divisão do funk carioca

download divisão do funk carioca

of 114

Transcript of divisão do funk carioca

1 RODRIGO CLEMENTE BALLALAI

O JOVEM NO MOVIMENTO HIP HOP: ESPAO POTENCIAL DE CRIATIVIDADE E IDENTIFICAO?

ASSIS 2009

2 RODRIGO CLEMENTE BALLALAI

O JOVEM NO MOVIMENTO HIP HOP: ESPAO POTENCIAL DE CRIATIVIDADE E IDENTIFICAO?

Dissertao apresentada Faculdade de Cincias e Letras de Assis UNESP Universidade Estadual Paulista, para a obteno do ttulo de Mestre em Psicologia (rea do Conhecimento: Psicologia e Sociedade). Orientadora: Dr Olga Ceciliato Mattioli

ASSIS 2009

3 RODRIGO CLEMENTE BALLALAI

O JOVEM NO MOVIMENTO HIP HOP: ESPAO POTENCIAL DE CRIATIVIDADE E IDENTIFICAO?

DISSERTAO PARA OBTENO DO TTULO DE MESTRE Faculdade de Cincias e Letras de Assis UNESP rea de Conhecimento: Psicologia e Sociedade

COMISSO JULGADORA

Presidenta e Orientadora ...................................................................................... Dr Olga Ceciliato Mattioli 2 Examinador.......................................................................................................

3 Examinador........................................................................................................

Assis,______ de_______________ de 2009.

4

minha querida me que nos deixou no decorrer deste trabalho.

5 AGRADECIMENTOS

Costumo pensar que sou um cara de sorte por ter tantos encontros preciosos com pessoas igualmente preciosas. Este trabalho para mim uma importante confirmao do poder desses encontros.

Sem nenhum exagero posso dizer que este processo do mestrado s se concretizou por ter encontrado, acima de tudo, duas pessoas muitssimas especiais, que sou grato eternamente:

Agradeo com todo meu amor Ana Karina, minha companheira de vida, a pessoa que me fez o convite para encarar essa aventura do mestrado.

minha orientadora Dr Olga Ceciliato Mattioli por todo o carinho, pacincia e confiana que transmitiu desde nosso primeiro encontro.

Aos meus saudosos pais, que me deixaram com muitas saudades, mas tambm com o profundo sentido do amor e admirao recproca.

Psicloga Maria Cristina Vendramel que me acompanha carinhosamente dentro e fora das sesses.

Ao admirado amigo Dr. David E. Zimerman, que tanto me honra pela amizade. Contribuindo com sugestes e incentivos valiosos para o trabalho.

Psicanalista Elza Guedes de Azevedo Magnoler, pela disponibilidade, empolgao e profundidade que sempre me ofereceu nas discusses sobre meu trabalho.

Ao Dr Nelson Pedro Silva pelas importantes primeiras orientaes e organizaes dessa dissertao.

s queridas amigas e professoras Dr Silvana Nunes Garcia Brmio e Dr Regina Clia Paganini Loureno Furigo que desde a graduao depositavam confiana, carinho e que abriram tantas portas para meu crescimento.

Aos doutores Diana Pancini de S Antunes Ribeiro e Jorge Luis Ferreira Abro pelo ambiente amoroso que proporcionaram no meu exame de qualificao.

6 BALLALAI, Rodrigo Clemente. O jovem no movimento hip hop: Espao potencial de criatividade e identificao? Unesp Universidade Estadual Paulista Jlio Mesquita Filho Faculdade de Cincias e Letras, Campus de Assis. Mestrado do Programa de Ps-graduao em Psicologia, 2009.

RESUMO A partir de experincia de estgios da graduao em Psicologia, particularmente no trabalho desenvolvido junto ao Programa de Liberdade Assistida da FEBEM, unidade Bauru, quando oferecemos um pronto atendimento psicolgico a seus participantes, iniciamos o contato com o movimento hip hop. Entrevistamos jovens que se identificam com o movimento hip hop, analisando sua trajetria ao ingressarem nos grupos organizados de hip hop do municpio de Bauru. Analisamos suas biografias e percepes que estes jovens tm de si e de sua realidade social. O instrumento utilizado foi a entrevista semi dirigida, cuja aplicao ocorreu individualmente O procedimento para a anlise das informaes se apoiou no mtodo psicanaltico. Analisamos o que leva os jovens a participarem do referido movimento, por meio do conceito psicanaltico de identificao. Verificamos que a significao que os jovens atribuem ao hip hop pode ser entendido como um espao potencial de criatividade, de acordo com a teoria do psicanalista ingls Donald Winnicott. Encontramos diferentes usos desse movimento cultural, de acordo com a singularidade de cada participante, inclusive manifestado pelos diversos meios de participao artstica e ideolgica de seus componentes. No campo identificatrio consideramos o movimento hip hop como modelo identificatrio contemporneo e significativo para grande parcela da populao jovem. Como apresenta Maria Rita Kehl, o tratamento de irmos (manos) indica um campo de identificao horizontal com um grupo de pessoas iguais, oriundas de uma mesma realidade dolorosa; distinto de uma identificao vertical, tal como ocorre na grande massa em relao ao lder ou dolo. Unitermos: Cultura hip hop; Processos de identificao; Espao Potencial; Adolescncia.

7

BALLALAI, Rodrigo Clemente. The couple in the hip hop movement: Space of potential creativity and identification? Unesp Universidade Estadual Paulista Jlio Mesquita Filho Faculdade de Cincias e Letras, Campus de Assis. Mestrado do Programa de Ps-graduao em Psicologia, 2009.

ABSTRACT

During the course of training in psychology, especially in a work with the Program of Freedom Febem Assisted in the unit of Bauru, offering psychological care ready to participants, initiated the contact with the hip hop movement. In this study, we analyzed the motivation of some young people to join this movement, to perform such analysis, we used the psychoanalytic concept of identification. We want to check the meaning given by these young people to the hip hop movement, and if this can be seen as a potential space for creativity. Young people interviewed are identified with the hip hop movement, and why we are looking at their life stories the moment they began to join the hip hop movement organized in the city of Bauru. I reviewed their biographies and their perceptions about themselves and about social reality in which they live. We conducted semi-directed interviews with each couple in particular. We use the psychoanalytic method to analyze the content of the interviews, especially the theory developed by psychoanalyst Donald Winnicot. Keywords: hip hop culture, processes of identification, potential space; Adolescence.

8

SUMRIO

Introduo..........................................................................................................09 1. O Movimento Hip Hop....................................................................................15 1.1 O movimento Hip Hop e a Psicanlise: a fora da palavra singular............23 1.2. O movimento hip hop como objeto de estudo da academia e seu alcance social...........................................................................................25 2. A juventude e a adolescncia........................................................................29 3. O processo de identificao...........................................................................41 4. Sobre a criatividade, espao potencial e o movimento hip hop.....................48 4.1 O espao potencial......................................................................................50 5.Mtodo............................................................................................................55 5.1. A pesquisa psicanaltica..............................................................................55 5.2.Objetivo........................................................................................................60 5.3.Participantes................................................................................................60 5.4.Instrumentos................................................................................................63 5.5. Procedimento para a anlise das informaes (dados)..............................65 6. Anlise das entrevistas..................................................................................67 6.1. Entrevista 1.................................................................................................71 6.2. Entrevista 2.................................................................................................45 CONSIDERAES FINAIS...............................................................................78 Fontes e Referncias Bibliogrficas..................................................................86 Anexos...............................................................................................................94 Anexo 1..............................................................................................................94 Anexo 2..............................................................................................................95 Anexo 3..............................................................................................................98 Anexo 4............................................................................................................108 Anexo 5............................................................................................................111

9

INTRODUORato de rua Irrequieta criatura Tribo em frentica proliferao Lbrico, libidinoso transeunte Boca de estmago Atrs do seu quinho Vo aos magotes A dar com um pau Levando o terror Do parking ao living Do shopping center ao lu Do cano de esgoto Pro topo do arranha-cu Rato de rua Aborgene do lodo Fua gelada Couraa de sabo Quase risonho Profanador de tumba Sobrevivente chacina e lei do co Saqueador da metrpole Tenaz roedor De toda esperana Estuporador da iluso meu semelhante Filho de Deus, meu irmo. (Ode aos ratos, Chico Buarque, 2001).

Nossa inteno em compreender o movimento hip hop comeou a ser construda a partir da experincia em uma interveno psicolgica junto a jovens residentes da cidade de Bauru (SP), nos anos de 2003 e 2004, que estavam inseridos no Programa de Liberdade Assistida, conveniado da ento Fundao Estadual do Bem Estar do Menor (FEBEM), atual Fundao CASA. Na ocasio, participamos do servio de Planto Psicolgico que era oferecido nas dependncias da clnica-escola da universidade. A coordenadora do estgio recebera um convite para implantarmos este mesmo servio, porm deveria ser dirigido aos jovens do programa de Liberdade Assistida. O trabalho consistia em disponibilizar para estes jovens um espao de ateno psicolgica sem a individual, de procura de espontnea e de pronto ou

atendimento,

necessidade

qualquer

encaminhamento

10 agendamentos anteriores. O enquadre dos atendimentos se diferenciava do enquadre de uma psicoterapia tradicional de longa durao. Buscvamos oportunizar um espao de escuta atenta, com o objetivo de trazer o jovem de volta a nveis suportveis de angstia, possibilitando, se possvel, a dissoluo de seu conflito emergencial e tir-lo momentaneamente da crise. Tnhamos um nico encontro e at mais dois retornos, se necessrio. Inicialmente, a procura por este servio fora muito restrita, com a realizao de alguns atendimentos apenas pelos encaminhamentos das educadoras do programa, as quais, semanalmente, monitoravam estes jovens. Mesmo nesses primeiros encontros, que fugiam da nossa proposta, conseguimos entender que havia um importante receio dos participantes, pois o seu nico contato com o profissional de psicologia se dava nos momentos de avaliao psicolgica, para compor os temidos laudos encaminhados aos juzes da vara da infncia e da adolescncia da cidade. Junto com a proposta de divulgar aos jovens que nossos encontros no encaminhariam relatrios nem para o judicirio nem para qualquer outra parte, percebemos a necessidade de falar a lngua daqueles jovens. Passamos, ento, a conversar informalmente com esses jovens, acompanhando-os nos intervalos das atividades da instituio, na formao de rodas de dana e nas caixas de som, nas incompreensveis canes de rap, com suas batidas repetidas e letras longussimas, quase um canto/fala catrtico. Desenvolvemos, tambm, um cartaz (Anexo 1) com algumas imagens de um jovem rapper, com grafias e grias dentro de uma esttica que considerava ser similar s que presenciava naqueles pequenos grupos, nos corredores da entidade. Gradativamente, rapazes e garotas vinham observar o cartaz e essa aproximao favorecia um primeiro contato, um desconfiado contato entre duas pessoas estranhas. Pouco a pouco se interessavam para trocar idias, solicitando espontaneamente os encontros. Nos atendimentos, notamos que tais indivduos, alm de se declararem simpatizantes do movimento hip hop, frequentemente empregavam as msicas cantadas pelos rappers brasileiros como recurso para explicitar o modo como lidavam com seus dramas pessoais, para narrar o tipo de lazer, a trajetria na criminalidade e no uso de drogas ilcitas.

