Do rastreamento eletrônico como alterantiva à pena de prisão

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    DO RASTREAMENTO ELETRNICO COMOALTERNATIVA PENA DE PRISO

    Tlio Vianna

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    1 1 . DO RASTREAMENTO ELETRNICO COMOALTERNATIVA A PENA DE PRISO

    Tlio Vianna 1

    Pressupostos

    A recente discusso sobre o rastreamento eletrnico de condenadoscriminalmente ganhou especial relevo com a tramitao na Cmara dosDeputados do Projeto de Lei 1.288/20072 que visa regulamentar o uso dosistema na execuo penal brasileira. Antes de adentrar os mritos e demritosda tecnologia e do projeto de lei, faz-se necessrio esclarecer os pressupostosque regero nossa anlise.

    De incio, tomaremos como premissa que a maioria das pessoas prefeririater seus passos rastreados por satlite a ser aprisionada em uma penitenciria.Assim,nosso primeiro pressuposto de que o rastreamento eletrnico maisbenfico ao condenado que a pena privativa de liberdade.

    Tambm inegvel que toda pena, por definio, ter sempre um certocarter aflitivo e que o rastreamento eletrnico no tem qualquer propsito derevolucionar o modo de se punir, afastando o sofrimento da sano penal. Nossosegundo pressuposto que o rastreamento eletrnico tem carter aflitivo, masque esta caracterstica inerente a qualquer pena.

    Por fim, indiscutvel que, na atualidade, a pena privativa de liberdadeno cumpre suas propostas de preveno especial positiva, pois funda-se naparadoxal idia de ressocializar o condenado isolando-o da sociedade. Estefato, por si s, no seria um empecilho para sua utilizao pelos defensores deoutras teorias da pena, seja nas vertentes retributivas, ou de preveno geralou especial negativa, no fosse uma significativa constatao: a priso no sno cumpre sua promessa ressocializadora, mas tambm um relevante fatorcrimingeno. Destarte, ainda que se negue qualquer funo ressocializadorada pena, h que se reconhecer um problema fundamental quando se percebeque ela acaba por induzira reiterao criminosa. Finalmente, tomaremos comoterceiro e ltimo pressuposto que a priso tem se mostrado inadequada como

    pena e preciso criar formas alternativas de se punir.Cabe ento indagar: se a pena de priso visivelmente ineficaz e, se orastreamento eletrnico, apesar de seu carter aflitivo, um mal menor que apriso, por que no adot-lo de pronto sem maiores delongas?

    As solues tecnolgicas para problemas sociais no raras vezes vmacompanhadas de efeitos colaterais relevantes que so potencializados pelodeslumbramento dos que vm na tecnologia uma panacia e acabam por utiliz-la com precipitao e indiscriminadamente. Seus opositores, por sua vez, muitavez se deixam guiar pelo medo a inovaes, sejam elas quais forem e acabampor rejeitar muito do progresso que a cincia pode proporcionar, simplesmentepor no conseguirem localizar e isolar os reais bices do novo invento.

    1 Professor de Direito Penal da PUC Minas. Doutor em Direito pela UFPR e Mestre em Direito pela UFMG.Editor do site www.tuliovianna.org 2 Cf. Projeto de Lei n" 1.288/2007. Disponvel em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/491986.pdf

    http://www.tuliovianna.org/http://www.camara.gov.br/sileg/integras/491986.pdfhttp://www.camara.gov.br/sileg/integras/491986.pdfhttp://www.tuliovianna.org/
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    Faremos ento uma breve exposio descritiva da nova tecnologia e, emseguida, buscaremos apontar seus potenciais efeitos colaterais a curto e mdioprazo.

    O equipamento

    O equipamento composto por dois dispositivos: uma tornozeleira (pulseiraou bracelete) prova d'gua e supostamente anti-alrgica que deve ser usadapelo condenado 24 por dia e um dispositivo de rastreamento GPS um poucomaior que um telefone celular3. A tornozeleira lacrada no corpo do condenadono incio da execuo da pena e transmite continuamente um sinal criptografadopara o dispositivo de rastreamento GPS que, por sua vez, transmite ascoordenadas do usurio at a central de controle da execuo penal.

