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CONTAME COMO FOI 1ª Série Episódio 012 “Do Minho a Timor” Outono 1968 Adaptação e Guião:

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CONTA­ME COMO FOI

1ª Série

Episódio 012

“Do Minho a Timor” Outono 1968

Adaptação e Guião:

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CENA 012/00 – PÓS­GENÉRICO – IMAGENS DE ARQUIVO

VÍDEO: Sequência rápida de imagens das ex­colónias portuguesas; imagens das comemorações Cabralinas e da inauguração da estátua de D. Nuno Álvares Pereira.

ÁUDIO: Angola é nossa ou Hino da Restauração

FUNDE C/ –

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CENA 012/01. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. NOITE. DIA 01 Margarida, António, Toni, Carlos, Hermínia

TODA a FAMÍLIA, menos ISABEL, acaba de jantar. ANTÓNIO olha com ar severo para TONI.

ANTÓNIO (preocupado para Toni) Eu já disse que não gosto que contes anedotas sobre o Salazar. É uma pessoa doente!

MARGARIDA (parva com aquela desculpa) Mas isto... é só uma anedota, António.

ANTÓNIO (preocupado) É uma anedota política… contas aqui... mas não a contas em mais sítio nenhum.

TONI (decidido) Um dia, o presidente da câmara lá duma cidadezinha perdida no Norte, recebe um telegrama de Lisboa... O homem não estava habituado àquilo. Põe os óculos e lê: “Movimento sísmico detectado no seu concelho! Stop! Epicentro na região! Stop!...”

CARLOS (interrompe, não percebeu) Não percebo nada!

HERMÍNIA (também não percebeu) A anedota era isto?

TONI (já divertido) Não, Não, O homem leu aquilo... pensou... mandou chamar o chefe da GNR local e o chefe da PIDE da sede de concelho. Pensam, pensam, pensam...

CARLOS Ainda não percebo nada.

TONI (ignora Carlos) Pensaram... e o chefe da Pide teve uma ideia. Disse ao presidente da câmara para responder com outro telegrama. E ditou o texto: “Movimento sísmico sufocado! Stop! Epicentro e outros dois suspeitos detidos. Stop!”

TONI quase não consegue acabar de dizer a anedota: tem um ataque de riso. Ri tanto que não percebe que CARLOS, MARGARIDA e HERMÍNIA não perceberam. ANTÓNIO, que estava a beber um copo de água... fica uns segundos sem reagir. Depois, ao ver que TONI cada vez ri mais, sofre um repentino ataque de tosse.

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MARGARIDA (bate­lhe nas costas) Então, António, o que é que foi?

ANTÓNIO (parvo, disfarçando) É o teu filho: conta cada uma que um homem até se engasga.

CARLOS O que é que quer dizer epicentro?

ANTÓNIO levanta­se como se precisasse de sair para melhorar da tosse. Sai da sala. HERMÍNIA e MARGARIDA percebem.

HERMÍNIA (para Carlos) Quando o teu pai voltar para a sala perguntas­ lhe... agora, acaba a fruta. Anda.

CORTA PARA –

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CENA 012/02. INT. – CASA LOPES/ QUARTO CASAL. NOITE. DIA 01 António

ANTÓNIO entra no quarto em passo de corrida. Abre o armário e procura até encontrar um dicionário. Sempre apressado, e já sem tosse, senta­se na cama e começa a procurar, desfolhando o volume...

ANTÓNIO (apressado) Como é que era? (lembra­se) Epicentro... ora... epi... epi... epicentro. (sorri animado. lê) “região da superfície terrestre por cima do hipocentro onde é máxima a intensidade de um abalo sísmico... terramoto”.

ANTÓNIO pensa uns segundos sobre a definição que acabou de ler. Fecha os olhos e repete­a em voz baixa percebendo­se que o está a fazer pelo movimento dos lábios. Levanta­se, guarda o volume dentro do armário e sai.

CORTA PARA –

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CENA 012/03. INT. ­ CASA LOPES/SALA COMUM. NOITE. DIA 01 Carlos, Margarida, Toni, Hermínia, António

CARLOS (enervado para Toni)) Explica lá o que é epicentro.

TONI (divertido) Eu não dou explicações a anões!

HERMÍNIA (enervada com Toni) Eu não sou anã e também não sei o que é.

CARLOS ia voltar a protestar mas ANTÓNIO entra na sala muito sorridente. Aclara a garganta fingindo que está a recuperar o ataque de tosse.

ANTÓNIO (para Toni) Mas a anedota é de estalo: (ri e repete) “Epicentro e mais dois suspeitos detidos” (ri)

TONI (ri também) É óptima, não é?

CARLOS (interrompe) Paizinho, pode explicar­me o que é“epicentro”?

ANTÓNIO (como se sempre tivesse sabido) Epicentro é (debita o que leu) “a região da superfície terrestre por cima do hipocentro onde é máxima a intensidade de um abalo sísmico.” (sorri orgulhoso)

CARLOS (perplexo) Continuo sem perceber nada!

ANTÓNIO (rindo às gargalhadas) Carlitos, não percebes que o homem da Pide queria prender um terramoto? (ri mais)

TONI fica parvo com os conhecimentos de ANTÓNIO. MARGARIDA sorri cúmplice.

HERMÍNIA (para Carlos) Vês? Vês como o teu pai sabe tudo?

ANTÓNIO (satisfeito com o ar extasiado de Carlos) Tudo não, dona Hermínia, sei qualquer coisita.

MARGARIDA e HERMÍNIA olham ironicamente ANTÓNIO. TODOS continuam a conversar.

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NARRADOR (OFF) Quando era pequeno acreditava piamente que o meu pai era o homem mais sábio do mundo! Não só tinha resposta para todas as perguntas, como ainda por cima as debitava com uma autoridade que nem o professor Rui Braga conseguia ter. Ter um pai assim tão sábio era um luxo! E um orgulho.

USAR EM CASO DE NECESSIDADE SOBRE O NARRADOR, SEM QUE SE OUÇA ESTE DIÁLOGO.

HERMÍNIA (para António) Estou admirada contigo, António.

ANTÓNIO Não sei porquê! Eu não sou de me gabar, mas graças a Deus também não sou um burro qualquer!

TONI Posso contar outra, pai?

ANTÓNIO Nem pensar! Acabaram­se as piadolas!

FIM DE CENA –

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CENA 012/04. INT. – CASA LOPES/SALA COMUM. NOITE. DIA 01 Carlos, Toni, António, Margarida, Hermínia

A família vê agora televisão.

INSERT VÍDEO: programa de variedades a definir em função dos que tenham passado no Outono de 68 na RTP.

HERMÍNIA (levanta­se e despede­se de todos) Tenho de me ir deitar que amanha a carreira é muito cedo. Quando vier da matança, venho carregadinha de enchidos, de nabiças das boas, castanhas...Tudo o que eu puder trazer. (para Margarida) Diz à Belinha que se vá despedir de mim ao quarto.

ANTÓNIO (crítico) Onde é que ela anda metida, Margarida?

MARGARIDA (atrapalhada) A Isabelinha foi jantar a casa da Náni.

ANTÓNIO Náni? Cá para mim, a Náni chama­se José e tem bigode!

TONI desata a rir. HERMÍNIA sai da sala. INSERT VÍDEO: programa sobre a União Indiana e sobre Goa, Damão e Diu, seguida de imagens de Angola, Moçambique e outras colónias.

CARLOS (olha fixamente para a televisão) Deixem­me ouvir. (para António) Pai, quando é que a Índia nos devolve Goa, Damão e Diu?

ANTÓNIO (atrapalhado) Deve ser um dia destes! A ti o que é que te interessa a Índia portuguesa?

CARLOS Se é portuguesa, porque é que os indianos nos roubaram?

TONI (começa a responder a sério) Quem é que roubou quem, Carlitos? Foram os indianos, ou foram os portugueses?

MARGARIDA (sai em defesa de Carlos) Não baralhes o menino, Toni. Se se diz Índia portuguesa quer dizer que é nossa. E Angola, Moçambique, Guiné... é tudo português!

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TONI É português, é…. Eu quero ver quando os cámones nacionalizarem a base das Lajes, sempre quero ver o que vocês dizem.

CARLOS (cada vez mais confuso) Quem são os cámones?

ANTÓNIO (antes que Toni responda) Carlitos, vai lavar os dentes e vai para a cama!

CARLOS não se mexe e continua a ver televisão.

INSERT AUDIO: LOCUTOR (OFF) O Governo Português vai reagir de forma veemente à condenação orquestrada pela ONU contra a sua política ultramarina, a bem da unidade Nacional, dos colonos portugueses espalhados por todo o mundo e por forma a assegurar a lei e a ordem em Portugal, desde Minho a Timor!

CARLOS (para António) Quem é a ONU? E porque é que não quer que Portugal continue inteiro?

TONI (suspiros) Que grande lata! Os Americanos são os maiores ladrões do mundo. Olha o que é que eles estão a fazer no Vietname.

CARLOS (para António) O Vietname também é português? Quando é que nos roubaram o Vietname?

ANTÓNIO (apressa­se a fazer um ar cansado) O Vietname... Carlitos, o pai hoje está muito cansado mas amanhã conto­te a história de Portugal assim em duas penadas. Mas agora tenho que ir dormir está bem. Até amanhã. Boa noite. (sai)

MARGARIDA (para Carlos) Vá Carlos, vai atrás do teu pai que já é muito tarde.

CARLOS faz beicinho e sai depois de dar um beijo a Margarida.

FIM DE CENA –

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CENA 012/05. INT. – CASA LOPES. QUARTO DO CASAL. NOITE. DIA 01 Margarida, António

ANTÓNIO está sentado em cima da cama a fumar e a consultar o dicionário. MARGARIDA entra já de roupão e rolos na cabeça.

MARGARIDA António, deixa o livro, é muito tarde. (deitando­ se) Lá porque não sabes o que é o epiceno...

ANTÓNIO (corrige­a) Diz­se Epicentro, Guida! Epicentro! (pensa) Tu achas que os miúdos se aperceberam?

MARGARIDA (orgulhosa) Não perceberam nada. Viste o Carlitos a olhar para ti a achar o pai sábio.

ANTÓNIO (triste) Não vai faltar muito tempo para perceber que o pai é pouco mais do que analfabeto! Para conseguir falar com o Toni até tive que trazer este dicionário do Ministério.

MARGARIDA (faz­lhe uma festa) Não somos analfabetos! Não estudámos muito mas sabemos ler, escrever... é bem bom! Há tanta gente da nossa idade que nem isso sabe.

ANTÓNIO (triste) Não quero que os meus filhos tenham vergonha de mim por ser ignorante.

MARGARIDA (terna) O que é que vais fazer? Não vais ter um ataque de tosse cada vez que o teu filho disser uma palavra esquisita que aprendem na escola?

