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Do Ser, Dever e Querer Pedro Caeiro [26716 S/15] Filosofia do Direito Prof. Doutora Paula Costa e Silva

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Do Ser, Dever e Querer

Pedro Caeiro [26716 – S/15]

Filosofia do Direito

Prof. Doutora Paula Costa e Silva

Abstracto

Este trabalho analisa o binómio de Ser e Dever Ser em conjunto com a construção

de Stammler, o Querer Jurídico. Especificamente é dada particular atenção ao escrutínio

da doutrina sobre o conceito de Dever Ser, e por isso procura-se demonstrar alguns

obstáculos fundamentais que têm sido propostos ao longo dos séculos. Todavia, é tomada

também em consideração várias opiniões a favor do Dever Ser.

Introdução

O trabalho que a Professora tem perante si tem como objectivo fundamental considerar a

relevância da construção de STAMMLER – o Querer Jurídico –, em comparação com o conceito

de Dever Ser. Sendo o Dever Ser um pilar na lógica das ordens normativas, na especialidade, na

ordem jurídica, e como esta construção implica fazer o que é correcto, id est, aufere uma validade

e autoridade moral à ordem jurídica, tenho como pretensão colocar este conceito também sobre o

meu escrutínio. Ergo, o meu objectivo principal é fazer concorrer estas duas construções e chegar a

uma conclusão, através da análise do Ser, do Dever Ser e do Querer Ser. Ainda assim, não pretendo

de todo com o este documento fazer uma apologia completo a todo o pensamento de STAMMLER.,

mas sim fazer uma adaptação do seu conceito

Índice

I. Do Ser…………………………………………………………………....…Página 1.

II. Do Dever Ser…………………………………………….………….….….Página 2.

III. Da Guilhotina……………………………………………………………..Página 6.

a. Da minha parte…………………………………………………....Página 7.

b. De Searle……………..………………………………………….. Página 8.

c. De MacIntyre……………………………………………...…….Página 10.

d. De Finnis e Grisez…………………………………………...…..Página 12.

IV. Do Querer ………..……………………………………………………...Página 13

V. Da Conclusão…………………………………………………………….Página 18.

1

I. Do Ser

O que é o Ser? O Ser é um conceito que se relaciona com a realidade e com a

existência, mas liga-se sobretudo à verdade; isto é, a correspondência entre aquilo que se

pensa que Sein é, e o que realmente é. A definição estrita de Being é tudo aquilo que tem

significado1, é o que é capaz de ser inteligível como algo2, e essa inteligibilidade é

conseguida através da compreensão e da interpretação3. O Ser é a verdade, é o Sein que

tenta chegar ao ideal de nooumenon4, mas que se fica pelo que é convencionado – a verdade,

id est, a realidade dos sentidos, sentidos estes que percepcionam os fenómenos que

partilhamos intersubjectivamente até certo grau – pela sociedade, por pragmatismo. Por

outras palavras, a natureza do Is é descritiva e relativa ao conhecimento da existência de

algo5. O próprio Direito é um Ser6: é um facto inerente à condição humana7 a criação de

uma ordem jurídica [ubi ius ibi societas]8, e esta pertence à ordem social9 e à ordem

natural10.

Mas, do facto do Direito existir, como é que deduzimos o que ele deve ser, ou o que

deve vigorar como prescrição [como é que de ontos extraímos deon]? Segundo Hume, não

é possível tal dedução com base na falácia naturalista11 – é impossível retirarmos do Ser

[fenómeno de existência de uma ordem normativa] um Dever Ser [conteúdo prescritivo

1 MARTIN, HEIDEGGER – Being and Time, pág. 192. 2 MARTIN, HEIDEGGER – Being and Time, pág. 193. 3 MARTIN, HEIDEGGER – Being and Time, pág. 193. 4 IMMANUEL, KANT – Critique of Pure Reason, pág. 350;” [...] The concept of a noumenon, i.e., of a thing

that is not to be thought of as an object of the senses but rather as a thing in itself (solely through a pure

understanding […]” 5 MIGUEL, TEIXEIRA DE SOUSA – Introdução ao Direito, págs. 41 e 42. 6 Contrariamente a esta afirmação está Kelsen ao afirmar que o Direito é um Dever Ser: HANS, KELSEN –

On The Basic Norm – página 107; também no seguinte artigo se comprova a posição de Kelsen – JAAP,

HAGE – Juridical Acts and the Gap between Is and Ought – página 51. A favor Olivekrona, o ontologismo

natural, com o qual concordo – TORBEN, SPAAK – Karl Olivecrona's Legal Philosophy: A Critical Appraisal

– página 162. 7 MIGUEL, TEIXEIRA DE SOUSA – Introdução ao Direito, pág. 55 – “ […] O direito é uma realidade social,

porque a sociabilidade é intrínseca à pessoa e o direito é inerente à vida em sociedade […]” : Como a ordem

jurídica é inerente à ordem social e esta por sua vez é inerente à ordem natural, pois o ser humano tem a

predisposição biológica de socializar [indirectamente de criar uma ordem jurídica], então assumo que o direito,

por ordem do princípio do efeito de cascata, também pertence ao domínio da ordem natural só que

indirectamente. 8 JOSÉ, OLIVEIRA DE ASCENSÃO – O Direito, Introdução e Teoria Geral, pág. 23. 9 Muita atenção a este aspecto dá STAMMLER com afirmações como: “ […] El ideal social es una noción

formal suprema, noción de unidad, que ha de servirnos como pauta de juicio y como estrella polar através de

cuantas aspiraciones surjan en la vida social condiconadas empiricamente. […], “ […] Pretende o filósofo

investigar a lei básica, de caráter formal, da vida em sociedade. Aos esforços neste sentido, chamo-os de

questão social. […] ” – WALTER, BRUNO DE CARVALHO – Considerações sobre a doutrina de Stammler,

págs. 103 e 104. E também: ” […] La expresión “vida social” es convivencia, toda sociedad es una

cooperación. La comunidad es una modalidad de la sociedad en la que la voluntad vinculatoria es dirigida por

la idea de la voluntad pura. La postura que Stammler sostiene es que, entre la vida social y la del Estado, la

alianza es el hecho de la convivencia, o unidad suprema en la que aspiramos a cifrar el concepto de la vida

social, no reducida a la coexistência de una suma de individuos en un territorio. […] ” – MARÍA, GARRIDO

ISABEL- Un reexamen de las tesis de Stammler y de las influencias recibidas por ellas, pág. 434. 10 SANDRA, LOPES LUÍS – Introdução ao Estudo do Direito, pág. 18 – Ao entendermos que a ordem natural

é uma ordem que tenta explicar os fenómenos naturais [ordem natural], obstante de valorações, e sendo o

Homem [causa] necessário à existência do Direito [efeito], é justificável afirmar que a ordem jurídica pertence

à ordem natural, para além de pertencer à ordem social. 11 MIGUEL, TEIXEIRA DE SOUSA – Introdução ao Direito, pág. 46.

2

correcto da ordem normativa]. Da mesma maneira que existe um vazio entre o fenómeno

e o númeno, acredito que existe uma lacuna intransponível entre o Ser e o Dever Ser. Este

é o pilar deste projecto: a diferença entre Is e Ought. Pretendo contudo esclarecer que o

facto de o Direito ser uma ordem normativa é incontestável. Mas o fundamento do que deve

constar como uma norma jurídica que se baseie na ideia de Ought é a origem da querela; e

nem o próprio positivismo normativista responde à questão12 – mesmo ao alegar que o

Ought possa assumir qualquer conteúdo normativo13.