    A tornozeleira evidentemente no feita de um material indestrutvel (nema perna do condenado, que poderia, no extremo, ser amputada) e, portanto,pode ser arrancada com relativa facilidade. O buslis que, em tese, no hcomo retirar a tornozeleira sem que ela pare de emitir o sinal e, em tais casos, acentral de controle teria ento cincia da fuga. Outras hipteses de interrupodo sinal seriam a descarga da bateria do dispositivo GPS ou o excesso dedistncia separando-o da tornozeleira. Em todos estes casos a central decontrole presumiria a fuga do acusado por perda do sinal de rastreamento.

    O equipamento permite o rastreamento do condenado em temporeal,podendo ser visualizados em um mapa, em fotos de satlite ou, ainda emmapas hbridos (fotos de satlite com ruas). Nesta hiptese, o vigia saberno s a localizao do condenado em dado momento, mas tambm poderacompanhar sua movimentao a cada instante, podendo determinar inclusivesua velocidade. Evidentemente este tipo de rastreamento em tempo real caro,pois pressupe a existncia de um vigia humano para assistir movimentaodo condenado e um envio constante de sinais para a central.

    Um modelo alternativo e de menor custo, pois dispensa a vigilncia humanana maior parte do tempo, a monitorao por excluso. Nele, o juiz determinaos locais por onde o condenado poder ou no transitar e, nos casos em que ocondenado ingressa em reas no permitidas, o sistema comunica central eesta automaticamente passa a rastre-lo em temporeal. um modelo bastante

    verstil, pois permite ao juiz determinar desde reas de circulao bastanterestritas, como a prpria casa do condenado (priso domiciliar) at outrasbastante amplas, mas com zonas de excluso (liberdade para circular por todauma cidade, exceto prximo casa e ao trabalho da ex-exposa). A vantagembvia em relao ao rastreamento em tempo real a reduo do custo comvigias humanos e com a conexo, pois o equipamento s precisar emitir o sinalquando a zona de excluso for ultrapassada.

    Finalmente, h ainda a possibilidade de um rastreamento retrospectivo, noqual o sistema registrar por onde o condenado transitou ao longo do dia eenviar um relatrio consolidado diariamente central, com estas informaes.

    E o modelo de menor custo operacional, mas, em contrapartida, as eventuaisfugas podero levar at 24h para serem constatadas.

    ^ No Brasil, o primeiro equipamento desenvolvido o Sistema de Acompanhamento de Custdia (SAC24). SPACECOM. SAC24. Disponvel em: http://www.spacecom.com.br/portugues/produtos/sac24.html

    http://www.spacecom.com.br/portugues/produtos/sac24.htmlhttp://www.spacecom.com.br/portugues/produtos/sac24.html
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    Crticas

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    A maioria das crticas que se tem feito ao rastreamento eletrnico decondenados limita-se a atacar aspectos operacionais do sistema.

    Tem se afirmado que o uso do equipamento por parte do condenado seria

    estigmatizante e poderia resultar at mesmo em linchamentos, caso ele fossedescoberto portando o dispositivo em lugares pblicos. Ressalte-se ainda queem virtude do clima quente brasileiro, o uso de bermudas extremamentecomum em nosso pas e o condenado teria que optar pelo uso da cala compridacaso quisesse ocultar a tornozeleira.

    No obstante a importncia destas crticas para o aperfeioamento dosistema, v-se que elas no atacam uma caracterstica essencial do sistema,mas to-somente sua forma, que pode ser perfeitamente alterada conforme asnecessidades locais. Talvez fosse o caso de se desenvolver no Brasil, pulseirassemelhantes a relgios de pulso que poderiam ser usadas at mesmo em praiase clubes. Haveria ainda a opo do implante de microchips no condenado, maso alto custo e as questes bioeticas que a envolveriam no a tornam a maisindicada.

