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“Do pré-vestibular ao paradidático”: o processo de produção do livro Pontos de História da Amazônia (Belém-PA, anos 1990-2000) GERALDO MAGELLA DE MENEZES NETO * Resumo: Uma das editoras mais atuantes em Belém do Pará no início do século XXI é a Paka-Tatu. A trajetória desta editora está ligada fundamentalmente a um paradidático: o livro Pontos de História da Amazônia, que possui dois volumes, publicados inicialmente em 1999, destinados ao público do pré-vestibular. Produzido por Armando Alves Filho, José Alves Júnior e José Maia Neto, o Pontos se tornou um sucesso de vendas na virada dos anos 1990 para os anos 2000 com um discurso de preencher a lacuna do ensino da história da Amazônia, se tornando o ponto de partida para a criação da Paka-Tatu, sendo até hoje utilizado por professores e alunos do Ensino Fundamental e Médio em Belém. Assim, nosso objetivo é discutir o processo de produção do livro Pontos de História da Amazônia a partir de uma história do livro, problematizando as experiências dos autores como professores e as escolhas dos conteúdos, ou seja, fatores externos ao texto que influenciam na escrita. O Pontos é um exemplo importante para se investigar as práticas da produção didática na Amazônia dos anos 1990-2000. As fontes utilizadas são os dois volumes do Pontos e entrevistas com os autores por meio da metodologia da história oral. Palavras-chave: Amazônia; Ensino de História; História do livro; História oral; Livro paradidático. Introdução ** Uma das editoras mais importantes na publicação de livros regionais no estado do Pará atualmente é a editora Paka-Tatu. 1 Essa editora foi criada em junho de 2000 pelos professores Armando Alves, José Alves e José Maia, em Belém-PA. O primeiro livro lançado pela Paka- Tatu foi a obra Belém: Riquezas Produzindo a Belle-Époque (1870-1912), de autoria da * Professor da graduação e da pós-graduação da Faculdade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA), e do ensino fundamental da Secretaria Municipal de Educação de Belém (SEMEC). Doutorando em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected] ** O autor agradece a José Maia Bezerra Neto, José Alves de Souza Júnior e Armando dos Santos Alves Filho pelos depoimentos concedidos. E a Isabela Kalliluvey Queiroz de Melo, Priscila Cristina Martins e Suellen Cristina Rodrigues de Lima, graduandas do curso de História da FIBRA, pelo apoio na transcrição das entrevistas. 1 O nome Paka-Tatu faz referência a dois animais presentes na região amazônica: a paca, que é um mamífero roedor de dorso escuro e lustroso, apresentando lados do corpo com três a cinco listras longitudinais irregulares, brancas, ventre branco e cauda reduzida a um tubérculo nu, vivendo sempre perto da água, onde busca refúgio quando perseguido; e o tatu - designação comum aos mamíferos desdentados, dasipodídeos, com seis gêneros no Brasil e aproximadamente 11 espécies. Noctívagos, alimentam-se de raízes, frutos, insetos, e até de carniça. (NOVO DICIONÁRIO ELETRÔNICO AURÉLIO VERSÃO 5.0, 2004).

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“Do pré-vestibular ao paradidático”: o processo de produção do livro Pontos de História

da Amazônia (Belém-PA, anos 1990-2000)

GERALDO MAGELLA DE MENEZES NETO*

Resumo: Uma das editoras mais atuantes em Belém do Pará no início do século XXI é a

Paka-Tatu. A trajetória desta editora está ligada fundamentalmente a um paradidático: o livro

Pontos de História da Amazônia, que possui dois volumes, publicados inicialmente em 1999,

destinados ao público do pré-vestibular. Produzido por Armando Alves Filho, José Alves

Júnior e José Maia Neto, o Pontos se tornou um sucesso de vendas na virada dos anos 1990

para os anos 2000 com um discurso de preencher a lacuna do ensino da história da Amazônia,

se tornando o ponto de partida para a criação da Paka-Tatu, sendo até hoje utilizado por

professores e alunos do Ensino Fundamental e Médio em Belém. Assim, nosso objetivo é

discutir o processo de produção do livro Pontos de História da Amazônia a partir de uma

história do livro, problematizando as experiências dos autores como professores e as escolhas

dos conteúdos, ou seja, fatores externos ao texto que influenciam na escrita. O Pontos é um

exemplo importante para se investigar as práticas da produção didática na Amazônia dos anos

1990-2000. As fontes utilizadas são os dois volumes do Pontos e entrevistas com os autores

por meio da metodologia da história oral.