O Direito faz parte de um mundo do espaço e do tempo, ou de um mundo

metafísico?14

II. Do Dever Ser

O que é o Dever Ser? O Dever Ser representa a noção de conteúdo prescritivo

vigente15; tem um carácter deontológico e metafísico, e dado que o Sollen é tanto um Ser

[afirmação de um modo correcto de o ser humano se comportar] e um Dever Ser [prescrição

da conduta correcta a adoptar] relaciona-se tanto com a validade como com a verdade. Estas

são as propriedades mais comuns de se encontrarem na definição do termo. Por outro lado

a questão se a construção tem uma propriedade moral ou amoral16 é problemática. Arguo

que o Dever Ser é absolutamente moral17 e natural18, e isto é verificável com a seguinte

pergunta: porque é que x ou y deve ser a? Esta questão obriga ao estudo das expressões

ought, dever, dever ser e deon para compreendermos o cerne da questão. De facto todas

estas palavras têm como significado a obrigação de fazer algo com base no que está

12 Kelsen intenta resolver o problema do Is/Ought advogando que a validade da norma não pode ser o Sein,

nem o acto de vontade pela qual a norma é criada, mas sim o próprio Sollen: “ […] The correct answer is:

because you ought to obey the commands of your father. That means: the reason of the validity of the norm

issued by the father is not the fact that the father issued the norm, but the norm: a child ought to obey the

commands of his father, that is a norm authorizing the father to issue norms prescribing a definite behavior

of the child. […] ” HANS, KELSEN – On The Basic Norm, pág. 108. O que Kelsen no fundo faz é

fundamentar a razão de um dever ser no próprio dever ser, sem explicar o que é o próprio Sollen. Por outras

palavras, para que este se furte à justificação da validade da norma [e com isso a validade do ought, que tantas

vezes o mesmo emprega no seu artigo], que decerto o levaria à moral, incorre na falácia da petição de princípio

ao justificar o Sollen com o próprio Dever Ser, ou seja, uma norma com outra norma. Este truque lógico

permite falaciosamente retirar a moral do Direito, pois transforma o próprio Sollen num númeno. Ao Kelsen

transformar Sollen em das Ding an sich ele não resolve o problema, mas apenas o retarda, pois agora a norma

já não é um mecanismo que procura influenciar psicologicamente os seres humanos, mas algo é que é por si,

e que é inatingível. Quero com isto dizer, que nem assim o positivismo normativo obtém validade, pois não

demonstra [nem conseguiria demonstrar] a ligação entre a norma como númeno e a norma como fenómeno,

pois que para isso teria que explicitar a verdade do Sein da norma. 13 HANS, KELSEN – On The Basic Norm, págs. 109 e 110. 14 TORBEN, SPAAK – Karl Olivecrona's Legal Philosophy: A Critical Appraisal, pág. 158: o realismo

escandinavo expressa que pertence ao mundo do espaço e do tempo. 15 MIGUEL, TEIXEIRA DE SOUSA – Introdução ao Direito, pág. 41 e 42. 16 MIGUEL, TEIXEIRA DE SOUSA – Introdução ao Direito, pág. 78: faz-se esta afirmação com base no

facto de que existem normas que não fazem qualquer valoração. 17A moralidade significa algo correcto: é a ideia de que devemos promover o bem: JOSÉ, OLIVEIRA DE

ASCENSÃO, – O Direito, Introdução e Teoria Geral, pág. 42. 18 Isto é comprovado pela ideia de que até crianças de três anos têm como inato a noção de justiça, e sendo a

justiça uma representação de correcção, ou moral, é aceitável dizer que temos como natural à nossa condição

a ideia de correcto: http://www.cell.com/current-biology/fulltext/S0960-9822(15)00558-8 ; para além da

prova de que a justiça é inata aos seres humanos, foi também verificado que os animais irracionais também

têm uma ideia inerente de justiça e de moralidade: http://press.uchicago.edu/Misc/Chicago/041612.html .

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correcto19. Ergo, é seguro expressar que o Dever Ser está etimologicamente ligado à moral.

E com isso surge o verdadeiro problema do Dever Ser, a guilhotina de Hume: como é que

definimos para depois prescrever o que é o bem comum? São possíveis duas respostas.

A primeira é dada pelos non-cognitivists20: não definimos, porque é impossível

defini-la21. A ideia de correcto é um númeno, um verdadeiro das Ding an sich, e como tal

é impossível apurar por absoluto a sua verdade. Já para a maior corrente dos não-

cognitivistas, o emotivism, as afirmações morais traduzem-se em afirmações sobre os

sentimentos de quem os profere sobre uma determinada situação. Como tal, as afirmações

morais [emocionais] são subjectivas, o que implica a impossibilidade de serem objectivadas

– não permite classificar as afirmações morais como sendo verdadeiras ou falsas22. Por

outras palavras, não conseguiríamos definir o bem comum, mas apenas o sentimento que

um indivíduo tem perante algo. A outra resposta é dada pelos cognitivists23: a ideia de

correcto é possível de ser definida porque consegue ser objectivada. A maior corrente neste

ramo é o moral realistm, que advoga, no âmbito da teoria da correspondência da verdade,

que os conceitos morais têm propriedades objectivas – que é possível evidenciar uma

conduta moral objectivamente correcta24. Para os cognitivists, a justificação da ideia de bem

por meio das ciências exactas é por excelência admissível. Tomemos como exemplo o

campo da neurologia.

Todavia surge outro problema na investigação: o Sollen pertence a um contexto de

moral objectiva, pois liga-se à realidade de legislador divino [ou de entidade superior, e.g.

sábio, pai, Assembleia da República]. Ao aceitar a perspectiva emotivista, nego o Dever

Ser, devido ao fenómeno de o Ought guiar-se por um padrão correcto objectivo. A

possibilidade de reconhecimento moral objectivo afirma a utilidade de Sollen, já o

reconhecimento a contrário retira a provisão de utilidade ao Dever Ser. Logo, a legitimidade

do uso deste conceito depende da posição moral que cada indivíduo tome. Uma vez que se

optar pela via non-cognitivist o misticismo da ideia de Dever Ser desaparece, posto que se

defender esta posição o bem comum surge como algo impossível de compreender e de

identificar, perdendo assim qualquer utilidade o conceito tratado – até porque afirmar que

a moral é subjectiva, que cada um de nós tem uma ideia própria do bem, estaria mais ligado

com a ideia de Querer Ser do que com a ideia de Dever Ser; se optarmos pela via

cognitivista o termo é útil, mas por sua vez depende imenso de delimitação conceptual.

Das duas vias morais sigo a via do não-cognitivismo pelas seguintes razões: o

realismo moral é incapaz de responder à questão aberta [como se define a ideia de

correcto]25; procura defender-se com lógica mas depende especialmente de ciências em

crescimento [neurologia]26; ainda não conseguiu produzir nenhum facto moral [enquanto

19 Merriam-Webster’s Collegiate Dictionary [Eleventh Edition], pág. 879; Dicionário da Língua Portuguesa

[Porto Editora – 2013], pág. 528; 20 MICHAEL, LACEWING – Hume’s Emotivism, pág. 1. 21 JULIA, TANNER– The Naturalistic Fallacy, pág. 1 – e também SHALINA, STILLEY – Natural Law

Theory and the “Is” – “Ought” Problem: A Critique of Four Solutions, págs. 9, 10 e 11. 22 MICHAEL, LACEWING – Hume’s Emotivism – pág. 1. 23 MICHAEL, LACEWING – Types of moral cognitivism, pág. 1 24 RICHARD, BOYD – How to be a Moral Realist, pág. 307. 25 MICHAEL, LACEWING – Ethical non-naturalism, pág. 2 26 SAM, HARRIS – How Science Can Determine Human Values, pág. 8 [do pdf].

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afirma que num futuro próximo o fará]27, se houvesse uma moral objectiva não existiriam

conflictos morais.