ANTÓNIO (triste) Não... mas, sei lá, gostava que eles me respeitassem.

MARGARIDA (mais terna) Mas achas que te vão faltar ao respeito só porque tu não sabes o que é um movimento cósmico?

ANTÓNIO (insatisfeito) Movimento sísmico, Guida. (demonstra os seus conhecimentos recentes) Sabias que os portugueses já foram donos de meio mundo:

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ele foi a Malásia, Ceilão, a ilha das Flores...

MARGARIDA (deitando­se e puxando António para si) Tu sabes quais são as flores mais bonitas que eu recebi até hoje? Aquelas que me deste no nosso aniversário.

ANTÓNIO não se deixa puxar: continua a ler; MARGARIDA faz uma expressão de cansaço e fecha a luz do seu lado.

FIM DE CENA –

PASSAGEM DE TEMPO

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CENA 012/06. INT. – ESCOLA / SALA DE AULA. TARDE. DIA 02 Professor Rui Braga, Marinho, Luís, Carlos, outras crianças

O professor RUI BRAGA acaba de fazer um traço no mapa­mundo dividindo­o ao meio.

PROF. RUI BRAGA Tordesilhas! Tratado de Tordesilhas dividiu o mundo ao meio: metade para Portugal e a outra metade para Espanha.

LUÍS (levanta a mão timidamente) Senhor professor? (levanta­se) Se dividimos o mundo a meio com os espanhóis, porque é que eles nos roubaram Olivença?

PROF. RUI BRAGA (indignado) O que é que isso tem a ver com o Tratado de Tordesilhas?

LUÍS Não sei! Mas o meu pai disse­me que os espanhóis sempre foram mais espertos do que nós. E por isso roubaram­nos Olivença. Agora até os pretos da Guiné nos querem tirar o que é nosso!

RUI BRAGA (explosivo) O Império é indissolúvel, percebeste?

LUÍS Não, senhor professor, e o meu pai disse­me que...

PROF. RUI BRAGA O teu pai que venha falar comigo amanhã! (ainda irado) Senta­te! Onde é que eu ia? (pensa)

LUIS senta­se. CARLOS escuta o professor atentamente.

NARRADOR (OFF) O meu pai sabia muita coisa, mas o professor Braga tinha o dom da palavra. E ao ouvi­lo percebi perfeitamente a razão do antigo presidente do conselho quando dizia que Portugal estava orgulhosamente só! Éramos ricos e todos os estrangeiros tinham inveja de nós! Todos queriam roubar­nos os nossos territórios, pelo menos os mais ricos e, naquele instante, ainda que o mundo disso não se tivesse apercebido, havia um homem decidido

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a assegurar a união do império a começar por Olivença ­ que sempre era mais perto ­, e esse homem era eu: Carlos Manuel Marques Lopes!

USAR SE NECESSÁRIO SOBRE A VOZ DO NARRADOR E SOBRE EXPRESSÕES DAS CRIANÇAS ATENTAS.

PROF. RUI BRAGA …Portugal ficou na posse do Brasil, que era muito rico em ouro, e ainda tinha a Índia, o entreposto de Malaca, África. Portugal conquistou um Império, fez­se rico, poderoso e, mais importante do que tudo, espalhou a fé pelas quatro partidas. Levámos conhecimento, fé, educação e prosperidade a todos os continentes, fomos e somos grandes! Tordesilhas, meninos, Tordesilhas!

FIM DE CENA –

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CENA 012/07. INT – TIPOGRAFIA RAMIRES/SALA MÁQUINAS­TARDE­DIA 02 António, Operário 1, 2, 3, 4 e 5, Engenheiro Ramires, Vendedor

ANTÓNIO conversa com os OPERÁRIOS mas olha de vez em quando curioso para o escritório onde RAMIRES conversa animado com um VENDEDOR que lhe mostra uns prospectos e manual de instruções.

ANTÓNIO (para OPERÁRIO 1 de olho em Ramires) Tira mais 500 e empacotas...(pára a observar a cena)

O VENDEDOR sai, entretanto, da sala de Ramires, despedindo­se

VENDEDOR Então, está combinado: Depois telefono­lhe. (saindo)

ENG. RAMIRES (despedindo­se) Não se esqueça. (reentrando na sala) António, preciso de falar contigo.

CORTA PARA –

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CENA 012/07A. INT – TIPOGRAFIA RAMIRES / ESCRITÓRIO­TARDE­DIA 02 António, Operários, Engenheiro Ramires

ANTÓNIO entra no escritório. ENG.RAMIRES (animado, mostra­lhe uma série de fotografias) Chega aqui. O que é que achas?

ANTÓNIO (confuso) Isto é uma máquina nova?

ENG.RAMIRES (escandalizado) É uma rotativa de cores para offset! O último grito da tecnologia alemã!

ANTÓNIO (ainda sem perceber) Tecnologia alemã...

ENG. RAMIRES Como é que Portugal há­de progredir se os empregados não são preparados?! Na Alemanha, quem não sabe, vai para a rua!

ANTÓNIO (confuso) Na Alemanha, quem não sabe vai para a rua!

ENG. RAMIRES (animado, mostra as fotos) Isto que aqui vês é o nosso futuro! O futuro das tipografias! Sabes funcionar com isto?

ANTÓNIO (atrapalhado) Não, senhor engenheiro! Não sei!

ENG. RAMIRES Tens de aprender! Tiras um curso pós­laboral!

ANTÓNIO Eu gostava muito mas não tenho tempo!

ENG. RAMIRES (olhos ao alto) Quando é para receber, todos levantam a mão, mas para investirem em si próprios, nada! Caramba, António! Não és mais estúpido do que os alemães que inventaram isto!

ANTÓNIO Se o senhor engenheiro acha...

ENG. RAMIRES

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Acho e vou desfazer­me da Minerva! Da Minerva e de uma série de inúteis que andam para aí!

ANTÓNIO (atónito) O quê?

ENG. RAMIRES No fim­de­semana entra a máquina nova e quem não souber trabalhar com ela: a porta da rua é a serventia da casa!

ANTÓNIO (cada vez mais perplexo) Mas nós nunca pusemos os olhos numa coisa destas!

ENG. RAMIRES Têm muito tempo para aprender!

ANTÓNIO (sem saber como reagir) Claro, senhor engenheiro, tem toda a razão: (ainda incrédulo) Temos muito tempo para aprender!

FIM DE CENA –

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CENA 012/08. EXT. – DESCAMPADO / CAMIÃO.TARDE. DIA 02 Marinho, Carlos, Luís

Os TRÊS AMIGOS, que chegam da escola, discutem dentro da cabine do camião. CARLOS tem a palavra e tenta convencer os seus amigos.

CARLOS Temos que começar por algum lado: vamos reconquistar a base das Lajes!

LUÍS (inseguro) Mas os Açores ainda são portugueses!

CARLOS Sim, mas o meu irmão explicou­me que é como se não fossem. Os americanos têm a mania de roubar tudo. Olha o Vietname!

MÁRINHO (cheio de medo) Eu não quero fazer guerra aos americanos: são muitos e têm muitas armas!

CARLOS Então lutamos contra os espanhóis: primeiro reconquistamos Olivença e Ceuta! Era tudo nosso!

MÁRINHO (preocupado) Vamos lutar contra os espanhóis sozinhos?

CARLOS Não! Vamos ser muitos mais!

LUÍS Quem é que vai fazer guerra connosco?

CARLOS A cavalaria!

MÁRINHO A cavalaria é dos americanos!

CARLOS Então, a tropa!

LUÍS A tropa está toda em África!

CARLOS (grave) Então, somos sozinhos. Mas não se preocupem porque os portugueses têm uma coisa que mais ninguém tem: orgulho viril!

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LUÍS e MÁRINHO (sem perceber) O que é isso?

CARLOS Não sei! Foi o professor Braga que disse e se o professor disse é porque é verdade! (põe em riste uma espada de madeira) Cuidado, espanholitos!

MÁRINHO / LUÍS (entusiasmados) Olé! Olé!

FIM DE CENA –

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CENA 012/09. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. TARDE. DIA 02 Margarida, Vitória

VITÓRIA cose calças com MARGARIDA que vem da cozinha com um tabuleiro com duas chávenas e um bule de chá.

MARGARIDA Ainda bem que a tenho cá enquanto a minha mãe estiver na terra, ajuda­me tanto!

VITÓRIA (risinhos) É um prazer e além disso é mais um dinheirinho que chega dá jeito. Bem... tu agora não precisas! Foi a tua mãe que me disse...tens muito trabalho.

MARGARIDA Graças a Deus! (confessional) Mas sabe o que eu gostava, gostava de ter um negócio.

VITÓRIA (assombrada) Um negócio Guida, vais­me desculpar a sinceridade: tu costuras muito bem, mas o que é que tu percebes de negócios?! Negócios é para os homens.

MARGARIDA (sorrindo) Outro dia tive uma reunião importante com uns senhores e sabe como é que me senti? Senti­ me uma mulher de negócios!

VITÓRIA (desconfiada) Cautela, Guida! Cautela, porque os homens não gostam que as mulheres andem metidas em negócios.

MARGARIDA (triste) A quem o diz...o António quando soube fez­me uma cena, porque não gosta que eu ganhe mais que ele. É natural, mas...

VITÓRIA E com toda a razão. As mulheres devem estar em casa a tomar conta dos filhos, e os homens na rua, a ganhar o pão de cada dia!

MARGARIDA Não sei dona Vitória , Eu acho que as coisas estão a mudar!

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VITÓRIA (benze­se) Credo filha a mudar! Mudanças dessas Deus nos livre! (enche a chávena de chá, rebusca o açucareiro) Tens mais açúcar, filha? Este já não tem nada!

Triste, MARGARIDA sai da sala em direcção à cozinha com o açucareiro nas mãos. VITÓRIA benze­se de novo.

FIM DE CENA –

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CENA 012/10. INT. – CABELEIREIRO / SALÃO. FIM TARDE. DIA 02 Isabel, Náni, Menina Emília, Clientes

As CLIENTES estão no secador e ISABEL e NANI estão de roda delas. A MENINA EMÍLIA entra e espreita.

MENINA EMÍLIA (franzindo o sobrolho) Ó meninas, atendem­me agora, ou demora muito?

ISABEL Não demora nada, menina Emília...Espere só mais um bocadinho. (oferece­lhe a Flama) .

MENINA EMÍLIA (senta­se e lê em voz alta) “De dia para dia, cresce o número de empresárias portuguesas”. (encolhe os ombros e devolve a revista) Coitadas!

NANI (que recolhe a revista) Coitadas porquê, menina Emília? (mostra a revista já aberta) Acha que têm cara de coitadas? São bem bonitas, elegantes... devem ser independentes, realizadas!

MENINA EMÍLIA (com desprezo) Se quiseres, dou­te a minha independência de bom grado!

ISABEL (intrigada) A Menina Emília tem o seu próprio negócio, não tem que prestar contas a ninguém...