11 Os atendimentos, entretanto, no se encerravam em seus atos infracionais ou abuso de drogas. Traziam os mesmos dramas e conflitos do adolescente no infrator, suas desiluses amorosas, os seus medos e impasses sobre a vida profissional obviamente demarcados pelo lugar social em que se encontravam e pelo preconceito que sofriam. E, conjuntamente com estes roteiros de seus dramas humanos, fomos conhecendo um colorido completamente inovador, que no figurava nos cenrios que havamos conhecido at ento. Assim, no espao de nossos encontros, em meio s letras das msicas, das expresses e grias empregadas por eles, o contedo simblico que emergia nesses encontros nos suscitava conhecer algo que no entendamos bem o que era, pois no possuamos informaes e nem contato com participantes desse movimento. Nossos contatos com o hip hop (que ainda no compreendamos como um movimento) se restringia a entend-lo como apenas um gnero musical, o rap, que imaginvamos ter alguma difuso nas periferias da cidade de So Paulo. Conforme os atendimentos aconteciam, comeamos a compreender um sentido mais abrangente do hip hop: um movimento artstico e cultural. Aqueles rapazes (o programa tinha uma predominncia de rapazes a garotas) que participavam de grupos mais ou menos organizados de hip hop, nos mostravam um discurso muito arraigado de um conjunto de valores, princpios e aes ticas por vezes bastante rigorosos, que nos contavam por meio da palavra proceder. Acompanhvamos garotos que se utilizavam de sua prpria condio de autor de ato infracional para dar o testemunho de recuperao e de exemplo para colegas e amigos mais novos das comunidades onde viviam. Outros compunham canes relatando seu cotidiano, outros ainda nos contavam narrativas hericas e fantsticas, vivendo as perseguies, os roubos e furtos como odissias modernas, nas quais as perseguies transformavam os policiais em temidos algozes. Interessamo-nos a ponto de buscar por pessoas representativas dentro do referido movimento e os prprios jovens do programa L. A. nos indicavam quem participava efetivamente de grupos de break, de grafite ou da msica rap. A maioria dos integrantes do programa eram apenas expectadores nos shows e ouvintes das

12 canes de rap, entretanto, demonstravam um vivo interesse pelas palavras dos manos dos grupos e at sentiam-se lisonjeados em dizer que eram amigos de algum integrante de grupos locais de hip hop. Ao trmino do estgio, permanecemos voluntariamente neste projeto de extenso at o fim da graduao. Dos diversos atendimentos permanecia o forte interesse em conhecer essa cultura jovem e contempornea,

conjuntamente com o interesse pela articulao entre esse conhecimento e a escuta e prtica psicolgica, especialmente da teoria psicanaltica. No nos interessava conhecer esse fenmeno cultural apenas sob o ponto de vista sociolgico, nem mesmo tnhamos a pretenso de nos tornarmos militantes da causa hip hop, renegando nossa condio de estrangeiros nessa empreitada. Pudemos, ento, iniciar nossa busca para ampliar e aprofundar o entendimento acerca da juventude/adolescncia atual, na direo tanto das discusses psicanalticas quanto do ambiente social contemporneo. As discusses no meio acadmico dessa experincia de estgio (congressos, artigos e relatos de experincia), facilitam (num sentido winnicottiano de um ambiente facilitador) o prosseguimento aos estudos dentro da ps-graduao. Surgem novas indagaes: o movimento hip hop realmente de contestao e de denncia das suas condies de vida? Qual o impacto de tal movimento na sociedade? Quais as razes que levam os jovens a se sentirem atrados por ele? Seria possvel conciliar tais questionamentos dentro dos estudos da Psicanlise? Soma-se a isso, o fato de tomar cincia, por intermdio da mdia, do crescimento desse movimento em todo o Brasil. Encontrando, desse modo, a notria contradio da posio marginal que os principais atores desse movimento os jovens moradores das periferias das nossas grandes cidades ainda ocupam no discurso social brasileiro. A busca inicial no meio acadmico se confronta com estas tenses e contradies de um fenmeno social contemporneo. Que nos leva a compreend-lo ora como um movimento vivo de resistncia a uma ordem ps-moderna de mxima individualizao, ora

13 como mais uma ingnua tribo jovem apropriada pelos fundamentos da indstria cultural. Valendo-se de tais problematizaes, esta pesquisa pretende entender como esses fatores apresentados esto significados na escolha de indivduos, particularmente os jovens, que se inserem no movimento hip hop. O propsito central, portanto, foi analisar o que leva os jovens a se inserirem no movimento hip hop. Procuramos, tambm, analisar suas histrias pessoais, as percepes que estes jovens tm de si e de sua realidade social, bem como entender suas aproximaes com os elementos da cultura hip hop. Por considerarmos que tal proposta abrangente e so mltiplas as possibilidades de interpretaes a respeito desse fenmeno, escolhemos o caminho metodolgico e terico da Psicanlise para tal empreitada, assumindo que essa cincia de modo algum se prope a esgot-lo ou a apreend-lo plenamente [mesmo porque tal aspecto seria inconcebvel para a teoria psicanaltica]. Nesta perspectiva, adotamos, especificamente, o conceito de

identificao ou de processo identificatrio como ncleo de anlise para problematizarmos os aspectos psquicos desses jovens e suas inseres nesse movimento cultural contemporneo, o hip hop. O delineamento de uma pesquisa psicanaltica inserida no campo social, particularmente de contorno artstico, jovem e grupal, favorece o encontro com a teoria do psicanalista ingls Donald Winnicott (1896/1971), particularmente pelas fundamentais consideraes a respeito do espao potencial, da criatividade implicados num processo identificatrio desses jovens. No presente texto, direcionaremos nossas discusses tericas para abordar, por exemplo, a adolescncia contempornea e o conceito psicanaltico de identificao. Ao tratarmos de um movimento grupal de realizaes artsticas e polticas para um contingente jovem das periferias, estaremos aventando um espao singular na contemporaneidade de experimentao espontnea e criativa, de ressignificao, de pertinncia (um espao potencial para Winnicott) demarcando um modelo identificatrio no cenrio atual. Ressaltamos que esta dissertao encontra-se estruturada em seis

14 partes. Os captulos iniciais contm as justificativas cientficas, os objetivos, o mtodo constitudo de um prembulo sobre a pesquisa psicanaltica, os nossos sujeitos, os instrumentos, os procedimentos para a coleta e a anlise das informaes e, por fim, encontram-se as anlises das entrevistas realizadas com participantes do movimento hip hop da cidade de Bauru/SP, seguidas pelas consideraes finais advindas da anlise do presente estudo.

15 1. O Movimento Hip Hop

O movimento hip hop se caracteriza, basicamente, por trs expresses: o rap, o break e o graffite. O rap a sigla de um estilo musical intitulado rhythm and poetry. Conforme Scandiucci (2005, p. 2) uma espcie de msica de canto falado ou fala rtmica, comandada por MCs (mestres de cerimnia) e DJs (a pessoa que comanda os equipamentos de som e cria a melodia).

A palavra rap tem diversos significados em ingls. Ela remete tanto expresso pancada seca quanto idia de criticar duramente. Como gnero artstico, o rap baseia-se em uma fala ritmada sobre um fundo musical muitas vezes apenas uma batida ritmada (...). A estrutura do grupo de rap centra-se em pelo menos um DJ (que controla as picapes, ou vitrolas) e um MC, o mestre de cerimnias. O hip hop, por sua vez, pode ser tanto o estilo de vida das pessoas que apreciam o rap, o universo dos DJs, o grafite, etc, quanto a msica que acompanha a fala do MC. (Folha de So Paulo, Mais, 14/10/2001)

Vale apresentar o depoimento de um dos pioneiros do rap brasileiro, o mestre de cerimnia (MC) Thade (da extinta dupla Thade & DJ Hum) que no programa televisivo da emissora MTV (Music Television Brasil) sobre sua histria e a histria do hip hop brasileiro, afirma que seu maior arrependimento na sua trajetria fora no ter divulgado a palavra rap de maneira abrasileirada rep. Pois assim, proporcionaria uma conexo com o repente nordestino (como o coco e a embolada) que para o rapper estreitaria ainda mais os laos da cultura das ruas norte-americanas, encontrando com as razes culturais brasileiras. Quanto ao break ou breaking, um tipo de dana descontnua, que busca, ao mesmo tempo, evidenciar a conexo e a ruptura com o mundo da tecnologia. Por essa razo, os danarinos realizam movimentos robotizados e mmicas automatizadas de procedimentos do cotidiano. Segundo Silva (1999, p. 4):Com tinta e spray, alguns desenhavam os contornos de seu mundo, reproduzindo imagens que no eram alcanado ou privilegiado pelos mass media: o Graffite. Com os prprios corpos, outros construam e desconstruam, a partir da dana, a conexo e ruptura com um mundo de alta tecnologia. Os

16movimentos dos Breakers lembravam os robs, ou eram a mmica automatizada de procedimentos do cotidiano, sendo a um s tempo crtica e relato: o Break. Com voz e bases sonoras, gestavam uma narrativa influenciada pela memria recente dos grandes lderes afro-americanos assassinados nos anos 60, Malcom X e Martin Luther King, suas lutas pela autoestima e igualdade: o Rap.

Cabe apresentar, tambm, o esclarecimento de Marcelinho Back Spin, um dos expoentes brasileiros da dana breaking. O danarino enfatiza que o termo break relativo a um elemento sonoro da msica e o elemento de dana pode ser o breaking, executado pelos danarinos, os b.boys. Destaca, ainda, a incorporao dos elementos importados do hip hop norteamericano, com a apropriao que os protagonistas nacionais realizaram. E apresenta o exemplo do girar a cabea no cho movimento caracterstico dos b.boys refutando pesquisadores que atriburam sua criao por soldados americanos na guerra do Vietn (1959/1975), pois, para ele, o seu giro de cabea anterior a isto, est relacionado capoeira de Angola e era realizado pelos escravos, no Brasil colonial (ZIBORDI, 2005). J o graffite, um tipo de expresso plstica feita com tintas de spray. Por meio desse tipo de produo, os grafiteiros como so chamados buscam expressar nos muros e espaos de grande circulao de automveis e de pessoas (viadutos, pontes, elevados) imagens do mundo vivenciado por eles. O movimento hip hop nasceu nos guetos nova-iorquinos, a partir de uma demanda social de paz, na dcada de 70 (sc. XX). Os negros e hispnicos viviam a excluso e as perseguies policiais, numa conjuntura social de violncia, como a guerra do Vietn, a invaso das drogas nos guetos e o acirramento do mercado de trabalho. Desencadeando a violncia entre os grupos de jovens (gangues), principalmente dos negros e hispnicos dos guetos americanos (ANDRADE, 1996 apud MAGALHES, 2002).Desde ento, equipes organizadoras de baile procuraram transferir para os bailes a inquietao e a rivalidade que antes pertenciam apenas esfera das ruas: os jovens passaram emulso [sic] nos bailes, para ver quem danava (break) ou rimava (rap) melhor. O free style, ou improviso, um recurso de que os rappers se utilizam para competir nos palcos. Da

17necessidade de se responder violncia, sem violncia, mas aguerridamente, mediante versos, dana e desenho, formou-se um movimento juvenil mais ou menos estruturado, tendo como base as formas expressivas daquela juventude pobre, formada principalmente por negros e latinos. O break, o rap e o grafite passaram a formar a trindade expressiva que viria a se espalhar pelas periferias do mundo (MAGALHES, 2002, p. 34/35).