Identifico-me com o pensamento que define a moral como uma mera opinião

momentânea sobre algo: podemos tomar como exemplo o aborto, a adopção por casais do

mesmo sexo e o casamento homossexual – ao longo dos tempos a opinião sobre estes temas

variou. Portanto, ao identificar o Sollen com a moral estou apenas a identificá-lo com uma

opinião e com a vontade, porquanto o fundamento da prescrição não é o que é correcto,

mas sim a razão do sujeito e o seu poder – algo que irei explicar melhor no capítulo IV.

Não obstante, e se Sollen fosse amoral [mera obrigação]? O Dever Ser como mera

obrigação pode ainda assim ser moral, dependendo do fundamento: uma obrigação

estabelecida como promessa seria moral. Se atendermos ao contexto deste facto

institucional percebemos que uma obrigação ou é cumprida porque é o correcto a fazer, ou

porque se é coagido. Mas podemos afirmar que uma obrigação com base na coacção é

amoral? Não, porque estamos apenas a pensar no agente obrigado, que age mecanicamente

por coacção. Quem coage o agente tem uma justificação moral, ou seja, o coagente obriga

o outro sujeito por julgar que se deve cumprir aquilo que se prometeu. Com efeito,

percebemos melhor a natureza da construção do Dever Ser. O conceito não se insere na

ordem natural, por isso não se liga ao binómio causa-efeito. É uma construção social. A

obrigação, no contexto de regras de jogo, é cumprida e utilizada no Direito porque se pensa

como algo bom a realizar e nunca porque é um efeito determinista. A própria palavra

obrigação remete para o acto de fazer, ou de não fazer, com base numa justificação, e não

para uma causa que deverá levar a um efeito. Mas quando me refiro à obrigação expresso

a minha opinião sobre o facto de obrigar, e não sobre o conteúdo.

Considero a obrigação como um facto institucional que tem como inerente uma

razão moral para ser cumprida, por outro lado, o conteúdo da obrigação pode ser imoral:

e.g. a obrigação que uma acompanhante de luxo tem para com o seu cliente pode ser

desvirtuosa, mas a razão pela qual ela está obrigada é moral. Contudo, a obrigação pode ser

amoral se tomarmos a posição do último parágrafo: non-cognitivism. Ao identificarmos o

bem comum com o conhecimento impossível e a moral com a opinião subjectiva:

percebemos que uma obrigação para além de ter como início um conjunto de vontades, tem

também como vínculo a vontade das partes ou de uma parte. Só no plano emotivista é

possível falar de uma obrigação “amoral”, no sentido de não se ligar à ideia de bem, mas

sim às vontades dos sujeitos. Todavia, uma obrigação “amoral” neste sentido implicaria o

afastamento da legitimidade moral da ordem jurídica, e o seu fundamento na vontade [nos

sentimentos de quem legisla]: o Dever Ser equivale a um Querer Ser, mas não Querer Ser

no seu sentido verdadeiro. Pelo motivo de o termo Ought ter como propriedade um sentido

místico, ritualista e inquestionável, enquanto que Querer Ser não: é uma expressão em

bruto. Até mesmo o Sollen amoral é semelhante ao fas no aspecto de ser secreto e revelado

27 SAM, HARRIS – How Science Can Determine Human Values, pág. 56 [do pdf]:” […] The neuroscience

of morality and social emotions is only just beginning, but there seems no question that it will one day deliver

morally relevant insights regarding the material causes of our happiness and suffering. While there may be

some surprises in store for us down this path, there is every reason to expect that kindness, compassion,

fairness, and other classically “good” traits will be vindicated neuroscientifically—which is to say that we will

only discover further reasons to believe that they are good for us, in that they generally enhance our lives.

[…]”

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por aqueles que têm a oportunidade de o estudarem [no período pré-clássico os pontífices,

nos dias de hoje os juristas].

Quando um cidadão médio questiona uma jurista sobre a razão do Direito ser como

é, esta dir-lhe-á que é assim que o ius deve ser e não porque é assim que foi desejado:

Kelsen enuncia isto no exemplo do filho que questiona o porquê de ele ter de ir para a

escola, e o pai explica-lhe que ele deve porque a norma expressa que ele deve28. Parece-me

que a misticidade do Dever Ser é uma herança jurídico-cultural do ius romanum [anterior

à conjuntura do ius flavianum]29. Tal como o patriciado evitava que os plebeus percebessem

a dinâmica do fas, os juristas evitam desmistificar o ius. Consequentemente, considero que

quando um jurista expressa a construção Dever Ser num sentido amoral, incorre em

tautologia por pretensiosismo, isto é, em bullshit30 - Ought como um eufemismo de Querer

Ser.

Não obstante, esta crítica será possível um Sollen amoral? Não. Apesar do que os

positivistas, e especialmente Kelsen31, afirmem sobre o facto de a ordem jurídica ser

amoral, isto é, possa conter leis morais [justas] e imorais [injustas], a verdade é que isto não

coaduna com a realidade. Atendendo ao facto de a moral se ligar às emoções e ao Ser das

pessoas terem emoções, qualquer lei produzida por um ser humano estaria sempre ligada à

moral: as pessoas não são máquinas – independentemente de o positivismo nascer num

contexto de fascínio pela industrialização32: tentar formular a possibilidade de um Direito

valorativamente neutro é contraprocedente [o erro fulcral nesta situação é o desejo de

aplicação da lógica da ordem natural às ordens normativas – coisa que Stammler crítica ao

propor o Direito como ciência dos fins33].

Relativamente à crítica face à impossibilidade de afastar a moralidade do Dever Ser:

a ideia de correcção está ainda presente no contexto de validade e de existência de normas

– substancialismo v. formalismo. A corrente formalista advoga que um acto político só é

lei se respeitar a forma e o processo enunciado pela Constituição; a corrente substancialista

expressa que um acto político só é lei se respeitar os devidos valores constitucionais e se

tiver características gerais e abstratas. Estas correntes34, embora tenham posições diferentes

sobre a lei, ambas se ligam à ideia de bem: a posição formalista defende que só é lei o acto

que seguir o correcto procedimento e a forma correcta; a posição substancialista refere que

só é lei o acto que seguir a correcta atitude face aos valores constitucionais. Isto para afirmar

que a validade é sinónimo de correcto.

Não é só no plano emotivista que o Ought amoral encontra dificuldades em se

justificar, mas também no plano etimológico do Direito. Apesar das divergentes

conceptualizações do que o Direito é, a verdade é que o Direito e a Justiça estão sempre

ligadas, desde o plano etimológico [ius e iustitia] ao plano valorativo [justiça como fim].

28 HANS, KELSEN – On The Basic Norm, pág. 108. 29 CARLA FARALLI – Law as Fact, pág.64. 30 Frankfurt esclarece que bullshit é uma forma de insinceridade que pode ter várias origens, e.g.

desconhecimento sobre um assunto e até mesmo pretensiosismo: HARRY, FRANKFURT – On Bullshit,

págs. 2 e 16. 31 HANS, KELSEN – On The Basic Norm, págs. 109 e 110. 32 ANTHONY, D’AMATO – On the Connection between Law and Justice, pág. 33. 33 KARL, LARENZ – Metodologia da Ciência do Direito, pág. 118. 34 JOSÉ, MELO DE ALEXANDRINO – Lições de Direito Constitucional, Vol. II, pág. 207.

6

Para além disso, um Sollen absolutamente injusto seria inválido, isto porque não seria

aplicado: Kelsen explica que uma norma sem aplicação efectiva é inválida35. Isto leva-me

à noção de que o Sollen está sempre conectado com a ideia de moral, uma vez que precisa

de respeitar as emoções do povo se tiver a pretensão de vigência. É possível observar este

facto no campo do Ser com o caso de Riggs v. Palmer36. Por que razão não decidiu o juiz a

favor de Elmer Riggs? Porque seria uma decisão injusta, por outras palavras, esta decisão

teria como efeito uma esmagadora carga emocional negativa no povo – o juiz não podia

permitir que o réu recebesse a herança. Este exemplo enuncia o temor pelo sentimento de

injustiça do povo americano que resultou na desaplicação da norma, cujo permitia a Riggs

aceder à sua herança. Ergo, a possibilidade de injustiça provoca a desaplicação da norma37.