Palavras-chave: Amazônia; Ensino de História; História do livro; História oral; Livro

paradidático.

Introdução**

Uma das editoras mais importantes na publicação de livros regionais no estado do Pará

atualmente é a editora Paka-Tatu.1 Essa editora foi criada em junho de 2000 pelos professores

Armando Alves, José Alves e José Maia, em Belém-PA. O primeiro livro lançado pela Paka-

Tatu foi a obra Belém: Riquezas Produzindo a Belle-Époque (1870-1912), de autoria da

* Professor da graduação e da pós-graduação da Faculdade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA), e do ensino

fundamental da Secretaria Municipal de Educação de Belém (SEMEC). Doutorando em História Social da

Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected] ** O autor agradece a José Maia Bezerra Neto, José Alves de Souza Júnior e Armando dos Santos Alves Filho

pelos depoimentos concedidos. E a Isabela Kalliluvey Queiroz de Melo, Priscila Cristina Martins e Suellen

Cristina Rodrigues de Lima, graduandas do curso de História da FIBRA, pelo apoio na transcrição das

entrevistas. 1 O nome Paka-Tatu faz referência a dois animais presentes na região amazônica: a paca, que é um mamífero

roedor de dorso escuro e lustroso, apresentando lados do corpo com três a cinco listras longitudinais irregulares,

brancas, ventre branco e cauda reduzida a um tubérculo nu, vivendo sempre perto da água, onde busca refúgio

quando perseguido; e o tatu - designação comum aos mamíferos desdentados, dasipodídeos, com seis gêneros no

Brasil e aproximadamente 11 espécies. Noctívagos, alimentam-se de raízes, frutos, insetos, e até de carniça.

(NOVO DICIONÁRIO ELETRÔNICO AURÉLIO VERSÃO 5.0, 2004).

2

professora Maria de Nazaré Sarges, do então Departamento de História da Universidade

Federal do Pará.2

O discurso regionalista é reforçado pelo site da editora, que divulga que “o perfil

editorial da editora tem a proposta de estimular a produção de autores regionais e a publicação

de títulos sobre a Amazônia, sem que isso se constitua em amarras.”3

A Paka-Tatu também publica alguns livros paradidáticos4 regionais, voltados para a

história da Amazônia, a exemplo do livro Pontos de História da Amazônia, de Armando dos

Santos Alves Filho, José Alves de Souza Júnior e José Maia Bezerra Neto. O Pontos possui

dois volumes: o primeiro sobre a história do período colonial e imperial na Amazônia; e o

segundo sobre a história do século XX na Amazônia. Os dois volumes do Pontos de História

da Amazônia fizeram um grande sucesso de vendas no mercado regional: o primeiro teve três

edições e uma reimpressão da terceira edição; o segundo teve duas edições e três

reimpressões. O Pontos ainda é um livro bastante presente, por exemplo, nas bibliotecas das

escolas públicas de Belém, para consulta e utilização pelos professores e alunos do ensino

fundamental e médio. Assim, nosso objetivo é analisar como seu deu o processo de produção

dos dois volumes do Pontos de História da Amazônia. Para isso, utilizamos como fonte o

próprio livro e depoimentos dos autores, que foram colhidos em entrevistas gravadas em

áudio. Esta pesquisa ainda está em andamento e aqui faremos considerações parciais.5

A História oral, segundo Verena Alberti, “consiste na realização de entrevistas

gravadas com indivíduos que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos e

conjunturas do passado e do presente.” (ALBERTI, 2005: 155). A História oral é hoje um

caminho interessante para se conhecer e registrar múltiplas possibilidades que se manifestam 2 Ver: “Há 16 anos transformando ideias em livros”. Site da Editora Paka-Tatu. Disponível em:

http://editorapakatatu.com.br/index.php?route=information/information&information_id=10 Acesso em 28 mai.

2017. 3 Ver: “Há 16 anos transformando ideias em livros”. Site da Editora Paka-Tatu. Disponível em:

http://editorapakatatu.com.br/index.php?route=information/information&information_id=10 Acesso em 28 mai.