MENINA EMÍLIA Porque, infelizmente, não tenho um marido que mas peça!

ISABEL Casar não é tudo na vida de uma mulher...

MENINA EMÍLIA (farta) O que é que tu percebes disso? Cá para mim, és tão doutora na matéria como eu!

ISABEL Eu até gostava de casar mas o meu sonho é ser...

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MENINA EMÍLIA (interrompe mal disposta) O meu sonho era ter um marido e um rancho de filhos! Mas como não consegui, claro, tenho o destino das feias: tenho um negócio! NANI Tem um negócio e é independente. Não acha que a sua vida seria pior se tivesse um homem a mandar em si?

MENINA EMÍLIA (escandalizada) Isso até é pecado! Tenham juízo: arranjem um marido que vos ponha em casa.

ISABEL e NANI entreolham­se entristecidas.

FIM DE CENA –

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CENA 012/11. INT. – CAFÉ FÁNAN / BAR. FIM DE TARDE. DIA 02 António, Dino, Fánan, Padre Victor

ANTÓNIO tem o manual de instruções da nova máquina offset. Tem um ar preocupado. Conversa com DINO.

DINO (despreocupado, aponta o manual) Isto deve ser canja e o Ramires não disse que te ia pôr fora!

ANTÓNIO (preocupadíssimo) Preto no branco não! Mas se não decoro esta marmelada toda até ao fim da semana vou para o olho da rua.

DINO (decidido) É pá, ainda tens tempo para estudar o manual da máquina!

ANTÓNIO (abre o manual ao calhas) Esta porcaria está escrita em chinês. Vê lá se percebes o que isto quer dizer: (lê) “o segundo sistema de aplicação serve o sistema de letterset”.

DINO (desconcertado) Porque não falas com o Renato! Ele é que é o rei dos biscates!

ANTÓNIO (indignado) Isto não é para o bico do Renato! Se eu não percebo isto, o Renato muito menos! (desesperado) Como é que vou dizer à Guida que vou ser despedido?!

FÁNAN (aproximando­se) Vai mais uma rodada?

ANTÓNIO responde com um gesto mal­educado e, antes que FÁNAN lhe responda, o PADRE VICTOR entra no café (sem cabeção, nem sotaina).

PADRE VICTOR Boa tarde!

FÁNAN Boas tardes, senhor padre Victor!

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PADRE VICTOR Gostava que me chamassem só pelo nome: somos todos mais ou menos da mesma idade: Victor chega perfeitamente. (dá uma palmada nas costas de ANTÓNIO e DINO) Olá António, olá, Dino!

Corta para ­

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CENA 012/012 EXT.RUA LOPES/PORTA CABELEIREIRO. FIM TARDE. DIA 02 Nani, Isabel

NANI e ISABEL saem do cabeleireiro. Ao mesmo tempo que passeiam ouve­se em fundo: INSERT ÁUDIO: Balança, canta Madalena Iglésias, Jorge Costa Pinto e Paulo Lucena, “O Melhor dos melhores de Madalena Iglésias”

ISABEL (pensativa) Não me sai da cabeça a menina Emília... Tenho tanto medo de ficar como ela!

NANI (ri a bandeiras despregadas) Tu tens febre, Isabel!

ISABEL Acabei o namoro com o Rui... meti na cabeça que quero ser livre, independente... quero realizar­me...e depois?

NANI Estás com medo de ficar solteira?

ISABEL Agora somos solteiras... qualquer dia somos solteironas como a menina Emília!

NANI A menina Emília é como as nossas mães: são todas da pré­história, tinham de ter os filhos que Deus lhes desse. Nós não! Podemos controlar as nossas vidas! Pensa na pílula.

ISABEL Para que é que eu quero a pílula se não tenho namorado?

NANI Arranja! Oportunidades não te faltam...

ISABEL E fico com que tipo de homem?

NANI Fica com o mais giro!

FIM DE CENA –

PASSAGEM DE TEMPO

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CENA 012/11A. INT. – CAFÉ FÁNAN / BAR. FIM DE TARDE. DIA 02 António, Dino, Fánan, Padre Victor

PADRE VICTOR (escandalizado com Dino, vira­se para António) Então, António, está tudo bem? Como é que vão as coisas na tipografia?

ANTÓNIO (drástico) O engenheiro vai despedir toda a gente!

PADRE VICTOR (sem perceber) Aconteceu alguma coisa?

ANTÓNIO O homem comprou uma máquina nova, alemã, e diz que não precisa de nós! Quer funcionários como os alemães que já nascem ensinados!

PADRE VICTOR Mas ele não pode despedir os operários.

ANTÓNIO Vá lá, dizer­lhe isso a ele!

PADRE VICTOR (empolgado) E VOU! Mas vocês têm de se organizar... se for preciso têm de fazer greve! A greve é uma arma legítima dos trabalhadores.

ANTÓNIO e DINO ficam perplexos e olham para todos os lados para verificarem se alguém que não devesse os tinha ouvido.

ANTÓNIO Isso é muito bonito de dizer mas eu tenho mulher, sogra e três filhos para alimentar.

PADRE VICTOR (conciliador) E se eu for falar directamente com o teu patrão? Achas que pode ajudar?

ANTÓNIO (perplexo) Donde é que o senhor conhece o engenheiro Ramires?

PADRE VICTOR De lado nenhum! Mas não posso deixar que os capitalistas continuem a explorar os trabalhadores sem fazer alguma coisa... é um caso de consciência!

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DINO (aflito) Se o Fánan o ouve a ter uma conversa destas no café... manda­o daqui para fora! E é já!

ANTÓNIO (perplexo) E onde é que o senhor aprendeu estas coisas todas sobre os trabalhadores?

PADRE VICTOR Antes de vir para esta paróquia trabalhei num movimento de Acção Católica, a JOC.

DINO JOC?

PADRE VICTOR Juventude Operária Católica.

ANTÓNIO Isso cheira­me a esturro!

DINO O Fánan não gosta dessas conversas no café.

PADRE VICTOR (indignado) É minha obrigação abrir­vos os olhos: os trabalhadores têm direitos!

ANTÓNIO Na tipografia nunca tivemos dessas mariquices!

O PADRE VICTOR continua a falar e ANTÓNIO ouve­o alarmado e tentando que os outros clientes e Fánan não os ouçam.

FIM DE CENA –

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CENA 012/13. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES. NOITE. DIA 02 Carlos, Toni

Em pijama, CARLOS está deitado na sua cama e tenta chamar a atenção de TONI que, também deitado na cama, lê a letra da canção de José Afonso que se ouve baixinho no seu gira­discos. INSERT ÁUDIO: Bairro Negro, 1963, “Baladas de Coimbra”, José Afonso.

CARLOS Toni...

TONI (continuando a ler) Sim...

CARLOS O que quer dizer imperialismo?

TONI (enfadado) Então... imperialismo é quando um país conquista outros países para os explorar.

CARLOS (pensativo) Quer dizer que imperialismo é uma coisa má.

TONI Péssima!

CARLOS (continua pensativo) O imperialismo é pior do que a ditadura?

TONI (continua a ler, não dá grande importância a Carlos) Mais ou menos!

CARLOS Então os mouros e os romanos são maus?

TONI (desconcertado, finalmente, olha Carlos) A que propósito é que vêm agora os romanos e os mouros?

CARLOS Eles tinham a mania de conquistar países.

TONI (farto) Mas isso já foi há muito tempo. Agora, os maus são os americanos.

CARLOS E os espanhóis? (explica)Que nos Roubaram Olivença, Ceuta... e outras coisas que eu agora não me lembro.

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TONI (fartíssimo e antes de retomar a leitura) E os portugueses? O que é que me dizes do que andamos a fazer em África?

CARLOS faz uma expressão de incompreensão. TONI retoma a leitura.

NARRADOR Desde que tinha começado as aulas na universidade, o meu irmão estava muito esquisito, confuso! Tinha as ideias todas baralhadas. Eu, pelo contrário, via tudo cada vez mais claro. Olivença era nossa! E a base das Lajes também. Se Portugal ia do Minho a Timor, não eram nem os americanos nem os espanhóis que iam desrespeitar a nossa unidade nacional.

USAR SOBRE A VOZ DO NARRADOR SEM QUE SE OUÇA.

CARLOS Toni!

TONI Cala a boca e dorme.

CARLOS Mas eu não percebi…

TONI É natural, tu nunca percebes nada.

FIM DE CENA –

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CENA 012/14. INT. – CASA LOPES / QUARTO CASAL. NOITE. DIA 02 António, Margarida

ANTÓNIO está sentado na cama a ler o manual de instruções da nova máquina enquanto MARGARIDA tenta dormir e não consegue.

MARGARIDA António, mas assim não consigo mesmo dormir.

ANTÓNIO (impaciente) Guida, isto é um caso de vida ou de morte: se não consigo aprender a trabalhar com a máquina até ao fim de semana, o Ramires põe­ me na rua.

MARGARIDA Era o que faltava!

ANTÓNIO (insiste) O Ramires vai despedir­me porque, por muito que leia, não consigo perceber nada do que aqui está escrito.

MARGARIDA (indignada e farta) O mundo não pára e se o Ramires te puser na rua. Vens trabalhar comigo para a costura...

ANTÓNIO (indignado) Tu estás maluca? Estás a ver­me de dedal e agulha?

MARGARIDA (sonhadora) Podíamos ter os dois um negócio...

ANTÓNIO (acende um novo cigarro apesar do outro ainda estar aceso. Irado) Margarida, eu não vou abraçar a profissão de modista!

MARGARIDA (a medo mas insistindo) Mas tu não vês que a costura nos está a dar mais dinheiro do que...

ANTÓNIO (interrompe­a) Obrigado por me lembrares que ganhas mais do que eu! (vira­lhe as costas) Boa noite! Tenho de estudar.

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MARGARIDA faz uma expressão de contrariedade. Ajeita­se na cama para adormecer mas, no instante em que fecha os olhos, ANTÓNIO recomeça a ler em voz alta.

ANTÓNIO (lendo) Ora... rotativa... rotativa

MARGARIDA fica de olhos abertos e com expressão de sofrimento enquanto ANTÓNIO continua a ler em voz alta e a fumar.

FIM DE CENA –

PASSAGEM DE TEMPO

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CENA 012/15. INT. – TIPOGRAFIA / SALA MÁQUINAS. TARDE. DIA 03 Engenheiro Ramires, Operário 4, Operário 5, António, Operários 1, 2 E 3

Na sala das máquinas, ANTÓNIO e vários OPERÁRIOS olham de soslaio para a sala de RAMIRES onde, de porta fechada, RAMIRES, sentado em frente da sua secretária, conversa com o OPERÁRIO 4 e o OPERÁRIO 5, que estão de pé, cabisbaixos, à sua frente. Os DOIS saem cabisbaixos da sala de Ramires, que se mantém sentado. Os OUTROS cercam­nos.

