Dom Quixote Reencontra Sancho Pança – Relações Internacionais e Direito Internacional antes,...

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 Introdução Este artigo objetiva analisar a relação entre as disciplinas de Rela- ções Intern acionais 1 e Direito Internaci ona l 2 em persp ecti va hist óri- ca, com o intuito de melhor interpretar a reaproximação observ ada entre as mesmas ao final da Guerra Fria. Como afirmou Friedrich Kratochwil (2001:15): “Precisam en te porque a distinção de Car r entre‘realismo’ e ‘id eal is- mo’te m lo gr ado ta nt o sucesso emservirdesu po rt eace rt osco mp ro - missos substantivos , ela estabeleceu as bases para que ‘realismo’ e ‘legal ismo’informassem Relações Internacionais e Direito Interna- cional no qu e se re fe re às suas pr óp rias co mp re en sões en qu an to dis- 101 * Artig obaseado em disse rtaçã o de Mestr ado homô nima,aprov ada peloInstitut o de Relaçõ es Inter nacio - nais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio) em março de 2005. **Artigo recebido em dezembro de 2005 e aprovad o para publicação em janeiro de 2006. ***Mestre em Relações Internacionais pelo IRI/PUC-Rio e professor do IRI/PUC-Rio. CONTEXTO INTER NA CION AL Rio de Janei ro, vo l. 28, n o 1, janeiro/junho 2006, pp. 101-166. Dom Quixote Reencontra Sancho Pança – Relações Internacionais e Direito Internacional antes, durante e depois da Guerra Fria* ** Igor Abdalla Medina de Souza***

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  • Introduo

    Este artigo objetiva analisar a relao entre as disciplinas de Rela-es Internacionais1 e Direito Internacional2 em perspectiva histri-ca, com o intuito de melhor interpretar a reaproximao observadaentre as mesmas ao final da Guerra Fria. Como afirmou FriedrichKratochwil (2001:15):

    Precisamente porque a distino de Carr entre realismoe idealis-motem logrado tanto sucesso em servir de suporte a certos compro-missos substantivos, ela estabeleceu as bases para que realismo elegalismo informassem Relaes Internacionais e Direito Interna-cional no que se refere s suas prprias compreenses enquanto dis-

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    * Artigo baseado em dissertao de Mestrado homnima, aprovada pelo Instituto de Relaes Internacio-nais da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio) em maro de 2005.**Artigo recebido em dezembro de 2005 e aprovado para publicao em janeiro de 2006.***Mestre em Relaes Internacionais pelo IRI/PUC-Rio e professor do IRI/PUC-Rio.

    CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 28, no 1, janeiro/junho 2006, pp. 101-166.

    Dom QuixoteReencontra SanchoPana RelaesInternacionais eDireito Internacionalantes, durante e depoisda Guerra Fria* **Igor Abdalla Medina de Souza***

  • ciplinas. Desconstruir esta histria disciplinar , portanto, um dosprimeiros passos na direo de uma anlise terica mais frutfera dapoltica internacional e do Direito Internacional.

    A anlise em perspectiva histrica necessria para evitar que o estu-do da reaproximao observada entre Relaes Internacionais e Di-reito Internacional no ps-Guerra Fria seja um mero subproduto es-tigmatizado das concepes mais arraigadas entre os tericos da po-ltica internacional, entre elas, principalmente, a diviso da literaturade Relaes Internacionais entre as correntes realista e idealista.

    Os personagens criados por Miguel de Cervantes so metforas querepresentam a forma como as disciplinas de Relaes Internacionaise Direito Internacional so concebidas na historiografia dos estudosque tm por objeto o ambiente internacional. Desde o PrimeiroGrande Debate da disciplina de Relaes Internacionais, as alcu-nhas de idealista e realista acompanham, respectivamente, asdisciplinas do Direito Internacional e de Relaes Internacionais.

    Nesses termos, o idealismo caracterstico de Dom Quixote represen-ta o Direito Internacional, mais particularmente a interpretao dada sua vertente liberal, enquanto o pragmatismo de Sancho Pana serelaciona concepo convencional do realismo na disciplina de Re-laes Internacionais. Como aqueles dois personagens, RelaesInternacionais e Direito Internacional opem-se e complemen-tam-se em um tpico movimento dialtico. Assim como Miguel deCervantes utiliza esses dois personagens para desmistificar as anti-gas histrias medievais de cavaleiros, o estudo da relao entre Rela-es Internacionais e Direito Internacional serve de mote para a des-mistificao e a reviso crtica da historiografia de Relaes Interna-cionais.

    O termo reaproximao pressupe logicamente um perodo inicialde aproximao seguido de um perodo de afastamento. Nesse senti-do, a proximidade inicial remontaria ao perodo de formao das

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  • duas disciplinas, no final do sculo XIX e incio do sculo XX, esten-dendo-se at o colapso da Liga das Naes e a ecloso da SegundaGrande Guerra. O afastamento corresponde ao perodo da GuerraFria, quando houve um distanciamento entre Relaes Internacionaise Direito Internacional. Finalmente, aps o trmino do perodo emque a bipolaridade foi a tnica da poltica internacional, as duas dis-ciplinas engendraram um movimento de reaproximao.

    A reaproximao entre Relaes Internacionais e Direito Internacio-nal ser analisada com base em trs teorias, criadas a partir da cola-borao entre tericos da poltica internacional e juristas internacio-nais: institucionalismo, liberalismo e construtivismo. Argumenta-seque h um dilogo de crescente profundidade na ordem em que estasteorias so apresentadas. No se argumenta que estas trs teorias se-guem uma ordem cronolgica, mas sim que, tomadas em separado ena ordem apresentada, representam um dilogo cada vez mais pro-fundo entre os tericos das duas disciplinas. No h nesta hipteseuma noo teleolgica de progresso no tempo.

    O restante do artigo organiza-se da forma que se segue. A segundaparte analisa o perodo inicial de convergncia das disciplinas emtorno das premissas liberais. Abordando-se, em primeiro lugar, o pe-rodo de criao das disciplinas, faz-se uma reviso do liberalismoem Relaes Internacionais e interpreta-se criticamente o PrimeiroGrande Debate desta disciplina. A terceira parte concentra-se sobreo afastamento entre Relaes Internacionais e Direito Internacional.De incio, expe-se a viso ctica desenvolvida no campo do DireitoInternacional, passando-se articulao entre esse ceticismo e a cria-o do realismo na disciplina de Relaes Internacionais; posterior-mente, aborda-se a relativizao da proposta realista, que a fez cami-nhar na direo da Escola Inglesa de Relaes Internacionais; em se-guida, expe-se o pice do afastamento entre as disciplinas, resulta-do da confluncia entre o behaviorismo no estudo da poltica interna-cional e a decadncia do Direito Internacional. Na quarta seo,

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  • discorre-se sobre a reaproximao observada aps o final da GuerraFria, sendo analisadas as teorias institucionalista, liberal e construti-vista. Finalmente, conclui-se o artigo, apresentando prospectos paraas disciplinas neste incio do sculo XXI.

    O Incio das Disciplinas de

    Relaes Internacionais e

    Direito Internacional A

    Proximidade Deturpada

    pelo Primeiro Grande

    Debate

    No incio, o Estado. A formao das disciplinas do Direito Internaci-onal e de Relaes Internacionais mais bem compreendida pormeio da anlise do conceito de Estado desenvolvido na segunda me-tade do sculo XIX, resultado de desdobramentos intelectuais ocor-ridos no mbito da ento embrionria Cincia Poltica. Desde os seusprimeiros anos at a passagem para o sculo XX, a Cincia Polticaassistiu construo de uma viso ortodoxa do Estado, expressa naformulao jurdica clssica segundo a qual a soberania consistia naautoridade suprema sobre uma comunidade poltica definida territo-rialmente3. A noo de soberania era o mbil que unia o conceito ju-rdico do Estado descrio do objeto de estudo da poltica internaci-onal e das normas jurdicas internacionais. A referida definio im-punha conseqncias categricas para as incipientes disciplinas deRelaes Internacionais e Direito Internacional (Schmidt, 1998:79).

    Para o estudo das relaes internacionais, a noo jurdica do Estadoimpunha ontologia caracterizada pela multiplicidade de unidades in-dependentes entre si, sem a presena de um comando central, o queas colocava em situao anloga dos indivduos no estado de natu-reza hobbesiano. Com efeito, desde ento, a analogia domstica,criada no rastro da concepo jurdica do Estado, tornou-se uma das

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  • concepes mais freqentemente associadas ao ambiente interna-cional.

    Para o Direito Internacional, a concepo jurdica do Estado impu-nha um questionamento acerca do carter jurdico das normas vigen-tes entre os Estados soberanos. A formulao mais clebre nesse sen-tido foi desenvolvida por John Austin, para quem o Direito Internaci-onal no possua os caracteres jurdicos essenciais, posto que suasnormas no eram emanadas de um poder soberano.

    A contestao, pelos juristas internacionais, da doutrina propugnadapor Austin e seus adeptos abriu as portas para a construo de umaontologia que liberava as disciplinas de Relaes Internacionais eDireito Internacional das severas amarras impostas pela ortodoxaconcepo jurdica do Estado, esta ltima resultado de poderosa con-fluncia entre hegelianismo, darwinismo, nacionalismo romntico epositivismo no final do sculo XIX e incio do sculo XX. Nesses ter-mos, os juristas internacionais abriram o caminho para o estudo ge-nuno das relaes entre os Estados, conforme atesta Brian Schmidt(idem:123): De 1900 at a ecloso da Primeira Grande Guerra, em1914, a rea do Direito Internacional dominou o estudo e a anlisedas relaes internacionais.

    Seguindo essa perspectiva, determinados eventos levados a cabo noperodo, como as Conferncias de Haia de 1899 e 1907 e a fundaoda American Society of International Law, em 1906, com a conse-qente criao do peridico American Journal of International Law(AJIL), ilustram a ntima relao entre as proposies dos juristas in-ternacionais e a formao de um ambiente para o estudo das relaesinternacionais de forma desvinculada do conceito jurdico ortodoxodo Estado.

    As contestaes doutrina de Austin, objeto principal das ediesinaugurais do primeiro jornal de lngua inglesa destinado exclusiva-mente ao Direito Internacional, acabaram por representar, nas pala-

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  • vras de Francis Boyle (1985:23), o evento mais importante no de-senvolvimento de uma abordagem positivista jurdica para as rela-es internacionais nos Estados Unidos, abordagem esta que eraintencionalmente desvinculada das respectivas abordagens feitaspelos proponentes da teoria do Direito natural e dos cientistas polti-cos (Schmidt, 1998:102).