    Uma segunda crtica de grande importncia que tem sido feita ao sistema o risco potencial de danos sade do condenado, causados por efeitosnocivos ainda desconhecidos do equipamento. Certamente, trata-se de umapossibilidade real e nem sempre constatvel a curto prazo. De todo modo,mais uma vez tem-se um problema operacional e no essencial ao sistema. perfeitamente possvel e at provvel que o material do qual feita a pulseiraseja realmente anti-alrgico e que as ondas eletromagnticas emitidas pelodispositivo rastreador no causem qualquer dano sade. Por outro lado, aseventuais alergias causadas pela pulseira poderiam ser detectadas com certafacilidade pelo usurio e a troca por pulseiras de um outro tipo de material seriapossvel. Quanto aos eventuais efeitos nocivos das ondas eletromagnticas,estes seriam de difcil deteco a curto prazo, mas no s os condenadoscorreriam riscos sade, mas todos os usurios de telefones celulares domundo. Na ausncia de indcios cientficos desta possibilidade, este no umargumento suficientemente vlido para afastar o uso desta tecnologia.

    Uma terceira crtica tambm bastante relevante que dado o baixo grau deescolaridade da maioria dos condenados brasileiros, muitos teriam dificuldadesem operar o equipamento, o que poderia acarretar alarmes falsos na centrale, conseqentemente, a priso do usurio, no pelo descumprimento dolosode suas obrigaes, mas por mau-uso do dispositivo. Trata-se, mais uma vezde uma questo operacional que deve ser estudada com seriedade, mas noum bice ao uso da tecnologia. O uso do equipamento bastante simples e ocondenado deve evitar to-somente que o dispositivo rastreador afaste-se dapulseira ou que a bateria seja descarregada completamente. fundamental queas explicaes sejam passadas oralmente e de forma didtica ao condenadono momento da instalao do equipamento, pois muitos no sabem ler e omanual de instrues pouco ou nada lhe seriatil. fundamental ainda que odispositivo rastreador tenha um aviso visual e sonoro bastante claro indicandoque a pulseira afastou-se demasiadamente dele ou que a bateria precisa serrecarregada. A possibilidade de troca por uma bateria reserva tambm importante, pois muita vez a autonomia da bateria pequena e o condenadono dispe de meios para recarreg-la em seu local de trabalho.

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    Uma quarta crtica, tambm de cunho exclusivamente operacional, de queum sistema de alta tecnologia como este seria demasiadamente dispendiosopara os cofres pblicos e que esta verba poderia ser mais bem aplicada emoutras reas. Esta crtica bastante pertinente se se partir do pressupostode que o novo sistema ser empregado em condenados atualmente j emliberdade em gozo de algum benefcio, pois em tais casos haver um incrementode despesas, Se, porm, o sistema for utilizado para permitir que condenadosatualmente cumprindo pena privativa de liberdade possam cumpri-las atravsdo rastreamento eletrnico, ter-se- na verdade, uma economia de gastospblicos, j que a tecnologia menos onerosa que a manuteno do condenadono crcere. Se se levar em conta ainda que o crcere fator crimingeno e soaltssimos os ndices de reincidncia, o clculo econmico tende a ser aindamuito melhor. Note-se ainda que, por se tratar de um produto tecnolgico,quanto maior quantidade de equipamento for produzido, menor ser o custo porunidades de equipamento. O mesmo no ocorre, por exemplo, com a construoe manuteno de presdios que possui um valor mais ou menos constante porvaga ofertada, independentemente do nmero de unidades prisionais queforem construdas.

    Finalmente, duas crticas so feitas essncia do sistema que precisam seranalisadas.

    A primeira crtica essencial afirma que o sistema desrespeita o direitoconstitucional privacidade dos condenados e, como tal, seria incompatvelcom nosso Estado Democrtico de Direito.

    Ocorre que toda pena, por definio, consiste na imposio de uma limitaoa um direito fundamental, variando desde a limitao da prpria vida, na penade morte; da integridade corporal, nos aoites; da liberdade, na priso; dopatrimnio, na multa; etc.