É preciso ter em conta que o trabalho dos juízes não é de simples aplicação da lei

sem a interpretar com base na justiça, caso fosse, não seriam precisos juízes, seria muito

mais eficiente e económico empregar computadores para decidirem os casos38. Por esta

razão e por outras [que já enunciei], julgo que o Sollen seja necessariamente moral

[emotivo], como tal, tendo Ought uma propriedade moral o problema da falácia naturalista

mantém-se. Como é que resolvemos este enigma?

Antes de finalizar, podem ser contrariadas as minhas afirmações sobre as leis

injustas, apelando às leis de esterilização no Deutsches Reich. A essa afirmação cabe a

questão se a maioria do povo sentia que essas leis eram injustas. O que não é o caso, visto

ser verosímil que a propaganda nazi tenha facilitado a racionalização dos cidadãos alemães

relativamente às leis genocidas.

III. Da Guilhotina

O que é a guilhotina de Hume? A guilhotina de Hume enuncia a situação de

impossibilidade de retirar de um facto uma prescrição moral – não é possível retirar de um

Is um Ought39. Esta temática relaciona-se expressamente com a epistemologia, stricto

sensu, a recusa de Hume da possibilidade de a partir de um facto ser possível concluir a

maneira correcta de reagir, em razão de existir uma lacuna entre um facto e a valoração.

Exempli gratia: por que razão devem as pessoas que matam ser punidas? É uma questão

que evidencia o problema epistemológico de como não é evidente o porquê de ser

sancionado o acto matar e valorizado a vida humana. Hume, e mais tarde G. E. Moore,

através da questão aberta, evidenciam que o acto de valoração é falacioso, dado que existe

uma lacuna entre o acto de percepção do Ser e o acto de estatuir uma norma guiada por

valores – pode ser traduzido tanto o Is-Ought Problem [Hume] como a naturalistic fallacy

[de G. E. Moore] como aplicações específicas do non sequitur ao binómio de Ser e Dever

Ser.

35 EDGAR, BODENHEIMER – Law as the Bridge between the Is and the Ought, pág. 100. 36 ANTHONY, D’AMATO – On the Connection between Law and Justice, pág. 14. 37 ANTHONY, D’AMATO – On the Connection between Law and Justice, págs. 23-37: o autor apresenta

uma história sobre como o Direito é inerentemente justo, através de um exemplo em que o juiz aplica a lei de

maneira literal. 38 ANTHONY, D’AMATO – On the Connection between Law and Justice, págs. 29. 39 JULIA, TANNER – The Naturalistic Fallacy, pág. 2.

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Peço por obséquio que me seja permitido uma pequena nota antes de finalizar este

capítulo que será diferente dos demais.

Ao contrário dos outros capítulos este será mais extenso, pois tomará em conta os

principais proponentes que desafiam o problema de Hume e de Moore. Embora defendendo

a guilhotina de Hume, achei da maior relevância fazer uma exposição de outras doutrinas e

explicar as razões pelas quais discordo com essas posições, isto pois com o intuito de ao

refutar tais proponentes dar mais legitimidade à minha posição.

A. Da minha parte

Ao contrário das ordens naturais que operam num contexto de causa-efeito, as

ordens normativas operam com previsão-estatuição, a qual pode se traduz numa ficção de

causa-efeito. Por outras palavras, o sistema estipula que perante um determinado facto

[jurídico] deve haver certo efeito [jurídico] – se P então S. O problema inerente a esta

situação é perceber a natureza da ficção, se é correcta ou incorrecta.

No período romano, o pretor perante uma situação injusta procurava ficcionar,

através das actiones ficticiae, ou seja, uma situação para realizar a justiça do caso concreto.

A justificação tanto da ficção da ordem jurídica como da ficção do pretor fundamenta-se

na justiça. Com efeito, a ficção de previsão-estatuição é um expediente que visa a realização

da justiça, id est, a realização do que é o bem, contudo, é impossível conceptualizá-lo e

assim torna-se inútil toda a ficção que procura chegar a um fim que desconhece. O pretor

ao ficcionar um facto tem em conta a realização da justiça: como sabe este magistrado que

tal ficção levará à justiça? Como sabe que tal ocorrência não se tratou de justiça divina e

que está apenas a ser injusto ao ficcionar outra realidade? Tudo isto remete para uma

constante dúvida epistemológica relativa às condicionantes da previsão-estatuição e sobre

a veracidade do conceito de justiça como fim a atingir pela aplicação do Direito.

É certo que uma árvore cortada por um lenhador cairá por si, não porque foi

ficcionado que tal iria acontecer. Enquanto que um homicida será preso porque o legislador

legiferou que tal deve acontecer face ao facto relevante. Pode ser constatada a existência de

uma legiferação relativa ao aprisionamento um criminoso como algo bom a fazer. Como é

que sabemos que o correcto a fazer é X ou Z quando a doutrina se desenvolve e muda todos

os dias? Afirmar que algo é correcto é o mesmo que afirmar que finalmente se chegou ao

conhecimento último, que se chegou à verdade: que se chegou à perfeição. A estatuição

que define uma pena de prisão de 5 anos para um delito é o correcto a fazer, é o mesmo

que dizer que se chegou ao conhecimento perfeito e que não há mais espaço para evoluir,

uma vez que se percebe a essência de ontos, a essência de como as coisas são de verdade.

É através desse conhecimento último que estabelecemos um padrão de como as coisas

deviam ser. Mas será que conhecendo o ontos conseguiríamos chegar a deon? A resposta é

negativa. Para chegarmos a qualquer um, seja a ontos ou a deon, é preciso em primeiro

lugar chegar à epistemologia correcta. De maneira a compreender qual a metodologia

correcta de apreensão do conhecimento precisamos de saber o que é o correcto. Este é o

problema último dos defensores do Dever Ser: o trilema de Münchhausen.

Como é que sabemos o que é bem? O trilema de Münchhausen define-se como a

ideia de que todas as afirmações podem ser questionadas e que precisam de ser provadas, e

8

que nós temos essencialmente três respostas possíveis perante a necessidade de justificar

uma afirmação: lógica circular, infinito regresso e axiomas – petição de princípio, exigência

provas ad infinitum e self-evident truths. Face à questão em mão, não é possível responder

com truísmos, uma vez que o assunto é da maior complexidade; relativo ao infinito regresso

e à lógica circular, ambos são falaciosos. O trilema é uma admissão de que o conhecimento

é impossível, pois perceber uma coisa traduz-se em perceber tudo, e como não percebemos

tudo, ou é impossível perceber tudo, então seria impossível perceber uma única coisa.

Concluindo assim, não é possível saber verdadeiramente o que é correcto e qualquer

resposta dogmática face a este problema subsistirá numa vontade pujante, não num

conhecimento último – imposição de Sollen como eufemismo de um Querer Ser que nos

guia para a perfeição. E como é impossível conceptualizar o bem, torna-se igualmente

impossível retirar um Ought de um Is. Se compreender um objecto na sua totalidade já é da

máxima dificuldade, quão difícil seria perceber algo tão metafísico como o máximo de bem

comum?

B. De Searle

Este autor procura desafiar a guilhotina de Hume na obra Speech Acts através do

uso de lógica, mais especificamente de um silogismo40:

1. Jones uttered the words, ―I hereby promise to pay you, Smith, five dollars.

a. Under certain conditions C anyone who utters the words (sentence) “I

hereby promise to pay you, Smith, five dollars” promises to pay Smith

five dollars.

b. Conditions C obtain.