2017. 4 Utilizamos o termo “livro paradidático” a partir da noção de Kazumi Munakata, que compreende que são livros

que, sem apresentar características próprias dos didáticos (seriação, conteúdo segundo um currículo oficial ou

não etc.), são adotados no processo de ensino e aprendizagem nas escolas, seja como material de consulta do

professor, seja como material de pesquisa e de apoio às atividades do educando, por causa da carência existente

em relação a esses materiais. Em suma, o que define os livros paradidáticos é o seu uso como material que

complementa (ou mesmo substitui) os livros didáticos. (MUNAKATA, 1997: 103). 5 Em 2016 iniciamos o doutorado em História Social da Amazônia na UFPA com o projeto “Preenchendo a

lacuna da História regional”: Produção de livros (para)didáticos de História da Amazônia no início do século

XXI, sob a orientação da Prof. Dra. Franciane Gama Lacerda.

3

e dão sentido a forma de vida e escolhas de diferentes grupos sociais, em todas as camadas da

sociedade. Uma de suas riquezas está em permitir o estudo das formas como pessoas ou

grupos efetuaram e elaboraram experiências. (ALBERTI, 2005: 164-165). Assim, por meio da

metodologia da história oral, podemos investigar várias questões que estão além do livro

didático, como o processo de seleção de conteúdos, as experiências dos autores para a escrita

dos capítulos, as representações que os autores fazem do público leitor.6

Compreendemos que o livro paradidático Pontos de História da Amazônia faz parte de

uma “cultura escolar”, que conforme Dominique Julia:

Para ser breve, poder-se-ia descrever a cultura escolar como um conjunto de

normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto

de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação

desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem

variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de

socialização). (JULIA, 2001: 10).

Os conteúdos relacionados à história do Pará nos dois volumes do Pontos fazem parte

de um conjunto de normas de conhecimentos que se pretende ensinar aos estudantes

paraenses, no que se refere de mais importante da história regional. Na cultura escolar, o livro

didático assume um papel fundamental, pois, segundo Kazumi Munakata, “o livro didático é,

em primeiro lugar, o portador dos saberes escolares, um dos componentes explícitos da

cultura escolar. De modo geral o livro didático é a transcrição do que era ensinado, ou que

deveria ser ensinado, em cada momento da história da escolarização.” (MUNAKATA, 2016:

123). Não estamos dizendo aqui que o Pontos de História da Amazônia por si só já nos revela

como era e como é o ensino da história regional no Pará. Mas entendemos que ele pode nos

revelar indícios da cultura escolar que se volta para o estudo da História da Amazônia na

Educação Básica.

Como material da cultura escolar, que divulga conteúdos que se propõem valorizar a

história regional, os dois volumes do Pontos de História da Amazônia são uma fonte

importante para se pensar nas influências da seleção de conteúdos que acabam por se tornar

6 Algumas pesquisas se valeram do uso de entrevistas para o estudo da produção de livros didáticos e

paradidáticos. Podemos citar os trabalhos de Munakata (1997, 1998), que, embora não citem a história oral

diretamente, realizam um importante levantamento de depoimentos de editores, autores e demais profissionais

das principais editoras de livros didáticos no Brasil. Igualmente, Décio Gatti Júnior utiliza entrevistas com

editores de didáticos no Brasil nos anos 1970-1990 para entender o perfil dos editores. (GATTI JÚNIOR, 2005).

4

muitas vezes referência para os professores do Ensino Fundamental e Médio que trabalham a

chamada história regional em sala de aula.

Os autores do Pontos de História da Amazônia e suas trajetórias

Os dois volumes do Pontos de História da Amazônia possuem três autores. O primeiro

é Armando dos Santos Alves Filho, que atualmente é editor e proprietário da Paka-Tatu.

Armando é graduado em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e especialista

em Teoria Antropológica, também pela UFPA, tendo trabalhado por muitos anos como

professor do Núcleo Pedagógico Integrado (NPI), atual Escola de Aplicação da UFPA, se

aposentando no ano de 2000. Desde então, Armando se dedica à editora Paka-Tatu. Armando

Alves Filho publicou alguns livros digitais dedicados ao público infanto-juvenil, como O

Velho Mura7 e A Menina e o Coronel.8

José Alves de Souza Júnior é atualmente professor do curso de História e do Programa

de Pós-Graduação em História Social da Amazônia da UFPA. Possui graduação em

Licenciatura Plena em História pela UFPA (1976), mestrado em História pela Universidade

Estadual de Campinas (Unicamp) (1998) e doutorado em História pela Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) (2009). Sua pesquisa de mestrado foi sobre o

processo de adesão do Grão-Pará à independência do Brasil; já a de doutorado analisou a

política pombalina e a atuação da Companhia de Jesus no Grão-Pará do Setecentos. A tese de

doutorado de José Alves ganhou o prêmio “Professor Benedito Nunes” de melhor tese da

UFPA no ano de 2010 e foi publicada com o título Tramas do Cotidiano. Religião, Política,

Guerra e Negócios no Grão-Pará do Setecentos.9 Além dessa obra, José Alves publicou o

7 O Velho Mura, um misto de realidade e ficção, relata a amargura de um velho índio que teria sido protagonista

de um episódio que se passou no sítio (Mura) dos Guatazes. Informações do site da editora Paka-Tatu.

