de pesquisar
pude dialogar com estas professoras e trocar experiências ricas para todos.
O aprofundamento teórico e a convivência prática que este estudo me
proporcionou me fizeram amadurecer científica e profissionalmente.
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Termino aqui com uma história que ilustra o meu sentimento em relação
à conclusão deste trabalho:
Era uma vez um rei que adorava ouvir histórias. Ele tinha um contador
que conhecia muitas fábulas e lendas maravilhosas, porém o rei queria sempre
mais. Pobre contador, foi parar atrás das grades. E agora? Será que alguém
vai conseguir satisfazer o rei? Quinhentas moedas pra quem conseguir
adivinhar!
Um dia apareceu um jovem que garantiu ao rei que conhecia a história
mais longa do mundo. O rei não acreditou muito, mas deixou o jovem contar:
- Era uma vez, num campo, um celeiro abarrotado de milho até o teto. Um dia, uma nuvem de gafanhotos desceu naquele lugar e um dos gafanhotos descobriu um buraquinho na parede do celeiro. Conseguindo entrar, o gafanhoto saiu carregando um grão de milho. E logo veio outro gafanhoto e carregou outro grão de milho. E veio outro gafanhoto e carregou outro grão de milho. E veio outro gafanhoto e carregou outro grão de milho. E veio... - Está bem! Está bem! – disse o rei, impaciente – já sei: veio outro gafanhoto e carregou outro grão de milho... Chega de gafanhotos! Pule essa parte e diga logo o que aconteceu depois! - Ora majestade! – disse o jovem, tranquilo. – Toda história deve ser contada por inteiro. Eu não posso pular nenhum pedacinho, senão Vossa Majestade não vai entender nada. - Está certo – conformou-se o rei. – Prossiga! E o jovem continuou no mesmo tom: - E veio outro gafanhoto e carregou outro grão de milho. E veio outro gafanhoto e carregou outro grão de milho. E veio outro gafanhoto e carregou outro grão de milho. E veio outro gafanhoto e carregou outro grão de milho. E assim prosseguiu, repetindo sempre a mesma cantilena. Cada vez que o rei tentava interrompê-lo, ele se mostrava ofendido e retrucava que não podia contar a história sem contar inteirinha a primeira parte. - E veio outro gafanhoto e carregou outro grão de milho. E veio outro gafanhoto e carregou outro grão de milho... O rei, não aguentando mais, deu um berro: - Chega! Basta! Pode parar com esta história! Essa é demais até pra mim! Assim, o jovem saiu rico do palácio, com suas bem merecidas moedas de ouro (PAMPLONA, 2009, p. 14 - 25).
Penso que o estudo aqui desenvolvido permitiu uma pequena reflexão
sobre a enorme complexidade que envolve o contar histórias. Talvez signifique
mais um grão de milho no imenso celeiro do rei ou, talvez, eu seja mais um
gafanhoto que compõe essa história sem fim.
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