A afirmao de Andrade (1996) questionada por Frank Ejara, pesquisador e danarino (b.boy, dirigente do grupo Discpulos do Ritmo de So Paulo), que em sua entrevista para a revista Caros Amigos especial hip hop de 2005, alude que a dana no movimento hip hop no surge para evitar brigas de gangue, entendendo essa afirmao como uma fantasia da mdia. Outro equvoco em sua opinio a associao feita no Brasil de colocar o movimento hip hop como um movimento de esquerda, ou de luta poltica que s aconteceu com o passar do tempo, porque no comeo, era uma festa, black party (ZIBORDI, 2005). Entretanto, ainda que no houvesse uma imediata assuno poltica nos primrdios do movimento hip hop brasileiro, a herana de uma cultura dos guetos norte-americanos que se pronunciavam diante da segregao racial e social, no por acaso se dissemina, primeiramente, na periferia da cidade de So Paulo, considerada uma metrpole segregacionista, violenta e opressiva (NETO; GERBER, 2007). Segundo Dayrell (2002), Magro (2002) e Scandiucci (2005), o papel exercido por este movimento se insere, hoje, amplamente na populao jovem, sobretudo no contingente de adolescentes das periferias dos grandes centros urbanos brasileiros. Nesse sentido, podemos depreender que o rap enquanto expresso mais difundida do movimento hip hop j encontra um lugar no cenrio da cultural nacional, principalmente dentro da msica popular brasileira. Desde as primeiras tentativas de aglutinar os pioneiros artistas do rap na dcada de 80, em So Paulo, e, posteriormente, no Rio de Janeiro, por meio das coletneas (denominadas pau de sebo) , a caracterstica da afirmao de uma cultura produzida na periferia e por ela consumida, demarcam o territrio de independncia do binmio produo/distribuio do movimento hip hop.

18 Conseguem formas criativas de divulgao e distribuio dos seus CDs1 ou LPs2, levando-os a atingir diretamente seu pblico, mesmo sem o apoio miditico e infraestrutural das grandes gravadoras e distribuidoras. Todavia, o mercado fonogrfico, cada dia mais, capta o crescimento de um filo econmico, um produto no apenas musical, como tambm de toda uma esttica que acompanha a cultura de rua, que se direciona para o consumidor negro e para a populao moradora das periferias das grandes cidades de modo geral. Retomando ao cenrio musical/cultural, um exemplo dessa expanso a realizao de grandes festivais em reverncia cultura hip hop, como o Prmio Hutz3 e o Festival Hip Hop Manifesta, entre outros (AMARAL, [s.d.], online). O crescente reconhecimento e abertura para o movimento hip hop, demarca igualmente suas profundas divergncias internas. O poeta Euclides Amaral ([s.d.], online) posiciona a falta de unio do hip hop nacional, principalmente pelo embate ideolgico entre fazer parte da indstria cultural e permanecer fiel ao discurso de contestao e expresso das mazelas sociais. Como exemplo dessas desavenas, os representantes paulistas consideram o funk4 e os rappers cariocas como alienados politicamente. Os prprios cariocas dividem o funk em duas principais vertentes: o funk proibido que trata das agruras sociais nas favelas e o funk sensual, que tematiza o sexo em detrimento das denncias sociais. Outro exemplo de embate ideolgico o posicionamento do lder do grupo Racionais MCs Mano Brown, que se recusa participar de programas das grandes redes de televiso, posicionando suas crticas a outros rappers que se vendem ao sistema. O rap distingue-se no somente pelo seu ativismo social mais ou menos explcito , seus variados matizes culturais e apropriaes atravessam1 2

CD: Compact Disc. LP: Long Play, os discos de vinil. 3 Hutz: palavra do dialeto africano que significa um tipo de saudao entre amigos. Esse evento conta com a parceira da CUFA (Central nica das Favelas), liderada pelo rapper carioca MV Bill. 4 Funk: expresso musical que contm alguns elementos do rap, porm com o predomnio da batida eletrnica mais danante do que o canto falado do rap. extremamente controversa a sua incluso como elemento da cultura hip hop, principalmente pelos integrantes paulistas do movimento hip hop.

19 no s o rap, mas todo o movimento hip hop, conforme percorremos anteriormente neste subitem. Essas variaes incidem nos contedos das canes, na forma peculiar que se organiza cada grupo, ainda que partilhem elementos artsticos, estticos e linguagem. Para ilustrarmos essas diferenas, podemos apresentar dois

representantes, ambos fazendo o uso do rap enquanto expresso musical, contudo, bastante antagnicos entre si: os grupos Apocalipse 16 e Faco Central. Apocalipse 16 o grupo de rap gospel que tem como lder, o rapper e pregador Luo. O nome Luo foi escolhido pelo prprio rapper e se relaciona com a segunda maior tribo do Qunia. O grupo j recebeu inmeros prmios tanto nas premiaes do movimento hip hop, quanto nas premiaes da msica gospel evanglica. A temtica de suas canes apresentada na biografia do website do prprio grupo (disponvel em http://www.7tacas.com.br/, [s.d.], online):

Os temas abordados nos trabalhos de Luo variam entre contedos hoje pouco valorizados na msica brasileira, como por exemplo, o respeito s mulheres, ou a valorizao da raa e da cultura afro e latino-americana. Esto sempre presentes nos lbuns que ele lana uma avaliao do atual momento social e espiritual do pas e do mundo, segundo a sua prpria tica. As belezas e as mazelas da nossa prpria ptria so relatadas em cima de uma sonoridade diferente do tradicional rap feito no Brasil.

Segue um trecho de sua cano Apc 16, composta pelo rapper/ pregador Luo (disponvel em http://letras.terra.com.br/apocalipse-16/487505, [s.d.], online):Chegamos chegamos at vocs banca forte pode cr APC 16 D crdito a tudo q falo, pois no divago no gasto meu vocabulrio como gastam os otrios Prefiro conscientizar e no viciar. Prefiro cantar a paz e no incitar a violncia. No concordo com a indecncia q vejo na televiso No caia na iluso de ser um playboy da televiso MV Bill mandou um papo reto que de irmo invs de vender droga por q no traficar informao no seja vtima da injeo letal q te aplica o sistema No, no tema o homem de farda ou de arma, pois na bblia tem essa frase escrita No te alcanar seta maligna nem mal algum q a noite transita No seja a bola da vez passe para o lado do APC 16

20Refro: APC 16, APC 16, APC 16 Hey, hey pode cr eu j cheguei estou aqui pra quem no me conhece prazer Charles MC Ao invs de me destruir como fazem os imbecis eu me preservo Eu no quero ir pro inferno arder nas chamas de Lcifer Prefiro desfrutar o Paraso com o Senhor Jeov O diabo est louco para te desgraar. Da Zona Sul quem vai falar o Pregador Luo Minha rima como a gua mole e seu corao como a pedra dura Mas quando ela bate eu t ligado que ele fura. E se ele num fura seu corpo desce sete palmos na sepultura. Mas a alma desce bem mais. Vai para as profundezas do inferno queimar com Sat... No esse nome eu no digo mais no, eu no digo. Faa aquilo eu mesmo j te disse Passe logo para o lado da Famlia Apocalipse. Refro: APC 16, APC 16, APC 16

O rap gospel uma das vertentes mais pungentes dessa expresso musical. Pinheiro (2004) descreve que o rap gospel tem incio com a proposta dos bailes gospel, promovidos por produtores e compositores evanglicos no final da dcada de 70, mesmo perodo do surgimento das igrejas neopentecostais como a Renascer em Cristo. Nestes bailes eram executadas a Black music (msica negra), atraindo um grande contingente de pessoas nos bairros suburbanos da cidade de So Paulo. Geralmente, algum representante da igreja se fazia presente e realizava uma breve pregao evangelista aos participantes. No Brasil, inversamente do que ocorre nos Estados Unidos, a msica da esfera no religiosa influencia as msicas produzidas por e para os evanglicos. Existindo tambm o interesse institucional em aumentar o nmero de fiis, tendo a msica um papel importante no proselitismo realizado (PINHEIRO, 2004). Desse modo, muitas igrejas evanglicas, sobretudo as neopentecostais, reconhecem rapidamente a expanso e a fora do movimento hip hop, passando a utilizar os seus elementos como via evangelizadora. J o grupo da regio central da cidade de So Paulo Faco Central formado no ano de 1989, at hoje considerado o grupo com composies mais agressivas e radicais do rap nacional.

21 Apresentam-se como nascidos e criados em cortio, convivem desde a infncia com a violncia social, o trfico de drogas, os vcios, a violncia policial, as delegacias e os presdios. Inspiram-se nesse passado violento para compor suas letras contundentes que relatam o cotidiano das camadas mais baixas da sociedade, alm de criticar duramente aqueles que, na viso do compositor Eduardo, seriam os causadores dos problemas discutidos nas letras das canes. Contam no website do grupo (http://faccaocentral.rapnacional.com.br) que j receberam ameaas policiais por telefone, censuras de algumas rdios, prises pelo contedo de algumas letras e at mesmo a proibio de veiculao na televiso brasileira do videoclipe Isso aqui uma guerra, considerado pelas autoridades como apologia da violncia. Apresentamos a letra da cano A minha voz est no ar (composio do prprio grupo Faco Central):A boca s se cala quando o tiro acerta Eu sou o sangue o defunto no cho da favela A orao da tia sem comida O mendigo com a perna cheia de ferida Eu rimo o ladro que mata o playboy O viciado que toma tiro do gamb do gi O detento que corta o pescoo do refm O alcolatra no bar bebendo 51 tambm Conto a histria do traficante Do ladro no banco bebendo seu sangue Do moleque com a testa no muro da FEBEM Do nordestino tomando sopa na CETEM Canto o corpo que bia decomposto no rio A 12 que entra na manso a mil Cad o dinheiro tio No tem ento bum vai pra puta que o pariu O meu assunto favela farinha deteno Sou locutor do inferno at a morte faco uma gota de sangue em cada depoimento Infelizmente rap violento Eduardo dum dum erick 12 lamento Versos sangrentos Pode ligar pode ameaar Enquanto a tampa do caixo no fechar Minha voz ta no ar 4x a boca s se cala quando o tiro acertaQuando o tiro acerta Falo do mano com a pt carregada Que por porra nenhuma te mata Da criana vendendo seu corpo por nada Da famlia que come farinha com gua Ou o humilde brasileiro aqui da periferia