    Nesse contexto, surgiram duas formas de teorizao sobre o ambien-te internacional. De um lado, Stephen Leacock (1906) e Paul Re-insch (1909; 1911) concentrando-se sobre as unies pblicas inter-nacionais, os embries das organizaes internacionais do sculoXX advogavam a tese de que os nveis de interdependncia entre osEstados soberanos contrariavam empiricamente a concepo ontol-gica que primava pela multiplicidade de unidades independentes: es-tavam lanadas as bases do perene debate que ope independncia einterdependncia como trao caracterizador das relaes entre asunidades que compem o sistema internacional (Schmidt, 1998:84).De outro lado, observou-se um movimento pblico para a reforma daprtica internacional com base no primado do Direito, sendo as ra-zes desse movimento intrinsecamente ligadas prpria criao doDireito Internacional.

    Com efeito, Martti Koskenniemi (2002) apresenta os termos em quese deu a criao da profisso de jurista internacional ao final do scu-lo XIX. Historicamente, o uso e a prtica do Direito Internacional fi-caram a cargo de um amplo espectro de profissionais, entre embaixa-dores, representantes diplomticos das mais diversas categorias, mo-narcas, ministros, generais, marinheiros etc. Ocorre que estas pesso-as, apesar de envolvidas no uso e prtica do Direito Internacional,no concebiam a si mesmas como juristas internacionais, sendo o co-nhecimento da matria um dos atributos requeridos para o plenoexerccio de suas funes. Mesmo Henry Wheaton, autor do laurea-doElements of International Law:With a Sketch of theHistory of the

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  • Science (1836), era diplomata e reprter do Direito (Simpson,2002:996).

    Seguindo Koskenniemi (2002), possvel argumentar que, apenasno final do sculo XIX, a profisso de jurista internacional afir-mou-se como um grupo de pessoas que concebem a si mesmas comopertencentes a um nicho profissional especfico e distinto dos demais,unidas por sua disposio em expor, desenvolver e envolver-se naconsecuo prtica de um corpo de conhecimento que consideradominimamente coeso. Os ideais sustentados pelos responsveis pelaformao da profisso de jurista internacional jovens juristas comoGustave Rolin-Jaequemyns, Tobias Asser e John Westlake so des-critos por Koskenniemi (idem:13) com base na expresso lespritdinternationalit, um novo esprito que ensinava as naes e raasa seguirem certos princpios comuns no apenas em suas relaesmtuas, mas tambm em suas legislaes domsticas. Institucio-nalmente, os referidos juristas participaram da fundao da Associa-tion Internationale pour le Progrs des Sciences Sociales, em 1862, eacabaram por criar, em 1868, o primeiro jornal de Direito Internacio-nal a Revue de Droit International et Legislation Compare4.

    O contedo exato dos ideais que motivaram os pioneiros da discipli-na acadmica do Direito Internacional deve ser apreendido a partir dadistino entre a expresso de lngua francesa internationalit e a ex-presso de lngua inglesa internationalism:

    O conceito de internationalit foi alm do conceito de internationa-lism, que significava um processo de crescente cooperao e desen-volvimento de interesses comuns entre Estados, processo este queera guiado por uma maior interdependncia entre os ltimos. O pri-meiro conceito tambm significava a humanizao das polticas na-cionais e o desenvolvimento de um esprito liberal (ibidem).

    O conceito de internationalism associa-se a uma forma de pensar quepode ser identificada com o pensamento de Hugo Grocius, convenci-

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  • onalmente considerado o pai do Direito Internacional e fonte basi-lar da proposta de Direito entre os Estados, a qual vigorou durante s-culos na Europa. Caracterstica dessa concepo do Direito Interna-cional o respeito soberania dos Estados, acompanhado do reco-nhecimento de que os mesmos podem cooperar a partir da existnciade certos interesses comuns.

    A pedra de toque da descrio feita por Koskenniemi (idem) da for-mao do Direito Internacional consiste precisamente no argumentode que a disciplina acadmica destinada ao estudo do Direito entre osEstados somente adquiriu traos prprios e distintos das demais ati-vidades profissionais relacionadas ao ambiente internacional quan-do as idias grocianas foram substitudas por uma proposta de refor-ma mais profunda da prtica entre os Estados a partir de princpios li-berais, entre eles o primado do Direito.

    Com efeito, nenhum dos homens por detrs daRevue comungava datradio de Grocius, ou da escola do Direito Pblico Europeu, quedominou os escritos em Direito Internacional desde Vattel at mea-dos do sculo XIX (idem:17). A associao comum entre os primr-dios da disciplina de Direito Internacional e o pensamento grocianod lugar constatao de que subsistia um verniz kantiano na mentedos homens responsveis pela consolidao do estudo do Direito en-tre os Estados como disciplina acadmica autnoma.

    A distino entre o pensamento grociano e o pensamento kantiano,implcita na apreenso exata do significado dos termos internationa-lism e internationalit, remonta diviso do conhecimento em teoriainternacional levada a cabo por Martin Wight (1991), diviso estaque particularmente familiar aos estudantes de Relaes Internaci-onais. Wight (idem) dividiu o pensamento em teoria internacionalem trs tradies: realismo, racionalismo e revolucionismo.

    Apesar das diversas crticas de que passvel tal caracterizao, deveser resguardado a Wight o mrito de ter compreendido a diferencia-

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  • o entre o grocianismo e o kantianismo; Grocius e Kant encabeam,respectivamente, as tradies racionalista e revolucionista. Tal dife-renciao coincide, por sua vez, com as supramencionadas vertentessobre o pensamento internacionalista at a Segunda Grande Guerra;grosso modo, os tericos que argumentavam haver maior interde-pendncia e cooperao entre os Estados eram informados por umadescrio grociana da realidade internacional, ao passo que aquelesque propugnavam uma reforma mais profunda da prtica internacio-nal se associavam a uma proposta kantiana para a relao entre osEstados. Os grocianos tendem a enfatizar a cooperao intergover-namental tpica das organizaes internacionais, enquanto os kantia-nos tendem nfase cosmopolita, realando a prevalncia de uma ci-vitas maxima sobre a sociedade formada pelos Estados nacionais.

    A despeito das patentes diferenas entre essas correntes, a concepode Edward Carr (1939), segundo a qual o pensamento em RelaesInternacionais teria sido marcado pelo idealismo ou utopismonos anos posteriores Primeira Grande Guerra, arraigou-se profun-damente no imaginrio dos tericos envolvidos com a disciplina.Dessa forma, estudos sobremaneira distintos, como a anlise das or-ganizaes internacionais e a proposta de reforma do sistema inter-nacional sobre bases liberais, foram unidos sob a gide de uma alcu-nha unitria, que, em nome de uma onipresente dicotomia, opeidealistas e realistas.

    A indistino entre grocianos e liberais no perodo entreguerras, reu-nidos sob a alcunha quase pejorativa de idealistas, prdiga emconseqncias no desenvolvimento posterior da disciplina de Rela-es Internacionais. Deve-se a ela, em grande medida, a incapacida-de dos tericos da disciplina em diferenciar as teorias institucionalis-ta e liberal no ps-Guerra Fria, disso resultando a distorcida nomen-clatura institucionalismo neoliberal, que, moda da denominaode idealistas, rene orientaes tericas sobremaneira distintas.

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  • Neste ltimo caso, uma vez mais possvel recorrer distino entreas orientaes tericas grociana e kantiana para diferenciar instituci-onalistas de liberais: os primeiros, como o prprio nome indica, en-focam as instituies internacionais a partir de uma anlise esta-do-cntrica, sendo os Estados atores que cooperam movidos pelo au-to-interesse; os ltimos, tambm denominados neokantianos, va-lem-se do vnculo fundamental apontado por Kant entre a organiza-o poltica interna dos Estados e os resultados observados na polti-ca internacional para discriminar os Estados liberais dos Estadosno-liberais em termos de comportamento na esfera internacional.

    Basicamente, a partir da converso de liberais e grocianos do entre-guerras em idealistas, seguiu-se uma notvel negligncia com rela-o aos estudos das organizaes internacionais no perodo posterior Primeira Grande Guerra; o liberalismo, por sua vez, a partir de suaassociao experincia fracassada da Liga das Naes, foi deturpa-do a ponto de constituir uma defesa ingnua das organizaes inter-nacionais e do Direito Internacional como forma de substituir a pol-tica de poder. Levando-se em considerao os efeitos das proposi-es liberais do entreguerras sobre o imaginrio dos tericos de Re-laes Internacionais e o fato de o realismo ter surgido, nessa disci-plina, como resposta quelas proposies, nos ateremos em maiorprofundidade ao projeto de reforma da prtica internacional capita-neado pelo presidente norte-americano Thomas Woodrow Wilson.

    Wilson, Kant e o

    liberalismo em Relaes

    Internacionais

    O liberalismo no entreguerras encontra-se intrinsecamente ligado spropostas do presidente norte-americano Woodrow Wilson para a re-forma da prtica internacional. Em poucas palavras, a doutrina pro-posta por Wilson associava um forte componente moral crena naresoluo racional para os conflitos, a partir da difuso do modelo

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  • das democracias liberais e da adeso das naes a princpios como oprimado do Direito.

    A crena na resoluo racional dos conflitos e a defesa da reforma dosistema internacional com base no primado do Direito explicam emgrande medida os pontos que tornam o pensamento wilsoniano emRelaes Internacionais sobremaneira afinado s proposies dostericos pioneiros do Direito Internacional enquanto disciplina aca-dmica, uma vez que ambos comungavam, em geral, das premissasliberais. As propostas de Wilson pressupunham o Direito como m-bil para a consecuo da paz internacional, motivo pelo qual algunstericos, como Fred Halliday (1994:10), denominaram essa teoria depaz por meio do Direito.

    Ao trmino da Primeira Grande Guerra, a proposta de Wilson para aformao da Liga das Naes acabou por se tornar o epicentro dasdeturpaes sofridas pelo liberalismo wilsoniano ao longo da hist-ria da disciplina de Relaes Internacionais, a comear pelo enqua-dramento da Liga das Naes como a apoteose do pensamento idea-lista, em oposio ao pensamento realista. Como afirmou WalterMcDougall (1997:124), as dicotomias familiares entre velha e novadiplomacia, isolacionismo e internacionalismo e idealismo e realis-mo distorcem a nossa imagem do debate acerca da Liga das Naes.

    A Liga das Naes foi concebida por Wilson como um concerto entreos pases democrticos, que fariam valer o primado do Direito no sis-tema internacional, resolvendo as controvrsias de forma racional, oque, em ltima instncia, aboliria os conflitos militares internacionais.Nesses termos, a receita para a paz contida na proposta da Liga dasNaes representava, como afirmou John Ikenberry (2001:117),

    [...] uma organizao mundial das democracias operando a partir deregras e obrigaes mais fortes. As grandes potncias ainda forma-riam o ncleo dessa comunidade democrtica, mas a balana de po-

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  • der seria substituda por mecanismos mais jurdicos e regrados de ad-ministrao do poder e resoluo de conflitos.