Disponível em: http://editorapakatatu.com.br/index.php?route=product/product&product_id=740. Acesso em: 14

abr. 2017. 8 A Menina e o Coronel é um livro baseado em fatos reais que demonstra a falta de limites e escrúpulos daqueles

que detinham o poder econômico, em um regime permissivo em que os mais fracos, em muitas ocasiões,

tornaram-se objetos da voluntariedade ilimitada dos detentores desse poder. E o pior, as instituições que

poderiam e deveriam preservar os direitos dos cidadãos, viraram cúmplices dos poderosos, consolidando, pela

impunidade, o modelo injusto e vigente. Informações do site da editora Paka-Tatu. Disponível em:

http://editorapakatatu.com.br/index.php?route=product/product&product_id=741&search=A+Menina+e+o+Coro

nel+%28livro+digital%29. Acesso em: 14 abr. 2017. 9 O prêmio Professor Benedito Nunes é concedido pela Universidade Federal do Pará (UFPA), a cada dois anos,

à melhor Tese de Doutorado nas áreas de Filosofia, Ciências Humanas, Letras, Comunicação e Artes. O prêmio é

uma homenagem à memória do Professor Benedito Nunes, por sua contribuição destacada ao pensamento

5

livro Mundo Contemporâneo. Do Imperialismo à derrocada do Leste Europeu, direcionado

ao Ensino Médio, e foi um dos organizadores do livro Novos olhares sobre a Amazônia

Colonial.10

José Maia Bezerra Neto é atualmente professor do curso de História e do Programa de

Pós-Graduação em História Social da Amazônia da UFPA. Possui graduação em História

(1992) e especialização em Teoria Antropológica pela UFPA (1993), mestrado em História

Social do Trabalho pela Unicamp (2000) e doutorado em História Social pela PUC-SP (2009).

Suas pesquisas se voltam para o estudo da escravidão no Grão-Pará no século XIX. Publicou

o livro Escravidão negra no Grão-Pará (Séculos XVII-XIX), em 2001, e foi um dos

organizadores das obras Terra Matura. Historiografia e História Social na Amazônia, de

2002, e Diálogos entre História, Literatura & Memória, de 2007.11

Um ponto em comum entre os três autores é que todos atuaram como professores de

cursos pré-vestibulares e no Ensino Médio em Belém entre os anos 1980 e 2000. Os

depoimentos dos autores nos sugerem que nessa época havia um espaço importante de

atuação para professores de História, até mesmo para aqueles que ainda estavam na

graduação:

Também, a partir do segundo ano de universidade, em 88, comecei a lecionar.

Naquela época era razoavelmente comum que alunos do curso de História

começassem a dar aula. Nos colégios, havia uma certa, digamos assim, uma certa

demanda não atendida a contento. Então, já no segundo ano de graduação em 88,

eu comecei a ministrar aulas e trabalhei durante um período em supletivo. Depois

eu comecei a dar aulas em cursinhos pré-vestibulares. Depois eu comecei a ser

chamado para trabalhar nos colégios, eu trabalhava a nível de Ensino Médio, em 1º

e 2° ano, mas principalmente, no convênio. E fiquei durante seis anos trabalhando,

ou seja, de 88 até o final da minha graduação, e depois de graduado, trabalhando

nos colégios. (BEZERRA NETO, 2016).

contemporâneo e à consolidação da pós-graduação na UFPA. Ver SOUZA JÚNIOR, José Alves de. Tramas do

cotidiano: religião, política, guerra e negócios no Grão-Pará do setecentos. Belém: Editora da UFPA, 2012. 10 Ver SOUZA JUNIOR, José Alves de. Mundo Contemporâneo: Do Imperialismo à derrocada do Leste

Europeu. 2. ed. Belém: Editora Paka-Tatu Ltda, 2002; CHAMBOULEYRON, Rafael; SOUZA JÚNIOR, José

