Django Reinhardt

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PERSONAGEM DJANGO REINHARDT Desde sua aparição no cenário mu- sical, na década de 30, o violonista belga Django Reinhardt tem sido fonte de inspiração para diversas ge- rações de instrumentistas. E a força de seu talento esgotou o vocabulá- rio de superlativos de muitos comen- tadores. Jean Baptiste "Django" Reinhardt nasceu num lugarejo da Bélgica cha- mado Liberchies, em 23 de janeiro de 1910, numa família cigana que morava em acampamentos. Assim, Django passou a infância viajando pela Bélgica e pela França. Mais tar- de, Paris tornou-se o centro de suas atividades musicais. O interesse por música começou cedo, com o violino. Aos treze anos, Django tocava banjo ou violão-banjo no Bal-Musette, conhecido ponto de encontro do baixo mundo parisien- se na década de 20. Em 1922, co- meçou a trabalhar com o acordeo- nista Guérino. Até os quinze anos, Django tocava música europeia, com forte sabor espanhol. Foi então que ouviu jazz pela primeira vez e a ele se converteu instantaneamente. Quando tinha dezoito anos aconte- ceu a tragédia, que se tornou uma lenda: Django sofreu graves queima- duras num incêndio que provocou acidentalmente em sua carroça na caravana. O músico voltava do tra- balho no dia 2 de novembro de 1928. Ao chegar ao seu vagão, ve- rificou que sua mulher havia feito vá- rios ramalhetes de flores presas com celulóide, para vendê-los na porta do cemitério que ficava em frente ao acampamento. Durante a noite, Django escutou alguns barulhos estranhos e acendeu um toco de vela para poder ver o que esta- va acontecendo. Ao chegar per- to das flores, deixou a vela cair. O casal conseguiu escapar do carroção em chamas, mas o músico teve a parte esquerda do corpo queimada. Pior: o dedo anular e o mínimo de sua mão esquerda ficaram permanente- mente deformados e paralisados. Depois do período de convalescen- ça, o músico formou um duo com o cantor Jean Sablon, para se apre- sentar nos cafés parisienses. Django não apenas lutou e superou sua de- ficiência como também desenvolveu uma nova gama de técnicas e um es- tilo característico. Em 1933, Django e o violinista Stéphane Grappelli tocavam num conjunto, no Hotel Claridge, em Pa- ris. Logo decidiram formar seu pró- prio grupo, o célebre Quintette du Hot Club de France, com Django no violão, Grappelli no violino, o irmão de Django, Joseph, e Roger Chaput em outros dois violões e Louis Vola no contrabaixo. Na primeira apre- sentação, o grupo causou tão forte impressão que a recém-criada gra- vadora Ultraphone ofereceu-lhe uma gravação a título de experiên- cia. O primeiro disco do conjunto foi "I Saw Stars"; a seguir vieram "Lady Be Good", "Tiger Rag" e "Dinah". Durante o conflito mundial, en- quanto Grappelli foi morar na Grã- Bretanha, Django permaneceu na França. Montou um novo quinteto que fez considerável sucesso, com o Django, com uma Gibson elétrica. clarinetista Hubert Rostaning no lu- gar de Grappelli. Nesse mesmo pe- ríodo, Django se interessou muito por novas experiências de composi- ção e acabou assinando em 1946, juntamente com André Hodeir, a tri- lha sonora para o filme "Lê village de Ia colére". No mesmo ano, após visitar a In- glaterra e a Suíça, Django estreou nos Estados Unidos, numa turnê com a orquestra de Duke Ellington. Conhecido nos EUA por meio de seus discos, foi recebido com gran- de entusiasmo nessas apresenta- ções, o músico belga empunhou, pela primeira vez, uma guitarra elé- trica. O único incidente da turnê aconteceu na noite de 24 de novem- bro, por ocasião de um concerto no Carnegie Hall, em Nova York. An- tes da hora do show, Django reen- controu um velho amigo. Passaram muito tempo conversando. Ao se dar conta de que tinha um compro- misso para aquela noite, Django saiu correndo para pegar um táxi. Pro- vavelmente o motorista não enten- deu a péssima pronúncia do músico belga, pois acabou levando-o para o outro lado da cidade. Enquanto is-

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P E R S O N A G E M

DJANGOREINHARDTDesde sua aparição no cenário mu-sical, na década de 30, o violonistabelga Django Reinhardt tem sidofonte de inspiração para diversas ge-rações de instrumentistas. E a forçade seu talento esgotou o vocabulá-rio de superlativos de muitos comen-tadores.