    Wilson estava ciente de que a prevalncia das democracias liberaisentre a virtual totalidade das grandes potncias era condio necess-ria para o sucesso da Liga das Naes; ele acreditava, poca, que osistema internacional estava em vias de atingir essa condio: em1919, os principais Estados vencedores eram democrticos pela pri-meira vez na histria (idem:118). A crena do arquiteto da Liga dasNaes ganhou mais substncia medida que se constatou que a Pri-meira Grande Guerra teve um efeito devastador sobre os imprios eu-ropeus; os imprios germnico, russo, turco-otomano e aus-tro-hngaro foram levados a termo at o final do conflito iniciado em1914.

    Ocorre que os eventos posteriores na Europa se opuseram previsode Wilson de que governos democrticos se espalhariam pelo conti-nente; vrios pases moveram-se de governos democrticos para di-taduras. No caso especfico da Alemanha, este movimento se deu emgrande parte em virtude da inobservncia da proposio de Wilsonsegundo a qual deveria haver moderao nas punies impostas aopas, tendo sido bastante difundido poca o seu bordo por umapaz sem vencedores.

    Nas palavras de Andrew Moravcsik (1997:546): Dada a teoria sub-jacente proposta de Wilson, causa surpresa que a Liga tenha torna-do-se moribunda em 1936, aps doze pases europeus terem substi-tudo democracias por ditaduras?. Nesse contexto, deixou de existiruma condio sine qua non para o sucesso da Liga das Naes, moti-vo pelo qual no surpreende, de fato, o seu fracasso. Deve-se refutar,contudo, a associao freqentemente feita entre o fracasso da Ligadas Naes e a falsificao do liberalismo: o fracasso da Liga plena-mente explicvel e previsvel a partir das premissas que suportaramas aes de Woodrow Wilson, que, por diversas vezes, afirmou ser a

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  • existncia de governos democrticos entre as grandes potncias umacondio essencial para a eficcia da organizao.

    A plena compreenso do contedo da teoria liberal em RelaesInternacionais e o seu enquadramento em um contexto filosficomais amplo e denso trazem baila o papel exercido pelo pensamentode Immanuel Kant no estudo da poltica internacional. Em poucaspalavras, a teoria liberal em Relaes Internacionais deve a Kant oarcabouo filosfico que lhe serve de matriz; sendo Woodrow Wil-son um historiador e terico poltico refinado, impossvel mensurara influncia do pensamento kantiano sobre o presidente nor-te-americano. Salta aos olhos, contudo, o enquadramento do pensa-mento de Wilson nas linhas mestras do complexo sistema filosficode Kant. Em termos gerais, ambos comungam do papel central con-cedido moral e da crena no potencial da razo humana; especifica-mente, em termos de poltica internacional, h uma patente conver-gncia em torno da tese central do liberalismo, segundo a qual a orga-nizao jurdico-poltica interna dos Estados determina os resultadosproduzidos no sistema internacional.

    Alm disso, princpios como o primado do Direito e a autodetermi-nao dos povos fecham o crculo das premissas principais que selama convergncia entre Wilson e Kant. Em ltima instncia, o pensa-mento de Wilson pressupe o sistema filosfico kantiano, uma vezque a prpria noo de moral, por exemplo, fundamental para a dou-trina wilsoniana, somente adquire contedo a partir da teoria moraldo filsofo alemo, basilar para o pensamento ocidental nos ltimosdois sculos. Assim como Wilson, Kant era um defensor sincero ecaloroso das aes morais.

    O texto de Kant que mais influncia exerceu sobre o estudo das rela-es entre os Estados foiEsbooFilosfico: Paz Perptua, que, es-crito na esteira da Paz de Basilia, celebrada entre Frana e Prssia,imitou ironicamente a forma dos tratados de paz da poca. Diversas

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  • concepes presentes nesse trabalho revelam o pioneirismo de Kantcomo pensador internacionalista. Segundo Celso Mello (2002:475),foi o primeiro texto no qual se encontra expressamente o princpio dano-interveno; tambm se encontram nesse escrito a noo de au-todeterminao dos povos e a concepo de que o Homem, sendo umfim em si mesmo, sujeito de direitos, o que abre as portas para asdiscusses relativas aos direitos humanos.

    O primeiro artigo definitivo para a paz perptua assim dispe: Aconstituio deve ser, em todo Estado, republicana (Kant, 1879:63).A repblica kantiana definida com base na separao entre os Pode-res Executivo e Legislativo, sendo equivalente noo de democra-cia liberal nos tempos atuais. O estabelecimento da democracia libe-ral para Kant era um imperativo moral, pois ela conjuga o autogover-no e a liberdade dos indivduos; alm disso, a democracia liberal inerentemente pacfica. A liberdade associada constituio repu-blicana e o seu carter pacfico so decorrentes do fato de o indivduoagir, na repblica, com base em leis que ele prprio consentiu segun-do um desejo racional de que elas se tornassem universais.

    Kant formula, com o primeiro artigo definitivo, a pedra angular da te-oria liberal na disciplina de Relaes Internacionais, a saber, o argu-mento de que a estrutura jurdico-poltica de um Estado mantm rela-o intrnseca com o seu comportamento externo; atribui-se organi-zao interna dos Estados a fonte dos resultados produzidos na pol-tica internacional. Uma vez que na repblica kantiana o consenti-mento dos indivduos considerado na consecuo das medidas p-blicas, o ingresso em conflitos torna-se menos factvel, posto quecondicionado anuncia daqueles que arcam com os seus custos.Nas contundentes palavras de Kant expostas no trecho mais citado doensaio sobre a paz perptua:

    Na constituio republicana, deve aparecer necessariamente o con-sentimento dos cidados para declarar a guerra. Nada mais natural,

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  • portanto, j que eles devem sofrer as conseqncias da guerra os

    combates, as despesas, a devastao, o peso desolador da dvida p-

    blica, que passa para os tempos de paz , que pensem muito e vacilem

    antes de decidirem-se a um jogo to arriscado. Por outro lado, numa

    constituio em que o sdito no cidado, numa constituio

    no-republicana, a guerra a coisa mais simples do mundo. O chefe

    do Estado no um concidado, mas um senhor; e a guerra no per-

    turba nada no seu sistema de vida faustosa, que decorre em banque-

    tes, caadas e nas estadias em castelos prazenteiros. A guerra, para

    ele, uma espcie de diverso: pode declar-la pelos mais leves mo-

    tivos, ordenando imediatamente que o corpo diplomtico sempre

    to disposto cubra as aparncias e encontre uma justificao plaus-

    vel (idem:51).

    Wilson diferia de Kant somente na medida em que propunha uma

    agenda mais radical e intervencionista, em detrimento da proposio

    pioneira de Kant acerca do princpio da no-interveno. Kant acre-

    ditava que o estabelecimento das democracias liberais aconteceria de

    forma autnoma, medida que os indivduos progredissem no exer-

    ccio da razo; Wilson era mais propenso a utilizar a fora para, de

    certa forma, acelerar a histria. A fundamentao para a necessidade

    de radicalizar a agenda liberal expressa em uma afirmao que as-

    sombra pela acuidade com que Wilson percebeu as sementes da Se-

    gunda Grande Guerra, um conflito ainda bem mais violento do que

    aquele iniciado em 1914:

    O liberalismo precisa ser mais liberal do que nunca, ele deve ser at

    radical para a civilizao escapar da hecatombe... Eu no hesito em

    dizer que a guerra na qual acabamos de nos envolver, apesar de ter

    sido marcada por toda a sorte de terror, no pode ser comparada

    guerra que enfrentaremos da prxima vez (apud Mcnamara e

    Blight, 2001:168).

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  • O primeiro grande

    debate: deturpaes na

    esteira da obra Vinte Anos deCrise

    Se, tendo em vista o panorama dos estudos internacionais desde1900, extremamente difcil defender o argumento de que a obra deE. H. Carr intituladaVinte Anos deCrise (1939) constitui o texto fun-dador da disciplina de Relaes Internacionais, mais difcil ainda fugir da constatao de que a diviso proposta pelo historiador inglsentre idealismo e realismo acabou por mostrar-se notavelmenteperene a ponto de, at os dias de hoje, envolver a historiografia con-vencional de Relaes Internacionais e habitar o imaginrio dos es-tudiosos da disciplina. Nos ltimos anos, entretanto, crticas contun-dentes tm sido desferidas s concepes de idealismo e realis-mo sustentadas por Carr5.

    Como observou Peter Wilson (1998:10), Carr no expe de formaanaltica as principais proposies da corrente idealista; ao invsdisso, constri um conjunto frouxo de asseres que, freqentemen-te acompanhadas de inferncias e insinuaes, demonstrariam os de-feitos da referida corrente de pensamento. Em ltima instncia, a ex-plicao de Carr acerca do idealismo indissocivel de sua crticadesta corrente, sendo o idealismo definido a partir dos seus defei-tos.

    Nesse contexto, torna-se compreensvel a deturpao sofrida pelo li-beralismo na disciplina de Relaes Internacionais. A nfase dos li-berais na organizao jurdico-poltica interna dos Estados como fa-tor determinante para os resultados observados na poltica internaci-onal foi substituda a partir da concepo do idealismo de Carr eda concentrao deste sobre o fracasso da Liga das Naes pelacrena na possibilidade de as organizaes internacionais e o Direito

    Igor Abdalla Medina de Souza

    116 CONTEXTO INTERNACIONAL vol. 28, no 1, jan/jun 2006

  • Internacional banirem, de forma autnoma, a poltica de poder dosistema internacional.

    O Afastamento entre as

    Disciplinas Ceticismo,

    Realismo, Escola Inglesa e

    Behaviorismo

    Aps o colapso da Liga das Naes e a ecloso da Segunda GrandeGuerra, observou-se um perodo de decadncia do Direito Interna-cional (Koskenniemi, 2002), enquanto a disciplina de RelaesInternacionais assistia criao do paradigma realista como resposta escola liberal da paz por meio do Direito do perodo entreguerras.

    A decadncia do Direito Internacional deveu-se prevalncia, en-tre os tericos desta disciplina, de uma viso extremamente cticaquanto ao seu escopo de atuao e sua aplicabilidade. Este ceticis-mo estava lastreado em uma concepo assimtrica da relao entrepoltica e Direito, o que acabava por restringir sobremaneira o poten-cial do Direito Internacional em influenciar o comportamento dosatores internacionais.

    O realismo em Relaes Internacionais contrapunha-se perspectivakantiana presente nesta disciplina at os eventos mencionados naabertura deste artigo. Em resposta proposta de difundir o modelo dademocracia liberal e subsumir a poltica internacional em um arca-bouo normativo racionalmente concebido, o realismo pregava que anatureza humana trazia a irracionalidade ao centro da poltica inter-nacional.

    A decadncia do Direito Internacional e a criao do realismo emRelaes Internacionais, longe de constiturem processos isolados,foram partes de um s e mesmo movimento. Tal proposio pode serapresentada a partir da trajetria intelectual de Hans Morgenthau, o

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    Relaes Internacionais e Direito...