Alves de. (orgs.). Novos olhares sobre a Amazônia Colonial. Belém: Paka-Tatu, 2016. Informações sobre a

trajetória acadêmica de José Alves podem ser consultadas na Plataforma lattes. Disponível em:

http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4544826A1. Acesso em: 14 abr. 2017. 11 Ver BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão negra no Grão-Pará (Séculos XVII-XIX). Belém: Paka-Tatu,

2001; BEZERRA NETO, José Maia; GUZMÁN, Décio de Alencar (orgs.). Terra Matura. Historiografia e

História Social na Amazônia. Belém: Paka-Tatu, 2002; FONTES, Edilza Joana de Oliveira; BEZERRA NETO,

José Maia (orgs.). Diálogos entre História, Literatura & Memória. Belém: Paka-Tatu, 2007. Informações sobre

a trajetória acadêmica de José Maia podem ser consultadas na Plataforma lattes. Disponível em:

http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4723407E9. Acesso em: 15 abr. 2017.

6

A atuação em cursos pré-vestibulares e no Ensino Médio12 trazia dois benefícios: o

primeiro era obter um rendimento financeiro; o segundo de ganhar experiência em sala de

aula. No entanto, isso exigia uma dose de ‘sacrifício’, uma carga horária extensa que privava

muitas vezes do convívio familiar. José Alves, que começou a trabalhar um pouco mais cedo,

ainda nos anos 1970, relata que “então esse período eu dava aula de segunda à domingo de

manhã, eu... minha carga horária estúpida, e aí... ganhava bastante bem, mas trabalhava,

passava a semana praticamente fora de casa, quando chegava à noite meus filhos já estavam

dormindo.” (SOUZA JÚNIOR, 2017).

Nos anos 1980 e 1990 o vestibular da UFPA era o que ofertava mais vagas no Estado

do Pará. Naquela época, o vestibular era realizado por áreas: CH, que era a área de Ciências

Humanas; CB, de Ciências Biológicas; CE, de Ciências Exatas. Essa divisão demandava a

abertura de cursinhos específicos, direcionados a cada uma dessas áreas. Nesse contexto, por

volta de 1984, uma cooperativa de professores, composta dentre outros, por Armando Alves e

José Alves, abriu o curso chamado Athenas, um curso específico de CH. Eles contratavam

outros professores para lecionar disciplinas como Português e Geografia. Nas palavras de José

Alves: “E aí esse cursinho, na verdade recebia... alunos de famílias bem abastadas, porque a

gente cobrava um preço caro, e aí e, e tínhamos um, um código de conduta e um código ético,

no máximo vinte alunos na sala.” (SOUZA JÚNIOR, 2017). Mais tarde, José Maia também

passou a lecionar no curso Athenas. Essa experiência de sala de aula nos cursos pré-vestibular

e no Ensino Médio foi fundamental para a produção do Pontos de História da Amazônia.

A escolha dos conteúdos e o processo de escrita do Pontos de História da Amazônia,

Volume I e II

O primeiro volume do livro paradidático Pontos de História da Amazônia foi

publicado inicialmente em abril de 1999; já o segundo volume foi publicado em junho do

mesmo ano. Os autores explicam na “Apresentação” o contexto da produção do livro: “Nesses

últimos anos, nos cursos universitários e ensinos médio e fundamental tem-se enfatizado o

12 Vários colégios e cursos pré-vestibulares em Belém foram citados como local de trabalho pelos autores,

muitos ainda existentes hoje: Santo Antônio, Centro de Estudos Objetivo, Santa Catarina, Anglo-Latino, Santa

Rosa, Nazaré, Athenas, Ideal.

7

estudo de temas da História da Amazônia, particularmente da História do Pará.” (ALVES

FILHO; SOUZA JÚNIOR; BEZERRA NETO, 2001: 7). Assim, os autores justificam que

“percebendo a dificuldade de encontrar o conteúdo necessário ao conhecimento desses

assuntos, foi pensado, planejado e editado o presente livro”. (ALVES FILHO; SOUZA

JÚNIOR; BEZERRA NETO, 2001: 7).