2. Jones promised to pay Smith five dollars.

a. All promises are acts of placing oneself under (undertaking) an

obligation to do the thing promised.

3. Jones placed himself under (undertook) an obligation to pay Smith five

dollars.

a. All those who place themselves under an obligation are (at the time

when they so place themselves) under an obligation.

4. Jones is under an obligation to pay Smith five dollars.

a. If one is under an obligation to do something, then as regards that

obligation one ought to do what one is under an obligation to do.

5. As regards his obligation to pay Smith five dollars, Jones ought to pay Smith

five dollars.

Apesar do silogismo ser válido temos de nos perguntar se conseguiu derrotar a

problemática de Is-Ought. E a resposta é negativa. Face a este silogismo, sigo a corrente

que defende que este autor incorre na petição do princípio de uma maneira subtil41.

Atendendo a 4. e 5., podemos compreender que Searle incorre num argumento circular.

40 JULIA, TANNER – The Naturalistic Fallacy, pág. 39. 41 JULIA, TANNER – The Naturalistic Fallacy, pág. 47 – Nesta posição temos Genova e Witkowski.

9

O Dever Ser é uma obrigação moral, sendo também a obrigação num contexto de

promessa uma obrigação moral. Em resumo, o autor incorre numa tautologia ao afirmar

que Jones deve fazer algo porque deve.

A única maneira de Searle conseguir derrotar a problemática de Hume seria

através de mero facto extrair uma obrigação moral. Conquanto, o que este faz é deduzir

um valor institucional e moral de um facto institucional e moral. Se Ought em si já é um

produto da promessa, qual a validade de um silogismo cujo fim é a justificação do

mesmo? Em verdade, este apenas justifica as premissas com a conclusão e vice-versa; é

a promessa que estabelece as regras constitutivas do seu instituto e justificar os factos

constitutivos com os factos institucionais resultantes do instituto é petição de princípio.42

Ainda na mesma linha, temos Witkowski43: também acusa Searle de apelar às

regras constitutivas internas e extrai um Dever Ser do instituto da promessa e uma

definição de promessa.

O problema da abordagem de uso específico de actos de fala é não se ter em conta

os valores implícitos de cada palavra, uma vez que os institutos que produzem Oughts

são os próprios factos institucionais derivados de factos constitutivos.

O método de Searle traduz-se na recusa do regresso infinito através da constante

investigação e aprofundamento da prova. Como tal, este preferiu render-se à lógica

circular com o intuito de fugir à questão aberta, dado que o correcto é indefinível.

Imaginemos que por motivos de pragmatismo seja necessário usar a petição de princípio

a fim de tomarmos uma posição. Será que faria alguma diferença? Mais uma vez, a

resposta é negativa. E ilustro através do silogismo de Searle, embora com algumas

modificações44:

1. Jones uttered the words, ―I hereby promise to kill you, Smith.

42 JULIA, TANNER – The Naturalistic Fallacy, págs. 47 e 48 – Crítica inspirada nas palavras de Genova. 43 JULIA, TANNER – The Naturalistic Fallacy, págs. 48 e 49. 44 JULIA, TANNER – The Naturalistic Fallacy, pág. 56 – Tomei alguma inspiração a partir da afirmação que

a autora faz sobre a promessa que um sujeito faz de matar a sua esposa.

Moral

Promessa: como facto constitutivo da

instituição e facto institucional da Moral

Facto Institucional A

Facto Institucional B

Amizade: como facto constitutivo da

instituição e facto institucional da Moral

Facto Institucional A

Facto Institucional B

10

a. Under certain conditions C anyone who utters the words (sentence) “I

hereby promise to kill you, Smith,” promises to kill Smith.

b. Conditions C obtain.

2. Jones promised to kill Smith.

a. All promises are acts of placing oneself under (undertaking) an

obligation to do the thing promised

3. Jones placed himself under (undertook) an obligation to kill Smith.

a. All those who place themselves under an obligation are (at the time

when they so place themselves) under an obligation.

4. Jones is under an obligation to kill Smith.

a. If one is under an obligation to do something, then as regards that

obligation one ought to do what one is under an obligation to do.

5. As regards his obligation to kill Smith, Jones ought to kill Smith.

É por isso matar um acto moral se for um facto institucional da promessa? E se

fosse prometido antes o acto de cometer um genocídio em vez de matar, seria isso moral?

Será que para algo ser moral basta estar num contexto institucional de moralidade?

Ao estudarmos a hermenêutica compreendemos que a interpretação da lei é feita

com fundamento em vários critérios, critérios esses que permitem interpretar o artigo 202º

do Código Civil e excluir do conceito de coisa o ser humano. O mesmo se aplica à

interpretação de factos institucionais e de factos constitutivos, dado que é preciso

interpretar o facto institucional à luz do facto constitutivo da instituição em questão – é

preciso realizar uma interpretação sistemática do facto. Por isso, antes de responder às

questões formuladas, é preciso perceber o facto institucional original, a ideia de bem. Sem

respondermos à questão aberta não há resposta possível para as questões que formulei.

A formulação de Searle revela-se num castelo de cartas que se apoia num plano

instável, pois este só toma em consideração toda uma massa de factos institucionais num

determinado segmento, ignorando os factos anteriores ao segmento que trata. Não é

possível retirar um Ought de um Is com a construção de Searle.

C. De MacIntyre

A posição de MacIntyre é a identificação do bem com o telos, com efeito, um acto

só é bom se corresponder ao fim inerente. E qual é a diferença entre telos e a ideia de

correcto? O contexto da corrente filosófica: segundo MacIntyre, a razão pela qual os

filósofos são incapazes de derrotar a problemática de Is-Ought baseia-se no abandono da

tradição aristotélica45. Ao rejeitarmos a ideia de que o humano tem uma função original

torna-se impossível responder ao problema. Como tal, é-nos sugerido que voltemos à

tradição aristotélica-tomista.

Tendo em conta que cada Ser tem uma função implícita em si, algo só seria bom

se respeitasse a função original desse Ser. Tomemos como exemplo, um relógio:

45 JULIA, TANNER– The Naturalistic Fallacy, pág. 106.

11

ineficiente a contar o tempo, ou demasiado pesado para ser usado, poder-se-ia dizer um

mau relógio uma vez que realizava mal a sua função46:

“This watch keeps time accurately and can be worn on my wrist.

The function of a watch is to keep time accurately and to be worn on one’s wrist.

When we say “X ought to be Y” we mean “the function of X is to be Y”.

Therefore, this watch is doing what it ought to do.”47

Deste modo, todo o acto e toda a coisa seriam correctos caso respeitassem

determinada função que lhes é inerente – qualquer outro uso seria incorrecto.

A ideia de correcto pressupõe, por sua vez, a ideia de telos, uma vez que telos é o

fim correcto, ou o fim apropriado; enquanto que o correcto é aquilo que não tem erros,

argumentum a simile, o correcto é a perfeição. E tal como a ideia de bem, o telos também

implora a seguinte questão: qual é o fim original do ser humano? É pertinente

questionarmos se a questão aberta não se aplica também ao fim do ser humano, e para

isso é preciso investigar o contexto do telos aristotélico.

Em Ética a Nicómaco, o telos humano é a eudaimonia – a felicidade – e esta é

atingida através da virtude. Só que as virtudes como definidas por Aristóteles são vagas,

tal como o próprio conceito de eudaimonia. A felicidade aristotélica não se identifica com

o prazer, mas sim com o sentido orientador que nos leva a um estado de equilíbrio.