22Que usa tnis da barraca camisa da galeria Canta pro moleque com fome sem conforto No roubar seu rolex No cortar seu pescoo D os dlares seno vai pro inferno isso que eu tento evitar com meu verso Que defende quem no pode se defender Que ta do lado de quem assalta pro filho comer No aceno bandeira no colo adesivo No tenho partido odeio poltico A nica campanha que eu fao pelo ensino E pro meu povo se manter vivo No enquadrar o boy de carro importado Abaixar o revolver procurar um trabalho uma gota de sangue em cada depoimento Infelizmente rap violento Eduardo dum dum erick 12 lamento Versos sangrentos Pode ligar pode ameaar Enquanto a tampa do caixo no fechar Minha voz ta no ar 4x a boca s se cala quando o tiro acerta-ta Quando o tiro acerta No canto pra maluco rebolar Meu som pra pensar pra ladro raciocinar No to na tv nem no rdio No fao rap pra cuzo balanar o rabo Quero minha voz dando luz pro presidirio Denunciando a podrido do sistema carcerrio Tirando a molecada da farinha No quero seu filho na mesa do legista Eu to do lado da criana com fome desnutrida Que d bote na burguesa e corre na avenida Eu sou igual qualquer ladro Qualquer assassino Um revlver um motivo s o que eu preciso Pra roubar seu filho meter um latrocnio Quem viu a me pedindo esmola tem sangue no raciocnio Meu dio meu verso combinao perfeita Revolta do meu povo o veneno da letra Menos violenta que um prato com migalhas Ou o ladro te cortando com a navalha Eu canto o cortejo o carro funerrio O pai de famlia sonhando com um salrio uma gota de sangue em cada depoimento Infelizmente rap violento Eduardo dundum erick 12 lamento Versos sangrentos Pode ligar pode ameaar Enquanto a tampa do caixo no fechar Minha voz ta no ar 4x a boca s se cala quando o tiro acerta-ta Quando o tiro acerta. (Disponvel em: http://letras.terra.com.br/faccao-central/74387/ [s.d.], online).

23

Estes dois exemplos divergentes ilustram o campo multifacetado que trilharemos. Para o nosso trabalho analisaremos o movimento hip hop e seus elementos principais, levando em conta suas tenses internas, contradies, ambiguidades e ambivalncias, respaldando-nos na perspectiva psicanaltica.

1.1 O movimento Hip Hop e a Psicanlise: a fora da palavra singular.

Analisamos o hip hop, particularmente o rap, sua expresso musical incluindo-a no campo do existir humano paradoxal, ambguo, ambivalente. Como manifestao cultural do nosso tempo, da ps-modernidade, Neto e Gerber (2007) apontam o rap como objeto de necessidade de uma populao marginalizada e culturalmente excluda que tem a demanda de expresso verbal. Os autores apresentam a condio ambgua da msica rap, isto , sua grande novidade de privilegiar o contedo da linguagem em detrimento da msica; e alegam que tal condio repousa na tradio das confrarias musicais ou msica do povo, na poca pr-renascentista, em que as msicas populares eram cantadas nas tabernas ou nas guildas 5 dos trabalhadores. Relembram, tambm, que as msicas que herdamos desse perodo so as msicas dos nobres, cujos compositores desenvolviam suas criaes baseados nas canes populares. Outra conexo do rap so as suas razes africanas. Neto e Gerber (2007, p. 8) assinalam essa identificao cultural:O rap decididamente africano at no contexto ideolgico: a msica original negra cantada em rituais, cantada em conjunto, e ela representa a unio fraterna de uma etnia, de uma tribo. A partir da, tm-se os corais sul-africanos, uma mistura com a msica protestante e todo o caudal que vai desembocar no gospel, no blues, e tudo mais .

O sentido de uma fraternidade do rap/movimento hip hop remete, consequentemente, s suas origens histricas. Nosso trabalho questiona se5

Guildas: Associao de mutualidade constituda na Idade Mdia entre as corporaes de operrios, artesos, negociantes ou artistas (Dicionrio Aurlio, 1988).

24 este sentido fraterno do hip hop est presente na constituio de subjetividades contemporneas, ao menos para uma significativa parcela da populao. Sendo assim, qual o uso que nossos jovens fazem dessa experincia? Neto e Gerber (2007, p. 9) comparam-no a uma msica de transe, como a percusso africana, que leva as pessoas a um estado alterado da conscincia estado coletivo, como no candombl. Em entrevista para o jornalista Barros e Silva (2004) da Folha de S. Paulo, o cantor e compositor Chico Buarque fala da fora musical do rap, destacando o indito protagonismo dessa expresso cultural:

Agora, distncia, eu acompanho e acho esse fenmeno do rap muito interessante. No s o rap em si, mas os significados da periferia se manifestando. Tem uma novidade a. Isso por toda a parte, mas no Brasil, que eu conheo melhor, mesmo as velhas canes de reivindicao social, as marchinhas de carnaval meio ingnuas, aquela historia de lata d gua na cabea etc. e tal, normalmente isso era feito por gente da classe mdia. O pessoal da periferia se manifestando quase sempre pelas escolas de samba, mas no havia essa temtica social muito acentuada, essa quase violncia nas letras e na forma que a gente v no rap. Esse pessoal junta uma multido. Tem algo a (BARROS E SILVA, 2004).

Pensamos no encontro do movimento hip hop com a Psicanlise, na medida em que ambos acreditam na fora da palavra singular. Singularidade que rompe com o individualismo, pois se d nas relaes com outros sujeitos, no campo das relaes sociais. A fala de Spensy Pimentel, pesquisador e participante do movimento hip hop ilustrativa dessa possibilidade de conexo:

Mas o que significa fazer parte de um movimento que no pede carteirinha nem ficha de filiao? Minha tese: hip hop, irmo, a palavra que liberta. Pra fazer rap, danar break ou grafitar, voc tem que encontrar a sua palavra. O seu gesto. O seu trao. O seu pensamento. A sua alma. No bater palma e pagar pau, subir no palco ou entrar na roda e fazer voc mesmo (PIMENTEL, 2005, p. 3).

Por sua vez, nosso trabalho se prope escuta psicanaltica do movimento hip hop, buscando superar a dicotomia (psquico e social) e entender as ambivalncias desse movimento.

25 Movimento cultural que ora pode ser a possibilidade de um grito contrrio ao desamparo contemporneo (BIRMAN, 2000), ora se coloca como uma tentativa messinica, desvalida frente contempornea tentativa de comercializar esse resto, essa periferia enquanto lugar extico, reduto das projees violentas das elites nacionais. Por fim, cabe apresentar a provocao de Mautner (2004, p. 246) a respeito desse lugar perifrico: No desterro, no perifrico cantar a sua vida na forma de cano sobre si prprio.

1.2. O Movimento Hip Hop como objeto de estudo da academia e seu alcance social.

Inicialmente, buscamos dados sobre o movimento hip hop, com a pretenso de compreender se era um movimento crescente no Brasil. Os dados obtidos por intermdio da Associao Brasileira de Organizaes No Governamentais (Abong) nos levaram a constatar que diversas organizaes no governamentais que tm por objetivo o atendimento aos jovens sobremaneira os que se encontram em situao de risco pessoal e social , introduziram elementos desse movimento como ferramenta de transformao dos elementos do hip hop em atividades de formao profissional, educacional e cultural. Ultimamente, observamos a crescente apresentao de diversos cantores de rap, de shows de break e do reconhecimento do grafite como arte. Igualmente, por esse motivo que, por exemplo, instituies da sociedade poltica como a polcia militar de Minas Gerais tm buscado dominar elementos do movimento hip hop, com o fim de, com isso, se aproximarem especialmente do discurso social de uma juventude que figura como estranha no imaginrio da elite dominante brasileira. Em todas as regies do territrio brasileiro, o movimento hip hop amplia suas aes. A edio especial hip hop hoje da revista Caros Amigos (2005) apresentou o alcance e as mltiplas atividades que circundam o universo desse movimento. Na regio sudeste, ainda em Minas Gerais, a antroploga Jlia Torres,

26 listou mais de trezentos grupos de rap em sua dissertao de mestrado para a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O centro-oeste participa do hip hop com bandas que misturam o rap com gneros como congada, caatinga, folia de reis, moda de viola, tal como a banda goiana Testemunha Ocular. Na regio norte do Brasil formou-se o Movimento Hip Hop na Floresta, congregando ideologia hip hop com conceitos ecolgicos, para fortalecer a cultura amaznica. O movimento valoriza as tribos indgenas, os quilombolas e as populaes ribeirinhas, com rap e bumba-meu-boi. No sul, a reportagem apresenta uma ligao do movimento hip hop gacho com o ento governo estadual, que possibilitou a criao de um programa televisivo (Hip hop Sul), o qual permanece mesmo aps a mudana partidria no Estado, demonstrando a expanso do hip hop entre todas as classes sociais na regio (CONTIER, 2005). O nordeste desenvolve uma vertente poltica do movimento, onde diversos Estados como o Piau, Recife, Bahia e Maranho organizam oficinas de MC (mestre de cerimnia), produo de fanzine e at curso pr-vestibular para negros. Misturando elementos da cultura negra, como capoeira, candombl, tambor-de-crioula, tambor-de-minas, bumba-meu-boi, maracatu, entre outras referncias locais com a batida e a voz do rap. Concomitante a essa busca de dados quantitativos, iniciamos o levantamento bibliogrfico sobre o tema, pesquisando nas seguintes bases de dados eletrnicas: Dedalus, da Universidade So Paulo (USP); Athena, da Universidade Estadual Paulista (Unesp); Sapientia, da Pontifcia Universidade Catlica (PUC-SP); Acervus, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); Portal peridicos e Banco de teses, da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Capes); na biblioteca eletrnica A Scientific Electronic Library Online (SCIELO); e no Psychological Abstracts, da American Psychological Association. A primeira constatao foi de que no encontramos no Brasil estudos que pudessem responder a nossa inquietao acerca dos processos psicolgicos que levam os jovens a se inserirem no movimento hip hop, particularmente as leituras psicanalticas. Fundamentalmente, os estudos realizados tiveram como objetivo central