O Pontos de História da Amazônia, Volume I apresenta os seguintes capítulos:

Tabela 1: Capítulos do Pontos de História da Amazônia, Volume I

Capítulo Páginas Autor

I - A conquista portuguesa

da Amazônia

11-25 José Maia Bezerra Neto

II – O trabalho forçado na

Amazônia Colonial

27-33 Armando Alves Filho

III – O projeto pombalino

para a Amazônia e a

“Doutrina do Índio-

Cidadão”

35-53 José Alves de Souza Júnior

IV – A adesão do Pará à

independência

55-71 José Alves de Souza Júnior

V – A Cabanagem: a

revolução no Pará

73-103 José Maia Bezerra Neto

Texto Complementar: O

Massacre do Brigue

“Palhaço”

105-109 Armando Alves Filho

Neste primeiro volume, o livro foca em temas relacionados à história da Amazônia nos

períodos colonial e imperial. O marco inicial é a conquista portuguesa da Amazônia, com a

fundação de Belém em 1616. Outros temas abordados na época da colônia são as disputas

entre religiosos e colonos pela mão-de-obra indígena e a política de Portugal em relação à

Amazônia, com maior destaque para o período do Marquês de Pombal (1750-1777). Já acerca

do século XIX, o volume I do Pontos aborda os conflitos políticos no processo de adesão do

Pará à independência, que ocorreu em 1823, e suas consequências, como o massacre do

Brigue “Palhaço”; e a o movimento da Cabanagem no período regencial (1835-1840).

Já o segundo volume apresenta os capítulos:

Tabela 2: Capítulos do Pontos de História da Amazônia, Volume II

8

Capítulo Páginas Autor

I - A Revolução de 30 no

Pará: a 1ª Interventoria de

Magalhães Barata (1930-

1945)

11-25 José Alves de Souza Júnior

II – A Economia da

Borracha e o Esforço de

Guerra: Os soldados da

Borracha na Amazônia

27-43 José Maia Bezerra Neto

III – A Política dos

Governos Militares na

Amazônia (1964-1985)

45-70 Armando Alves Filho

IV – A Guerrilha do

Araguaia (1972-1975)

71-99 Armando Alves Filho

O segundo volume trata de alguns temas históricos do século XX, iniciando-se com a

interventoria de Magalhães Barata no Pará nos anos 1930; os reflexos da Segunda Guerra na

Amazônia com a mobilização dos soldados da borracha; o contexto da Ditadura Militar no

Pará e os movimentos de resistência, como a Guerrilha do Araguaia.

Se nos centrarmos apenas na análise do próprio livro, focando nos conteúdos, como

comumente é realizado por várias pesquisas que tem os didáticos como fonte, nossos

resultados serão limitados. Assim, é relevante a análise do processo de produção de um

impresso a partir das discussões do campo da História do livro. Questionando os estudos que

se prendem a análise do texto, Roger Chartier aponta que “não existe nenhum texto fora do

suporte que o dá a ler, que não há compreensão de um escrito, qualquer que ele seja, que não

dependa das formas através das quais ele chega ao seu leitor.” (CHARTIER, 1990: 127).

Dessa forma, entendemos que torna-se mais relevante investigarmos os ‘bastidores’, ou seja, o

processo de produção dos dois volumes do Pontos. Afinal, por que os dois livros tratam

desses temas? Qual o critério para que um autor escreva sobre um tema em específico? A

metodologia da história oral pode nos auxiliar a refletir sobre essas questões.

Os capítulos do Pontos de História da Amazônia estão diretamente relacionados aos

conteúdos que eram cobrados no vestibular da UFPA nos anos 1990. Curiosamente, um dos

autores, José Alves, que já era professor da UFPA, foi um dos responsáveis em inserir temas

de História da Amazônia no programa do vestibular:

9

(...) conseguimos numa das reuniões que foi feita pra definir o programa do

vestibular, eu não sei qual era nome do progra... COPERV, Comissão Permanente

do Vestibular, tava iniciando nessa época, então ela que era reunia, ela tinha

representantes nos vários, das várias disciplinas, e aí nós conseguimos colocar dois

programas de História e História da Amazônia, aí percebemos que não tinha...

material didático ou paradidático, que os alunos pudessem utilizar, pra isso, e aí

nós começamos a pensar em produzir. Primeiro nós produzimos, digamos assim, é...

desconectados, e aí nós pensamos em publicar um paradidático juntos. (SOUZA

JÚNIOR, 2017).

É importante destacar que a inserção de temas de História da Amazônia representou

uma novidade, trazendo uma nova demanda de materiais didáticos voltados à História

regional. Os três autores, que tinham experiência em cursos pré-vestibular, sabiam disso e

souberam explorar comercialmente essa carência de material. Por exemplo, de forma isolada,

Armando Alves produzia no final dos anos 1990 textos sobre temas como a Guerrilha do

Araguaia, que eram armazenados em disquetes e distribuía nas bancas para venda.