OPERÁRIO 5 Fomos despedidos. A seguir vão vocês!

TODOS se olham alarmados. ANTÓNIO toma uma decisão e, sem uma palavra, dirige­se ao escritório de Ramires. Bate à porta com os dedos e, sem esperar resposta, entra.

CORTA PARA –

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CENA 012/15. A INT. – TIPOGRAFIA/ ESCRITÓRIO. TARDE. DIA 03 Engenheiro Ramires, Operário 4, Operário 5, António, Operários 1, 2 E 3

ANTÓNIO (fechando a porta atrás de si) Dá licença, senhor engenheiro? Precisava de lhe dar uma palavrinha...

ENG. RAMIRES (sem tirar os olhos dos papéis que começara a ler) Já sei o que vens dizer­me... Queres que readmita os rapazes que acabei de pôr na rua! Pois, lamento muito, não o vou fazer. (olha­o fixamente) Precisas de mais alguma coisa?

ANTÓNIO (respira fundo e contém­se) Não, senhor engenheiro, muito obrigado.

ENG. RAMIRES (ameaçador) António, eu agradeço que não te metas onde não és chamado.

ANTÓNIO (saindo, perplexo) Muito obrigado, senhor engenheiro! Muito obrigado.

Na sala das máquinas os OUTROS esperam ANTÓNIO que se junta a eles desolado. Abana a cabeça negativamente e indica que a sua conversa com Ramires não teve resultados. TODOS se afastam cabisbaixos e preocupados.

FIM DE CENA –

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CENA 012/16. EXT. – DESCAMPADO / TERRENO. TARDE. DIA 03 Carlos, Luís, Márinho

Os TRÊS AMIGOS, ainda com as pastas da escola às costas, chegam ao descampado. CARLOS tem um ar sério. MÁRINHO e LUÍS expressões preocupadas e denunciadoras de medo.

MÁRINHO E quando é que nos vais contar o nosso plano secreto para atacarmos os espanhóis?

CARLOS Só quando formos atacar Olivença. Imagina que os espanhóis vos prendem e torturam, se não souberem nada, não dizem a ninguém.

LUÍS (como se fosse lógico) Ah! Claro! Eu acho bem!

CARLOS (decidido em voz de comando) Luís, rasga três folhas do teu caderno diário... vamos escrever cartas de despedida para os nossos pais.

LUÍS (alarmado) Mas eu não vou para lado nenhum.

CARLOS Vamos os três para a guerra! E se morrermos...

MÁRINHO Eu não quero morrer antes do Natal: o Menino Jesus vai trazer­me uma garagem da Lego!

CARLOS (como se fosse inevitável) Tens de escolher entre a garagem da Lego e seres herói... e os heróis estão todos mortos mas se morrermos a defender a pátria depois somos condecorados no 10 de Junho e talvez nos levem para o Jerónimos.

MÁRINHO e LUÍS entreolham­se com medo.

CARLOS (em voz de comando) Vá, vamos começar a vigia. Luís, tu vais para aquele lado... o Márinho vai para ali e eu fico aqui a controlar as situações.

Os TRÊS AMIGOS põem em prática as ordens de Carlos. Enquanto se movimentam ouve­se a voz do narrador e vêem­se as imagens da cena seguinte.

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NARRADOR (OFF) A verdade é que eu não tinha nenhum plano secreto para recuperar Olivença mas sabia que, inspirado pelos grandes heróis nacionais que já tinham derrotado os espanhóis, havíamos de vencer. Sentia­me invadido pelo espírito de Aljubarrota e a única coisa que eu tinha como certa é que a glória só viria se tivéssemos uma morte heróica.

CORTA PARA –

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CENA 012/17. EXT. – DESCAMPADO / SONHO. TARDE. DIA 03 Carlos, Márinho, Luís

INSERT ÁUDIO: durante toda a cena ouve­se em fundo Batalha, canta Luiz Piçarra, de Américo Cortês Pinto e João Nobre, “O melhor de Luiz Piçarra”, Emi

CARLOS está vestido como se fosse D. Nuno Álvares Pereira, o Condestável. Ao seu lado, MÁRINHO e LUÍS, olham­no aterrados.

MÁRINHO (cheio de medo) Já podemos ir para a batalha, D. Nuno Álvares Pereira?

CARLOS (em tom de comando) A Padeira de Aljubarrota já chegou?

LUÍS Está à espera que a última fornada saia...

CARLOS (em tom de comando) Somos apenas seis mil portugueses... mas vamos derrotar os espanhóis!

MÁRINHO Queres que avise a tua mãe?

CARLOS (dramático) Agora já é tarde.

MÁRINHO Pois é! E a minha mãe está à minha espera para me dar o lanche

CARLOS (dramático) Adeus, mãezinha, luto e morro pela pátria!

LUÍS (aproveitador) Se morreres posso ficar com os teus cromos do Tarzan?

MÁRINHO E eu quero ficar com os teus berlindes.

CARLOS (sempre em pose lutadora) Se alguém me roubar alguma das minhas riquezas, mato­o com a pá da padeira de Aljubarrota!

Enquanto eles lutam, ouve­se com maior intensidade o tema musical da cena.

FIM DE CENA –

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CENA 012/18. INT. – CASA LOPES/SALA COMUM . TARDE. DIA 03 Margarida, Isabel

ISABEL e MARGARIDA cosem calças de fazenda e ouvem rádio. INSERT ÁUDIO: Sonho, canta Madalena Iglésias, Carlos Canelhas, “O Melhor dos melhores de Madalena Iglésia”, Moviplay

ISABEL (depois de uns segundos de pausa) Foi bom a Clara ter­me dispensado para a ajudar. Ando para lhe perguntar uma coisa: a mãe sente­se realizada?

MARGARIDA (não percebe a pergunta) Não, filha, só tenho dores nas costas. Mas é natural, com tantas calças, tanto trabalho.

ISABEL (sorrindo) Não é isso: o que queria saber é se a mãe se sente satisfeita com a sua vida.

MARGARIDA (olha­a perplexa) O teu pai, nunca nos faltou com nada e vocês têm todos saúde...

ISABEL Sim... mas como é que a mãe se sente? Quando a mãe era nova, o que é que sonhava ser quando crescesse?

MARGARIDA (pensa) O que é que sonhava? Sonhava com o meu casamento e com a minha família.

ISABEL E para além disso?

MARGARIDA A família é o mais importante! Mas às vezes pensava em ter uma loja.

ISABEL (sorrindo) Claro, a mãe tem queda para os negócios...

MARGARIDA (orgulhosa) Não digo tanto, mas que gostava de montar um atelier de costura, isso sim! Só que o teu pai não gosta muito dessa ideia.

ISABEL Mas a mãe tem de pensar por si. Se lhe agrada a ideia do negócio, se tem capacidade para o

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fazer e que tem, paciência para o papá.

MARGARIDA Isso não é assim, Maria Isabel. Há coisas mais importantes do que aquilo que me agrada só a mim. (decidida) A harmonia do lar é sagrada!

ISABEL fica desapontada a olhar para MARGARIDA que, depois de ter sido tão decidida, acaba por ficar com dúvidas sobre o seu próprio discurso. FIM DE CENA

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CENA 012/19. INT. – UNIVERSIDADE / CORREDOR. TARDE. DIA 03 Lena, Toni, Estudantes

Num dos corredores da Faculdade de Direito vêem­se vários estudantes reunidos (mais rapazes do que raparigas). Entre eles estão TONI e LENA. Os estudantes fumam enquanto pintam faixas em tecido branco com palavras de ordem. Nessas faixas lê­se a palavras de ordem: “Abaixo a guerra”, “Autogestão da cantina”. TONI observa calado

TONI (para Lena pensativo) Também devíamos fazer um cartaz contra os espanhóis.

LENA (sem perceber) O que é que têm os espanhóis?

TONI (atrapalhado) Roubaram­nos Olivença. O meu irmão falou nisso ontem e...

LENA O teu irmão é parvo!

TONI (atrapalhado) O meu irmão é uma criança.

LENA (decidida) E pelos vistos, tu também. Estamos aqui é para lutar contra o imperialismo, contra a guerra em África, não é para perder tempo com parvoíces pequeno­burguesas! Sinceramente, até os padres como o Felicidade Alves estão contra a guerra e tu vens me falar dos espanhóis.

TONI fica confuso mas embevecido pela segurança demonstrada por Lena que continua a pintar as faixas de tecido. De repente, do fundo do corredor, aparece um ESTUDANTE a correr aflito.

ESTUDANTE (Aflito) Guardem tudo. Vem aí alguém.

LENA (Para Toni, aflita) Corre. Podem ser bufos.

Os ESTUDANTES enrolam as faixas que estavam a pintar e fogem. TONI foge também. LENA começa a correr mas ainda olha para trás e vê que se tinham esquecido em cima de uma mesa vários papéis com notas. LENA volta atrás apesar de no corredor já se ver um HOMEM mal­encarado com ar de bufo. TONI apercebe­se de que LENA pode ser apanhada. Inverte o sentido da corrida e volta para trás. Com força tira os papéis das mãos de LENA, mete­os no bolso do seu casaco, e puxa­a evitando que seja apanhada pelo BUFO. Correm os DOIS, TONI puxando­a sempre. Na corrida, acaba por rasgar (ou descoser) um bocado do casaco, junto à cava. Conseguem escapar. FIM DE CENA –

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CENA 012/20. INT. – TIPOGRAFIA / SALA MÁQUINAS. TARDE. DIA 03 António, Padre Victor, Operário 1, 2 e 3, Eng. Ramires

ANTÓNIO está encostado a uma máquina a fumar o seu cigarro. Tem uma expressão preocupada e mais preocupado fica quando vê o PADRE VICTOR, no seu traje habitual, a entrar na tipografia.

PADRE VICTOR (animado) Olá, António. Passei a noite a pensar no vosso problema e vim falar com o engenheiro.

ANTÓNIO (com medo) O Padre Antunes nunca se meteu nestas coisas.

PADRE VICTOR Eu respeito muito o padre Antunes... mas as coisas estão a mudar... e a igreja também.

ANTÓNIO (olha­o de alto a baixo) A igreja já mudou tanto que já nem os padres se vestem a preceito?

PADRE VICTOR (sorrindo) Nunca ouviste dizer que o “hábito não faz o monge”? (pausa, ganha coragem) Então, já posso ir falar com o teu patrão?

ANTÓNIO (depois de pensar... sorri) O senhor padre manda! Mas depois, não diga que eu não o avisei! O homem é fogo!

ANTÓNIO apaga o cigarro e sorri.

FIM DE CENA –

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CENA 012/21. EXT. – RUA LOPES /QUIOSQUE CAMÕES. FIM TARDE. DIA 03 Carlos, Luís, Marinho, Camões

Os TRÊS AMIGOS aproximam­se do quiosque com espadas de madeira nas mãos e umas caixas de papelão na cabeça a fazer de capacetes.

