Do espírito da Coisa: um cálculo de graça

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Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 12, n. 3, p. 601-603, setembro 2009 Do espírito da Coisa: um cálculo de graça Karin de Paula São Paulo: Escuta, 2008, 184p. Flávia Albergaria Raveli Em Do espírito da Coisa: um cálculo de graça, a psicana- lista Karin de Paula pensa o Witz – palavra espirituosa –, sua construção e definição como análogo a uma psicanálise. Em ambos, trata-se, segundo a tradição lacaniana ancorada na filo- sofia hegeliana, de um movimento dialético, de um deslocamen- to do drama especular e do cômico, para o trágico e a “palavra espirituosa”, os quais pressupõem uma tríade: terceiro “elemen- to” resultante do cálculo de graça, sujeito que advém ao fim de uma análise, instituído por e nessa matemática, “sobra” possí- vel de lidar, re-criar, pôr a trabalhar em nome da graça – a gra- ça do próprio sujeito. Qual é a sua graça?, pode-se perguntar. Só é possível “fazer graça” em nome próprio, tendo se apropria- do de seu desejo, do trágico próprio desse, cujo objeto – obje- tos – desliza metonimicamente num desenho lógico do sujeito e para ele, numa sucessão de significantes “caídos” no percurso de uma psicanálise, para a instituição de outros, para o deslizar permanente e sem fim da cadeia do desejo. Ficção tão mais ver- dadeira quanto mais falsa. É por aí que a verdade da falta e do desejo caminha. Pela ficção que o sujeito cria de si, pela fala chistosa, na qual a psicanalista pode ser um crupiê, sem por isso fazer pouco do sofrimento alheio e da sua própria condi- ção de incompreensão e ignorância. Karin aposta e convida o

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Raveli-2009-Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental

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  • Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., So Paulo, v. 12, n. 3, p. 601-603, setembro 2009

    Do esprito da Coisa: um clculo de graaKarin de Paula

    So Paulo: Escuta, 2008, 184p.

    Flvia Albergaria Raveli

    Em Do esprito da Coisa: um clculo de graa, a psicana-lista Karin de Paula pensa o Witz palavra espirituosa , suaconstruo e definio como anlogo a uma psicanlise. Emambos, trata-se, segundo a tradio lacaniana ancorada na filo-sofia hegeliana, de um movimento dialtico, de um deslocamen-to do drama especular e do cmico, para o trgico e a palavraespirituosa, os quais pressupem uma trade: terceiro elemen-to resultante do clculo de graa, sujeito que advm ao fim deuma anlise, institudo por e nessa matemtica, sobra poss-vel de lidar, re-criar, pr a trabalhar em nome da graa a gra-a do prprio sujeito. Qual a sua graa?, pode-se perguntar.S possvel fazer graa em nome prprio, tendo se apropria-do de seu desejo, do trgico prprio desse, cujo objeto obje-tos desliza metonimicamente num desenho lgico do sujeito epara ele, numa sucesso de significantes cados no percursode uma psicanlise, para a instituio de outros, para o deslizarpermanente e sem fim da cadeia do desejo. Fico to mais ver-dadeira quanto mais falsa. por a que a verdade da falta e dodesejo caminha. Pela fico que o sujeito cria de si, pela falachistosa, na qual a psicanalista pode ser um crupi, sem porisso fazer pouco do sofrimento alheio e da sua prpria condi-o de incompreenso e ignorncia. Karin aposta e convida o

  • R E V I S T AL A T I N O A M E R I C A N ADE P S I C O P A T O L O G I AF U N D A M E N T A L

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    leitor/paciente/praticante da psicanlise a entrar no jogo: quem d mais? Quembanca o aposta-dor e o joga-dor? Que bola esta posta em campo e quem ofominha que no passa a bola? O neurtico da qual constituda, basicamente,a clnica da autora apega-se ao seu sintoma e briga por ele. Birra por ele, cho-rando baixinho pela festa para a qual no foi convidado. Trata-se de romper adupla queixosa dele com ele mesmo e faz-lo sobrar. Fazer sobrar a falta, a so-bra ela mesma. Trata-se de contar at trs, clculo elementar prprio do jogoe da brincadeira que, resvalando o nada Das Ding , pe em movimento o resto objeto a que em-pulsiona o desejo, razo do mesmo. E quem deseja, desejapara continuar desejante. Moto-contnuo que no acaba quando termina, comodiz o ditado.