O problema desta corrente é o facto do sentido orientador ser um conceito

relacional, tal como as próprias virtudes. Consideremos a virtude por magnimidade, o

défice por pusilanimidade e o excesso por vaidade. Alguém só é magnânimo se houver

pessoas vaidosas e pessoas pusilânimes. Para se ter grandeza de espírito é preciso que

existam pessoas com um espírito medíocre, uma vez que lidamos com conceitos

relacionais. Face a isto, como é que sabemos que somos grandiosos? Será a pessoa mais

grandiosa de uma comunidade de 100 pessoas magnânima, mesmo que se saiba que fora

dessa comunidade há pessoas muito mais grandiosas? Para além do facto de se implorar

a questão do que é a grandeza. Mas o maior problema é a lógica circular entre acto

virtuoso e pessoa virtuosa48: um acto só é virtuoso se for realizado por uma pessoa

virtuosa; uma pessoa virtuosa é uma pessoa com disposição para actos virtuosos.

Sem embargo, repete-se a lacuna que não permite a interpretação sistemática: qual

é o fim último da pessoa humana [caso seja remetida como resposta conceitos como

eudaimonia, felicidade, virtude a questão mantém-se]? Basta que o acto respeite o fim?

Um violador, aquele que viola, ao violar está então a cometer um acto moral? Um hitman,

aquele que mata por dinheiro, ao matar por dinheiro está a cometer um acto moral? Uma

guilhotina ao decapitar uma pessoa está a cometer um acto moral? Uma pessoa que seja

criada para ser uma escrava ofenderá o seu fim caso não o seja? Qualquer acto cometido

por qualquer coisa ou pessoa só é imoral se ofender o seu fim inerente. O telos de X pode

46 JULIA, TANNER – The Naturalistic Fallacy, pág. 107 – Exemplo retirado do excerto de ALASDAIR,

MACINTYRE, AFTER VIRTUE, pág. 53. 47 JULIA, TANNER – The Naturalistic Fallacy, pág. 109 48 MICHAEL, LACEWING – Issues for Aristotle’s virtue ethics, pág. 3.

12

ser aquilo que se pretender através de uma boa retórica até ao momento em que seja dada

uma definição de telos aceitável.

Por fim, não é possível retirar um Sollen de Sein através da doutrina de MacIntyre.

Toda a doutrina deste autor se baseia no fim original do Ser, mas sem a definição do que

é o fim último esta não tem utilidade, uma vez que X pode ter a função que lhe seja dada

no momento. Por outras palavras, o telos é ambíguo.

D. De Finnis e Grisez

Tanto Finnis como Grisez recusam à primeira vista a lógica circular e preferem

tomar a via de axiomas. Estes neo-jusnaturalistas têm como pilar da sua resposta à

problemática do Ser-Dever Ser o princípio da razão prática [Good is to be done and

pursued, and evil is to be avoided]49 e o princípio da não-contradição [The same cannot

both be and not be at the same time and in the same respect]50. Estes, para além de serem

princípios, são axiomas que estão no cerne da razão humana e como tal são self-evident

truths por serem inerentes.

Para estes seguidores de Aquinas, Sollen não é extraído de factos, mas através

destes axiomas. O Ought está dentro de o princípio da razão prática, uma vez que este é

o princípio programático da pessoa humana. Este axioma permite também perceber que

o Homem tem uma inclinação para o bem, sendo o bem definido por estes como “aquilo

para o qual cada coisa tende”51. Com efeito, os fins para os quais tendemos são os fins

correctos. Contudo, para percebermos o Dever Ser é preciso compreender todos os bens

morais, isto é, é preciso fazer uma investigação lógica através dos dois axiomas basilares

e descobrir quais os bens morais existentes.

Finnis e Grisez não recusam apenas o infinito regresso mas como também o acto

de provar.

A posição tomada por estes autores face à Guilhotina de Hume é evidente, já que

não defendem a extração de um Dever Ser de um Ser, mas um Dever Ser de um outro

Dever Ser. Todavia vai contra a questão aberta, uma vez que emprega a construção de

bem – aquilo para o qual temos inclinações. A formulação de bem comum implica o

próprio conhecimento das predisposições humanas, mais do que isso, implica saber qual

é a principal predisposição, ou a predisposição mais importante que temos na razão

humana. A predisposição natural explicitada pelo princípio da razão prática é fazer o bem,

mas o bem por sua vez é fazer aquilo para o qual existem inclinações. Logo, existe o

mesmo problema da posição aristotélica-tomista – um argumento circular.

Se o bem é fazer aquilo para o qual temos inclinações, e as nossas inclinações são

de fazer o bem, mais uma vez, presenciamos a petição de princípio. Esta posição não

apresenta um desafio à guilhotina de Hume visto ser falaciosa.

49 GERMAIN, GRISEZ. "The First Principle of Practical Reason: A Commentary on the Summa theologiae,

1-2, Question 94, Article 2." The American Journal of Jurisprudence 10, no. 1 (1965), pág. 168. 50 GERMAIN, GRISEZ. "The First Principle of Practical Reason: A Commentary on the Summa theologiae,

1-2, Question 94, Article 2." The American Journal of Jurisprudence 10, no. 1 (1965), pág. 175. 51 JULIA, TANNER – The Naturalistic Fallacy, pág. 143.

13

IV. Do Querer Ser

O querer jurídico52 traduz-se no modo de pensar face ao estabelecimento de fins53,

isto é, é um modo de pensar mais transparente. O conceito de Stammler procura aceitar o

facto de serem os seres humanos a estabelecer os fins, os ideais sociais, os valores e tudo

o que seja da criação humana. Rejeitando a noção de que é antes um padrão objectivo

transcendente que nos guia – a genialidade de Stammler rompe com a noção de

subordinação ao que é correcto.

É preciso ainda atentar à noção de que independentemente do conceito de Direito

que tomemos, a função principal da ordem jurídica é a regulação da conduta humana nas

áreas mais importantes da convivência social, face a certos fins: segurança e justiça54. Ou

seja, é a subordinação da conduta humana a determinados fins prescritos – fins que

supostamente devem ser. Tendo isto em conta, é necessário perceber que o que de facto

acontece na nossa sociedade é a valoração aspirada por alguns seres humanos de certos

fins, visando a sua concretização. Estas valorações não são nada mais para Stammler do

que ideais sociais55, id est, são ideias que possivelmente nos guiam a um mundo onde as

nossas aspirações [liberdade, felicidade, paz mundial, et cetera] se tornam reais, e não

ideias objectivamente certificadas de serem boas e de proporcionarem um mundo de bem.

Não podemos confundir o Direito com a Moral. No Direito, a lei procura atingir um fim,

já na Moral uma lei procura corrigir condutas incorrectas visando a ideia perfeita, o

númeno de conduta correcta – o Direito guia, a Moral corrige. Como tal, enquanto houver

dúvidas epistemológicas na questão aberta e na guilhotina de Hume, não é aceitável usar

a construção de Dever Ser na ordem jurídica, sob o pretexto de insinuar ao povo que a

maneira como age está incorrecta.

Tanto mais que a existência de Dever Ser sem a definição objectiva do que é o

bem é somente uma vontade imposta por alguém – o conceito de correcto de alguém que

é imposto ao resto da sociedade; o Dever Ser traduz-se então numa nobre mentira56, por

outras palavras, numa mentira que visa a harmonia social ou à concretização de fins

obscuros. Que melhor maneira permite a intervenção de alguém no comportamento de

outrem, do que afirmar que tal comportamento é incorrecto de se ter, e que como tal essa

pessoa está errada? Certamente, a reacção do indivíduo coagido a mudar de conduta

porque terceiros ambionam é bastante diferente. Assim me parece que o Dever Ser tem

apenas utilidade como nobre mentira, que ilude tanto o jurista como o cidadão médio.