CARLOS Olá, senhor Camões. Vamos para a guerra.

CAMÕES (interessado) E vão lutar contra quem? Olhem que por aqui há poucos turras a quem limpar o sebo.

CARLOS (como se fosse lógico) Vamos reconquistar Olivença aos Espanhóis! (com dúvida) Eles não são pretos, pois não?

CAMÕES (venenoso) Não são brancos por fora e amarelos por dentro. E o amarelo é a cor da traição. De Espanha, nem bom vento, nem bom casamento.

LUÍS (orgulhoso) Vamos dar cabo deles. O Carlos diz que vamos reconquistar Olivença!

MÁRINHO (choroso) O Carlos quer que eu faça de Padeira de Aljubarrota, mas eu não quero!

CAMÕES Comporta­te como um verdadeiro português e luta com orgulho viril, pela unidade da nação. E como vocês são verdadeiros portugueses, e estão pela unidade nacional, antes de partirem para Olivença podiam vir comigo a uma manifestação no domingo.

CARLOS É uma manifestação contra os espanhóis?

CAMÕES É como se fosse! Assinala o dia de Goa, a jóia da Índia Portuguesa. É uma manifestação de apoio à unidade nacional que o novo presidente do conselho preconiza.

CARLOS (insiste) E isso quer dizer que o Sr. presidente do conselho também está a favor da conquista de Olivença?

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CAMÕES Claro! Estamos combinados para domingo?

TODOS apertam a mão de CAMÕES que sorri animado.

FIM DE CENA –

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CENA 012/22. INT. TIPOGRAFIA / SALA MÁQUINAS. FIM TARDE. DIA 03 Padre Victor, Eng. Ramires, Operários 1, 2 e 3, António

O PADRE VICTOR está sentado em frente do engenheiro RAMIRES que o observa de alto a baixo. Na sala das máquinas, ANTÓNIO e os outros OPERÁRIOS observam a cena através da porta de vidro expectantes.

CORTA PARA –

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CENA 012/22. A. INT. TIPOGRAFIA / ESCRITÓRIO. FIM TARDE. DIA 03 Padre Victor, Eng. Ramires, Operários 1, 2 e 3, António

ENG. RAMIRES (irónico) Muito bem! Então o senhor é que é o famoso prior Victor, o padre operário... é assim que lhe chamam, não é?

PADRE VICTOR (pouco à vontade) Prefiro que me tratem apenas pelo meu nome de baptismo. Victor, chega perfeitamente.

ENG. RAMIRES (indignado e crítico) O senhor prior vai­me desculpar mas eu fui educado a tratar os sacerdotes com respeito... sobretudo quando usam sotaina e cabeção!

PADRE VICTOR Trate­me como quiser, Ramires.

ENG. RAMIRES (seco) Eu também prefiro que me tratem pelo meu nome de baptismo que é senhor engenheiro!

PADRE VICTOR (atrapalhado mas corajoso) Muito bem Senhor engenheiro, ouvi dizer que vai despedir trabalhadores e eu, no cumprimento da minha missão pastoral, vim aqui explicar­lhe que...

ENG. RAMIRES (cínico) Na minha empresa eu é que dou as explicações, e o senhor, se quiser, dê explicações na paróquia que aqui sou eu.

PADRE VICTOR (levanta­se também, atrapalhado) Desculpe, mas a missão do sacerdote é transmitir a doutrina social da igreja e...

ENG. RAMIRES (levanta­se, doutoral) A sua missão como sacerdote é salvar almas! Não é interromper quem trabalha com doutrinas sociais!

RAMIRES olha para a sala das máquinas e vê que TODOS pararam de trabalhar e observam a cena atónitos. Abre a porta de rompante.

ENG. RAMIRES (aos gritos) O que é que estão a fazer? Eu pago­vos para

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mandriarem... toca a trabalhar, ou então, vai tudo para a rua!

ANTÓNIO e os OUTROS, cheios de medo e em silêncio, afastam­se e recomeçam a trabalhar.

ENG. RAMIRES (duro com o Padre Victor que não sabe como reagir) Estás a ver o que provocou com a sua simples presença? Se eu os despedir sem explicações, ficam todos a saber que a culpa é sua que lhes mete ideias comunistas na cabeça.

PADRE VICTOR (perplexo) Mas eu não sou comunista…

ENG. RAMIRES (não o deixa falar) Para mim você aprendeu no mesmo breviário do padre comunista da paróquia de Belém!

PADRE VICTOR Está a referir­se ao padre Felicidade Alves…

ENG. RAMIRES Estou a referir­me a ele, estou. Ponha­se a pau. Esse já foi afastado da paróquia e o senhor, se continua pelo mesmo caminho, não tarda tem a mesma sorte.

PADRE VICTOR (tenta explicar­se) O padre Felicidade manifestou­se contra a guerra do Ultramar e eu estou aqui por causa dos trabalhadores despedidos.

ENG. RAMIRES É tudo a mesma coisa. São atitudes comunistas. E eu não tolero essas brincadeiras. Nem o Patriarcado nem o Governo.

PADRE VICTOR (cada vez mais confuso) É como o senhor engenheiro quiser… mas ainda não conversámos sobre os operários que despediu…

ENG. RAMIRES (com um gesto dramático, abre a porta do escritório) Não conversámos nem vamos conversar. E digo­lhe uma coisa você dê­se por feliz porque eu não bato em homens de saias... (repara novamente nas calças do padre) principalmente quando andam de calças! (definitivo) Boa tarde!

FIM DE CENA –

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CENA 012/23. INT. – CAFÉ FÁNAN / BAR. NOITE. DIA 03 Fánan, António, Dino, Camões, Renato

Em cima do balcão vê­se o manual de instruções da máquina. ANTÓNIO conversa com DINO que ouve entusiasmado as últimas sobre a tipografia.

ANTÓNIO Eu já sabia que o engenheiro Ramires não era homem de levar desaforos para casa... mas nunca imaginei! Ele estava prestes a esganar o padre Victor!

DINO (divertido) E o padre? (ri) Borrou­se todo, não?

ANTÓNIO Se lá estivesses, acontecia­te o mesmo: o engenheiro estava uma verdadeira fera!

DINO Eu tentei avisar o padre...

ANTÓNIO Todos tentámos... mas os padres de hoje são assim. Vá lá que este é moderno mas ainda não lhe deu para se casar!

DINO (pensativo) Nunca se sabe...

ANTÓNIO Para falar com uma pessoa como o engenheiro, é preciso ir com pezinhos de lã... ele, não! Entra por ali à futrica, nem sotaina, nem cabeção, nem nada... é claro! Foi no que deu.

DINO E os rapazes que foram despedidos?

ANTÓNIO Estão despedidos! (preocupado) E o próximo sou eu!

DINO (farto) Que mania a tua! (puxa o manual) Ainda não decoraste isto?

ANTÓNIO (desesperado) Isto são instruções para doutores. Não são para pessoas como nós!

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DINO (com ar inteligente lê o manual) Isto é trigo­limpo, farinha amparo! : (lê) A chave da lubrificação central...

ANTÓNIO (interrompe) O que é a lubrificação central?

DINO (sem perceber) Então não se está mesmo a ver que é a lubrificação central?! Para a fazer tens de usar gordura sólida.

ANTÓNIO (tentando decorar) Gordura sólida!

DINO (continua a ler) Bem... também tens de ter atenção ao cilindro de borracha... muito cuidado, a superfície do cilindro de borracha deve estar sempre lisa!

FÁNAN (aproxima­se curioso: examina também ele o manual) Então, António, já aprendeste aqui alguma coisa sobre a máquina?

ANTÓNIO (a ver se ainda se recorda do que aprendeu) A superfície do cilindro de borracha lubrifica­se com gordura sólida.

DINO Não é nada disso!

FÁNAN (lendo) Pois não! Porque isso dá logo um problema na transmissão central.

ANTÓNIO (irado) Mas o Dino ainda não me tinha dito nada sobre a transmissão central!

DINO Porque ainda não tinha chegado a essa parte.

RENATO (aproxima­se) Ó António, o melhor é ser eu a ver essas instruções: estou habituado a desenrascar as avarias nos electrodomésticos!

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ANTÓNIO (irado) Mas a máquina de offset não é um electrodoméstico!

RENATO (muito parvo) Porquê? Isto não trabalha a electricidade onde é que está a diferença...

CAMÕES (aproxima­se e tira o livro de instruções a Renato) Dá cá isso, Renato! O melhor é ser eu a ler o livro, estou mais habituado com os segredos da língua portuguesa.

ANTÓNIO Isso não é para si, senhor Camões!

CAMÕES (ofendido) Tomaras tu, algum dia da tua vida, vires a ser um homem culto como eu sou! Eu sou um humanista, António. Eu sou um humanista percebeste tanto percebo de métrica, como de técnica...

ANTÓNIO (desesperado arranca o manual de instruções a Camões) Chega!Mais alguém tem alguma coisa a dizer sobre a nova máquina de offsete?

TODOS se calam! TODOS se entreolham.

TODOS acenam afirmativamente a cabeça. FÁNAN prepara­se para servir as bebidas.

FIM DE CENA –

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CENA 012/24. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. NOITE. DIA 03 Margarida, António, Carlos, Isabel, Toni

MARGARIDA acabou de pôr a mesa. ANTÓNIO fuma um cigarro em frente à televisão mas não está a ver nada: tem o olhar vago de quem tem demasiadas preocupações. CARLOS está sentado ao pé de ANTÓNIO a ler livros aos quadradinhos. ISABEL entra na sala com dois pratos de sopa, um em cada mão. MARGARIDA segue­a e aproxima­se da mesa, sentando­se.

MARGARIDA (bate as palmas) Lavaste as mãos Carlitos?

ANTÓNIO, sem uma palavra, levanta­se do sofá e senta­se à mesa. CARLOS e ISABEL imitam­no e sentam­se também.

CARLOS (mente) Lavei!

ISABEL (mete­se inquisitória) Quando?

CARLOS (farto) Deve ter sido há pouco tempo.

MARGARIDA (olha António à espera de uma reacção) António, manda lá o teu filho lavar as mãos...que ele a mim não ouve.

ANTÓNIO (farto) Se ele não quer ir, deixa­o! Parem de me chatear com essas piquinhices e deixem­me em paz que eu já tenho problemas que cheguem.

Enquanto MARGARIDA e ISABEL trocam um olhar perplexo por causa da reacção de António, CARLOS sorri vitorioso.

INSERT ÁUDIO: barulho da fechadura a abrir no hall.

TONI entra em casa atrapalhado com o casaco rasgado (ou descosido) junto à cava. Ganha coragem e dirige­se à sala.

TONI Olá.

CARLOS Olá, Toni.