    Como o jogo e a brincadeira infantil da qual tratou Winnicott, o Witz realizauma interrupo no tempo, sendo ele prprio o limite na linguagem, no tempo da lei, do resto que resvala o nada, o qual no pode ser visto de frente, bicho/estranho em si mesmo do qual no se foge ficando ou correndo. Ncleo de atra-o e repulso, vazio, deserto do Real, pavor de despedaamento: nada contor-nado pela linguagem, borda do abismo abismar-se, estar borda de: nada. Nesselimite espacial e temporal o Witz constitudo: entre o nada e o resto do nada,contornado pela linguagem, por ela institudo. Para alm do muro da linguagem,lembra Karin, s o deserto do Real, em cuja vastido o tudo que nada ,num tempo muito preciso, a palavra espirituosa faz furo, escancarando o vazio,constituindo a diferena, diferencia, segundo Derrida, num movimento pulsio-nal que percorre, de forma nova, a cadeia significante, propondo uma nova geo-metria, um novo caminho para o sujeito que ali, no tempo que dura o chiste, atualizado, re-institudo na possibilidade de fazer sentido, dar o ar da graa, dizera que veio e vir, pelo Witz.

    Atravs da psicanlise, pelo caminho chistoso que essa percorre, a autoradialoga com a tradio filosfica desde Kant seguindo a trilha de Lacan, e dessaforma atualiza Freud naquilo que constitui a psicanlise na sua radicalidade: apalavra e a fala, o que ela convoca Outro, outros e o que ela tambm evoca:o nada, o impossvel que s pode ser tocado de leve , posto que na contra-mo da pulso sem representao, do que no pode ser representado, que se ins-titui a representao possvel a graa, de si para si mesmo passando pelo Outro cultura que sanciona a fala , para outros que advm da transformao de doisem trs, do drama ao trgico. Terceiro presente no Witz, na anlise, na cultura/Lei do jogo, da brincadeira infantil que institui a ausncia, a falta que precisa faltarpara a palavra e o Witz existir. Para isso, lembra Karin, preciso romper acompreenso e a prpria noo de entendimento e atendimento que ela encerrapara que o paciente possa ser escutado na sua fico. Que no reste pedra so-

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    bre pedra do palavreado egoico/imaginrio o que Karin de Paula prope. Noh negociao possvel no clculo da graa e do sujeito: paga-se com a carne,com a palavra nela inscrita da qual o neurtico sofre em se des-fazer. Alegrar--se no deserto, prope Karin; s diante do nada se pode instituir algo; do restofazer o melhor possvel. Do limo o fel bblico a limonada. Estar s e nu dian-te de Deus, o Absoluto, e da solido compartilhada numa psicanlise, calar assandlias na terra sagrada que o nada, fazendo da palavra uma atualizao dosujeito, verbo em ato convertido, e somente com-vertido pela hincia que o ver-bo instaura. Essa falta o prprio Homem, diz, de forma metafrica, o texto b-blico. No o idntico em si mesmo, que o Homem no pode ver, nomeimpronuncivel, luz que cega, pura pulso sem representao rumando para amorte. Esta, diz Lacan, no faz Witz. Mas possvel fazer Witz da morte, comoKarin demonstra citando anedotas judaicas.

    Do paraso do qual sempre estivemos expulsos, lembra Lus Cludio Fi-gueiredo , mal resta a lembrana, e do estatuto da verdade como realidade, nadasobra. Da verdade do sujeito, da fico por ele inventada repetida, no sintoma ,essa a que conta para o psicanalista. Da destituio e exploso do Outro quese institui o sujeito. porque ele pode se deixar enganar que produz sentidos, quefaz Witz. E ri de si mesmo. Riso fundamentalmente trgico, lembra Karin de Paulacitando textos da Antiguidade grega, to cara e fecunda para a psicanlise. Mas,afinal, que motivo melhor para o Witz seno no ter motivo algum? Afinal, comodizia o poeta, Hoje eu no sofreria nem por mim mesmo. Nosso destino morrer.Mas tambm nascer. O resto aflio de esprito.1

    1. Paulo Mendes Campos. Na praia. In: O amor acaba: crnicas lricas e existenciais. Rio de Ja-neiro: Civilizao Brasileira, 1999.

    FLVIA ALBERGARIA RAVELIPsicanalista; mestre pelo Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras eCincias Humanas da Universidade de So Paulo USP (So Paulo, SP, Brasil), doutoran-da no Instituto de Psicologia da mesma Universidade e aluna do curso de formao do Cen-tro de Estudos Psicanalticos CEP (So Paulo, SP, Brasil).Rua Humberto I, 974/63 Vila Mariana04018-030, So Paulo, SP, Brasil

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