    117

  • maior expoente do ceticismo no Direito Internacional (Koskennie-mi, 1989:167-170) e o pai fundador da escola realista na disciplina deRelaes Internacionais.

    O Ceticismo no Direito

    Internacional

    Em 1929, a tese de doutorado de Morgenthau para a Faculdade de Di-reito da Universidade de Frankfurt versava sobre os limites das fun-es judicial e arbitral em mbito internacional6, tema recorrente en-tre os tericos de Direito Internacional da poca. Como pano de fun-do ao tema da dissertao, havia uma incipiente tentativa de lidarcom a relao entre Direito e poltica no cenrio internacional. Basi-camente, as fragilidades do Direito Internacional eram explicadascom base em sua relao com a poltica internacional (Koskenniemi,2002).

    Morgenthau argumentava que no fazia sentido conceber os assuntosinternacionais a partir da oposio entre as questes legais e asquestes polticas, em virtude de uma concepo particular do po-ltico: este no possua substncia fixa, apresentando-se como umaqualidade que aderia a qualquer objeto (idem:441). Assim, nenhumobjeto estaria essencialmente livre de se tornar poltico. O polticopoderia estar em todos os objetos, bem como em objeto algum; tudopoderia ser e nada era necessariamente poltico. Como afirmou Mor-genthau (apud Frei, 2001:124):

    A noo do poltico no definida de forma rgida em seu contedo,sendo uma qualidade especfica, uma colorao que pode aderir a di-versos contedos. Uma questo que tem carter poltico hoje podeperder toda a sua significncia poltica amanh, enquanto uma ques-to de significncia mnima pode converter-se em uma questo pol-tica extremamente importante do dia para noite.

    Igor Abdalla Medina de Souza

    118 CONTEXTO INTERNACIONAL vol. 28, no 1, jan/jun 2006

  • Dessa forma, o poltico somente pode ser oposto pelo no-poltico,

    mas o no-poltico potencialmente poltico. Alm disso, quando o

    poltico entra em cena, no h que se falar em resoluo jurdica para

    o conflito, pois o prprio Direito positivo posto em questo. Disso

    resulta um escopo reduzido para a atuao do Direito Internacional:

    o objeto por este regulado poderia politizar-se a qualquer momento,

    fugindo do escopo das normas jurdicas internacionais.

    O teor das crticas formuladas por Morgenthau perspectiva liberal,

    que uniu tericos do Direito Internacional e de Relaes Internacio-

    nais no entreguerras, pode ser compreendido por meio do contun-

    dente artigo escrito pelo ento professor-assistente de Direito e Cin-

    cia Poltica da Universidade de Kansas para o peridico da Socieda-

    de Norte-Americana de Direito Internacional,TheAmerican Journal

    of International Law, em 1940. Sob diversos aspectos, a crtica seve-

    ra de Morgenthau aos liberais aponta claramente para as linhas mes-

    tras que comporiam a crtica realista aos tericos liberais daquele pe-

    rodo. Primeiramente, Morgenthau (1940) aborda a falta de corres-

    pondncia entre os postulados do Direito Internacional e a evidncia

    emprica disponibilizada pelo estudo da histria, proferindo uma cr-

    tica incisiva aos tericos movidos por formulaes a priori ditadas

    pela razo:

    Todos os esquemas e instrumentos que humanitaristas e polticos

    astutos engendraram para reorganizar as relaes entre os Estados na

    base do Direito no suportam o julgamento da histria. Ao invs de

    perguntarem se os seus instrumentos so adequados para os proble-

    mas que eles se propem a resolver, a atitude geral dos internaciona-

    listas foi considerar a adequao dos seus instrumentos como dada e

    culpar os fatos pelo fracasso. Quando os fatos se mostram contrrios

    s suas previses, eles parecem dizer: problema dos fatos

    (idem:260).

    Dom Quixote Reencontra Sancho Pana

    Relaes Internacionais e Direito...

    119

  • Morgenthau criticava a falta de uma espcie de mecanismo de feed-back entre os tericos de Direito Internacional e a evidncia empricafornecida pela histria. A noo de que a histria deve funcionarcomo mestra, da qual se deveriam extrair ensinamentos, evitaria ainsistncia dos tericos do Direito Internacional da poca em criaruma nova instituio tal qual a Liga das Naes, realizar uma terceiraConferncia de Haia, defender a arbitragem como forma de litgiodos conflitos polticos e levar a cabo outra Conferncia para o Desar-mamento.

    Tais insistncias faziam com que os juristas internacionais se asse-melhassem aos feiticeiros das idades primitivas, em suas tentativasde exorcizar demnios sociais por meio de uma incansvel repetiode frmulas mgicas (ibidem). Segundo Morgenthau (ibidem), odescompasso entre os postulados dos tericos de Direito Internacio-nal e a realidade deveu-se prevalncia do positivismo jurdico nessadisciplina, s expensas do fato de tal perspectiva ter sido desacredita-da nas outras esferas do pensamento jurdico durante as primeiras d-cadas do sculo XX.

    Ainda para Morgenthau, o positivismo jurdico era demasiado for-malista. A validade de uma determinada regra internacional era res-pondida pelo positivista com base em elementos internos ao procedi-mento legal. O critrio de validade defendido por Morgenthau funci-onava com base em fatos observveis; nesse sentido, ele questionavaa validade de instrumentos legais como o Pacto da Liga das Naes, oPacto Briand-Kellogg e os Tratados de Paz de 1919.

    O clebre artigo de 1940 acabou por representar um libelo antiforma-lista, declarando a necessidade de maior interdisciplinaridade no es-tudo do Direito Internacional. Morgenthau apresentou proposta dereforma que ele denominou de cincia funcionalista do DireitoInternacional, que tencionava produzir proposies sobre o Direito apartir de estudos puramente sociolgicos. Morgenthau, contudo,

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    120 CONTEXTO INTERNACIONAL vol. 28, no 1, jan/jun 2006

  • nunca desenvolveu tal cincia funcionalista, o que compreens-vel dado o seu ceticismo quanto ao papel do Direito Internacional.Em vez de avanar a proposta reformista, ele acabou por tornar-se opai fundador do realismo na disciplina de Relaes Internacionais.

    O realismo em Relaes

    Internacionais

    O paradigma realista na disciplina de Relaes Internacionais emer-giu em um contexto de conflito entre duas formas distintas de teori-zao no mbito das cincias sociais. Os tericos que emigraram daAlemanha em virtude da ascenso do regime nazista encontraram, aoatravessar o Atlntico, um ambiente intelectual sobremaneira distin-to daquele observado no velho continente quela poca.

    De um lado, a tradio acadmica norte-americana, que se pautavapelo que Reinhold Niebuhr (1984:164; Frei, 2001:186) classificoucomo otimismo histrico, isto , a crena na razo como soluode todos os problemas e chave para a compreenso dos seres huma-nos e do mundo. Stanley Hoffmann (1991:33) caracteriza essa tradi-o a partir da busca pela certeza, do desejo de calcular o incalcu-lvel e da cruzada pela substituio das discusses sobre os moti-vos pelas discusses acerca de dados objetivos.

    De outro lado, a tradio germnica de pensamento em cincias soci-ais enfoca elementos como teoria e histria, mostrando-se ctica desde Nietzsche quanto ao papel da razo7. Apesar de a razo ins-trumental ter sido responsvel pelo progresso das cincias naturais,tal no seria possvel com relao s cincias sociais, pois o mundosocial responde a uma lgica distinta do mundo natural. A viso oti-mista da histria como progresso mediado pela razo d lugar his-tria em sua dimenso trgica.

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    Relaes Internacionais e Direito...

    121

  • Esse conflito se mostrou claro para Morgenthau a partir de 1943,quando ele trocou a Universidade de Kansas pela Universidade deChicago, baluarte do cientificismo norte-americano, onde j se mos-trava incipiente, por meio de nomes como Harold Lasswell, aquiloque viria a ser conhecido como a revoluo behaviorista. Desse am-biente de conflito intelectual nasceu ScientificMan vs Power Politics(Frei, 2001:190). Em consonncia com o diagnstico de Niebuhr,Morgenthau, sobre a tradio intelectual norte-americana, afirmouque a principal caracterstica dessa filosofia era a sua confiana narazo (apud idem:186). Ele se voltou contra o cientificismo a cren-a na equivalncia entre as cincias naturais e sociais prevalecenteno pensamento universitrio nos Estados Unidos de uma forma ge-ral, buscando reafirmar a dimenso trgica da histria e da condiohumana.

    A partir do enquadramento desse argumento dentro da lgica da tra-dio germnica de pensamento em cincias sociais, possvel le-vantar dvidas sobre a concepo do realismo como um paradigmadesenvolvido no interior do mundo anglo-saxo e atendendo aos seusprincpios. Com efeito, os enfoques mais recentes sobre os escritosde Morgenthau ainda em solo europeu apontam para a constataode que os seus escritos ps-1937 pouco ou nada acrescentam de novoao arcabouo construdo antes de sua chegada aos Estados Unidos. Aprpria obra mestra do realismo, A Poltica entre as Naes, primei-ramente publicada em 1948, j havia sido planejada desde, pelo me-nos, 1933 (idem: 208).

    Alm da ausncia de anlises dos escritos da fase europia de Mor-genthau, outro fator induziu as historiografias de Relaes Internaci-onais ao erro quanto s origens do realismo na disciplina: depois deingressar nos Estados Unidos, Morgenthau, conscientemente, ocul-tou as referncias basilares do seu pensamento. Em vez de citar ospensadores alemes que lhe serviram de base para o desenvolvimen-to da teoria realista, Morgenthau optou por mencionar, em seus tex-

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    122 CONTEXTO INTERNACIONAL vol. 28, no 1, jan/jun 2006

  • tos, pensadores anglo-saxes, o que chega a ser compreensvel emvirtude da intensa atmosfera antigermnica dos anos que se seguiram Segunda Grande Guerra. No constitui exagero supor que a dife-rena entre alemo e nazista no era clara para a maior parte das pes-soas quela poca. Nesse contexto, apresentar uma teoria polticacomo declaradamente germnica no era uma atitude das mais pru-dentes, sendo o caminho alternativo mais bvio citar autores an-glo-saxes e autoridades clssicas para conferir suporte sua posi-o (idem:110-111).

    Esse o mote para a compreenso dos motivos que levaram diversostericos a supor que o desenvolvimento do realismo se deu dentro deparmetros anglo-saxes, quando no se recorre aos clssicos da teo-ria poltica para explicar as suas origens, s expensas das diferenasentre os contextos polticos da aurora da modernidade e do sculoXX. No ltimo caso, o realismo em Relaes Internacionais conce-bido como uma tradio que se estenderia, basicamente, aos escritosde Maquiavel e Hobbes. O enfoque recente na fase europia de Mor-genthau, no entanto, estimulou contestaes a essa concepo, inten-samente enraizada na literatura da disciplina de Relaes Internacio-nais. Como afirmou Fred Halliday (1994:14): Normalmente conce-bido como uma evoluo dentro do mundo anglo-saxo, o realismoveio a articular crticas Liga das Naes que foram, desde a dcadade 1920, formuladas pela direita alem.