ANTÓNIO (mal disposto) Quantas vezes é que tenho de dizer que quero toda a gente em casa a horas da refeição?

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TONI (atrapalhado e misterioso) Desculpe, pai. Distraí­me na universidade a fazer umas coisas.

ISABEL (repara no casaco de Toni) Devem ter sido umas coisas um bocado violentas… tens o casaco roto!

TONI (olha crítico para Isabel. atrapalhado) O casaco roto? Tenho? Que estranho, não tinha dado conta.

MARGARIDA (levanta­se para ver. agastada) Tens de ter mais cuidado. Como é que não deste conta? Isto não é descosido… é roto. É uma peça de roupa para o lixo… nem dá para ser cerzido.

CARLOS (inconveniente) Eu só rasgo a roupa quando ando à pancada.

TONI (tentando acabar com a conversa, tira o casaco e senta­se à mesa) Mas tu és parvo e eu não!

ANTÓNIO (enervado) Parvo ou não parvo, deste cabo de um casaco quase novo. Parece que não sabes os sacrifícios que fazemos para te mandar para a universidade.

MARGARIDA (lamentando­se) O casaco custou uma fortuna.

TONI (sem saber o que dizer) Desculpe, mãe. Não volta a acontecer.

ISABEL (tenta ajudar Toni) Então pai, como é que vão as coisas na tipografia?

ANTÓNIO (antes de responder olha para Margarida) Bem... para dizer a verdade, não andam muito bem, filha.

CARLOS O papá podia fazer greve, não achas, Toni?

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MARGARIDA (olha crítica para Toni) Já viste? Já viste as coisas que tu ensinas ao teu irmão mais novo? O Carlitos é uma criança,

TONI (mais aflito) Eu quase que não falo com ele!

CARLOS (animado percebendo que aquilo que disse fez efeito) Eu vou fazer mais greves! O Márinho e o Luís também estão de acordo... as greves não podem ser só para os grandes como o Toni que já estão na universidade.

ANTÓNIO (autoritário) Carlitos, cala a boca e come a sopa . (retoma a conversa com Isabel) O Engenheiro Ramires comprou uma máquina nova lá para a Tipografia...

MARGARIDA (não quer aquela conversa) António, olha a sopa a esfriar.

ANTÓNIO (continua) Mas a máquina é infernal... é alemã... faz quase tudo é muito diferente da outra.

ISABEL (animada) Que moderno...

FIM DE CENA –

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CENA 12/25. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES. NOITE. DIA 03 Carlos, Toni

TONI e CARLOS estão deitados, cada um em sua cama: TONI lê As Quadras de António Aleixo e CARLOS a revista Tintim. CARLOS observa com atenção o casaco roto de TONI.

CARLOS Toni, se não andaste à pancada, como é que rompeste o casaco?

TONI (depois de hesitar por segundos) Sabes guardar um segredo?

CARLOS (excitado, senta­se melhor na cama) Claro! (faz um gesto indicando que fecha a boca com um fecho éclair) Da minha boca não sai: zzzztte!

TONI Não podes contar nada a ninguém, nem à mamã, nem aos teus amigos.

CARLOS (dramático) Eu sou um túmulo!

TONI Não andei à tareia mas quase… tive de fugir de uns tipos, que pareciam uma espécie de polícias e rasguei o casaco.

CARLOS (fica maravilhado) Fugiste da polícia?

TONI (com falsa modéstia) Tive de dsalvar uma rapariga...

CARLOS Estiveste numa manifestação?

TONI (cada vez mais fanfarrão) Não! Era uma reunião contra a guerra e contra o imperialismo!

CARLOS Afinal, sempre estás contra os espanhóis e a favor da reconquista de Olivença?

TONI Não sejas parvo! Eu sou contra a guerra e o imperialismo americano.

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CARLOS (interrogativo) Por causa deles estarem na base das Lajes?

TONI Não! Por causa do Vietname!

CARLOS Mas o Vietname não é português!

TONI (farto) Isso é tudo igual. Vá dorme.

CARLOS (depois de uma pausa) Eu também tenho um segredo! Posso contar­te se tu não disseres nada a ninguém, nem à mamã, nem aos teus amigos.

TONI Não conto a ninguém.

CARLOS Eu também sou patriótico e também vou a uma manifestação contra o imperialismo... vais ver o que eu faço aos polícias se me baterem.

TONI (sorri e não o leva a sério. Retoma a leitura) Está bem... depois contas­me como foi.

CARLOS fica pensativo enquanto se ouve o Narrador.

NARRADOR (off) Nunca me tinha sentido tão perto do meu irmão mais velho. Ao fim de tantos anos de discórdia, de lutas de almofadas e de puxões de orelhas, tínhamos um sonho comum: estávamos ambos empenhados em dar cabo dos imperialistas de todo o mundo, fossem eles americanos ou espanhóis! A bem da Nação!

FIM DE CENA –

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CENA 012/26. INT. – CASA LOPES / QUARTO CASAL. NOITE. DIA 03 António, Margarida

ANTÓNIO dá corda ao relógio e pousa­o em cima da mesa­de­cabeceira. MARGARIDA dá­lhe um beijo e vira­se de costas para dormir.

ANTÓNIO (depois de uma pausa) O que é que achas, Guida? Achas que a nossa solução é a greve.

MARGARIDA (levanta­se de rompante e com uma expressão facial indica que António deve falar mais baixo) Achas que isso são coisas que se digam?

ANTÓNIO Alguma coisa temos de fazer... senão, o Ramires põe tudo na rua.

MARGARIDA Põe­vos na rua se fizerem greve. Isso sim!

ANTÓNIO O Padre Victor acha que...

MARGARIDA (interrompe­o) Não me fales do Padre Victor, eu desconfio de padres que não andam de saias!

ANTÓNIO Mas olha que parece boa pessoa!

MARGARIDA (desconfiada) Quem vê caras, não vê corações! E desde que o Padre chegou a este bairro, anda tudo alvoraçado! As verdades são para se dizer, António, e a verdade é que no tempo do Padre Antunes, vivíamos todos em paz e sossego!

ANTÓNIO O Padre Antunes é um santo, ninguém lhe tira isso, mas já está a ficar velhote e...

MARGARIDA (cada vez mais aflita) ... e, nunca se meteu em política, abençoado!

ANTÓNIO Fazer greve não é política... (pensa) E talvez o Ramires ceda!

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MARGARIDA (estupefacta com António) Ceda? Só se for o Ramires aceder a chamar a polícia para vos mandar para Caxias! Cismaste que te iam despedir mas a verdade é que o engenheiro nunca te disse nada. Fala com ele.

ANTÓNIO (farto) Fala com ele, fala com ele... e ele ouve­me, por acaso?! Não ouve! Está­se nas tintas.

MARGARIDA (decidida) A máquina vem este fim­de­semana, não é?! Apresentas­te lá e perguntas­lhe directamente o que está a pensar fazer contigo!

ANTÓNIO E se ele me despede? O que é que eu faço, Guida?! E não me venhas com a história da costura, que já estou a ficar farto.

MARGARIDA (zangada) Não te percebo, António, ganhaste azar às calças... mas elas têm­nos dado bom dinheiro! És Ingrato!

MARGARIDA vira­se de costas para ANTÓNIO e os dois ficam amuados.

FIM DE CENA –

PASSAGEM DE TEMPO

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CENA 012/27. INT. – DESCAMPADO / TERRENO. MANHÃ. DIA 04 Carlos, Márinho, Luís

É sábado: LUÍS e CARLOS estão de cócoras junto ao camião. Junto a si vê­se um lençol velho já rasgado e uma lata de tinta aberta. Os DOIS pintam uma coisa que não se vê o que é sobre o lençol.

LUÍS (atento) Eu acho que se escreve com “xis”.

CARLOS Não: é com “cê” “agá”. (alegre) Quando os espanhóis lerem isto vão morrer de medo.

LUÍS E tens a certeza de que nos devolvem Olivença?

CARLOS Claro! Eles ainda não esqueceram da Padeira de Aljubarrota!

MÁRINHO surge carregado com dois paus de vassoura.

MÁRINHO Já cheguei: (Mostra os paus). Roubei­os à minha mãe. Um é da vassoura, outro da escova.

CARLOS E se a tua mãe descobrir que a roubaste?

MÁRINHO (encolhe os ombros) Quando ela descobrir, já nós estamos mortos.

CARLOS (concordando) Pois é! Vá, vamos colá­los.

Os TRÊS concentram­se na operação de colagem dos paus ao lençol velho.

FIM DE CENA –

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CENA 012/28. INT. – CAFÉ DO FÁNAN / BAR. MANHÃ. DIA 04 António, Dino, Padre Victor, Fánan

ANTÓNIO conversa com cumplicidade com DINO enquanto bebem uma macieira.

ANTÓNIO Quando ele menos esperar, Dino, espeto­lhe com as verdades por ele acima.

DINO E ele espeta­te com o despedimento por ti abaixo que até andas de roda.

ANTÓNIO Ele vai­me despedir de qualquer maneira... ao menos, saio aliviado e de cabeça levantada!

DINO (incrédulo) Há­de te servir de muito, António!

O PADRE VICTOR entra.

PADRE VICTOR Bom dia a todos!

DINO e ANTÓNIO acenam. FÁNAN aproxima­se divertido.

FÁNAN Então, reverendo, vai um copinho para aliviar as mágoas?

PADRE VICTOR Já te pedi para não me tratares assim, Fánan!

FÁNAN (divertido) Pensei que, depois de ter falado com o engenheiro Ramires, tivesse mudado de opinião... diz­se por aí que ele tem uma oratória que até põe os padres mudos. (desata a rir)

PADRE VICTOR Então, António, alguma novidade na tipografia? Lamento muito não ter podido ser mais útil...

ANTÓNIO Sr. Padre fez mais do que a sua obrigação. Maior parte dos padres que nem sequer se davam ao trabalho.

PADRE VICTOR E tu? O que é vais fazer?

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ANTÓNIO Vou falar com o enngenheiro olhos nos olhos com o engenheiro. (desalentado) Ele não ouve ninguém. Mas pelo menos, desta vez, não fico calado.

PADRE VICTOR (dando­lhe uma palmada cúmplice nas costas) Boa sorte! Que Nossa Senhora te acompanhe!

DINO (trocista) O padre tem razão: é melhor ir com Nossa Senhora. Diz que o Ramires tem muito respeito às pessoas que usam saias! (olha as calças do Padre Victor e tem um ataque de riso), já os que usam calças...

PADRE VICTOR (olha­o desagradado) Bom dia a todos! Boa sorte, António.

O PADRE VICTOR sai e TODOS riem.

FIM DE CENA PASSAGEM DE TEMPO

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CENA 012/29. INT. – CASA LOPES /CASA DE BANHO. NOITE. DIA 04 Margarida, Isabel

INSERT ÁUDIO: Sonho, canta Madalena Iglésia, Carlos Canelhas A casa está silenciosa, todos dormem, e MARGARIDA aproveita para ler um livro de contabilidade sentada na borda da banheira.