Jean Baptiste "Django" Reinhardtnasceu num lugarejo da Bélgica cha-mado Liberchies, em 23 de janeirode 1910, numa família cigana quemorava em acampamentos. Assim,Django passou a infância viajandopela Bélgica e pela França. Mais tar-de, Paris tornou-se o centro de suasatividades musicais.

O interesse por música começoucedo, com o violino. Aos treze anos,Django tocava banjo ou violão-banjono Bal-Musette, conhecido ponto deencontro do baixo mundo parisien-se na década de 20. Em 1922, co-meçou a trabalhar com o acordeo-nista Guérino. Até os quinze anos,Django tocava música europeia,com forte sabor espanhol. Foi entãoque ouviu jazz pela primeira vez e aele se converteu instantaneamente.Quando tinha dezoito anos aconte-ceu a tragédia, que se tornou umalenda: Django sofreu graves queima-duras num incêndio que provocouacidentalmente em sua carroça nacaravana. O músico voltava do tra-balho no dia 2 de novembro de1928. Ao chegar ao seu vagão, ve-rificou que sua mulher havia feito vá-rios ramalhetes de flores presas comcelulóide, para vendê-los na portado cemitério que ficava em frente aoacampamento. Durante a noite,

Django escutou alguns barulhosestranhos e acendeu um toco devela para poder ver o que esta-va acontecendo. Ao chegar per-to das flores, deixou a vela cair.O casal conseguiu escapar docarroção em chamas, mas omúsico teve a parte esquerda docorpo queimada. Pior: o dedoanular e o mínimo de sua mãoesquerda ficaram permanente-mente deformados e paralisados.Depois do período de convalescen-ça, o músico formou um duo como cantor Jean Sablon, para se apre-sentar nos cafés parisienses. Djangonão apenas lutou e superou sua de-ficiência como também desenvolveuuma nova gama de técnicas e um es-tilo característico.

Em 1933, Django e o violinistaStéphane Grappelli tocavam numconjunto, no Hotel Claridge, em Pa-ris. Logo decidiram formar seu pró-prio grupo, o célebre Quintette duHot Club de France, com Django noviolão, Grappelli no violino, o irmãode Django, Joseph, e Roger Chaputem outros dois violões e Louis Volano contrabaixo. Na primeira apre-sentação, o grupo causou tão forteimpressão que a recém-criada gra-vadora Ultraphone ofereceu-lheuma gravação a título de experiên-cia. O primeiro disco do conjunto foi"I Saw Stars"; a seguir vieram "LadyBe Good", "Tiger Rag" e "Dinah".

Durante o conflito mundial, en-quanto Grappelli foi morar na Grã-Bretanha, Django permaneceu naFrança. Montou um novo quintetoque fez considerável sucesso, com o

Django, com uma Gibson elétrica.

clarinetista Hubert Rostaning no lu-gar de Grappelli. Nesse mesmo pe-ríodo, Django se interessou muitopor novas experiências de composi-ção e acabou assinando em 1946,juntamente com André Hodeir, a tri-lha sonora para o filme "Lê villagede Ia colére".

No mesmo ano, após visitar a In-glaterra e a Suíça, Django estreounos Estados Unidos, numa turnêcom a orquestra de Duke Ellington.Conhecido nos EUA por meio deseus discos, foi recebido com gran-de entusiasmo — nessas apresenta-ções, o músico belga empunhou,pela primeira vez, uma guitarra elé-trica. O único incidente da turnêaconteceu na noite de 24 de novem-bro, por ocasião de um concerto noCarnegie Hall, em Nova York. An-tes da hora do show, Django reen-controu um velho amigo. Passarammuito tempo conversando. Ao sedar conta de que tinha um compro-misso para aquela noite, Django saiucorrendo para pegar um táxi. Pro-vavelmente o motorista não enten-deu a péssima pronúncia do músicobelga, pois acabou levando-o para ooutro lado da cidade. Enquanto is-

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ERSONAGEM

O Quintette du Hot Club de France, com Djanto e Grappelli, em 1934.

so, Duke Ellington tratou de come-çar o concerto, única forma de acal-mar os ânimos da plateia decepcio-nada. Django, porém, chegou aoteatro ainda a tempo de participardos últimos números. Os aplausosforam calorosos.