    A anlise sobre as influncias no pensamento de Hans Morgenthauindica que o realismo em Relaes Internacionais deve as suas ori-gens a uma tradio do pensamento alemo em cincias sociais queabarcaria pensadores como Carl Schmitt, Max Weber e, principal-mente, Friedrich Nietzsche8. As principais caractersticas dessa tra-dio alem, como j esboado, seriam a crena na impossibilidadede resoluo racional para conflitos de valores (Nietzsche/Weber), aconcepo da vida como luta pelo poder em virtude da natureza hu-mana, caracterizada pela vontade de poder (Nietzsche), e a tentati-

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    Relaes Internacionais e Direito...

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  • va de estabelecer a autonomia do poltico como esfera particular davida social (Schmitt).

    A viso otimista e teleolgica da modernidade como progresso me-diado pela razo humana d lugar concepo da modernidade comotragdia: os avanos tecnolgicos no podem conter os conflitos devalores, ao contrrio, acabam por torn-los potencialmente mais pe-rigosos, acirrando a luta pelo poder. A medida do desenvolvimentodo racionalismo cientfico a medida da preponderncia da irracio-nalidade na cena poltica, esta ltima concebida como uma esfera davida social que responde por suas prprias leis, enraizadas, em lti-ma instncia, na natureza humana. Em termos de Direito Internacio-nal e Relaes Internacionais, os postulados dessa tradio resultamem viso fortemente assimtrica da relao entre o jurdico e o polti-co, o que relega o Direito Internacional a um espao deveras restrito,em consonncia com a abordagem de Morgenthau desde a sua dis-sertao de 1929.

    A anlise dos dilogos escondidos entre Morgenthau e Schmittilustra o trao distintivo da crtica destes juristas da Repblica deWeimar ao pensamento liberal; ambos sustentavam que o uso do dis-curso moralista e legalista intensificava os conflitos (Koskenniemi,2002:462). A Liga das Naes no era de modo algum irrelevante como supunham os tericos pseudo-realistas mais bem representa-dos pela concepo de Edward Carr (1939) sobre a tradio realista, mas potencialmente perigosa a partir do momento em que tendia aremover as barreiras que limitavam a violncia entre as naes emsua luta pelo poder no sistema internacional. Expresses como na-es amantes da paz e naes criminosas eram a tnica da novaguerra justa: algumas naes beligerantes teriam a sua participaoem conflitos apoiada pela tica e pelo Direito, enquanto outras soconsideradas como no-merecedoras do direito moral e legal de pe-gar em armas.

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  • Por meio da Liga das Naes, as potncias lderes da nova ordem in-ternacional buscavam defender os seus interesses; para isso, procura-vam associ-los aos interesses da humanidade. Schmitt, em seu estu-do sobre a nova ordem anglo-americana, reconheceu que a tendncia universalizao de interesses particulares era uma caractersticamarcante dessa nova ordem internacional. Nesse sentido, bastanteelucidativa a sua citao de Proudhon: Quem diz humanidade, pre-tende enganar (Schmitt, 1992:81).

    No mesmo sentido, Morgenthau (2003) profere crtica a essa tendn-cia universalizao de interesses particulares no quinto dos seusprincpios do realismo poltico: O realismo poltico recusa-se aidentificar as aspiraes morais de uma determinada nao com asleis morais que governam o universo (idem:21). Ao invocar a huma-nidade para a defesa dos seus interesses particulares, as potncias l-deres da nova ordem acabaram por abrir o caminho para a remoode todas as barreiras que limitavam a violncia dos conflitos interna-cionais. Como afirmou Schmitt (1992:81):

    O emprego do nome da humanidade, a apelao humanidade, aconfiscao dessa palavra, tudo isso s poderia, j que no se podeafinal de contas empregar sem certas conseqncias tais nomes su-blimes, manifestar a terrvel pretenso de que se deve denegar ao ini-migo a qualidade de Homem, declar-lo hors-la-loi e horslhumanit e com isso levar a guerra extrema desumanidade.

    Sob essa perspectiva, no surpreendente o fato de o sculo XX terobservado, ao mesmo tempo, o emprego mais difundido do conceitode humanidade e um nvel de atrocidade sem precedentes em termosde destruio de vidas em conflitos. Morgenthau (2003) ponderouque as guerras do sculo XX readquiriram o carter religioso e ideo-lgico das cruzadas medievais, em oposio ao carter secular im-posto pelo Direito Pblico Europeu desde o final da Guerra dos Trin-ta Anos. Nesse sentido, a restrio da violncia atingida pela antiga

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    Relaes Internacionais e Direito...

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  • ordem europia deu lugar aos conflitos ilimitados, guerra total.Como resultado:

    O dever moral de poupar os feridos, enfermos e inimigos que se en-tregaram desarmados e de respeit-los como seres humanos que sotidos como inimigos exclusivamente por terem sido encontrados dooutro lado da cerca suplantado pelo dever moral de punir e varrer daface da terra os professores e praticantes do mal (idem:447).

    Em termos de pensamento poltico em geral, Morgenthau concorda-va com Schmitt na maior parte de suas posies, entretanto, conside-rava que este no fora longe o suficiente, deixando de conectar a suateoria do Estado quilo que para Morgenthau constitui a sua fonteprimordial, a natureza humana. Nesse sentido, ao invs de penetrarnas razes ltimas do Estado como ele realmente , Schmitt pra nomeio do caminho (Frei, 2001:119), pois

    [...] toda reflexo sobre a realidade deve voltar-se para a base detudo aquilo que pertence ao mbito poltico, tudo relacionado aoEstado, e essa base o prprio Homem. Isso porque o reino da polti-ca [...] emerge da alma humana. Portanto, para qualquer um que seoutorgue a tarefa de compreender a realidade do Estado seriamente,o primeiro passo deve ser traar esta realidade at as suas razes psi-colgicas (ibidem).

    Nesse ponto, Carl Schmitt d lugar a Friedrich Nietzsche, a maior re-ferncia no pensamento de Morgenthau, o pai oculto do realismoem Relaes Internacionais. A concepo que Morgenthau desen-volve da natureza humana est umbilicalmente ligada sua interpre-tao dos escritos de Nietzsche, que se enquadra, por sua vez, na lei-tura que prevalecia da obra deste ltimo no perodo entreguerras9.Morgenthau compartilhava com Nietzsche a obsesso pelo Homemcomo objeto de anlise e a busca impretervel pela realidade da vidahumana e do mundo. O papel condicionante exercido pela naturezahumana no mundo social expresso logo no primeiro dos princpios

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  • do realismo poltico elencados por Morgenthau (2003:4): O realis-mo poltico acredita que a poltica, como, alis, a sociedade em geral, governada por leis objetivas que deitam suas razes na natureza hu-mana.

    O duradouro envolvimento de Morgenthau com o pensamento ni-etzschiano foi trazido tona por pesquisas recentes de seu materialpessoal. Apesar de suas obras publicadas no conterem refernciasnesse sentido, suas anotaes pessoais elucidam o grau da influnciaexercida por Nietzsche na formao intelectual do pai fundador dorealismo em Relaes Internacionais (ver Frei (2001), que realizaanlise copiosa dos arquivos de Morgenthau).

    Para Nietzsche, o homem e o mundo esto longe de representar aquinta-essncia da razo; ao contrrio, ela a exceo, no a regra nomundo social. A razo no passa de instrumento a ser guiado por umaintrincada rede de impulsos humanos, estes impulsos podendo ser re-duzidos, ao fim e ao cabo, vontade de poder, o impulso bsico quemove os seres humanos. A essncia da vida reside na vontade de teralgo, e algo mais, indefinidamente: os objetivos das aes humanasesto voltados exclusivamente para as conquistas pessoais(idem:103).

    Ocorre que a vontade de poder inerente aos Homens no pode jamaisser satisfeita, uma vez que ela no conhece limites. Disso resulta acondio trgica da vida humana, incapaz de acompanhar as exign-cias da vontade ilimitada de poder: o Homem est condenado a vivero contraste imposto pela intensidade dos seus anseios em oposio spossibilidades reais de realizao dos mesmos. A onipresena da tra-gdia o trao irremedivel, inevitvel e inescapvel da vida(idem:105).

    Em virtude da natureza humana, portanto, a razo pouco tem a ofere-cer em termos de explicao do mundo social. Nietzsche teria levados ltimas conseqncias a afirmao do papel do irracional. Fazen-

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    Relaes Internacionais e Direito...

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  • do referncia discusso que nos particularmente relevante, comefeito, talvez no haja oposio mais perfeita do que aquela represen-tada pelo Nietzsche destruidor da razo em relao a Kant. Nada mais ilustrativo nesse sentido do que os incessantes ataques de Ni-etzsche moral, pea que se tornou nevrlgica em Kant a partir defundamentos racionais.

    Enquanto Nietzsche, entretanto, considerava ainda de acordo coma interpretao que lhe era dada pelos tericos no entreguerras queos sistemas normativos destinados a limitar os conflitos entre os Ho-mens configuravam mera hipocrisia, constituindo reles subterfgiodos fracos para lidarem com os fortes, Morgenthau caracterizava-oscomo necessrios para evitar a desagregao social. Como afirmouFrei (idem:107), ao mesmo tempo que Morgenthau permaneceu fiel-mente ligado ao analista, recusou-se a seguir o profeta: quando se tra-ta de prescries normativas e valores primordiais, Morgenthau di-vorcia-se do pensamento nietzschiano. O ponto de desembarque deMorgenthau do pensamento nietzschiano elucidado a partir da se-guinte passagem de A Poltica entre as Naes (Morgenthau,2003:422, nfase minha):

    Por outro lado, a prpria tradio da civilizao ocidental, que tentarestringir o poder dos fortes em benefcio dos fracos, foi combatidapor ser tida como efeminada, sentimental e decadente. Seus oposito-res tm sido aqueles que, comoNietzsche, Mussolini e Hitler, no saceitam o desejo do mando e a luta pelo poder como fatos sociais ba-silares, mas ainda enaltecem as suas manifestaes desenfreadas epostulam essa ausncia de restries como um ideal para a sociedadee uma norma de conduta para o indivduo.

    precisamente a partir desse ponto de discordncia em relao a Ni-etzsche que Morgenthau busca refgio na tica da responsabilidadeweberiana. Como afirmou Rob Walker (1993:32), a tica da respon-sabilidade o abrigo encontrado por Morgenthau para fugir tanto do

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  • idealismo como da poltica de poder em seu estado puro. As prescri-es de Morgenthau aos estadistas esto sobremaneira prximas danoo de tica da responsabilidade e da concepo da poltica comovocao, cujas peculiaridades esto fora do alcance do pblico emgeral; a afinidade de Morgenthau com o conceito de tica da respon-sabilidade e o seu significado especfico em termos da poltica inter-nacional tornam-se evidentes a partir da seguinte passagem deAPo-ltica Entre as Naes (Morgenthau, 2003), em que o autor justificapor que os interesses nacionais devem seguir uma lgica baseada nopoder e no em consideraes baseadas em princpios morais abstra-tos:

    [...] exatamente o conceito de interesse definido em termos de po-der que nos salva tanto daquele excesso moral como da loucura pol-tica, porque se considerarmos todas as naes, inclusive a nossa,como entidades polticas em busca de seus respectivos interesses de-finidos em termos de poder, teremos condies de fazer justia a to-das elas. E estaremos fazendo justia a todas em um duplo sentido:podemos julgar outras naes como avaliamos a nossa e, tendo julga-do deste modo, seremos capazes de executar polticas que respeitamos interesses das demais naes, ao mesmo tempo em que protege-mos e promovemos os nossos prprios interesses. Em poltica, a mo-derao tem necessariamente de refletir a moderao no julgamentomoral (idem:22).