INSERT ÁUDIO: batem à porta.

MARGARIDA assusta­se. Esconde o livro atrás das costas.

MARGARIDA Quem é?

ISABEL (off) Sou eu, mãe!

MARGARIDA abre a porta, mantendo o livro atrás das costas.

ISABEL (estranhando) O que é que está aqui a fazer a estas horas?

MARGARIDA (incomodada) Estava aqui a ler um livro.

ISABEL (perplexa) A mãe está fechada na casa de banho de madrugada a ler?

MARGARIDA (mostra o livro de contabilidade que tem atrás das costas) Estou a realizar­me, como tu dizes.

ISABEL sorri mas ainda não compreendeu o que se passa.

MARGARIDA Fiquei a pensar na nossa conversa doutro dia... tens razão tenho jeito para os negócios mas, para isso, tenho de estudar! (preocupada) O pior é o teu pai: só de me ouvir falar de negócios fica logo com pele de galinha!

ISABEL Por isso é que eu acabei o namoro com o Rui! Sempre que eu queria fazer uma coisa por mim, sem ele, fazia­me uma cena.

MARGARIDA Mas com os namoros acaba­se! Os casamentos não!

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ISABEL Os homens são muito orgulhosos!

MARGARIDA (de repente deixa de estar cúmplice com Isabel) O teu pai não é como os outros. (animada) E eu hei­de arranjar maneira de o convencer a deixar­me ter um negócio.

ISABEL (sorri cúmplice) No fundo, a mãe anda a pensar numa maneira de enganar o pai, não é?

MARGARIDA Não! Ando a pensar na melhor forma de o trazer à razão! Não é com fel que se apanham moscas! E entretanto, estudo contabilidade. (desolada) O pior é que não entendo nada. Tu sabes o que quer dizer... (lê no livro com dificuldade) superavit?

ISABEL É o dinheiro que sobra, mãe!

As DUAS continuam a conversa. MARGARIDA está encantada.

FIM DE CENA –

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CENA 012/30. EXT. – RUA LOPES / RUA .TARDE. DIA 05 Camões, Luís, Márinho, Carlos

É domingo. Os TRÊS AMIGOS caminham a passo largo à frente de CAMÕES que tem dificuldade em segui­los. Mantêm o lençol enrolado às costas.

MÁRINHO/LUÍS/CARLOS Unidade nacional! Unidade nacional!

CARLOS (pára e olha Camões) Venha lá, Sr. Camões... mais depressa!

CAMÕES (agita as mãos tentando que eles o esperem) Calma, rapazes, calma... eu não tenho a vossa idade.

Os TRÊS AMIGOS continuam a andar e a dizer palavras de ordem.

FIM DE CENA –

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CENA 012/31. EXT. – RUA TIPOGRAFIA / FACHADA. TARDE. DIA 05 António

ANTÓNIO chega nervoso junto à entrada da tipografia. Atira a beata do cigarro que vinha a fumar para o chão e pisa­a com força. Levanta os olhos e repara que na porta está afixado um letreiro onde se lê:

INSERT VÍDEO: “Vende­se máquina Minerva em perfeito estado de conservação. Informações nesta morada”.

ANTÓNIO abana a cabeça contrariado e, decidido, entra na tipografia.

CORTA PARA –

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CENA 012/32. INT. – TIPOGRAFIA / SALA MÁQUINAS. TARDE. DIA 05 António, engenheiro Ramires, dois técnicos

O engenheiro RAMIRES observa a instalação da máquina nova por dois técnicos especializados. RAMIRES está tão absorto com a máquina nova que nem se apercebe da chegada de ANTÓNIO que ganha fôlego para o abordar.

ANTÓNIO (sério) Boa tarde, senhor engenheiro?

RAMIRES (surpreendido olhando António) Tu, por aqui a uma domingo à tarde? (sorri julgando ter percebido) Não aguentaste a curiosidade e para ver a máquina nova, hem?

ANTÓNIO (sorriso amarelo) É precisamente por causa da máquina que estou aqui preciso falar consigo, se não for incómodo.

RAMIRES (já exaltado) Se é para conversarmos sobre os despedimentos, meu amigo, podes dar meia volta que não há mais nada a conversar.

ANTÓNIO (atrapalhado) Mas, senhor engenheiro...

RAMIRES (exaltado) Já basta o que me armaram com esse padre vermelho... O que me apetecia era denunciá­lo à Pide.

ANTÓNIO (aflito) O padre é bem intencionado....

RAMIRES (mais exaltado) Também eu sou bem intencionado mas isso não me autoriza a meter­me na vida dos outros. Os despedimentos não são da conta dos padrecos, nem da tua.

ANTÓNIO (a medo) A não ser que o senhor engenheiro também me queira despedir a mim.

RAMIRES (acalma­se e olha­o surpreendido) Porque é que eu havia de te despedir?

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ANTÓNIO (encolhendo os ombros) Outro dia disse que quem não soubesse trabalhar com a máquina nova, ia para a rua... e, para lhe ser sincero, andei a estudar o manual de instruções e... (escolhe as palavras) ainda estou muito verde!

RAMIRES (com bonomia) Estás parvo, António?! Eu conto sempre contigo! Tens um emprego fixo, fazes os descontos através do Estado e eu poupo... corro riscos mas, pelo menos, nos teus descontos poupo.

ANTÓNIO (começa a ficar animado) Isso quer dizer que não vou ser despedido?

RAMIRES Quer dizer que tens de arranjar mais tempo para a tipografia porque vou aumentar­te as responsabilidades... e o ordenado, claro!

ANTÓNIO (mais animado) O ordenado também?

RAMIRES Tu conheces­me António: Sabes perfeitamente que eu sou um homem justo, António.

ANTÓNIO (faz uma expressão de quem o conhece demasiado bem... mas está animado. Aproxima­se da máquina) O senhor engenheiro sabia que esta máquina só se pode limpar a máquina com lubrificante sólido?

RAMIRES (animado) Tecnologia alemã! Não mete água!

ANTÓNIO continua a ensinar ao engenheiro RAMIRES o que aprendeu sobre a máquina. Os DOIS conversam animados. ANTÓNIO perdeu o seu ar pesaroso e preocupado e sorri.

FIM DE CENA –

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CENA 012/33. – CHROMA­KEY / MANIFESTAÇÃO. DIA 05 Carlos, Luís, Marinho, Camões

ARQUIVO RTP – uma qualquer manifestação de apoio ao regime ­ de preferência se houver imagens, do dia de Goa em 1968 ­ em que se ouça um político (Marcelo Caetano ou o ministro do Ultramar, Adriano Moreira) referir a importância da unidade nacional (o discurso de tomada de posse de Marcelo Caetano refere este facto, simplesmente, o discurso acontece na Assembleia da República, à época, Assembleia Nacional. Se não for possível encontrar uma manifestação de rua em que se encontre um discurso sobre o tema, usar as imagens de manifestação pública com o discurso mencionado em off)

CARLOS, LUÍS e MÁRINHO estão no meio dos manifestantes e gritam, como todos os outros, “UNIDADE NACIONAL”. Ainda não desfraldaram o seu lençol. CARLOS lembra­se do placard que tinham pintado. Chama os AMIGOS e os TRÊS juntos desfraldam o lençol onde se lê: (deve ser escrito com erro)

ABACHO O IMPERIALISMO!

FIM DE CENA –

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CENA 012/34. INT. – CASA LOPES / COZINHA. NOITE. DIA 05 Margarida, Isabel

MARGARIDA prepara o jantar e ISABEL ajuda­a.

MARGARIDA (preocupada) Estou a estranha o teu irmão Carlos não aparecer para lanchar. Deve estar em casa do Luís...e se telefona­se­mos

ISABEL Também podemos esperar mais um bocadinho...

MARGARIDA (amargurada) Esperar, esperar... a minha vida é sempre assim. Estou aqui ralada com o teu pai, que também não diz nada e...

INSERT ÁUDIO: porta da rua a abrir.

MARGARIDA (animada, limpa as mãos no avental e sai correndo em direcção ao hall) Olha é ele. Eu já volto.

CORTA PARA –

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CENA 012/35. INT. – CASA LOPES/ HALL. NOITE. DIA 05 Margarida, António

ANTÓNIO, muito sorridente, põe o casaco e as chaves de casa no bengaleiro. MARGARIDA aproxima­se preocupada.

MARGARIDA (ansiosa) Demoraste tanto. O que é que aconteceu?

ANTÓNIO (sorrindo) Estive a ensinar o engenheiro a trabalhar com a máquina nova.

MARGARIDA (perplexa) E o que é que isso quer dizer? Que ele te despediu e que ainda por cima te obrigou a ensinar­lhe o que ele não sabe?

ANTÓNIO (orgulhoso) Isto quer dizer que o teu maridinho, não só não vai ser despedido, como vai ser aumentado!

MARGARIDA atira­se nos braços de ANTÓNIO e beija­o repenicadamente.

MARGARIDA Estás a brincar. Vês, vês como tu és? Eu disse­ te que ele não tinha coragem de te despedir... tu, sozinho, vales por mil empregados alemães.

ANTÓNIO (afastando­a preocupado) Sinto­me mais aliviado... mas e os outros dois rapazes que foram despedidos?

MARGARIDA Coitados! Mas, olha, António, sinceramente, antes eles do que tu. O que é que tu podias fazer...nada?!

ANTÓNIO Podíamos ter feito greve!

MARGARIDA (aflita) Ai, António, tu não digas essas coisas que as paredes têm ouvidos! Tu queres ir para a cadeia? (muda de assunto) Já temos problemas que cheguem: o Carlitos foi brincar com os amigos e ainda nem lanchou.

ANTÓNIO Quem não come por ter a barriga cheia... (sorri e vai para a sala)

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FIM DE CENA – PASSAGEM DE TEMPO

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CENA 012/36. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. NOITE. DIA 05 Margarida, António, Isabel

Visivelmente satisfeito, ANTÓNIO, sentado no sofá, delicia­se com um copo de vinho de tinto. Observa a sua cor antes de o beber. ISABEL acaba de pôr a mesa. MARGARIDA entra aflita na sala.

MARGARIDA António, faz qualquer coisa. O teu filho não aparece.

ANTÓNIO Telefona para casa do Márinho.

ISABEL (também aflita) Já lá fui, papá. Mas a mãe dele também não sabe onde é que ele anda.

ANTÓNIO Se não está em casa do Márinho, deve estar com o outro miúdo... como é que se chama o caixa de óculos?

MARGARIDA (mantém a preocupação) Os pais do Luís também estão consumidos com preocupação. O rapaz também não aparece e também não lanchou.

ANTÓNIO pensa por segundos. INSERT ÁUDIO: campainha da porta.