27 as questes tnico-raciais da juventude negro-descente (SCANDIUCCI, 2006), o protagonismo histrico-cultural dos jovens pertencentes ao movimento hip hop e sua forma peculiar de socializao (MAGRO, 2002; DAYRELL, 2002) e seus participantes como agentes de uma narrativa do Brasil que no est no discurso hegemnico (SILVA; SOUZA, 1999). A segunda verificao mostrou que a maioria dos estudos desenvolvidos consistia de ensaios, quase todos de carter sociolgico. o caso do estudo de Gorczevski (2002) que buscou refletir sobre a relao perturbadora que o movimento hip hop caracterizado como uma cultura emergente provoca na mdia, ao mesmo tempo em que por ela perturbado. A mdia contemplada nesse trabalho, alm de cumprir o importante papel de dar visibilidade e sentido aos inmeros acontecimentos e grupos na sociedade, cada vez mais evoca para si o lugar de agenciadora dos conflitos sociais (GORCZEVSKI, 2002, p. 1). A terceira observao relaciona-se a investigaes psicolgicas sobre o tema. Encontramos somente a dissertao de mestrado Rappers: artistas de um mundo que no existe um estudo psicossocial de identidade a partir de depoimentos (MAGALHES, 2002) que buscou investigar a identidade do rapper brasileiro por meio das narrativas de participantes, utilizando-se de entrevistas de longa durao e anotaes de dirio de campo. A autora inserese no campo de investigaes de uma psicologia do oprimido, transitando pelos autores da Psicologia Social e da Psicanlise, contudo com o predominante vis sociolgico. Em sntese, entendemos que, apesar do crescente interesse do meio acadmico para o estudo desse fenmeno, os trabalhos empricos existentes so exploratrios e no conclusivos. Somam-se a isso, o fato de no termos encontrado estudos que nos permitissem pensar os processos inconscientes que esto em jogo na insero dos jovens ao movimento hip hop nossa preocupao central. Considerando tais aspectos e o fato de acreditarmos que o conhecimento produzido por ns poder ser de valia para se construir formas de interveno psquica e educacional junto aos jovens que frequentam tal movimento , buscamos a compreenso, por meio da leitura do conceito de identificao na Psicanlise e se esse espao grupal pode ser considerado

28 criativo, quando inserido no campo terico do espao potencial conceito do psicanalista ingls Donald Winnicott.

29 2. A juventude e a adolescncia

Quanto nossa definio de jovens, cabe destacar que os desafios para a compreenso da juventude, particularmente a juventude brasileira, impe-nos a reconhecer as complexas relaes desse conceito na contemporaneidade e a falta de uma caracterizao consensual, mesmo para os autores da Psicanlise. Aproximaremos, no nosso trabalho, os conceitos de juventude e adolescncia, remetendo a este ltimo um particular funcionamento mental, mesmo considerando a distino que tais termos podem apresentar em diversos outros trabalhos acadmicos. A faixa etria a ser adotada e que caracteriza a juventude, de acordo com a Organizao das Naes Unidas (ONU), em Assemblia Geral realizada em 1985 (ABDALA, 2003, p. 125), entende como jovens todos os indivduos com idade entre 15 e 24 anos. Retomando as divergncias tericas sobre a juventude e a adolescncia, Matheus (2002, p. 10) prope que a adolescncia um trabalho psquico resultante, sobretudo, da insuficincia de dispositivos que cumpram a funo de rituais iniciticos, fenmeno caracterstico da Modernidade. A esse respeito, Calligaris (2000) destaca que a adolescncia ocupa uma das mais poderosas formaes culturais de nossos tempos. A ponto de servir de modelo de comportamento, de referncia, pelo qual o adolescente se reconhece. delineando a adolescncia, a nosso ver, que poderemos nos aproximar, segundo o autor, do conceito de juventude, como um ideal cultural imprescindvel na configurao do mundo moderno. O adolescente, para se definir e caminhar para a idade adulta, est influenciado pelo reconhecimento dos adultos; assim, as escolhas dos adolescentes so, em sua maioria, a realizao do sonho dos adultos. Essa condio se refora em nossa cultura pela falta de rituais de passagem, assim como a idealizao de nossa cultura pela suposta autonomia/liberdade da adolescncia, considerando a adolescncia como um

30 ideal cultural. A busca pela autonomia fomenta a caracterstica peculiar dos adolescentes pela grupalidade, formando grupos com caractersticas e identidades definidas, apresentando em comum uma esttica, preferncias culturais e comportamentos prprios. A apropriao comercial e ideolgica desses grupos bastante facilitada pela conformidade de consumo de seus membros, inclusive o prprio elemento de rebeldia pode, desse modo, ser negociado. A adolescncia, por ser um ideal de adultos, se torna um fantstico argumento promocional (CALLIGARIS, 2000, p. 59). A tendncia grupal manifestada pelos adolescentes alia-se, ainda, emergncia de um perodo histrico vigente em que predominam atitudes grupais, caracterizado por Maffesoli (1987) como o tempo das tribos.Cada grupo conta suas histrias, cada um participa de uma srie de tribos, constituindo o que o autor chama de neotribalismo, caracterizado pela fluidez, pelos ajuntamentos, pela disperso. No neotribalismo as pessoas circulam, participam de uma rede, mas sem um projeto especfico. Criam-se cadeias de amizade que possibilitam as relaes atravs do jogo da proxemia: algum me apresenta a algum que conhece outro algum, e assim por diante. H uma ntima ligao entre a proxemia e a solidariedade. A ajuda mtua surge por fora das circunstncias e sempre pode ser ressarcida no dia em que se tiver necessidade dela. Os grupos sociais do forma aos seus territrios e s suas ideologias, e depois so constrangidos a se ajustarem, suscitando uma multiplicao indeterminada de tribos que seguem as mesmas regras de segregao e de tolerncia, de atrao e de repulso (GUIMARES, 1996, p. 75).

O entorno sociocultural, assim como a historicidade do conceito de adolescncia, imprescindvel para o entendimento da adolescncia na contemporaneidade. Outeiral (2005) apresenta o conceito de adolescncia como um perodo evolutivo, organizado no sculo XX entre as duas grandes guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945). J Levisky (2005) contraria essas teses, ao verificar no seu estudo histrico-psicanaltico a existncia da adolescncia na Idade Mdia, sugerindo que todos os jovens no perodo de transio da infncia para a vida adulta

31 passam por ela. Segundo ele, o que varia a forma de vivenci-la e de manifest-la, inclusive o tempo de durao, devido aos valores da cultura incorporados durante o desenvolvimento do sujeito psquico (LEVISKY, 2005, p. 1). Para alm desse debate acerca da inveno ou no da adolescncia, a nosso ver, bastante pertinente, ater-nos-emos reflexo sobre a

representao tradicional da adolescncia/juventude proposta pelas cincias humanas, particularmente as psicolgicas. O perodo denominado adolescncia normal tratou hegemonicamente o adolescente de classe mdia, branco e homem, morador de pases desenvolvidos; viso esta discutida e criticada por Magro (2002). Tratamos, portanto, de juventudes e adolescncias plurais com entornos sociais prprios, assim como suas subjetividades. No desconsiderando, contudo, as importantes contribuies das obras clssicas da Psicanlise, sobre a adolescncia, tais como Adolescncia Normal: um enfoque psicanaltico de Arminda Aberastury e Maurcio Knobel (1981). Acreditamos que as consideraes acerca da sndrome normal da adolescncia e dos processos depressivos e de luto na adolescncia normal que estes autores introduziram na dcada de setenta ainda so vigentes e de grande valia para nosso referencial de anlise. Entretanto, trabalhamos com estas contribuies contextualizando-as nos enquadres de uma adolescncia contempornea e, no tocante aos jovens do hip hop, o contexto particular de suas realidades socioculturais. Outeiral (1998) contribui para essa discusso sobre o adolescente contemporneo afirmando que nos estratos menos favorecidos de nossa sociedade, o processo adolescente abreviado, observando a instalao de uma pseudomaturidade, de uma aparente postura adulta. O autor ressalta que se trata, na verdade, de mecanismos defensivos voltados para a sobrevivncia do corpo e da mente, o que na clnica psicanaltica convencional poderia se atribuir aos nveis mais integrados do amplo espectro das Tendncias AntiSociais ou do Tipo Falso Self. Quanto s consideraes do psicanalista ingls Donald Winnicott sobre

32 o processo adolescente, Outeiral (1998) relata que Winnicott se interessou largamente pelo estudo da adolescncia, escrevendo artigos especficos e temas correlacionados. Um dos seus principais textos e mais conhecidos o captulo do livro A famlia e o desenvolvimento do indivduo (1980), intitulado Adolescncia lutando contra a depresso (1961/ 1980). Outras referncias so os textos Conceitos Contemporneos do Desenvolvimento Adolescente e suas Implicaes para a Educao Superior (1968/1975), do livro O Brincar e a Realidade (1975); Dedues a Partir de Uma Entrevista Psicoteraputica com uma Adolescente (1964/1994) e Distrbios Fsicos e Emocionais em uma Adolescente (1968/1994) integrantes da obra Exploraes Psicanalticas (1994). Para discorrermos sobre as contribuies winnicottianas a respeito da adolescncia, faz-se necessrio apresentar seu entendimento do processo maturacional humano, pois, para Winnicott, herdamos uma tendncia que nos dirige maturidade, mobilizada de acordo com cada estgio do

desenvolvimento fsico e psquico. Esta tendncia s pode ser experienciada pela presena de um ambiente facilitador. O ambiente inicialmente representado pelas adaptaes da me s necessidades do beb e torna-se o fator decisivo na constituio de sua autonomia e integrao. Condio que significa a continuidade do ser, ou de sentimento de self 6, que poderemos traduzir numa continuidade da linha existencial individual (NEWMAN, 2003). [...] apenas na continuidade do existir que o sentimento de um self, de sentir-se real e de ser podem finalmente estabelecer-se como uma caracterstica da personalidade do indivduo (WINNICOTT, 1967/2005, p. 5). Winnicott descreveu trs processos principais que acompanham o desenvolvimento do beb: a integrao, personalizao e adaptao a realidade. O beb logo aps o nascimento funciona como se fosse um

6

Para Winnicott, o termo self apresenta-se essencialmente como uma descrio psicolgica de como o individuo se sente subjetivamente, sendo o sentir-se real o que coloca no centro do sentimento de self. Em termos de desenvolvimento, o self tem sua origem como um potencial do recm-nascido; a partir de uma ambiente suficientemente-bom, desdobra-se em um self total, isto , em uma pessoa capaz de estabelecer a distino entre eu e no-eu (ABRAM, 2000, p. 220).