    Algumas destas limitaes a direitos fundamentais com efeito de pena soexpressamente limitadas pela Constituio da Repblica em seu art.52, XLVII.Nenhuma vedao constitucional h, porm, em relao limitao do direitoconstitucional privacidade como pena, estando ela autorizada implicitamentepelo art.5fi, XLVI,da Constituio da Repblica que prev a possibilidade depena de "suspenso ou interdio de direitos".

    Destarte, se possvel a restrio dos direitosfundamentais liberdade eao patrimnio como efeito de pena criminal, tambm perfeitamente possvelrestrio semelhante ao direito privacidade que em momento algum perderseu status de direito fundamental por conta disso.

    Finalmente, uma segunda crtica essencial ao sistema coloca em dvida aviabilidade das autoridades policiais conseguirem capturar os condenados queresolvessem arrancar a pulseira e fugirem.

    Em princpio tal crtica poderia parecer meramente operacional, mas umaanlise mais atenta levar inexorvel concluso de que a fuga em sistemascomo este ser sempre bastante fcil, no s por eventuais dificuldadesoperacionais da polcia brasileira, mas por dificuldades comuns s polcias detodo mundo inerentes ao sistema. Basta pensarna hiptese de um condenadoque resolvesse abandonar o dispositivo em uma estao de metr de qualquerlugar do mundo. Em poucos minutos ele poderia se deslocar para um localcompletamente afastado de sua ltima localizao registrada pelo dispositivo,tornando invivel sua busca pela polcia nas proximidades de todas as estaesde metr da cidade.

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    O problema desta crtica que ela parte do pressuposto de que o sistema foiconcebido para ser uma restrio heternoma fuga do acusado, quando, muitopelo contrrio, a essncia do sistema valorizar a autonomia e a capacidade deauto-disciplina do condenado. Destarte, no h, como na priso, um obstculofsico fuga, mas meramente psicolgico, consistente na ameaa de prisopara o caso de violao das regras de rastreamento. Ser o temor da imposiode uma sano consideravelmente mais gravosa ao rastreamento que evitar odescumprimento das condies impostas .

    Evidentemente, pode-se concluir daque este tipo de pena no recomendvela todos os condenados, pois sua efetividade depende inexoravelmente dacolaborao do condenado.

    Em muitos casos, porm, mormente em se tratando de condenados porcrimes de baixa gravidade e com bons antecedentes, o sistema poder setornar uma soluo bem menos drstica do que a imposio da pena privativade liberdade e ao mesmo tempo, bastante efetiva na maioria dos casos, como jse vem observando em outros pases.

    Usos

    No obstante a maior parte das crticas se voltarem tecnologia derastreamento eletrnico em si, so as opes poltico-criminais dos usos destatecnologia que representam ameaas ao direito pena) democrtico.

    Isto porque esta tecnologia que poderia estar sendo pensada como uminstrumento para desocupar prises est sendo concebida comoum mecanismo para incrementar o rigor da execuo penal.

    4

    O Projeto de Lei1.288/2007 5, longe de utilizar o rastreamento eletrnicocomo uma opo descarcerizante, optou por uma poltica criminal bastanteconservadora e encrudeieceu a Lei de Execuo Penal permitindo que o juizcondicione a concesso do regime aberto (art.115 LEP), da sada temporria(art.122 LEP) e do livramento condicional (art.132 LEP) ao uso do sistema derastreamento eletrnico.