    A concepo do realismo como teoria decorrente da tradio do pen-samento alemo em cincias sociais se mostra sobremaneira maisconsistente do que o recurso a leituras reificadas, simplistas e fora decontexto dos pensadores clssicos da Cincia Poltica, cujos objetosde estudo se associavam ao bem-estar no interior dos Estados. Hob-bes e Maquiavel, apontados por Carr como fundadores da teoria rea-lista em Relaes Internacionais, voltavam seus escritos para a afir-mao do Estado nacional em um contexto de revolta contra o pensa-mento escolstico, tpico da aurora da modernidade. necessrio

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    Relaes Internacionais e Direito...

    129

  • grau considervel de violncia para proceder reduo do pensa-mento desses autores concepo amoral da poltica convencional-mente difundida entre os tericos de Relaes Internacionais.

    Em termos da interface entre Relaes Internacionais e Direito Inter-nacional, o paradigma realista da primeira destas disciplinas impeprospectos exguos de cooperao interdisciplinar, na medida emque, ao Direito Internacional, reservado um escopo reduzido e umaaplicabilidade duvidosa nas relaes internacionais. O desembarquede Morgenthau do pensamento nietzschiano no que se refere a ques-tes normativas, contudo, prdigo em significados em termos dainterface entre Relaes Internacionais e Direito Internacional, fa-zendo-o caminhar na direo de uma posio mais moderada acercado papel exercido pelas normas jurdicas internacionais.

    Escola Inglesa e a busca

    pela via media

    A contraposio entre as propostas analtica e normativa apresenta-das por Morgenthau (2003) faz de A Poltica Entre as Naes um li-vro cujas proposies centrais se mostram contraditrias. De umlado, as leis fundamentais da poltica so determinantes no cenriointernacional, conduzindo a um determinismo impossvel de ser mo-dificado pela ao do estadista. De outro lado, a sensibilidade do es-tadista quanto aos interesses nacionais e apreenso das caractersti-cas particulares de uma determinada situao importante para aproduo de resultados na poltica internacional. Como apontouKoskenniemi (2002:470), a afirmao simultnea do constrangi-mento e da liberdade foi crucialmente importante como o fundamen-to da tcnica polmica de Morgenthau. A tentativa, por parte deMorgenthau, de conjugar elementos realistas e idealistas em suaobra magna f-lo convergir, em importantes aspectos, na direo dostericos da chamada Escola Inglesa da disciplina de Relaes Inter-nacionais.

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    130 CONTEXTO INTERNACIONAL vol. 28, no 1, jan/jun 2006

  • Para Martin Wight (1991), os realistas so aqueles tericos que enfa-tizam e se concentram sobre o elemento da anarquia internacional, apoltica de poder e o estado de guerra. Os racionalistas enfocam oelemento da interao entre os Estados no cenrio internacional,concentrando-se sobre as instituies criadas pelos mesmos parapossibilitar o intercurso mutuamente benfico em ambiente anrqui-co. Os revolucionistas caracterizam-se por uma espcie de cartermissionrio, concentrando-se, em ltima instncia, em prescriesvoltadas para ideais de cunho cosmopolita.

    Ao longo de sua carreira intelectual, Martin Wight demonstrou tra-os incontrastveis de sua preferncia pela tradio racionalista e seuvis grociano, em detrimento das tradies capitaneadas por Maquia-vel e Kant. Hedley Bull seguiu o mesmo vis e ambos os tericos soassociados comumente ao grocianismo e ao estudo da sociedadeinternacional. Wight (idem:21) caracteriza a tradio racionalistacomo uma espcie de via media entre os extremos representados pe-las tradies realista e revolucionista, sntese entre a poltica de poderpura apregoada pelos realistas e as prescries idealistas propostaspelos revolucionistas: assim como Morgenthau, ele busca projetaruma fronteira terica que se situe entre os extremos da poltica de po-der e do idealismo.

    A convergncia entre as propostas de Morgenthau e Wight, particu-larmente a busca por uma viamedia no estudo das relaes internaci-onais, resulta da convergncia desses tericos em torno de valoresocidentais de matriz europia. O prprio Wight (1966:91) definiu abusca por um meio-termo, um juste milieu entre extremos, como aprincipal influncia dos valores ocidentais no estudo das relaes in-ternacionais, ao lado da filosofia poltica voltada para o estudo de go-vernos constitucionais. Com efeito, a busca pela viamedia uma pe-rene caracterstica do pensamento ocidental de matriz europia, sen-do que suas razes podem ser traadas at o conceito de justia desen-

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  • volvido por Aristteles, citado por Wight (idem:89) como o ponto departida da forma de pensar caracterstica da civilizao ocidental.

    Segundo Aristteles (1987), a justia uma virtude que engloba to-das as outras e se situa precisamente no meio-termo. Assim, a umapostura justa correspondem duas posturas injustas dispostas em ex-tremos opostos. A fora dessa concepo pode ser aferida pelo fatode, at os dias de hoje, os ordenamentos jurdicos carregarem consi-go o brocardo onde h justia demais, h injustia, ou seja, a justianunca corresponde a uma atitude extremada, sendo sempre ditadapela moderao. Para ilustrar essa ltima colocao, til citar ima-gem muito comum em sede jurdica: associa-se uma situao justa aopndulo de um relgio em sua posio central e a injustia ao posici-onamento do pndulo em qualquer das duas extremidades opostas.Na nsia de se fazer justia, possvel que, ao deslocar o pndulo deuma extremidade para o centro, acabe-se por lev-lo outra extremi-dade, permanecendo-se em uma situao injusta. Assim, a justiademais corresponderia ao movimento de uma extremidade a outra,ou seja, de uma posio injusta a outra.

    No difcil, ante ao exposto, estabelecer uma analogia entre a con-cepo aristotlica de justia e a diviso levada a cabo por Wight(1991) do pensamento sobre as relaes internacionais: as correntescapitaneadas por Maquiavel e Kant serviriam como extremos paraque a posio central, representante da moderao, acabe por ser pri-vilegiada, carregando toda a carga de um conceito de justia que seencontra na base intelectual da civilizao ocidental. Com efeito,Howard Williams e Ken Booth (1996:72) identificaram, na divisoproposta por Wight, um tpico truque ingls, que consiste em esta-belecer dois extremos implausveis para realar a preponderncia domeio-termo.

    A estrutura dos argumentos apresentados por Morgenthau e pelaEscola Inglesa tambm responde pela escolha do meio-termo em de-

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  • trimento de posies extremas: a sociedade de Estados independen-tes constitui forma de organizao poltica da humanidade prefervelaos extremos representados pelo estado de guerra permanente e pelaconcepo normativamente voltada para o estabelecimento da civi-tasmaxima; a noo de moralidade internacional criada no mbito dasociedade europia de Estados defendida por situar-se entre os ex-tremos representados pela raison dtat, relacionada poltica de po-der em seu estado puro, e a conduta que segue o adgio latino fiat jus-titia et pereat mundus10, relacionado defesa incondicional da prti-ca de aes condizentes com a moral individual.

    Em termos da relao entre Relaes Internacionais e Direito Inter-nacional, a influncia dessa busca pelo meio-termo partilhada porMorgenthau e pelos tericos da Escola Inglesa resulta em uma con-cepo do papel exercido pelas normas jurdicas internacionais quese situa entre os opostos claramente demarcados pelos seus negado-res, que no cogitam da existncia de normas jurdicas em mbito in-ternacional, e os kantianos, que postulam ser possvel subsumir a po-ltica internacional em um arcabouo normativo racionalmente con-cebido por meio do Direito Internacional. A busca pelo meio-termo eo papel das normas jurdicas internacionais que dela resulta se reve-lam j na abertura do captulo de A Poltica Entre as Naes (Mor-genthau, 2003) que se destina anlise do Direito Internacional:

    Deve-se relembrar, ao iniciarmos a discusso sobre direito interna-cional, o mesmo aviso de cautela contra os extremos com que foi ini-ciado o exame, respectivamente, da moralidade internacional e daopinio pblica mundial. Um nmero crescente de autores expres-sam a opinio de que no existe o que se costuma chamar de direitointernacional. E, por outro lado, um nmero decrescente de observa-dores mantm a convico de que, se fosse devidamente codificado eampliado, de modo a regular as relaes polticas entre os Estados,ele poderia, graas sua prpria fora intrnseca, transformar-se em

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  • algo que substitusse a disputa pelo poder no cenrio internacional,ou pelo menos em uma influncia limitadora da mesma (idem:505).

    Para Morgenthau e os tericos da Escola Inglesa, o Direito Internaci-onal mostrar-se-ia eficiente como mecanismo regulador das reasnas quais fosse observada convergncia ou complementaridade entreos interesses dos Estados envolvidos, sendo incapaz de fazer prevale-cer seus comandos nos aspectos conflituosos da vida internacional.Seguindo essa perspectiva, as normas de Direito Internacional ten-dem a se concentrar sobre as regras bsicas de coexistncia entre osEstados, posto que haveria interesse comum na manuteno da or-dem internacional, constituda sob a forma de uma sociedade deEstados independentes, o que lana luz novamente sobre a unio dosreferidos tericos sob a gide dos valores europeus. Defende-se aconcepo grociana do Direito Internacional como instrumento vol-tado para a manuteno da sociedade europia de Estados resultantedo final da Guerra dos Trinta Anos, cujo trao marcante o esta-do-centrismo: o Estado detm o monoplio da personalidade jurdi-ca internacional.