Além disso, os três autores, que já tinham um certo reconhecimento junto ao público

do pré-vestibular, promoveram palestras para os alunos, alugando espaços em Belém e

cobrando ingressos:

E, de um modo geral nós fazíamos no... no... CCBEU13, que eles têm um auditório

bonito lá, então nós alugávamos o... o auditório do CCBEU por 1 ou 2 dias né e

lotava porque os alunos, os vestibulandos, nós éramos assim dos professores que

tinham uma certa visibilidade né. (...) quando, nós anunciávamos que íamos fazer

palestras temáticas aí o tema dessas palestras a gente então fazia eu me lembro...

sobre a guerrilha do Araguaia, não é, a ... sobre as políticas da ditadura militar pra

Amazônia, sobre a escravidão negra né, sobre a Cabanagem, então a gente fechava

alguns temas e cada noite a gente trabalhava dois temas. (...) E aí depois a gente

a... às vezes reservava um tempo pra exposição né e depois da exposição os... os

estudantes ficavam à vontade pra fazer perguntas e tirar as dúvidas. (ALVES

FILHO, 2017)

O dinheiro arrecadado nas palestras serviu para o financiamento do Pontos de História

da Amazônia, de início de forma independente. Os autores relatam que a primeira edição era

feita numa “fábrica de fundo de quintal”, de forma “bem artesanal”. Apesar disso, essa

primeira edição vendeu bastante, sinal também de que realmente havia uma demanda do

público do Ensino Médio por materiais didáticos sobre a História da Amazônia. Com essa

experiência, mais tarde, os autores se reuniram e criaram a editora Paka-Tatu, publicando o

Pontos de uma forma mais profissional. 13 Centro Cultural Brasil-Estados Unidos, curso de idiomas.

10

E como se deu a divisão dos capítulos do livro? Os capítulos dos dois volumes

seguiram o programa do vestibular da UFPA nos anos 1990. O Pontos do título do livro seria

na verdade uma referência aos conteúdos de História da Amazônia que estavam no programa

do vestibular e que os alunos deveriam estudar. É importante destacarmos isso porque quem

observa o livro hoje pode estranhar a ausência de temas que são bastante comuns na

historiografia amazônica, a exemplo do período da Belle Époque, do apogeu da economia da

borracha na Amazônia no final do século XIX e início do XX. A relação de quais capítulos

cada autor iria escrever, foi definida da seguinte forma, conforme depoimento de José Alves:

Especialidades. Armando estudava muito o período da ditadura militar, guerrilha

né. O Maia, escravidão, Cabanagem, período da Cabanagem né, e eu colônia,

colônia e claro, o processo de Adesão, tanto que nesse eu tenho dois, dois capítulos,

que eram sobre a, na época chamado de projeto pombalino e a Adesão do Pará à

Independência, e no volume II é, é... eu tinha muita leitura sobre o período do

Barata né, aí fiz sobre o Barata. (SOUZA JÚNIOR, 2017).

A definição de quem iria escrever quais capítulo levou em conta, conforme José

Alves, a especialidade de pesquisa de cada um. Interessante notar que alguns capítulos foram

uma ‘transposição didática’ de artigos publicados pelos autores. O capítulo “O projeto

pombalino para a Amazônia e a ‘Doutrina do Índio-Cidadão’”, de José Alves, era uma versão

didática do artigo de mesmo nome publicado em 1993.14

Um questionamento que fizemos aos autores nas entrevistas foi em relação à

linguagem utilizada no livro. Sobre esse tema, José Alves comenta:

E a gente já tinha essa lida há muito tempo, com a sala de aula, preparação de

apostilas, então não tivemos grandes dificuldades, de usar uma linguagem... o que

nós procuramos fazer, se nós conseguirmos, conseguimos é outra coisa, usar uma

linguagem um pouco mais burilada, um pouco mais elaborada em termos de análise

do livro didático convencional, sair um pouco daquela descrição que era a

maioria... dos livros didáticos do Brasil, e usar uma linguagem que fosse acessível,

mas que não fosse rasteira, né, que levasse o aluno, por exemplo, a ler e sentir a

necessidade de ir num dicionário. (SOUZA JÚNIOR, 2017).