De volta à França, remontou seuquinteto, que ocasionalmente con-tava com a participação de Stépha-ne Grappelli. Sobre a performancemusical do parceiro, recorda-se oviolinista francês: "Django não tinhanenhuma eletricidade. Só tinha mui-to gás".

Mesmo depois de famoso, Djan-go continuou morando no carro deciganos de sua família. Esse desape-go das coisas materiais refletia-se emmuitas de suas atitudes. Ele era in-capaz, por exemplo, de economizaralgum dinheiro: tudo o que conse-guia ganhar com sua música era in-variavelmente gasto no jogo. O gui-tarrista levou também muito tempoaté aprender a escolher uma roupaadequada para se apresentar emseus shows. Muitas vezes, chegava

ao local da apresentação com meiasde cores diferentes, um paletó sur-rado e um gorro. Existe até hoje umgrande interesse pela música deDjango, e seus discos vêm sendovendidos regularmente nos últimoscinquenta anos. Foi o primeiro mú-sico europeu a chamar a atenção einfluenciar diretamente os artistas dejazz norte-americanos. Embora imi-tado por muitos músicos, ninguémjamais conseguiu combinar seu vir-tuosismo, sua expressão e criativida-de no violão. Seu ritmo e seu dedi-lhado eram de uma intensidade de-vastadora. Literalmente, as cordasdo violão devem "conduzir" a caixaacústica, e Django — provavelmen-te usando cordas pesadas — faziaexatamente isso. Tocava com tantaforça que era obrigado a trocar deinstrumento a cada seis meses.

Talvez a explicação para esse vir-tuosismo possa ser encontrada naspróprias raízes de Django. Assim co-mo os húngaros adotaram o violinocomo o instrumento mais represen-tantivo de suas tradições, o músico

belga encontrou nas cordas do vio-lão e no improviso do jazz o exatoespelho para expressar o modo devida cigano. Aliás, vários sociólogosdebruçaram-se sobre o fenómenoDjango, tentando encontrar a expli-cação para o grande sucesso dessemúsico europeu nos circuitos de jazzda América. Para muitos críticos, aprofunda identificação de Djangocom o jazz tem a ver com o fato deele descender de uma minoria étni-ca. Assim como os negros dos Esta-dos Unidos, os ciganos são um po-vo oprimido. A expressão do dese-jo de liberdade estaria assim repre-sentada pelos seus incandescentesimprovisos, em que a única regra équebrar todas as regras estabeleci-das. Segundo os analistas, não foipor acaso que tanto os músicos ne-gros norte-americanos quanto Djan-go Reinhardt personificaram tão bemessas características do jazz.

É difícil enumerar todas as quali-dades do talento de Django. Sua ha-bilidade técnica era impressionante.A força de seu vibrato, o toque emoitavas e seu ritmo contagiante ins-piraram gerações de guitarristas.Suas composições estão entre asmelhores que já foram escritas paraa guitarra. O destaque da obra deDjango fica para as músicas lentas,como "Douce ambiance", "Mélodieau crépuscule", "Nuages" e "Songd'automme", que refletem bem amelancolia da alma cigana. Ele nãolia música, do mesmo modo quenão sabia ler e escrever; no entan-to, impressionou profundamenteAndrés Segovia, numa festa particu-lar. Conta-se que, quando o pai doviolão clássico moderno lhe pergun-tou onde poderia comprar a partitu-ra da música, Django riu e explicou:"Estou apenas improvisando".

Morreu aos 43 anos, em 16 demaio de 1953. O documentário fei-to após sua morte pelo cineasta PaulPaviot incluiu na trilha sonora per-formances de Stéphane Grappelli ede Joseph Reinhardt. A rica heran-ça de música para violão e guitarradeixada pelo génio belga continua aencantar e estimular instrumentistasde todo o mundo.

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