    Behaviorismo e

    decadncia: o pice do

    afastamento

    Bull (1969) identificou a tenso decorrente da existncia de duasabordagens distintas sobre as relaes internacionais, que ele deno-minou de clssica e cientfica. A abordagem clssica, caractersticade tericos como ele prprio, Wight e Morgenthau, apregoava umaforma de teorizao que derivava da Filosofia, da Histria e do Direi-to. Segundo Bull (idem), a adoo dos padres estritos de verificaoe prova no produz resultados significantes quando o objeto de estu-do a relao entre os Estados. Por sua vez, a abordagem cientficaaspirava a uma teoria das relaes internacionais cujas proposies

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  • fossem baseadas na prova matemtica ou lgica ou, ainda, em proce-dimentos empricos estritos de verificao. Esta forma de teorizaoera caracterstica de nomes como Morton Kaplan, Thomas Schellinge Karl Deutsch, sendo possvel relacion-la s teorias dos sistemasinternacionais (idem:21).

    Desse novo ambiente de conflito intelectual resultou, de acordo comas palavras de Kaplan (1969), um novo grande debate na disciplinade Relaes Internacionais, entre os clssicos ou tradicionalistas e oscientficos ou behavioristas (idem:39). As teorias tradicionalistaseram derivadas, em certa medida, dos escritos de autores mais anti-gos sobre Direito Internacional e reservavam espao em suas aborda-gens ao papel das normas jurdicas internacionais, ao passo que asproposies lgicas, os modelos e os mtodos quantitativos caracte-rsticos dos behavioristas acabavam por excluir a anlise do papel doDireito Internacional dos estudos sobre poltica internacional.

    Nesses termos, medida que a disciplina de Relaes Internacionaisse consolidava como uma cincia social norte-americana (Hoff-mann, 1991), no rastro da proeminncia dos Estados Unidos, que ad-quiriram o status de superpotncia ao final da Segunda Grande Guer-ra, prevalecia uma metodologia que resultava em um estudo da pol-tica internacional completamente alheio s consideraes sobre oDireito Internacional. A partir dessa conjuntura, no surpreende queo livro Theory of International Politics, de Kenneth Waltz (1979), aobra mais influente que resultou do movimento behaviorista na dis-ciplina de Relaes Internacionais, somente se refira s leis em suaconotao atinente s relaes lgicas e explicaes cientficas (Kos-kenniemi, 2002:472). Waltz (1979) considerava que a anarquia dosistema internacional determinava o comportamento dos Estados,motivo pelo qual as normas dentre elas aquelas emanadas do Direi-to Internacional no exerciam qualquer efeito causal independentesobre os Estados.

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  • No bastasse essa conjuntura, no campo do Direito Internacionalpredominava forte ostracismo no perodo, na esteira da decadnciaobservada nesta disciplina na segunda metade do sculo XX, cujasrazes remontam ao ceticismo lanado por tericos como Morgent-hau e Schmitt. Brian Simpson (2002:996) apontou, com base na lite-ratura norte-americana sobre o assunto, que a referida decadnciase deveu a uma conjuno de fatores que acabaram por destruir ocompromisso com o primado do Direito e com o provimento de umajustia imparcial. Dentre tais fatores, merecem destaque a ganncia,o realismo, o pragmatismo, a irresponsabilidade das academias deDireito e o ativismo judicial.

    A confluncia entre a prevalncia do neo-realismo na disciplina deRelaes Internacionais e o perodo de decadncia do DireitoInternacional representou brusco afastamento entre os estudiososdessas duas disciplinas; se, por um lado, os tericos da poltica inter-nacional concentravam-se em estudos estritamente ligados s ques-tes de deterrence e das causas da guerra, por outro lado, os juristasocupavam-se cada vez mais do lado profissional do Direito, abdican-do das teorias sobre o ambiente internacional que marcaram os pero-dos mais proeminentes do Direito Internacional.

    medida que a Guerra Fria era levada a termo, contudo, as proposi-es neo-realistas foram objeto de contestaes por parte dos teri-cos envolvidos com o estudo das relaes internacionais. Argumen-tava-se, entre outras coisas, que as normas seriam elementos relevan-tes para o estudo da poltica internacional. Os juristas internacionais,por sua vez, buscando superar o estado de ostracismo que prevaleciano Direito Internacional, encontraram nas teorias sobre as relaesinternacionais elementos que se adequavam s problemticas da dis-ciplina que se achavam intimamente ligadas poltica internacional.Dessa forma, ao final da Guerra Fria, os tericos de Relaes Interna-cionais e do Direito Internacional reaproximaram-se, sendo neste

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  • contexto criadas as teorias institucionalista, liberal e construtivista,resultantes de empreendimentos interdisciplinares.

    A Reaproximao ao Final

    da Guerra Fria:

    Institucionalismo,

    Liberalismo e

    Construtivismo

    O institucionalismo

    A contnua prevalncia do realismo na disciplina de Relaes Inter-nacionais passou a ser contestada pela observao da perenidade exi-bida por certos arranjos normativos internacionais s expensas dasvariaes dos atributos de poder entre os membros do sistema inter-nacional. Esse descompasso representava anomalias empricas da te-oria realista, posto que esta considera serem as instituies internaci-onais sempre o reflexo ou o espelho da distribuio de poder entre osatores do sistema internacional. Mais especificamente, viso geral,segundo a qual haveria um declnio da hegemonia norte-americanaestabelecida desde o fim da Segunda Grande Guerra, contrapunha-sea constatao de que permanecia em funcionamento a estrutura cria-da ao final daquele conflito.

    Nesse contexto, reabriu-se o dilogo entre os tericos da poltica in-ternacional e os juristas internacionais, por meio da criao da teoriainstitucionalista11. A convergncia em relao ao objeto de estudo doDireito Internacional pode ser aferida a partir da definio dos regi-mes internacionais produzida pelos tericos institucionalistas: regi-mes so conjuntos, implcitos ou explcitos, de princpios, normas,regras e procedimentos de tomada de deciso em torno dos quaisconvergem as expectativas dos atores em uma determinada rea dasrelaes internacionais (Krasner, 1982:2).

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  • A teoria institucionalista na disciplina de Relaes Internacionais capitaneada por Robert Keohane surgiu como contrapartida proe-minncia lograda pelo neo-realismo. Contudo, assim como oneo-realismo, o institucionalismo deve ser compreendido dentro doambiente intelectual caracterstico dos Estados Unidos, particular-mente a partir do consenso observado na academia norte-americanaquanto s premissas basilares que deveriam direcionar o estudo dapoltica internacional, a saber, o papel central concedido estruturainternacional anrquica, a concepo do Estado como ator primordi-al e a caracterizao deste como um ator que age baseado no au-to-interesse.

    A ltima dessas premissas se relaciona com a adoo do modelo doator racional, conseqncia da revoluo behaviorista que invadiu oestudo das relaes internacionais e imprimiu um vis nitidamenteeconomicista nas teorias voltadas para a poltica internacional.Como pano de fundo referida aplicao de mtodos e idias prove-nientes da Economia, residia o compromisso dos tericos da polticainternacional com o mtodo cientfico positivo. Em uma rea de estu-dos relativamente recente como a poltica internacional, ciosa deatestar o seu carter cientfico, nada mais conveniente do que a im-portao dos mtodos da cincia social que observou a influnciamais avassaladora da metodologia proposta por Augusto Comte, tidacomo sinnimo de cientificidade por boa parte dos acadmicos nor-te-americanos poca.

    Ocorre que o positivismo impe limitaes ao debate interdisciplinarentre os tericos da poltica internacional e os juristas internacionais,na medida em que dificulta a apreenso dos efeitos das normas nomundo social. Como afirmaram Friedrich Kratochwil e John Ruggie(1986), lanando as bases da crtica construtivista s teorias raciona-listas (realistas e institucionalistas), h complicaes inerentes concepo das normas como ocorrncias causais, o que dificulta a

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  • aplicao das relaes de causa e efeito tpicas do positivismo. Naspalavras destes autores:

    Normas podem guiar o comportamento, podem inspirar o com-portamento, podem racionalizar o comportamento, podem expres-sar expectativas mtuas sobre o comportamento, ou podem ser ig-noradas. Mas elas no correspondem a uma causa no sentido em queum projtil de arma de fogo ao atravessar o corao causa a morte ouum surto incontrolado na oferta de dinheiro causa inflao(idem:355).

    Alm disso, a formulao de leis gerais caracterstica do positivismo,a partir de constataes empricas, tambm resulta em problemaspara uma anlise do papel exercido pelas normas, uma vez que estasso vlidas ainda que em termos contrafatuais. Mesmo em caso dedescumprimento, uma norma no perde a sua validade, ao contrrioda concepo de lei sustentada pelos positivistas. Dirigir embria-gado, por exemplo, no refuta a norma que probe os indivduos dedirigir sob a influncia do lcool. Segue-se a concluso desses auto-res:

    O impacto das normas dentro dos regimes internacionais no umprocesso passivo, que pode ser apreendido de forma anloga s leisnewtonianas que governam a coliso entre dois corpos. Assim, a pr-tica comum de tratarem-se as normas como variveis sejam elasindependentes, dependentes, intervenientes, ou o que quer que seja deve ser severamente repreendida (idem:356).

    De um lado, o fato de o institucionalismo incorporar as premissas ba-silares do neo-realismo permitiu que os seus proponentes evitassemuma reedio do debate entre realistas e idealistas, o que propor-cionou maior amplitude reabertura do dilogo com os juristas inter-nacionais. De outro lado, contudo, ao adotarem as premissas basila-res do realismo, notadamente o seu enfoque estado-cntrico, os insti-tucionalistas afastaram-se das questes mais prementes do estudo do

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  • Direito Internacional no ps-Guerra Fria, como o papel exercido pe-los atores domsticos e transnacionais e a anlise de temas como di-reitos humanos e o acesso dos atores no-estatais aos tribunais inter-nacionais.

    Alm disso, os tericos institucionalistas comungam com os realis-tas uma viso exgena dos interesses dos Estados. Em outras pala-vras, os interesses so tomados como dados a partir da proposiode que os Estados agem, necessariamente, baseados em sua concep-o dos seus prprios interesses. Nesses termos, as normas jurdicasinternacionais so concebidas como instrumentos utilizados peloEstado para satisfazer o seu auto-interesse previamente formulado.Como resultado, o Direito Internacional, dentro do paradigma insti-tucionalista, apesar de ressurgir da completa obscuridade a que foirelegado pelo neo-realismo, restringe-se ao papel de varivel inter-veniente, posicionando-se entre os fatores causais bsicos como in-teresse e poder e os resultados produzidos no cenrio internacional.

    A discusso relativa aos motivos que conduzem os Estados aquies-cncia12 perante as normas jurdicas internacionais encontra a suaresposta, no mbito da teoria institucionalista, na medida em que es-tas normas ajudam os Estados a satisfazer os seus interesses, porexemplo, ao aumentar o fluxo de informaes ou ao reduzir os custosde transao e os incentivos para a violao dos acordos assumidosinternacionalmente.