    Estes trs momentos da execuo penal, para o qual o legislador pretendeaplicar o rastreamento eletrnico, tradicionalmente foram destinados a testara capacidade de auto-disciplina dos condenados j em fase final da execuopenal. Trata-se de um ltimo momento de controle do Estado antes docondenado retomar sua liberdade plena pelo cumprimento da pena. A imposiodo rastreamento eletrnico nesta fase da execuo, longe de favorecera criaode um senso de auto-disciplina do condenado, criar nele a dependncia de ummecanismo externo de vigilncia que evitar o seu comportamento indesejado.No mais ser a ntrospeco de valores sociais que guiar sua conduta, maso medo da vigilncia eletrnica que poder lhe enviar de volta ao crcere emcaso de desvio. Criam-se ento figuras paradoxais da execuo penal que visamtestar a auto-disciplina do sentenciado, vigiando-o constantemente. Algo comoa me que deixa o filho ir sozinho ao colgio e o segue a poucos metros paraevitar que ele se desvie de seu caminho.

    4 Neste mesmo sentido j criticamos a poltica criminal de utilizar o rastreamento eletrnico para aumentar o rigor na execuo penal em nossa tese de doutorado. Cf. VIANNA, Tlio. Transparncia pblica, opacidade privada, p.66.

    5 Cf. Projeto de Lei n 1.288/2007. Disponvel em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/491986.pd f

    http://www.camara.gov.br/sileg/integras/491986.pdfhttp://www.camara.gov.br/sileg/integras/491986.pdf
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    bem verdade que tambm no rastreamento eletrnico a auto-disciplinado condenado colocada prova, j que este pode simplesmente arrancar apulseira e abandonar o equipamento. Ao agir assim, porm, o condenado saberperfeitamente que o Estado passar a consider-lo um foragido e que, em casode ser capturado, cumprir pena em uma priso. O mesmo no se d quando ocondenado est em gozo de certo benefcio sem o equipamento de rastreamentoeletrnico, pois sua auto-disciplina testada em condies idnticas as quevivenciar aps o cumprimento de sua pena.

    Evidentemente, cedo ou tarde, o Estado dever cessar sua vigilncia sobreo condenado. Atualmente esta cessao de liberdade se d ainda durante aexecuo penal e, qualquer desvio que seja constatado, posteriormente poderensejar a revogao do beneficio ou a regresso do regime. Se aprovado oprojeto que prev o rastreamento eletrnico na fase final da execuo penal,no mais haver a fase de teste de autodisciplina e o condenado s se livrarda vigilncia estatal aps cumprida sua pena, quando adquirir plena liberdade,sendo impossvel exercer sobre ele quaisquer temores decorrentes deuma eventual revogao de benefcio ou regresso de regime. V-se, pois, queo modelo de execuo penal previsto neste Projeto de Lei acaba tornando aruptura entre a ltima fase da execuo penal e a liberdade pelo cumprimentoda pena muito maior do que hoje, podendo gerar at mesmo um aumento dareincidncia criminal.

    O mau uso da tecnologia do rastreamento eletrnico previsto pelo atualProjeto-de-Lei no afasta, porm, os mritos desta tecnologia, que poderiaperfeitamente ser adotada com base em uma poltica-criminal comprometidacom a melhoria das condies carcerrias brasileiras.

    O legislador poderia, por exemplo, ampliar as hipteses de priso domiciliar(art.117 LEP), condicionando sua concesso ao uso do sistema de rastreamentoeletrnico como garantia de que o condenado no se afastaria de sua residncia.Poderia criar ainda a figura da priso domiciliar noturna, de modo a permitir queo condenado trabalhe durante o dia sob a vigilncia do sistema de rastreamentoeletrnico e se recolha a sua prpria residncia noite, tornando efetivo ocumprimento de sua pena e aumentando suas chances de reinsero social.Poderia permitir ainda que a limitao de finai de semana (art.48 CP) fossecumprida na prpria residncia do condenado, evitando mais uma vez gastos dedinheiro pblico com a manuteno de albergues.

    No bastasse esta variedade de opes de prises domiciliares criadas pelatecnologia do rastreamento eletrnico, o legislador poderia ainda tornar efetivaa pena de proibio de freqentar determinados lugares (art.47 CP), atualmentede rarssima aplicao prtica por sua evidente dificuldade de controle. Apossibilidade de uso do rastreamento eletrnico nestes casos permitiria semmaiores complicaes a proibio do condenado de freqentar estdios defutebol,bares, boates e uma infinidade de locais onde, pelo crime que praticou,houvesse a possibilidade real de reincidir. Tambm com base neste artigopoderiam ser criadas zonas de excluso dentro de uma determinada regiopara buscar evitar casos de violncia domstica, afastando o potencial agressorda vtima.