Porém o fio de nobres mentiras não acaba aqui: o correcto, o bem, a justiça, a segurança

e qualquer conceito metafísico é um conceito indeterminado. Por sua vez os conceitos

indeterminados são impossíveis de ser definidos perfeitamente, daí a constante mutação

doutrinária e as variadas definições. Os conceitos indeterminados são possíveis de

comparados ao conceito de ordem-quadro57 do Professor Paulo Otero, ou seja, a

52 KARL, LARENZ – Metodologia da Ciência do Direito, pág. 119. 53 KARL, LARENZ – Metodologia da Ciência do Direito, pág. 118. 54 JOSÉ, OLIVEIRA DE ASCENSÃO – O Direito, Introdução e Teoria Geral, pág. 42. 55 WALTER, BRUNO DE CARVALHO – Considerações sobre a doutrina de Stammler, pág. 103. 56 PLATÃO – A República, pág. 154. 57 JOSÉ, MELO DE ALEXANDRINO – Lições de Direito Constitucional, Vol. I, pág. 201

14

constituição [palavra] como moldura e sendo o seu interior [significado] preenchido pelo

legislador [aquele que tem o querer mais poderoso]. Como tal, até os fins do Direito

relevam eles próprios vontades, dado que o preenchimento do conceito indeterminado é

feito pela vontade de quem tem mais poder, não por uma ideia transcendente objectiva. E

mesmo que atendamos à figura de sábio: de que vale esta figura? É só mais uma entidade

com um querer com a particularidade de deter autoridade num certo campo, a verdade é

que será somente uma construção com a pretensão de ser seguida, e não um fenómeno

coerente com o númeno correspondente.

Nas palavras do Professor Miguel Teixeira de Sousa, a circunstância de se admitir

que o dever ser tem por base um querer não significa que esse dever ser possa ser

resumido a um querer: o dever ser resulta de um querer, mas não pode ser apenas um

querer58. Na visão do Professor de Lisboa, um Dever Ser não é somente um querer, mas

também um conjunto de valorações. Para o Professor Miguel Teixeira de Sousa um valor

é diferente de um querer, na medida em que recusa que um Dever Ser possa ser resumido

a um querer jurídico. Porém, será que o mesmo tem razão? Retomando, um Dever Ser

resume-se a um querer que respeite os valores da ordem jurídica. Porém, a questão é

implorada: não será uma valoração um querer? Já percebemos que um querer pode ser a

compreensão de um sujeito sobre determinada essência com a imposição dessa

compreensão a outras pessoas. O mesmo se passa com a emissão de juízos acerca de algo

que se estima com o pretexto de vigência na ordem jurídica. Ergo, uma valoração é uma

imposição de uma vontade – querer.

O Professor explica que o Dever Ser se resume não só a um querer, mas também

a valores. Com isso, faculta um exemplo: não é desejável que alguém que tenha de

suportar os danos que lhe foram causados por outrem que o legislador pode querer que

essa situação não ocorra e é por isso que ele pode impor ao infractor o dever de

indemnizar o prejudicado [art.483º/1 CC] 59. Ou seja, porque não é almejado X é querido

argumentum a contrario Y. A meu ver, o exemplo do Professor de Lisboa dá mau trato

ao conceito genial de Stammler, isto por várias razões: i) quando se exprime que um

querer de outrem permite ao legislador querer o mesmo, ignora-se que mesmo que seja

querido por uma parte da população este querer pode também não ser querido [assim

sendo o valor querido não pode apenas ser querido, mas também tem de ter um querer

poderoso, ou pelo menos mais poderoso que outras vontades]; ii) pressupõe que o

legislador só pode querer o que é “querido” quando a crise política portuguesa e o

sentimento social para com a política demonstram desconfiança por parte da população

face à política iii) pressupõe que o legislador é uma figura poderosa no contexto actual.

Relativamente a ii) e iii), no exemplo, ressalva-se a figura do legislador como

aquele que decide o que se quer, tendo em conta o que lhe é permitido querer: isto só é

verdadeiro num contexto de nanny state/big government em que se respeite

absolutamente a constituição [implica a impossibilidade de revisões constitucionais, uma

vez que a constituição é constituída através de um querer constituinte originário que não

pode ser derrotado por outro querer. Dado que, na óptica do Professor de Lisboa, o

58 MIGUEL, TEIXEIRA DE SOUSA – Introdução ao Direito, pág. 48. 59 MIGUEL, TEIXEIRA DE SOUSA – Introdução ao Direito, págs. 48 e 49.

15

legislador só pode querer aquilo que é querido, e como este tem uma função de respeito

pela constituição, só pode querer o que é querido desde que esse querer respeite o que é

querido pela constituição, isto é, querido pelos que quiseram antes – os que tinham querer

constituinte originário], onde o Estado é mais forte que os indivíduos e as corporações.

Mas quanto mais fraco é o Estado, mais fraco será o poder do seu querer, e este estará

subjugado a outras vontades.

Na actual conjuntura, o legislador legifera o que o povo anseia, ou o que os

interesses económicos querem? Devido à fraqueza do querer estadual português, as

vontades mais relevantes são as do poder económico, ainda que o art.80º/a da CRP

disponha: subordinação do poder económico ao poder político democrático. Um Querer

Ser forte é o que torna possível a vinculação e a imperatividade das normas, sem ele, a

norma torna-se irrelevante, com ou sem valorações. O maior exemplo disso é o estado do

Direito actual, onde cada vez mais o poder económico à escala global ultrapassa em termos

de poder a ordem jurídica60, ao ponto de se poder falar em neofeudalização61, isto é, centros

de poder [corporações, grupos económicos, grandes empresas] que rivalizam o poder do

Estado. É imperativo deixarmos conceitos ultrapassados como o Dever Ser para trás, pois

se o Executivo legifera cortes orçamentais não é certamente porque é o correcto a fazer,

mas sim porque existem vontades poderosas o suficiente para influenciar a vontade do

Estado. Sumarizando, reitero que o Dever Ser é um eufemismo de Querer Ser.

O Professor Miguel Teixeira de Sousa faz ainda outra crítica ao querer jurídico: as

experiências históricas totalitárias demonstram os riscos da identificação do dever ser com

um querer, pois que nelas foi muito mais fácil passar do querer para a arbitrariedade. A

meu ver, o que aconteceu foi o completo oposto. Os regimes políticos autoritários impõem

uma filosofia de Estado dominante, os regimes políticos totalitários têm como característica

do poder político a presença de uma ideologia62 – imperatividade da ideia de correcto

adoptado pelo Estado, id est, um Sollen objectivado. Em contrapartida, os regimes

democráticos reconhecem o pluralismo democrático63 – permissividade de várias

possibilidades da ideia de correcto, isto é, maior liberdade de existência de várias vontades.

Concluo que o Dever Ser, ou a ideia de bem, que normalmente é usada como verdade última

e indiscutível é afinal o que origina um regime político opressivo, uma vez que não há

espaço para discussão de ideias, existindo já um conceito perfeito de bem. São, em suma,

os regimes não-democráticos que exploram o conceito de Dever Ser.

O querer jurídico surge no contexto de conceptualização do Direito como ciência

de fins, sendo o Direito para Stammler um modo de querer64. Numa época de positivismo,

metodológico Stammler pretendia separar o Direito das ciências naturais, prevenindo assim

manter a credibilidade do Direito enquanto ciência. Por isso, constrói uma concepção de

Direito que se liga aos fins através da vontade e da razão do Homem65, sendo o querer

jurídico um querer vinculante aos que estão na jurisdição da ordem jurídica. Para além de

60 JOSÉ, MELO DE ALEXANDRINO – Lições de Direito Constitucional, Vol. I, pág. 56. 61 JOSÉ, MELO DE ALEXANDRINO – Lições de Direito Constitucional, Vol. I, pág. 98. 62 JOSÉ, MELO DE ALEXANDRINO – Lições de Direito Constitucional, Vol. I, págs. 149 e 150. 63 JOSÉ, MELO DE ALEXANDRINO – Lições de Direito Constitucional, Vol. I, pág. 149. 64 KARL, LARENZ – Metodologia da Ciência do Direito, pág. 117. 65 KARL, LARENZ – Metodologia da Ciência do Direito, pág. 117.