José Alves relaciona a linguagem utilizada no Pontos de História da Amazônia com as

experiências anteriores que os autores tinham como professores: em sala de aula e na

14 Ver SOUZA JÚNIOR, José Alves de. O Projeto Pombalino para a Amazônia e a Doutrina do Índio-Cidadão.

Cadernos do Cfch Ufpa, Belém, v. 12, n.1/2, p. 85-98, 1993.

11

elaboração de apostilas para os alunos. Desse contato de vários anos com o público do pré-

vestibular, os autores conheciam a linguagem que possivelmente seria de entendimento para

esses alunos. Se de fato isso se concretizou, se realmente os alunos não sentem grandes

dificuldades ao ler o Pontos já é outra discussão, que iria além dos propósitos deste trabalho,

pois teríamos que entrevistar alunos ou observar aulas nas quais são utilizadas o livro.

Considerações finais

Esta pesquisa, ainda em andamento, procurou investigar o processo de produção do

livro paradidático Pontos de História da Amazônia. Entendemos que a forma como o livro

chega ao leitor influencia na sua leitura, sendo necessário perceber as influências que os

autores recebem para compreendermos as suas escolhas de conteúdo, por exemplo. No caso

do livro destinado ao público escolar, conhecermos esses ‘bastidores’ do processo de

produção do livro são importantes para termos indícios da cultura escolar, aqui

especificamente, do ensino de História da Amazônia, a história dita ‘regional’.

É importante destacarmos também que as entrevistas se apresentam como uma fonte

interessante para ampliarmos nossa compreensão acerca dos livros didáticos. Se nos

restringirmos a análise de conteúdo, algo muito comum nas pesquisas sobre ensino de

História, não conseguiremos explorar as múltiplas facetas deste objeto cultural tão complexo

que é o livro didático. O avanço da pesquisa irá proporcionar mais conhecimentos acerca das

particularidades dos livros didáticos de história regional que são publicados na Amazônia.

Referências

Fontes

Entrevistas:

ALVES FILHO, Armando dos Santos. Entrevista concedida a Geraldo Magella de Menezes

Neto em 07 fev. 2017. Transcrição: Suellen Cristina Rodrigues de Lima. Revisão: Geraldo

Magella de Menezes Neto.

12

BEZERRA NETO, José Maia. Entrevista concedida a Geraldo Magella de Menezes Neto em

09 set. 2016. Transcrição: Isabela Kalliluvey Queiroz de Melo e Priscila Cristina Martins

Assunção. Revisão: Geraldo Magella de Menezes Neto.

SOUZA JÚNIOR, José Alves de. Entrevista concedida a Geraldo Magella de Menezes Neto

em 18 jan. 2017. Transcrição: Suellen Cristina Rodrigues de Lima. Revisão: Geraldo Magella

de Menezes Neto.

Livros paradidáticos:

ALVES FILHO, Armando Alves; SOUZA JÚNIOR, José Alves de; BEZERRA NETO, José

Maia. Pontos de História da Amazônia, volume II. 2 ed. rev. ampl. Belém: Paka-Tatu,

2000.

ALVES FILHO, Armando Alves; SOUZA JÚNIOR, José Alves de; BEZERRA NETO, José

Maia. Pontos de História da Amazônia, volume I. 3 ed. rev. ampl. Belém: Paka-Tatu, 2001.

Bibliografia

ALBERTI, Verena. Fontes orais - Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezi.

(org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 1990.

GATTI JÚNIOR, Décio. A escrita escolar da história: livro didático e ensino no Brasil

(1970-1990). Bauru, SP: Edusc; Uberlândia, MG: Edufu, 2004.

JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História

da Educação, n°1, jan./jun. 2001, pp. 9-43.

MUNAKATA, Kazumi. Produzindo livros didáticos e paradidáticos. São Paulo: Tese de

Doutorado em História e Filosofia da Educação, Pontifícia Universidade Católica – PUC,

1997.

MUNAKATA, Kazumi. Histórias que os livros didáticos contam, depois que acabou a

ditadura no Brasil. In: FREITAS, Marcos Cezar de. (org.). Historiografia brasileira em

perspectiva. 2 ed. São Paulo: Contexto, 1998.

13

MUNAKATA, Kazumi. Livro didático como indício da cultura escolar. Hist. Educ. (Online).

Porto Alegre, vol. 20, n. 50, set./dez. 2016, pp. 119-138.

NOVO DICIONÁRIO ELETRÔNICO AURÉLIO VERSÃO 5.0, 2004.