ANTÓNIO (sorrindo, como se tivesse resolvido mais um caso complicado) Ele aí está...

MARGARIDA corre para o hall. ISABEL e ANTÓNIO seguem­na.

FIM DE CENA –

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CENA 012/37. INT. – CASA LOPES / HALL. NOITE. DIA 05 António, Margarida, Camões, Isabel

MARGARIDA abre a porta e sem esperar pelo convite, CAMÕES entra­lhe em casa com ar sério.

CAMÕES Boa noite, dona Margarida... dá­me licença?

MARGARIDA (desapontada) (anda espreita para o exterior) Por acaso não viu o meu Carlitos na rua? O miúdo não aparece para jantar.

CAMÕES É por isso mesmo que estou aqui! O Carlos foi preso! Está no Governo Civil!

MARGARIDA agarra­se a ANTÓNIO para não desmaiar. ISABEL morde os dedos de nervosismo.

ANTÓNIO (tenta manter a calma) O meu Carlos Manuel foi preso?

CAMÕES (tenta minorar o problema) Foi, mas devem estar a soltá­lo. A manifestação em que estávamos era autorizada.

ANTÓNIO (“cresce” para Camões) Você levou uma criança de oito anos para uma manifestação sem o nosso consentimento?

CAMÕES Ele e os amigos, o Márinho e o Luís, disseram que os pais os deixavam...

MARGARIDA (exaltada) E desde quando é que você é do reviralho, Camões?

CAMÕES (ofendido) Dona Margarida eu sou um republicano de pura linhagem, estou contra o 28 de Maio, mas no que diz respeito à unidade nacional, concordo com o Regime: Portugal vai do Minho a Timor!

ANTÓNIO (“cresce” de novo para Camões) E se fizerem mal ao meu menino, você Camões, é mesmo a Timor que vai parar tamanho é o murro que lhe vou aplicar nos queixos!

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A discussão continua. ANTÓNIO quer sovar CAMÕES. MARGARIDA e ISABEL interpõem­se e CAMÕES encolhe­se com medo, tentando no entanto explicar­se mas sem o conseguir.

FIM DE CENA –

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CENA 012/38. INT. – GOVERNO CIVIL / SALA.NOITE. DIA 05 Luís, Carlos, Márinho

MÁRINHO e LUÍS estão aterrados sentados junto um do outro. CARLOS passeia pela sala com ar pensativo e grave. Mantém o comando das operações.

CARLOS (sério) Não se esqueçam: se nos torturarem não revelamos nada.

MÁRINHO Eu não quero ser torturado.

CARLOS Quem eu mas temos de nos portar como os heróis dos filmes: aguentar firme de boca calada!

LUÍS Tens a certeza que estes polícias são espanhóis? Eles falam perfeitamente português.

CARLOS Falam português porque são espanhóis disfarçados de portugueses. Eles são muito espertos... é natural: são imperialistas!

MÁRINHO Eles disseram que iam contar à minha mãe e aos vossos pais...

CARLOS Isso é tudo mentira. É um truque para contarmos os nossos planos.

MÁRINHO e LUÍS concordam.

MÁRINHO Quanto tempo é que vamos ficar aqui presos?

CARLOS Pouco! Vão perceber rapidamente que nós não vamos contar os nossos planos e por isso matam­nos.

LUÍS (alarmadíssimo) Eu não quero morrer!

CARLOS (animado) Não se preocupem: já tenho um plano para fugirmos. (mostra um canivete suíço que tira do

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bolso dos calções)

MÁRINHO Isso é que um plano? Esse canivete é bom para cortar marmelada para pôr no pão... mas não serve para nos tirar daqui.

CARLOS Serve, serve. Eu vou escavar um túnel para sairmos daqui.

CARLOS põe­se em acção: de cócoras num canto da sala começa a raspar a parede. LUÍS e MÁRINHO aproximam­se dele.

CARLOS (em voz de comando) Vocês ficam de vigia! Marinho e Luís para a porta!

MÁRINHO e LUÍS escondem CARLOS com os corpos e viram­se de costas para ele e de frente para a sala onde estão detidos.

FIM DE CENA –

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CENA 012/39. INT. – CASA LOPES / SALA .NOITE. DIA 05 Margarida, António, Isabel, Camões

MARGARIDA chora. ISABEL também. ANTÓNIO anda nervoso de um lado para o outro. CAMÕES está todo degolado e mal arranjado: percebe­se que ANTÓNIO conseguiu mesmo dar­lhe uns abanões.

MARGARIDA (benzendo­se) António, o que é que a gente vai fazer à nossa Vida? E se nos levam o menino para o reformatório? Ou para o Tarrafal, sabe­se lá! Faz qualquer coisa.

ANTÓNIO (decidido, põe o casaco que estava no bengaleiro, pega nas chaves) Vou buscar o Carlos ao Governo Civil! E se não me deixarem trazer o meu filho, Camões... (aos gritos para Camões) vazo­lhe os dois olhos, seu zarolho!

CAMÕES encolhe­se. MARGARIDA empurra ANTÓNIO para o exterior.

MARGARIDA Vai com Deus, António... e não te demores.

ANTÓNIO sai. CAMÕES não sabe o que há­de fazer.

ISABEL (crítica para Camões) Acha bem o que fez? Acha bem aproveitar­se da ingenuidade das crianças?!

CAMÕES (tenta defender­se) Mas eu também não sabia que eles iam fazer um cartaz a dizer “Abaixo o imperialismo!”

MARGARIDA (exaltada, “cresce” para Camões) Não me venha com palavras caras, olhe que se eu perco as estribeiras, sou menina para o rachar em dois!

CAMÕES (saíndo a porta muito encolhido) Margarida, se me dá licença, eu retiro­me... não quero incomodar mais!

MARGARIDA e ISABEL (autoritárias, indicando a porta) Rua!

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CAMÕES (retirando­se) Muito boa noite para todos!

FIM DE CENA – PASSAGEM DE TEMPO

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CENA 012/40. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. NOITE. DIA 05 Margarida, Isabel, Toni, Carlos, António

MARGARIDA reza o terço sentada no sofá. ISABEL anda de um lado para o outro. TONI entra na sala. A mesa continua posta percebendo­se que ainda ninguém jantou.

TONI (a medo) Mãe... estou cheio de fome. Podíamos ir jantando.

MARGARIDA (levanta­se do sofá irada. “cresce” para Toni) Como é que te atreves a falar em comida quando o teu irmão ainda nem sequer lanchou? A culpa é tua. Andas com a mania das políticas e metes coisas na cabeça do menino.

TONI (contrariado) Só faltava mais esta: o Carlos é que faz as asneiras e a culpa é minha.

INSERT ÁUDIO: barulho da porta a abrir­se. TODOS ficam parados com medo. ANTÓNIO entra na sala segurando CARLOS pela orelha.

MARGARIDA (atira­se para cima de Carlos beijando­o) Meu menino, meu rico filho... fizeram­te mal?

CARLOS (torcendo­se porque António não lhe larga a orelha mas com grande à vontade) Não! O pai chegou tão cedo que não deu tempo para nos torturarem!

ANTÓNIO dá um bofete a CARLOS que se encolhe.

ANTÓNIO (muito sério) Vais explicar­me tim­tim por tim­tim a barracada que armaste com os teus dois amiguinhos.

CARLOS Nós não fizemos nada de mal. Nós só fomos a uma manifestação. E estava lá muita gente a gritar Unidade Nacional!

ANTÓNIO (irado) E tu, o que é que tu fizeste, meu menino?

CARLOS Nada! Abrimos o cartaz que tínhamos pintado e

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ficaram todos furiosos e chamaram a polícia.

ISABEL (irada também, “cresce” para Carlos) O que é que dizia o cartaz, palerma?

CARLOS Dizia abaixo o imperialismo!

ISABEL dá um carolo em CARLOS que se encolhe.

ANTÓNIO (olha furioso para Toni) Este miúdo é um inconsciente, mas a culpa é toda daquele finório ali.

TONI (encolhendo­se) Minha?

ANTÓNIO Sim, tua! O Carlos andou pela manifestação a gritar “abaixo a ditadura”.

TONI (aproxima­se e dá um bofete a Carlos) Estúpido!

Depois de lhe ter batido, TONI sorri. MARGARIDA perde a cabeça e dá um carolo em CARLOS que, mais uma vez se encolhe.

ANTÓNIO (para Toni) Estás a rir de quê, parvalhão? Passei as passas do Algarve para tirar de lá o miúdo sem que os polícias se pusessem com mais perguntas. Eu sou funcionário público. Vivemos num bairro social. Já pensaste no que nos pode acontecer se tivermos problemas com a polícia? Aqui não se fala mais em ditaduras! Sabes que o teu irmão é muito influenciável!

TONI (atrapalhado) Eu não abro mais a boca.

MARGARIDA (desesperada) Ó Carlitos, e a que propósito é que veio essa conversa da ditadura?

CARLOS Foi o Toni que disse que os espanhóis vivem em ditadura e como o Luís, o Márinho e eu estamos contra o imperialismo espanhol que nos roubou Olivença... pensámos que era tudo a mesma coisa.

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ANTÓNIO Cama!

CARLOS E o jantar?

ANTÓNIO Jantas amanhã!

CARLOS vai pesaroso para a cama arrastando os pés. A família ainda não está refeita do susto. Depois de uns breves segundos TODOS se sentam à mesa.

FIM DE CENA –

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CENA 012/41. INT. CASA LOPES / QUARTO RAPAZES. NOITE, DIA 05 Carlos

CARLOS está sentado em cima da cama com uma expressão desalentada.

NARRADOR (OFF) E foi assim, sem glória, que acabou a minha campanha contra os espanhóis e a favor da reconquista de Olivença. Pouco a pouco fui perdendo o interesse na Unidade Nacional e na ideia de um Portugal que se estendia do Minho a Timor... No entanto, e tudo tem o seu lado positivo, os nossos esforços patrióticos e as aventuras que eles nos levaram a viver, granjearam­nos algum respeito no bairro e durante uns tempos fomos objecto de admiração: éramos inimigos públicos, carne de presídio e perigosos foragidos com ficha na polícia.

FIM DE CENA –

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CENA 012/99. FICHA TÉCNICA / IMAGENS DE ARQUIVO

MONTAGEM IMAGENS: A imagem fixa­se na expressão sonhadora de CARLOS em cima da cama. A imagem passa a preto e branco. Vê­se de novo Carlos e os amigos na manifestação (cena 012/38). Depois, estas imagens passam a ser alternadas com imagens das tropas portuguesas a embarcar no Cais Rocha Conde de Óbidos.

INSERT ÁUDIO: Na hora da despedida, Ada de Castro, Aníbal Nazaré e Manuel Paião, O Melhor dos Melhores, Melodias de sempre”

Sobre todas estas imagens e a ficha técnica deve apenas ouvir­se este tema

FIM DE CENA –

FIM DO EPISÓDIO