    Em todos estes casos a fixao de pena cumulada com rastreamentoeletrnico seria uma alternativa efetiva ao crcere, podendo ser aplicada j noincio da execuo penal em uma srie de crimes de baixa e mdia gravidade.

    Tambm em relao aos inimputveis, o rastreamento eletrnico poderia seruma alternativa vivel medida scio-educativa da semiliberdade (art.120 da Lei

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    Finalmente, o rastreamento eletrnico tambm poderia ser perfeitamenteutilizado como um instituto processual alternativo priso preventiva (art 312CPP).

    Estas so apenas algumas hipteses de usos descarcerizante da tecnologiado rastreamento eletrnico que poderiam ser ampliadas medida que o sistemafosse se mostrando um instrumento eficaz de execuo penal.

    Limites

    Por fim, preciso tratar dos limites jurdicos que se fazem necessrios aouso do rastreamento eletrnico.

    O primeiro e mais bvio deles a vedao ao rastreamento eletrnico decarter perptuo, por expressa disposio do art.5a, XLVII,b, da Constituioda Repblica. Uma pena de rastreamento perptuo acabariapor consagrar uma "capitis diminutio", criando uma categoria de cidados de segunda classe: osvigiados.6 Sua incompatibilidade com o princpio republicano da igualdade, porsi s j afastaria a possibilidade de tal pena.

    Na ausncia de um limitede tempo expresso paraa aplicao do rastreamentoeletrnico, aplica-se por analogiain bonam partem o limite de 30 anos do art.75do Cdigo Penal, o que sem dvidas parece exagerado para este tipo de pena.Melhor seria que o legislador fixasse desde j um limite de tempo menor para ouso contnuo do rastreamento eletrnico.

    Uma segunda questo importante a terceirizao da vigilncia doscondenados. No h dvidas quanto a possibilidade de o Estado adquirir oequipamento (hardware) de empresas privadas. A vigilncia em si, porm,deve ser realizada por agentes pblicos, pois no se pode delegar o poderde polcia estatal para a iniciativa privada. Alm do mais, o vigia ter acessoa dados pessoais da vida do condenado e dever guardar total sigilo destasinformaes, respondendo pelas violaes na qualidade de funcionrio pblico,com as responsabilidades inerentes ao cargo.

    Em relao aos programas de computador (softwares) utilizados norastreamento eletrnico, ainda que no haja bice para que estes programaspossam ser adquiridos de empresas privadas, fundamental que sejamfornecidos com licena de software livre. Dado ao uso crtico destes softwares, fundamental que o Estado tenha acesso a seu cdigo fonte, no s para impedirfalhas de segurana {backdoors) que permitam o uso indevido do sistema, mastambm para garantir o sigilo dos dados de rastreamento dos condenadoscontra programas espies{spywares). 7

    Finalmente preciso que se fixe limites bastante explcitos para o uso dorastreamento eletrnico, tratando-o com a mesma seriedade de uma pena

    6 l em 2003 alertvamos para a impossibilidade de um rastreamento eletrnico de carter perptuo.Cf. V1ANNA, Tlio Lima. La era dei control: introduccin crtica ai Derecho penal ciberntico.

    7 Sobre a importncia do emprego da licena de software-livre nos computadores da administrao pbl/ca Cf. VIANNA, Tlio Lima. Poruma nova poltica de direitos autorais para a Amrica Latina: o software livre como instrumento de efetivao do direito econmico ao desenvolvimento tecnolgico.

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    privativa de liberdade, com a conseqente observncia de todos os princpiosde Direito Penal.