16

ter como objectivo a justificação do Direito como ciência, pretende também afastar-se do

binómio correcto/incorrecto pela dificuldade epistemológica de definição do conteúdo de

ambos66. O Professor alemão formula o Direito como uma categoria [a teleologia do querer

jurídico] e como ideia [ideal social]67. Contudo, para Stammler o querer jurídico não é uma

força ou uma faculdade, mas um método lógico inerente à consciência humana – uma

espécie de norma fundamental da consciência68 –, que tem como propriedade formal o

Direito69.

Todavia, apesar de me ter guiado pela concepção de Stammler, discordo com o

conteúdo que o mesmo inseriu na construção de querer jurídico. Defendo a ideia de que o

Direito é uma ciência de fins, a noção ideal social, entre outras coisas; discordo com

Stammler em matérias morais e até mesmo com a metodologia filosófica – principalmente

no ponto do querer livre. Vejo o conceito de querer com outros olhos.

O Querer Ser não é somente um método de pensamento de meios para fins: é mais

do que isso. O Querer Ser é um conceito descritivo de as forças, ou interesses, que intervêm

na ordem jurídica, ou que se sobrepõem a ela, com o objectivo de constituírem um ideal

social, se forem suficientemente poderosos, ou de influenciarem um ideal social existente.

Reconheço a existência de vontades e interesses que influenciam a ordem jurídica e a

transformam, sendo obstante ao movimento que defende a evolução da ideia de correcto

como elemento transformador do Direito. A ordem jurídica é transformada pelas várias

vontades que existem na sociedade e que lutam entre si por relevância: uma vez conseguida

relevância, procuram beneficiar fixando um fim que atenda à sua própria concepção de

ideal social. Por outras palavras, procuram moldar a ordem jurídica ao seu desejo – egoísmo

racional de Ayn Rand.

Com efeito, explicito que não rejeito de todo o conceito de querer jurídico, mas

apenas o seu conteúdo.

O Querer Ser é um macroconceito que se divide em vários tipos de querer: o querer

jurídico [o querer jurídico vinculante e o querer jurídico não vinculante] e o querer externo

[podendo ser divido em: querer económico, querer social, querer europeu, querer do sector

privado, et cetera].

O querer jurídico divide-se em querer jurídico vinculante e não vinculante: o

primeiro tem efectividade e serve de parâmetro de verificação do poder do querer que este

tem como base; o segundo explicita um conflicto de quereres que proporciona um

interregno normativo de um determinado querer jurídico. Tal como no Direito

Constitucional, o estudo do constitucionalismo foca-se em constituições reais e não em

constituições escritas70, o que importa é o que acontece na realidade, e não o que

supostamente deveria acontecer. O mesmo acontece face ao binómio querer jurídico

vinculante e não vinculante: que importância tem um querer jurídico sem aplicação, quer

por falta de utilidade, por impossibilidade ou por não conseguir fazer frente a outro querer

[na mesma óptica se pergunta a importância de uma norma que não é aplicada]? O que

66 KARL, LARENZ – Metodologia da Ciência do Direito, pág. 121. 67 JOSÉ, DE LA SERNA Y FAVRE – Filosofos Modernos Del Derecho: Los Neokantianos, pág. 100. 68 JOSÉ, DE LA SERNA Y FAVRE – Filosofos Modernos Del Derecho: Los Neokantianos, pág. 127 69 JOSÉ, DE LA SERNA Y FAVRE – Filosofos Modernos Del Derecho: Los Neokantianos, pág. 136. 70 JOSÉ, MELO DE ALEXANDRINO – Lições de Direito Constitucional, Vol. II, pág. 67.

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importa de verdade é o querer jurídico vinculante. Sugiro que deixemos de dar importância

à ideia de bem e que prestemos atenção à ideia de power dynamics. O importante para a

vigência da norma é o poder em que esta se baseia, e não se esta respeita o princípio da

dignidade da pessoa humana – e.g. vontades dos credores da dívida portuguesa v. aumento

da precariedade portuguesa. O querer jurídico só é relevante se for poderoso o suficiente

para se conseguir opor a outras vontades.

Remeto para a necessidade de pragmatismo e de uso de conceitos que descrevam a

realidade. O bem hoje é uma coisa e amanhã será outra; reafirmo que o correcto é uma

nobre mentira. Pensamos que o bem é importante em determinadas situações: mas será isso

verdadeiro? Quando salvaguardarmos algo que amamos somos capazes de esquecer o

correcto. Não somos coerentes, pois nem sempre nos convém sê-lo. Não interessa a ideia

de bem se formos demasiado impotentes para o tornar um querer jurídico vinculante. É

imperativo sermos letrados em várias matérias para serem perceptíveis as várias vontades

poderosas que existem na sociedade global. Com isso compreender os fins que nos guiam

e se estes ofendem o nosso querer.

Os quereres externos são quaisquer vontades que estejam fora da ordem jurídica e

que a qualquer momento podem influenciá-la por impulsos legiferantes, por directivas [no

caso da U.E.], por revoluções [ou motins e greves], por corrupção, por genialidade de uma

construção doutrinária: por qualquer acto forte o suficiente que consiga penetrar a ordem

jurídica. Este tipo de Querer Ser é o reconhecimento que a ordem jurídica aceita e

reconhece influências externas não só através de doutrina, mas também por outros actos de

entidades integrantes na sociedade. Com efeito, ao contrário da ideia de Dever Ser que só

aceita actos conforme ao que é correcto e assim nega e proíbe vontades e opiniões

contrárias. A construção que faço para além de ser realista [ao tomar em conta que agimos

por egoísmo racional e não pelo conceito de bem] é também mais democrática, uma vez

que reconhece vontades alternativas à que é imposta e designada como a correcta.

18

VI. Da Conclusão

Não existe, no entanto, uma interpretação “absolutamente correcta”, no sentido

que seja tanto definitiva, como válida para todas as épocas. Nunca é definitiva, porque a

variedade é inabarcável e a permanente mutação das relações da vida colocam aquele que

aplica a norma constantemente perante novas questões. Tão-pouco pode ser válida em

definitivo, porque a interpretação, como ainda haveremos de ver, tem sempre uma

referência à totalidade do ordenamento jurídico respectivo e às pautas de valoração que

lhe são subjacentes71.

Apesar desta citação se referir à interpretação do texto jurídico, pretendo por

obséquio, que leitor a leia no contexto de interpretação do mundo, quer metafísico como

físico.

Advogar o bem, é o mesmo que afirmar uma verdade metafísica totalitária: da

mesma maneira que determinada norma tem de respeitar a norma fundamental, uma ideia

tem de respeitar o conceito fundamental de bem comum – um conceito que encaixa em

regimes autoritários e totalitários.

A própria ideia de bem corrompe o mundo intelectual com a sua excessiva

autoridade: exempli gratia, o conflicto entre a ideia “correcta” de geocentrismo e a ideia

de heliocentrismo – tudo o que fosse contra a ideia de correcto era pecado; nos dias de hoje,

tudo o que não coaduna com a ideia de correcto de sujeito X é decadente. Basta proferir a

sacra palavra para desvirtuar a opinião de outro sujeito: incorrecto. Neste aspecto, defendo

o pensamento de Stammler, relativo à substituição do correcto em virtude do querer como

o estabelecimento de fins: o advogado que defende um cliente procurando chegar a um

determinado fim, não à ideia de bem comum [um advogado que consegue ilibar um notório

criminoso realiza um acto justo?]. E ao recusar o Dever Ser não recuso apenas a ideia de

bem, mas como também toda a metodologia inerente.

Como tal, proponho o uso de Querer Ser até que se responda com sucesso à

guilhotina de Hume e à questão aberta.

71 KARL, LARENZ – Metodologia da Ciência do Direito, pág. 443.