33 somatrio de partes fsicas e psquicas no integradas, necessitando o contato da me para gradualmente adquirir a noo de ser um todo unitrio e coeso. Sobre a personalizao, o prprio Winnicott descreve:

To importante quanto a integrao o desenvolvimento do sentimento de se estar dentro do prprio corpo. Novamente so as experincias pulsionais e as repetidas e tranqilas experincias de cuidado corporal que gradualmente constroem o que se pode chamar uma personalizao satisfatria. Da mesma forma que a desintegrao, o fenmeno no psictico da despersonalizao se relaciona a retardos iniciais na personalizao [...] (WINNICOTT, 1945/2000, p.46)

Nesta perspectiva, Oliveira (2005) destaca o papel fundamental do ambiente na teoria winnicottiana para a adaptao rumo a realidade do indivduo, marcadamente pela sua idia de fenmenos transicionais 7. Localiza-se nesse campo intermedirio da experincia, chamado transicional, a continuidade existencial do indivduo, com o seu funcionamento dialtico facilitado pelo ambiente. As potencialidades do indivduo alcanaro um sentido se este for sustentado por um cuidado ambiental, cuidado esse iniciado pela funo materna.Para garantir a continuidade existencial da criana, o meio ambiente adequado contribui, sustentando a relao dialtica que esta estabelece com o mundo, a fim de articular as realidades interna e externa, nos vrios processos transicionais experimentados no curso do seu crescimento em direo autonomia. So esses os processos que tornam a criana capaz de aceitar a diferena, lidar com a separao e explorar a cultura e o ambiente, de modo geral. (OLIVEIRA, 2005, p. 39).

Neste desenvolvimento emocional rumo maturidade, Winnicott reconhece caractersticas peculiares dos adolescentes, como tambm7

Esse conceito alude a uma dimenso intermediria da experincia humana. Compem-se de objetos e fenmenos aos quais a criana se liga para substituir, de modo transitrio, a figura materna da qual precisa se individualizar. So vivenciados como objetos ao mesmo tempo internos e externos e localizam-se, sempre segundo o beb, dentro, fora e na fronteira entre beb e me (MELLO FILHO, 2001, p. 71).

34 reconhece umas das grandes dificuldades da ameaa adolescente que o ressentimento do adulto com o adolescente que ele mesmo no pde viver. No texto Adolescncia lutando contra a depresso (1961/2005), Winnicott segue com seu pensamento dialtico ao reconhecer o valor da imaturidade presente nessa etapa do desenvolvimento. E reconhece a positividade da imaturidade no adolescente no apenas para o indivduo em crescimento, mas para tambm para toda a coletividade, no sentido de preservar um espao de tolerncia e de confronto, no qual a capacidade de conter e valorizar os opositores internos se traduz numa fonte salutar de criatividade e energia. Winnicott aponta, ainda, a passagem do tempo e o processo gradativo de amadurecimento como cura para o adolescente. Porm, se interessa sobremaneira pelo idealismo dos adolescentes, que so apresentados no texto Conceitos Contemporneos de Desenvolvimento Adolescente e Suas Implicaes para a Educao Superior (1968/1975) estas consideraes:O idealismo uma das caractersticas mais emocionantes da adolescncia. Rapazes e moas adolescentes ainda no se estabeleceram na desiluso e, em conseqncia, tm a liberdade de formular planos ideais [...] No prprio do adolescente ter uma viso no longo prazo, que ocorre mais naturalmente queles que j viveram muitas dcadas e comeam a envelhecer (WINNICOTT, 1968/1975, p. 201).

Adverte, entretanto, que a liberdade adolescente e a sua atividade contestadora implica na importncia do meio ambiente e na sua estruturao. Desse modo, prope a atitude adulta de confronto, compreendendo o confronto como um gesto pessoal, uma conteno no vingativa e retaliadora.Que os jovens modifiquem a sociedade e ensinem aos adultos a ver o mundo com novos olhos, mas onde houver o desafio do rapaz ou da moa em crescimento, que haja um adulto para aceitar o desafio. Embora ele no seja belo, necessariamente. (Idem, p. 202).

Na adolescncia, o potencial criativo desenvolvido por meio dos objetos primrios de identificao, as figuras paternas e maternas sustentam e oportunizam os limites para sua estruturao. A relao entre limites e criatividade do adolescente apresentada por Outeiral (2008, p. 32):

35

A criatividade na adolescncia articula-se necessariamente com a noo de limite. Limite significa a criao de um espao protegido dentro do qual o adolescente poder exercer sua espontaneidade e criatividade sem receio e risco. Precisamos nos lembrar que no existe contedo organizado sem um continente que lhe d forma.

Winnicott aborda a existncia isolada ou de forma concomitante de uma independncia desafiadora e a dependncia regressiva. Oscila, portanto, entre a busca da liberdade e da autonomia e o sentimento de abandono pela falta de controle familiar. Estado confusional que pode acarretar problemas na comunicao familiar, confuso no estabelecimento dos limites e do reconhecimento da hierarquia familiar. E traz como consequncia a dificuldade em estruturar o reconhecimento do outro, o sentimento de alteridade e delimitao dos papis sociais e dos valores familiares (OUTEIRAL, 2001). Merece destaque o que Winnicott chamou de no aceitao de solues falsas dos jovens, levando a adotarem uma rgida moralidade. A respeito da moralidade adolescente, Outeiral (2008) interpreta que nas atuais condies de fragmentao dos discursos sociais, que prejudicam a veiculao de uma postura tica e moral para a identificao dos jovens, a estruturao do potencial criativo dos nossos adolescentes encontra-se em falha. Outra particularidade deste perodo de desenvolvimento a

caracterstica da grupalidade dos jovens, entendida por Winnicott, como atributo de um ser essencialmente isolado. Nesse sentido, os jovens revivem uma etapa infantil e no se relacionam com o no-eu, at poderem lidar com o mundo externo; formam agrupamentos para vivenciarem suas experincias com pessoas que possuem os mesmos interesses, mas tendem a retornar ao isolamento. O grupo cumpre tarefas importantes de identificao, na busca de uma identidade, no estabelecimento de uma tcnica pessoal de comunicao e na elaborao de lutos neste momento. Winnicott aponta um fortalecimento das defesas contra serem descobertos, descobertos na condio de ainda no se sentirem aptos para ingressarem na comunidade adulta; e atenta, tambm, para a formao de agrupamentos e no grupos, pois parecendo iguais

36 acentuam a solido condio fundamental do indivduo (ABRAM, 2000). O autor apresenta a importncia do desenvolvimento psicossexual, com as mudanas advindas das transformaes puberais, o estabelecimento de suas caractersticas sexuais secundrias, com suas histrias pregressas, a passagem pelo Complexo de dipo anterior ao perodo de latncia, que demarcam um padro pessoal de organizao de defesas contra a ansiedade de variadas maneiras (OUTEIRAL, 2001). Winnicott (1961/2005) considera os aspectos psicossexuais seguindo a tradio freudiana, como elementos fundamentais no dinamismo psquico adolescente:[...] derivadas das experincias dos primeiros meses de vida e da infncia de cada adolescente, encontram-se certas caractersticas e tendncias herdadas e adquiridas, fixaes em tipos pr-genitais de experincia instintiva, resduos de dependncias infantis e da primitividade infantil; e, mais ainda, h todo tipo de padres de doenas associados a fracassos de amadurecimento nos nveis edipianos e pr-edipianos. Deste modo, o menino ou menina chega puberdade com todos os padres predeterminados, por causa das experincias iniciais da infncia, e h muita coisa inconsciente, e muito que desconhecido porque ainda no foi experienciado (WINNICOTT, 1961/2005 p. 99).

Tais caractersticas psicossexuais, com suas demandas pulsionais, contribuem para Winnicott apontar a fantasia inconsciente bsica da adolescncia a de assassinato. Estabelece, ento, a seguinte comparao: se para a criana que inicia o seu crescimento corporal ela fantasia idias de morte, agora a idia a de que crescer implica em tomar o lugar dos pais. A esse respeito, Newman (2003, p. 37) acrescenta que Na fantasia inconsciente crescer inerentemente um ato agressivo. Mais uma importante contribuio de Donald Winnicott se insere no debate da sade versus a doena, na vida mental adolescente. Nos textos (subitens) A adolescncia sadia e os padres patolgicos (1961/2005) e Doena ou sade? (1971/1975), Winnicott trata dessa questo afirmando que a adolescncia normal apresenta caractersticas observadas em quadros patolgicos. Aproxima a caracterstica do jovem de evitar solues falsas do funcionamento psictico, na medida em que o psictico no aceita uma frmula

37 de transao. A demanda adolescente para sentirem-se reais, assemelha-se com o estado de depresso psictica com despersonalizao. E a caracterstica de desafiadora das moas e rapazes similar tendncia antisocial presente na delinquncia. Winnicott descreve, ainda, sobre a depresso tpica do adolescente, que cobre um amplo espectro de estados de mente, desde a posio depressiva de Melanie Klein, at um quadro psicopatolgico, ligado interrupo do desenvolvimento. Cabe aqui uma referncia ao estgio intitulado pela teoria winnicottiana como estgio de concern ou preocupao, relacionada posio depressiva de Klein. Winnicott apresenta, nesse conceito, os aspectos positivos do sentimento de culpa.O estgio de preocupao constitui-se quando o beb passa a sentir-se preocupado com a me, que a quem seu amor implacvel havia sido at ento dirigido. A capacidade do beb de sentir preocupao por sua me marca o episdio do desenvolvimento que a passagem do pr-remorso para o remorso (ABRAM, 2000, p. 172).

A relao que Winnicott mais se debruou dentro dos limites tnues entre doena e sade estabelecidos na adolescncia se refere tendncia anti-social. O autor postulou que os atos anti-sociais so sinais de esperana, na inteno de se recuperar o que se perdeu ou de devolver a liberao dos processos maturacionais que ficaram congelados no momento da perda. Perda relativa a uma falha no perodo de dependncia relativa, indicando que o beb pode experenciar uma funo materna suficientemente boa no perodo da dependncia absoluta, mas que se perdeu posteriormente. Distingue, tambm, as dificuldades da adolescncia normal da tendncia anti-social, no pelo quadro clnico, mas sim pela sua dinmica particular, na etiologia de cada situao (OUTEIRAL, 2001). Donald Winnicott estende a dinmica da tendncia anti-social ao se dirigir ao grupo de adolescentes, o autor coloca:Na raiz da adolescncia no possvel dizer que haja inerentemente uma carncia, e ainda assim h algo que o mesmo, mas sendo menor em grau e difuso, simplesmente evita sobrecarregar as defesas disponveis. Deste modo, no grupo que o adolescente escolhe para se identificar, ou no agregado de seres isolados que formam um grupo para oporem-se a uma

38perseguio, os membros extremistas do grupo esto agindo pelo grupo total. [...] Mas se no grupo existe um membro antisocial, ou dois ou trs, disposto a fazer coisas anti-sociais que produzam uma reao social, isto faz todos os outros membros aderir, sentirem-se reais, e temporariamente estruturam o grupo. Cada membro ser leal e apoiar aquele que agir pelo grupo, embora nenhum deles tenha aprovado que a personalidade extremamente anti-social fez. (WINNICOTT, 1961/ 1999, p. 106/107)