    Ao fim e ao cabo, os desafios impostos pelos institucionalistas aos re-alistas reabriram o dilogo entre Relaes Internacionais e DireitoInternacional ao propor um enfoque da poltica internacional basea-do em elementos como normas, regras, princpios e procedimentosde tomada de deciso. Contudo, o compartilhamento de certas pre-missas, como o estado-centrismo e a viso dos interesses estataiscomo fixos e exgenos, com os mesmos tericos realistas foi respon-svel, em grande medida, pela limitao dos estudos interdisciplina-

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  • res entre juristas internacionais e tericos da poltica internacional.Apesar das limitaes reaproximao entre Direito Internacional eRelaes Internacionais no mbito do institucionalismo, o resgate doenfoque sobre elementos afinados com o objeto de estudo dos juris-tas internacionais abriu espao para propostas interdisciplinaresmais profundas.

    O liberalismo

    Aps o final da Guerra Fria, observou-se um movimento de resgatedas proposies da teoria liberal de Relaes Internacionais, a partirdos trabalhos de juristas internacionais e tericos da poltica interna-cional, notadamente Anne-Marie Slaughter (1993) e Andrew Mo-ravcsik (1997). No rastro da percepo de que a globalizao acentu-ou a importncia dos atores no-estatais, os liberais propem o enfo-que sobre o papel dos atores sociais na formao dos interesses esta-tais, que no so mais considerados exgenos e fixos como propu-nham realistas e institucionalistas , mas determinados a partir dasrelaes sociais estabelecidas em mbito domstico e transnacional.

    Os liberais, resgatando a importncia do vnculo estabelecido porKant e Wilson entre a organizao poltica interna dos Estados e oseu comportamento na esfera internacional, enfatizam a importnciada poltica domstica para os resultados produzidos no sistema inter-nacional. Como pano de fundo, subsiste a premissa de que o vis derepresentao presente nas instituies polticas responsvel pelaproduo de resultados subtimos para a populao dos Estados con-siderada em sua totalidade, como as guerras e o protecionismo co-mercial, por exemplo, que oneram a maioria da populao para o be-nefcio de pequenos, mas influentes, grupos de interesse.

    Andrew Moravcsik (idem), com o artigo Taking Preferences Seri-ously: A Liberal Theory of International Politics, buscou restabele-cer a teoria liberal na disciplina de Relaes Internacionais, a partir

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    Relaes Internacionais e Direito...

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  • de trs proposies que comporiam o seu ncleo duro: 1) a primaziados atores sociais: os atores fundamentais na poltica internacionalso os indivduos e grupos privados, em mdia, racionais e avessosao risco; eles organizam trocas e aes coletivas de forma a promo-ver interesses diferenciados sob restries impostas pela escassezmaterial, valores conflitantes e variaes no poder de influncia so-cial; 2) representao e preferncias estatais: Estados (assim como asdemais instituies polticas) representam uma parcela da sociedadedomstica e agem movidos pelos interesses desta parcela; 3) interde-pendncia e o sistema internacional: a configurao das prefernciasde Estados interdependentes determina o seu comportamento. Emoutras palavras, apesar de os interesses estatais serem formadospr-socialmente, o seu comportamento uma funo dos interessesde outros Estados (idem:516-521).

    A teoria liberal da poltica internacional apresentada por Moravcsik(idem) e adotada por Slaughter vai de encontro s concepes con-vencionalmente estabelecidas sobre o liberalismo na disciplina deRelaes Internacionais (Slaughter, 2000:37). O liberalismo co-mumente associado ao institucionalismo, associao esta que origi-nou a nomenclatura institucionalismo neoliberal. Slaughter e Mo-ravcsik, contudo, fornecem subsdios para a contestao dessa asso-ciao; o resgate do liberalismo por eles proposto est assentado so-bre premissas muito distintas daquelas sustentadas pelos institucio-nalistas.

    O institucionalismo, moda do realismo, adota o enfoque esta-do-cntrico e deriva os resultados da poltica internacional a partir dehipteses sistmicas, diferindo dos realistas apenas na medida emque confere efeito causal independente s instituies internacionais,para as quais os institucionalistas voltam a sua anlise, o que os fazconvergir para a perene orientao terica grociana de estudos sobreo sistema internacional. O liberalismo, por outro lado, busca as hip-teses explicativas dos resultados produzidos na poltica internacional

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  • a partir da ao da sociedade civil domstica e transnacional so-bre os Estados. A deturpao decorrente da nomenclatura instituci-onalismo neoliberal nada mais do que o resultado da crena dostericos de Relaes Internacionais na existncia do idealismo noperodo entreguerras: moda do idealismo, o institucionalismoneoliberal congrega orientaes tericas sobremaneira distintas en-tre si.

    Em artigo clssico para a promoo do debate interdisciplinar,Slaughter (1993) props uma agenda dual para a cooperao entre ostericos de Direito Internacional e de Relaes Internacionais. A du-alidade correspondia s possibilidades abertas pelos paradigmas ins-titucionalista e liberal para o debate interdisciplinar. Ao contrrio doinstitucionalismo, cuja opo pelo modelo do Estado como ator uni-trio impede teorizaes a respeito das relaes entre os atores soci-ais e os Estados, o liberalismo capaz de incluir em sua proposta dedebate interdisciplinar temas como Direito Transnacional e direitoshumanos, neste ltimo caso indo ao encontro da tendncia observadano Direito Internacional Pblico de considerar o indivduo comopessoa internacional.

    Na esteira das possibilidades abertas para a contribuio recprocaentre os tericos de Relaes Internacionais e do Direito Internacio-nal, desenvolveu-se, simultaneamente reconstruo do paradigmaliberal em Relaes Internacionais, uma agenda de pesquisa voltadapara o debate interdisciplinar. Deve-se observar que os tericos insti-tucionalistas, gradualmente, observaram um movimento de desloca-mento de premissas prximas ao realismo a premissas mais afins aoliberalismo, a partir da constatao de que o estudo da poltica inter-na dos Estados constituiria um subterfgio para o tratamento dasanomalias com as quais se deparava a teoria institucionalista. Provadisso o fato de Slaughter e Moravcsik serem acompanhados, no es-tudo da legalizao13 um marco em termos do debate interdisci-plinar promovido sob a gide da teoria liberal por tericos como

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    Relaes Internacionais e Direito...

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  • Robert Keohane e Judith Goldstein, expoentes do paradigma institu-cionalista.

    O estudo da legalizao possibilitou a anlise de questes de inte-resse das disciplinas de Relaes Internacionais e do Direito Interna-cional, como as conseqncias do acesso de atores no-estatais sCortes Internacionais, o debate acerca das formas jurdicas duras esuaves e, ainda, a aquiescncia. Com respeito a esta ltima, desta-que-se que o estudo da legalizao amplia a sua anlise ao permitira construo de hipteses que se baseiam na poltica domstica dosEstados. As normas emanadas do Direito Internacional no so maisconcebidas como instrumentos para satisfazer os interesses dos Esta-dos, mas podem transformar estes ltimos na medida em que tm opoder de modificar a correlao domstica e transnacional de foras:ao favorecer alguns grupos em detrimento de outros, as referidas nor-mas participam da constituio dos interesses dos Estados.

    Como pode ser aferido por meio do estudo da legalizao, entre-tanto, os tericos liberais empregam, ostensivamente, a exemplo dostericos institucionalistas, a epistemologia positivista. As conse-qncias oriundas da presena de normas jurdicas internacionaisainda so apreendidas com base no modelo positivista, que se con-centra sobre as relaes de causa e efeito e a formulao de leis geraisa partir de investigaes empricas. Nesse sentido, as crticas de Kra-tochwil e Ruggie (1986) utilizao da epistemologia positivista naanlise das normas tambm se aplicam, em grande medida, aos teri-cos liberais.

    Alm disso, apesar de o liberalismo tornar endgeno os interessesdos Estados, os interesses dos atores sociais fundamentais para osliberais so exgenos e anteriores ontologicamente s normas jur-dicas. Estas ainda que no sejam concebidas como meros instru-mentos para concretizar os interesses estatais so instrumentos queservem aos interesses utilitaristas dos atores sociais.

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    144 CONTEXTO INTERNACIONAL vol. 28, no 1, jan/jun 2006

  • Desconstruindo a anarquia

    e as normas jurdicas o

    construtivismo e o debate

    interdisciplinar

    A derrocada pacfica da Unio Sovitica, pondo fim Guerra Fria,

    imps contundentes desafios aos estudiosos da poltica internacio-

    nal, pois os paradigmas reconhecidamente dominantes poca o

    neo-realismo e o institucionalismo no dispunham de instrumentos

    analticos para explicar a extino no-belicosa de uma superpotn-

    cia como o Estado sovitico. medida que crescia a percepo de

    que o entendimento da origem dos interesses dos atores se mostrava

    indispensvel para a explicao dos resultados observados na polti-

    ca internacional, abriu-se espao, na disciplina de Relaes Interna-

    cionais, para perspectivas focadas em aspectos culturais e sociolgi-

    cos, que, enfatizando a construo social dos elementos basilares do

    sistema internacional, acabaram por ser reunidas sob a nomenclatura

    construtivismo (Katzenstein et alii, 1998).

    Sintomaticamente, em 1989, ano da queda do Muro de Berlim, sm-

    bolo do fim da Guerra Fria, duas obras lanaram as bases para a abor-

    dagem construtivista na disciplina de Relaes Internacionais, am-

    bas enfocando o papel das regras, concebidas em sentido amplo, para

    a compreenso da poltica internacional14. Concomitantemente ao

    Muro de Berlim, comeava a desmoronar a prevalncia do paradig-

    ma neo-realista no estudo das relaes internacionais, uma vez que

    este paradigma se encontrava envolvido em um oceano de anomalias

    na esteira do fim da bipolaridade que marcara o sistema internacional

    desde o final da Segunda Grande Guerra.

    O enfoque construtivista sobre as regras e normas abre um vastocampo de anlises para a conciliao entre os estudos sobre a polticainternacional e aqueles sobre Direito Internacional, como o papel

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    Relaes Internacionais e Direito...

    145

  • exercido pela legitimidade, pelo Direito costumeiro internacional e,inclusive, os efeitos que a varivel poder exerce no cenrio internaci-onal. Assim, no surpreende que Friedrich Kratochwil e NicholasOnuf apresentem em comum uma slida formao intelectual nocampo do Direito. Da mesma forma que o liberalismo e, em menormedida, o institucionalismo, pode-se afirmar que o construtivismo,na disciplina de Relaes Internacionais, constitui uma teoria desen-volvida a partir de esforos que uniram tericos tanto do DireitoInternacional quanto de Relaes Internacionais.

    De um ponto de vista mais abrangente, o construtivismo deu seqn-cia s contestaes dos tericos crticos da poltica internacional que,no rastro do Terceiro Grande Debate da disciplina de RelaesInternacionais, questionaram as bases sobre as quais se assentavamos paradigmas dominantes poca, o realismo e o institucionalismo(Reus-Smit, 1996). Os construtivistas desenvolveram a agenda crti-ca na medida em que forneceram os alicerces para uma concepoontolgica alternativa da poltica internacional, na qual os