    O projeto de lei1.288/2007 d poderes ao juiz da execuo para determinara utilizao do equipamento de rastreamento eletrnico pelo condenado,quando julgar necessrio. Trata-se de uma visvel afronta ao princpio dalegalidade, pois concede ao juiz o poder de impor um maior rigor na pena sem aprvia previso legal das hipteses em que ela seria cabvel.

    O rastreamento eletrnico uma restrio a direito fundamentalconstitucionalmente consagrado e, como tal, s pode ser aplicado nas hiptesesem que uma lei anterior defina. No pode ser concebido como um instrumento aser aplicado ao livre arbtrio judicial, pois neste caso estaramos diante de umainconstitucionalidade patente.

    Se observados estes limites, porm, o rastreamento eletrnico afigura-secomo uma alternativa bastante vivel ao crcere, desde que tratado com adevida seriedade que toda restrio a direito fundamental merece.

    Concluso

    At um co sabe que melhor passear pelas ruas atado a uma coleira aviver preso em uma jaula.

    No obstante a esta constatao axiomtica, no raras vezes nos deparamoscom crticas ao rastreamento eletrnico provenientes de penalistas de ideologiaminimalista ou mesmo abolicionista. Tais crticas acabam paradoxalmentelegitimando o crcere como sistema punitivo e afastando uma das poucasalternativas minimamente viveis humanizao da execuo penal.

    preciso que se compreenda que o rastreamento eletrnico umaalternativa pena privativa de liberdade, ainda que penalistas de ideologiasrepressoras tentem implement-lo como um instrumento de maior controle deinstitutos da execuo tradicionalmente voltados a testar a auto-disciplina doscondenados.

    No h dvidas de que o rastreamento eletrnico ser utilizadoseletivamente e de que a vigilncia estatal recair predominantemente sobrepobres, negros e minorias polticas em geral, mas este no um problema dapena de rastreamento eletrnico, mas do prprio sistema penal. Negar o uso dorastreamento eletrnico no evitar a seletividade penal, muito pelo contrrio,manter os selecionados aprisionados e abandonados prpria sorte.

    A crtica minimalista deveria se concentrar nos usos equivocados queo legislador pretende dar tecnologia do rastreamento eletrnico e no tecnologia em si.

    Aumentar os gastos pblicos, com altos investimentos em tecnologia sema contrapartida do esvaziamento das prises, uma poltica criminal ingnuae dispendiosa. Ingnua, pois pressupe um paternalismo penal que concebe ocondenado como um indivduo sem autonomia ou vontade prpria que precisa

    ser constantemente vigiado para comportar-se conforme o Direito. Desprezao fato de que no h penas perptuas em nosso pas e que mais cedo ou maistarde a autonomia do egresso ser colocada prova sem a vigilncia onipresentedo olhar eletrnico estatal. Dispendiosa, pois investe os escassos recursospblicos em equipamento e pessoal, sem qualquer contrapartida de diminuio

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    da populao carcerria, aumentando os gastos com segurana pblica semexpectativas crveis de reduo da criminalidade e da reincidncia.

    O uso desta mesma tecnologia de rastreamento eletrnico como alternativaao crcere, viabilizando as prises domiciliares e as penas de proibio defreqentar determinados lugares, por outro lado, pode representar o fim dosgastos com estabelecimentos penais de regime aberto e mesmo semi-aberto,permitindo uma economia de recursos que compensaria o investimento realizadona aquisio e manuteno do sistema de rastreamento eletrnico. Alm disso,a possibilidade do condenado cumprir sua pena inserido na sociedade aumentaem muito suas expectativas de reintegrao, mormente se acompanhadas emum primeiro momento da execuo penal pelo rastreamento eletrnico.

    V-se, pois, que o buslis est em definir quais os melhores usos para atecnologia e no a superao do falso dilema adotar ou no o rastreamentoeletrnico. Mesmo o uso adequado desta tecnologia no representar o fim dosestabelecimentos carcerrios e muito menos a panacia para os problemas deexecuo penal. Mas representar um avano.

    E como diz um velho provrbio chins:" melhor acender uma vela quemaldizer a escurido".

    Referncias bibliogrficas

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