Seu entendimento acerca das dinmicas dos grupos adolescentes inclui os funcionamentos anti-sociais, depressivos e suicidas. Porm, o grupo, para Winnicott, ocupa um espao fundamental de transicionalidade, do viver criativo e espontneo para a juventude. Contribuindo para o entendimento da grupalidade na adolescncia, Zimerman (1997) aponta trs tipos bsicos de grupos formados

espontaneamente neste perodo: os normais, os drogativos e os delinquentes. No grupo normal os comportamentos so condizentes com as caractersticas etrias de cada perodo da adolescncia ou nvel de maturao: puberdade, adolescncia propriamente dita e a adolescncia tardia. Os pberes atuaro com a linguagem corporal e ldica de acordo com as intensas modificaes corporais que sofrem. Como exemplo, Zimerman (1997) cita os jogos coletivos para as meninas e as brincadeiras mais agressivas, de contatos corporais como lutas e esportes competitivos. Na adolescncia propriamente dita, predominam a linguagem verbal contestatria e a linguagem no-verbal de atuaes, opondo-se geralmente aos valores do establishment dos pais, da escola e da sociedade. Zimerman (1997) nos atenta para a distino entre a agressividade e a agresso, para a compreenso daquilo que seria uma expresso destrutiva ou um fenmeno natural do perodo do desenvolvimento. Desse modo, recorre etimologia do verbo agredir, originado pelos timos latinos ad (para a frente) mais gradior (movimento) para reiterar que a agressividade um fenmeno natural e indispensvel para crescimento do ser humano, diferentemente da agresso que designa a predominncia da finalidade destrutiva. Assim, os movimentos contestatrios da adolescncia tanto podem ter o significado de uma agressividade construtiva voltada para uma autoafirmao de sua

39 identidade singular, como podem assumir a forma de uma agresso destrutiva uma descarga impulsiva no elaborada desencadeando at numa reao de violncia patolgica. Para os propsitos de nosso trabalho, cabe apresentar a sntese dos processos de formao de grupos adolescentes normais, descritos por Zimerman (1997, p. 63) em seu texto Grupos espontneos: as turmas e gangues de adolescentes: x O grupo (ou turma) funciona com um objeto e um espao

transicional, permitindo a criao de uma zona imaginria onde existe uma mescla do real com um forte sentimento, iluso e magia onipotente. Nos grupos sadios essa onipotncia transitria, enquanto nas gangues (ou grupos destrutivos) permanente e intensa. x Este espao de transio proporciona a construo de uma nova

identidade, intermediria entre a famlia e a sociedade, estabelecendose novos papis. Criam-se novos modelos de superego ou de ideais de ego, na medida em que os jovens no querem ou sentem que no podem cumprir com os valores e ideais desejados pelos pais. x Predomina a busca por dolos, geralmente com um colorido

manifestamente histrico, que se apresente como porta-voz dos ideais adolescentes, por meio da beleza, talento, prestgio, riqueza ou de ideologias libertrias. Conforme discutido inicialmente neste texto, esta caracterstica rapidamente apropriada como tambm criada pelos meios miditicos e publicitrios de nossa sociedade. x Como j abordamos, a tendncia grupalidade adquire o sentido

de proteo s crticas diretas, discriminam-se dos adultos; confiam mais nos valores de seus pares; diluem os sentimentos de vergonha, medo, culpa e inferioridade (ZIMERMAN, 1997, p. 63) por

compartilharem um espao de iguais. x O adolescente sente-se amparado pela suposta fora do grupo (a

unio faz a fora). O grupo lhe oportuniza se reconhecer e ser reconhecido pelos outros, conferindo o reconhecimento de sua existncia enquanto indivduo.

40 x O grupo promove o fortalecimento da identidade sexual, ainda

no definida. x O uso de caractersticas peculiares de cada grupo, seus sinais

exteriores tais como as vestimentas, os penteados, o uso de insgnias, os tipos de msicas, etc. , uma forma dos jovens se diferenciarem do mundo adulto. Podendo considerar que muitos modismos tomam o lugar das identidades, quando estas ainda no esto claramente definidas. x A tendncia anti-social do grupo adolescente, a princpio no

preocupante, pois esses jovens necessitam apenas serem contidos em seus excessos e transgresses das leis que regem a sociedade, sem pression-los para viverem como adultos. Nos grupos caracterizados como drogativos distinto de drogadicto, ou seja, a situao de adio patolgica do sujeito s substncias psicoativas trata-se de um grupo normal que se utiliza de drogas ilcitas, no sentido de um modismo, uma espcie de grife de coragem e valorizao junto aos respectivos pares. [...] Assim, paradoxalmente, a droga pode estar sendo um fetiche que une e integra a turma (ZIMERMAN, 1997, p.64). Nos grupos delinquentes ou nas gangues predominam as pulses agressivo-destrutivas, em que poderemos entend-los como o recrudescimento da tendncia anti-social tratada anteriormente neste captulo. A organizao nestas gangues pode ser compreendida pela sua condio paradoxal, tendo em vista que seus participantes buscam sua libertao e amparo, os rgidos cdigos de valores do grupo aprisionam seus integrantes. A sensao de onipotncia e prepotncia aqui tomada ao extremo pelos indivduos deste grupo, como recurso defensivo a uma depresso subjacente, ao reconhecimento de sua fragilidade e dependncia do outro. O grupo favorece a diluio das culpas e das responsabilidades de cada um pelos danos que causaram aos outros. Nos grupos delinquentes sua insgnia principal pode ser a violncia por si prpria, tornando a violncia como elemento de idealizao, ocupando o lugar dos dolos no caso dos grupos sadios ou das drogas no caso dos grupos

41 drogativos. No entanto, estes tipos bsicos da formao dos grupos adolescentes no se apresentam claramente delimitados. Desse modo, um funcionamento agressivo construtivo ou de agresso destrutiva pode passar muito prximo um do outro, e sofrer alteraes, confundir-se entre si e assumir formas que confundem o observador externo (ZIMERMAN, 1997, p. 62). As questes apresentadas aqui sobre o processo adolescente individual e grupal enfatizando-se as perspectivas da teoria winnicottiana serviro como referencial de anlise no apenas para os sujeitos de nossa pesquisa os jovens participantes do movimento hip hop como tambm para tratarmos do prprio movimento cultural, j que ele mesmo um fenmeno social de funcionamento predominantemente adolescente.

42 3. O processo de identificao

Eu no sou eu nem sou o outro, Sou qualquer coisa de intermdio: Pilar da ponte de tdio Que vai de mim para o outro (Mrio de S Carneiro)

Para melhor compreendermos a identificao na teoria psicanaltica, vale um retorno palavra identificao e seu uso na linguagem comum. O processo identificatrio est articulado ao verbo reflexivo identificar-se, aquele que leva o sujeito a identificar-se com uma pessoa ou algo, quando ele se confunde com esse algum ou coisa, at tornar-se idntico a ele. Como exemplo, poderemos utilizar o mimetismo do camaleo que se torna semelhante ao ambiente; identificando-se com os elementos a sua volta (mudando de cor) para escapar de seus algozes. O ato de identificar-se uma ao, na qual o sujeito ativamente quer tornar-se idntico a outro, diferente de si prprio. O conceito psicanaltico pode ser representado por outro exemplo, o de um filho que se identifica com o pai. Essa identificao pode ocorrer por meio de um desejo consciente de ser como o pai. Porm, esse desejo de ser o outro poder tambm ser inconsciente. Podendo aqui, identificar-se com traos visveis do pai, o filho identifica-se com aspectos invisveis (no reconhecidos) do pai, longe de ser uma imitao consciente. O sujeito poder se identificar com aspectos no visveis do outro, como emoes, sentimentos, desejos, fantasias, que podem estar ocultas ou ignoradas por ambos. Como ilustrao, um filho poderia se identificar com um erro ignorado de seu pai, e se sentir culpado por achar que ele prprio cometera tal erro. Essencialmente, o ato de identificar-se equivale a falar de amor, pois s poderei me identificar com o outro se esse outro for meu eleito. Para a

43 Psicanlise, a identificao o que nomeia o processo do amor e o processo da formao do eu (NASIO, 1999). Para Nasio (1999, p. 84), a formao do eu composta pela memria viva daqueles que amo hoje e daqueles que amei outrora e depois perdi. A identificao aquilo que me fez amar e ser o que sou. Entretanto, o sentido do amor, para a Psicanlise, assim como a identificao, ambivalente desde o incio: pode tornar-se a expresso de ternura com tanta facilidade quanto um desejo de afastamento de algum. O conceito de identificao central na teoria psicanaltica desde Freud. De acordo com Zimerman (2001), as iniciais consideraes metapsicolgicas de Freud sobre a identificao so apresentadas na obra Luto e melancolia (1917), que destaca, entre outras, a identificao com o objeto perdido, base dos processos depressivos e melanclicos. No trabalho A psicologia de grupo e anlise do ego (1921), Freud estuda trs modalidades de identificao: 1) identificao primria forma mais elementar de ligao afetiva, com outra pessoa, com a me. Similar a uma incorporao, traria os elementos para a pr-histria do complexo de dipo. 2) A identificao tornando-se um substituto para uma ligao afetiva perdida. O sujeito toma emprestado um nico trao da pessoa-objeto, tal qual na descrio do caso Dora, que a paciente histrica com crises de tosse, imita a tosse de seu pai. 3) A identificao se efetua na ausncia de qualquer investimento sexual. O que levaria a pessoa a identificar-se com o outro seria o desejo de ter algo em comum com um outro. Freud exemplificou com as situaes de hipnose, da paixo, dos lderes, que ocupam o lugar do ideal de ego8. Para uma exposio didtica, possvel sintetizarmos esses tipos de identificao em: a) com a figura amada e admirada; b) com a figura idealizada; c) com a figura odiada; e d) com a figura perdida.

8

Ideal de ego: Freud apresenta o superego como herdeiro do complexo de dipo. O ideal de ego seria, portanto, uma subestrutura do superego, originada do narcisismo original. E, desse modo, os mandamentos internos, que obrigam o sujeito a corresponder na vida real, s demandas provindas de seus ideais (ZIMERMAN, 2001, p. 202).

44 A identificao na forma da figura amada e admirada a mais sadia, estvel e harmnica. Com a figura idealizada, tende a ser frgil acarretando ao sujeito o esvaziamento de suas capacidades e a baixa tolerncia s frustraes. A figura odiada introjetada, configura-se com as identificaes com o agressor, numa situao de temor, sentindo-se igual pessoa ou objeto que teme. Como apresentamos anteriormente, a identificao com as figuras perdidas a base dos processos depressivos e melanclicos. Melanie Klein, psicanalista pioneira na psicanlise com criana, desenvolve o conceito de identificao projetiva como um dos pilares de sua teoria. A identificao projetiva, para Klein ([1946]1991), apresenta trs dimenses psquicas distintas: uma defesa estruturante e primitiva, que o sujeito faz de seus aspectos intolerveis, projetando dentro da mente da me ou do analista, enquanto paciente. Apresenta-se, tambm, enquanto uma fantasia de se apossar e controlar os tesouros que imagina sua me possuir. A identificao projetiva est a servio da capacidade emptica do sujeito. Cabendo ainda duas outras formas de identificao: com a figura atacada e com os valores que lhe foram impostos pelos pais. Outro tipo de identificao na obra freudiana destacada por Da Poian (2002), que relata sobre as identificaes recprocas entre os pares, que ocorrem quando o objeto com o qual o eu se identifica se coloca no espao de uma instancia psquica. Como no caso do lder ocupar o lugar de ideal de ego, por meio desta relao os vrios eu se identificam entre eles. Esta identificao est presente na ligao dos membros de uma coletividade. Na psicanlise contempornea distinguem-se as proto-identificaes que seriam mais arcaicas que as identificaes propriamente ditas , apresentando-as em quatro modalidades: 1) Identificao adesiva, quando a criana ainda no se desgrudou da me, um estado fusional, compreendendo que ter a me o mesmo que ser a me, no chegando, portanto, a uma identificao pela ausncia da individuao do sujeito. 2) Especular, com a criana comportando-se como uma imagem da me, refletindo seus desejos e vice-versa, sendo o outro configurado como sua prpria extenso. 3) Aditivas, decorre da falta de figuras solidamente introjetadas, o sujeito fica sem o

45 sentimento de identidade, aderindo, adicto a pessoas que o completam, reasseguram. 4) Identificao imitativa, numa evoluo normal, um primeiro passo para a construo da identidade sadia, contudo pode tornar a ser uma funo permanente da personalidade. Quando o sujeito no faz mais do que adaptar-se, submeter-se aos diferentes ambientes (ZIMERMAN, 2001). Ao nos referirmos ao conceito da identificao contempornea, cabe apresentar a distino entre as consideraes freudianas e winnicottianas, referncia principal deste trabalho. Para Freud, o eu vai se constituindo pouco a pouco, num processo em que, gradativamente, um ego rudimentar fundado no corpo e na pulso, enquanto impulso energtico que tem sua fonte numa excitao corporal. Este rudimento do eu se dirige ao objeto constituindo o psiquismo. Desse modo, a subjetividade parte de algo interno. J para Winnicott, o caminho inverso, o objeto (me ou parte dela) que promove a diferenciao do eu/ no eu, no havendo um rudimento egico anterior a esse sentido de alteridade. Winnicott se detm, no somente s noes de ego e identificao, mas, principalmente, continuidade do ser, ou seja, sua ao no mundo que vai constituindo o indivduo e amadurecendo o psiquismo. Nessa trajetria, a me/ambiente que facilita ou no o desenvolvimento da condio para o viver criativo (DA POIAN, 2002). A primeira identificao, para Winnicott, se refere insero do indivduo no ambiente, condio que o permite ser.Este ser ir se aprimorando pelo processo de iluso-desiluso e pela passagem necessria do relacionamento ao uso do objeto. A destruio do objeto (subjetivo) aqui fundamental para sua sobrevivncia e para o desenvolvimento da autonomia do sujeito e a criao de um mundo de realidade no mais onipotente, no mais transicional e sim compartilhada (DA POIAN, 2002, p.4).

Ao conceituar uso do objeto, Winnicott demarca uma importante contribuio para o entendimento de constituio do sujeito e do seu processo de identificao. Estabelece a diferena entre o uso de um objeto e o relacionamento com um objeto. O uso, para Winnicott, relativo vinculao do sujeito com o objeto real, no sentido de fazer parte da realidade

46 compartilhada e no mais como um feixe de projeo. O sujeito coloca o objeto para fora de seu controle onipotente, percebendo o objeto como fenmeno externo, no como entidade projetiva. A passagem da relao de objeto para uso de objeto constitui uma nova etapa do processo do amadurecimento, faz parte da mudana para o princpio da realidade (WINNICOTT, 1969/1975). Assim, o destaque para o conceito psicanaltico de identificao, em nosso projeto, no se d apenas para cumprirmos com as prerrogativas conceituais de uma pesquisa intencionalmente psicanaltica. Acreditamos que essa leitura nos possibilitar analisar aspectos dinmicos, ou seja, relaes conscientes, reconhecidas pelo prprio jovem, bem como, as relaes no reconhecidas, implcitas, inconscientes, que esto em jogo na sua vida mental e na sua vida social. Ao reconhecer a inter-relao entre os mecanismos intrapsquicos, interpessoais, culturais, histricos e sociais que esto operando nesse processo identificatrio, acreditamos que a pesquisa contribuir para a compreenso do processo que levou tais indivduos a se inserirem com o movimento hip hop. De acordo com Levisky (2001, p.19) a compreenso dinmica do homem possibilita,[...] relacionar a reciprocidade de influncias entre as estruturas mentais e a sociedade na constituio do mundo simblico do sujeito e suas representaes na cultura. Sua formao histrica e relaes com as fantasias inconscientes, os imaginrios coletivos, a natureza estrutural, dinmica e econmica do psiquismo, seus mitos, ritos, utopias, iluses e a dura realidade.

O termo identificao implica, desse modo, num processo de construo dinmica da identidade. Merece destaque o fato que Schoen-Ferreira e colaboradores (2003) considerarem a construo da identidade pessoal como a tarefa mais importante dos jovens, o passo crucial da transformao do jovem em adulto produtivo e maduro. Esse dinamismo destacado por Zimerman (2001, p.204), ao reconhecer que inerente ao sentimento de identidade o constante embate do sujeito, quanto a quem ele realmente , como se auto-representa, quais so

47 os papis e os lugares que ele ocupa nos vnculos grupais e sociais, o que e quem ele quer vir a ser e de como se sente visto pelos demais. A relevncia da questo identificatria para o jovem pode ser ilustrada por Schoen-Ferreira (2003, p.02),Quanto maior o sentimento de identidade do indivduo mais valoriza o modo em que parecido ou diferente dos demais e mais claramente reconhece suas limitaes e habilidades. Quanto menos desenvolvida est a identidade, mais o indivduo necessita do apoio de opinies externas para avaliarse e compreende menos as pessoas como distintas.

Reconhecidamente, as primeiras identificaes no ocorrem na adolescncia, so resultantes da qualidade dos vnculos estabelecidos entre me e beb, formadores das primeiras identidades e do superego, responsvel especialmente pela formao moral.Mas, se a este processo afluem patologias que deturpam estas relaes como estado de misria, violncia, perda de continuidade, transformaes bruscas dos valores ticos e morais, o indivduo organiza seu eu de forma insegura, carncia do sentimento de confiana bsico. A delinqncia , em muitos casos, o sintoma de resgate de algo que foi perdido na tenra infncia (LEVISKY, 1998, p. 31)

Na adolescncia sero reativados os conflitos desses processos primitivos e o refinamento das funes egicas, por exemplo, a capacidade de pensamento abstrato e os modelos verbais de comunicao que, mesmo oscilantes com o processo primrio do agir concretamente, j demonstram sua progressiva especializao. Os padres de identificao dos adolescentes sero encontrados naqueles indivduos que representam sua possibilidade de sobrevivncia autnoma, especialmente na diferenciao das figuras parentais (OUTEIRAL, 1998). As idias da busca de substitutivos s imagens do grupo familiar, de participao ativa do adolescente para sua autonomia egica, favorecem a grupalidade nas suas relaes, conferindo ao grupo e aos seus agrupamentos uma fonte poderosa de identificao.

48 Assim, o estudo do processo identificatrio de jovens no contemporneo movimento hip hop, por meio das leituras psicanalticas, confronta-se com a complexidade que o conceito de identificao nos remete. Acreditamos que o processo identificatrio desenvolve-se num

determinado contexto social e datado historicamente, que lhe d contornos prprios e o define. Dessa maneira, a inter-relao entre este mecanismo psquico e as questes da ps-modernidade se apresenta preponderante para o

cumprimento do nosso trabalho, sobretudo, por nos referirmos a um movimento cultural contemporneo. Momento histrico atravessado pela descontinuidade e ambiguidade, que nos impele, por vezes, de considerarmos o movimento hip hop como modelo identificatrio de resistncia e acusao das mazelas desse tempo presente, ainda que possamos problematizar essa afirmativa e encontrar a fluidez, a fragilidade e a possibilidade de nos depararmos com um movimento passageiro. Entretanto, as questes identificatrias nos permitem transitar pelo dinamismo, pela inter-relao entre os aspectos culturais, histricos e representacionais inconscientes dos indivduos.

49 4. Sobre o espao potencial, a criatividade e o movimento hip hop. Neste captulo pretendemos apresentar algumas leituras psicanalticas, privilegiando as teorias winnicottianas sobre esse fenmeno cultural

contemporneo. Ao aproximarmos as teorias psicanalticas do movimento hip hop, encontraremos, em grande medida dentre tantos outros elementos possveis de uma escuta psicanaltica , o ingrediente fundamental do conceito de espao potencial e criatividade nesse efervescente caldeiro cultural. Poderemos compreender, aqui, o conceito de criatividade dentro das contribuies de Donald Winnicott, que no necessariamente enfatiza as criaes artsticas ou geniais. No seu artigo A criatividade e suas origens (1971/1975), Winnicott destaca a apercepo criativa do sujeito em relao ao seu mundo vivido, mais do que as criaes bem sucedidas ou aclamadas, em contraposio a uma vida submissa s realidades externas. Sua contribuio acerca da criatividade o espao central que ela ocupa na existncia do indivduo. Compreendendo este conceito como o sentido de se estar vivo e de viver uma vida que valha a pena; portanto, uma importante parte da experincia de vida de cada sujeito (WINNICOTT, 1970/2005). No contexto das teorias psicanalticas, as consideraes de Winnicott acerca da criatividade diferem das contribuies de Freud e Melanie Klein, como aponta Abram (2000, p.84):De forma bastante resumida, segundo Freud, a criatividade do adulto est vinculada a sua teoria da sublimao. J para Melanie Klein, a criatividade associa-se a aspectos reparadores inerentes posio depressiva (que se estabelece algumas semanas ou meses aps o nascimento).

Com seus trabalhos, a partir da dcada de 50, Winnicott situa a criatividade no centro e no incio da relao primordial me-beb, matriz da relao do sujeito com o mundo no sentido amplo (experincia cultural, posicionamento frente realidade externa), desenvolvendo seu conceito de criatividade primria (Oliveira, 2005). As razes da criatividade, enquanto fazer que emerge do ser, remetem-

50 se ao modo como os bebs criam, onipotentemente, o mundo e os objetos que os cercam. Para compreendermos a centralidade do conceito de criatividade, na teoria de Winnicott, faz-se necessrio acompanharmos suas consideraes a respeito do desenvolvimento humano. Grolnick (1993, p. 37) considera Winnicott um desenvolvimentista radical. Entendia o desenvolvimento como uma interao entre os aspectos das tendncias inerentemente determinadas com o ambiente. Situa os pais como facilitadores do desenvolvimento, ao oferecerem firmeza, amor, empatia, frustrao suficiente, e confronto com a realidade e a agresso. O desenvolvimento, para Winnicott, ocorre de modo natural,

necessitando um meio suficientemente bom para se estabelecer, caminhando num processo em que o indivduo percorre da dependncia absoluta para a independncia. No perodo de dependncia absoluta, o beb necessita inteiramente dos cuidados d