Domingo com Sol1 -...

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Créditos: Capa e contra capa – layout - Celso Ilustração*/ Desenhos – Celso Digitação - Celso Revisão – Celso, o revisor automático e um dicionário virtual * os desenhos das ilustrações foram baseados em fotos da net.

Dados para impressão: Capa, contra capa e miolo: Tamanho: 21 cm x 14,8 cm total de páginas : 77 margens espelhadas: interna – 1,5cm externa – 1,3cm superior – 1,6 cm inferior – 1,1cm

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Fulieri, Celso Fernandes

Domingo com Sol / Celso Fernandes Fulieri Taubaté / São Paulo / Brasil

Índice para catálogos sistemáticos 1. contos brasileiros: Literatura brasileira – 30-0983 - livro eletrônico – ebooks – arquivo pdf

Projeto Saci de incentivo à escrita e a leitura

I.D.E.I.A. – é simples quando se tem

Copyright© Celso Fernandes Fulieri 2011.11.29- 30-0983

O conteúdo desta obra é de responsabilidade do autor, proprietário do Direito Autoral

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Agradecimentos Aos meus filhos Celsinho, Cintia, meu neto Caio, meu genro Rafael, motivos de muita alegria. Sol e sol inseparáveis ao longo desta história. Ao mano que voltou. Ao mano que continua por aqui. Os/as amigos/as que costumam comentar os meus trabalhos. Guigui e Vó Tina - meus pais – a benção. Ao Criador, por esta luz imprescindível.

Celso

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Contato com o autor

e-mail: [email protected] antecipo os agradecimentos

Celso

Sei que não adianta nada, mas é proibida a reprodução total ou parcial sem a autorização do autor.

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As coisas que realizo, nunca são tão perfeitas quanto às que eu sonho. Mas às vezes, acontece das coisas serem tão perfeitas, que nunca pensei em sonhá-las. Agradáveis surpresas do destino

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Introdução

u sou tímido, sim, muito tímido e romântico. Sei que esta não é a melhor maneira de começar uma

crônica, mas precisava deixar esclarecido este meu lado, as-sim, para algumas passagens que citarei, não será necessário fazer tantas explicações. Então, por favor, lembrem-se: eu sou tímido. A web space (droga, o corretor automático me diz que esta palavra não existe, vai assim mesmo), me ofereceu a oportuni-dade de conhecer Sol. Eu ali atrás daquela enorme parede virtual e ela do outro lado trocávamos mensagens, compartilhávamos do mesmo site (sei não, essa palavra também não existe?) de relacionamento e assim foi por uns tempos. Ocasionalmente, Sol fazia uma cobrança velada aqui, outra ali; muito discreta: -...e quando vamos nos conhecer, nos encontrar? Sim; aconteceu dela ser mais objetiva, direta, (não vou escre-ver aqui; não insistam), pois quem conhece Sol sabe do quanto ela é capaz de falar e para mim até então, escrever. Bom, já havia adiado o suficiente para conhecer Sol pessoal-mente. Não! Não foi bem assim; adiar. Deixe-me explicar, eu aguardava uma oportunidade diferente, única, especial mar-cante, e que aconteceu. Mês de novembro; o site de relacionamento me manda uma mensagem: “Esta semana Sol faz aniversário, mande gift virtual ou uma mensagem para ela”. ...Prefiro mandar uma mensagem, algo de minha autoria, mas só isso? Claro que não, eu...

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Plano quase mirabolante

ou levar a mensagem pessoalmente, mas com um deta-lhe, um toque diferente, a lá Celso.

Coisa simples, assim pensei e eis o que seria: Eu de qualquer jeito estaria lá na casa de Sol; em um horário pré-determinado e ao mesmo tempo, alguém que se faria pas-sar por mim na net; pois até então, era assim que nós nos co-municávamos, e a chamaria para dar os parabéns etc e tal. Cri-ar um clima de suspense, algo que levasse Sol a pensar com quem realmente ela estaria conversando, e lógico, que depois iria me revelar. Na minha cabeça tudo funcionava como um relógio suíço. Alguns detalhes se faziam necessário. O horário: 15 horas. Quem iria ser eu: claro, um amigo (pua!). Segue o diálogo entre eu e ele que aconteceu na terça feira da semana do aniversário de Sol: - Você pode fazer isso para mim? É uma brincadeira com uma pessoa muito especial... - Cê é louco sô! Mas, pode contar comigo. - Então, aqui está o texto, a maneira como costumo escrever para ela, e cuidado aqui, ok? Eu não escrevo “naum”, evito abreviaturas, termos chulos... a trato de gata, garota... - Entendi, entendi... Agora, ele olhava para a folha que eu havia lhe passado: - E isso aqui é o que vou escrever para ela, certo, vou ler todi-nho, e o vídeo é esse aqui, ta, ta, entendi, entendi tudo. Agora me diz uma coisa; como você “bola” essas coisas? - Depois lhe explico. Mais uma vez: isto tem que acontecer no sábado exatamente às 3 da tarde, que é a hora... - Tudo bem! Tudo bem! ‘Xá comigo

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- Você realmente não tem nada para fazer no sábado? Sua es-posa? Sem problemas? - Tudo bem, cara. Tudo bem. Depois explico para ela e sendo você; oh! Já pode considerar feito. ...Huuum! Não senti muita firmeza nessa última frase, não sei ou sei o porquê. Mesmo assim, tratamos de mais alguns detalhes. Quando dei por encerrado a minha permanência ali sob o olhar congelante da esposa, enquanto ele dava tapinhas em minhas costas, elo-giando a minha criatividade. Independente da minha cisma, eu repassei todo o plano, as fa-las, que na minha opinião estava tudo perfeito. Escrevi estava, porque na sexta por volta das 12:30 quando o telefone tocou; era o “amigo”. Aquele papo fiado de tempo, calor, chuva, frio, para iniciar uma conversa. Eu percebi o nervosismo dele e perguntei: - O que aconteceu? Pare de enrolar... - Você sabe como é a minha mulher. Meio assim... ela... essa coisa de eu passar por você, com outra, ela... e... é o seguinte, eu também não sabia, mas domingo é a missa de um ano de falecimento do peixinho dourado da avó dela... os familiares foram convidados, todos estarão lá, e eu vou sair na sexta a noite para não pegar transito, daí, aquele teu lance... Oh! Dessa vez não deu, mas quando precisar pode contar comigo. - Ta! Obrigado. Desliguei o telefone amaldiçoando todos os peixinhos doura-dos que morreram há um ano atrás.

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Volta por cima!

á deveria estar acostumado com isso. Não era e nem será a ultima vez que levo um tropicão desses.

...Então...então...vou chegar como Sabão* que é um palhaço, mas pode muito bem se passar por um gago. Perfeito, uma brincadeira light; sem susto, pois Sol em várias oportunidades citou os problemas cardíacos e com isso não se brinca. ...Mas espere aí, um momento. Havia esquecido um detalhe importantíssimo: ...Estaria Sol em casa no sábado? A minha resposta para mim mesmo era: não sei. ...E se ela fosse comemorar em outra casa, outro local? E agora? Preciso confirmar onde ela estará. Entrei na internet, e por volta das cinco da tarde comecei a disparar mensagens instantâneas. Que alívio quando a encontrei on line. O papo furado inicial, depois as cutucadas tradicionais e utili-zei o argumento de estaria na net on line, ao vivo e em cores no sábado para poder falar com ela, lhe dar os parabéns, mui-tas felicidades e coisas assim. Ela confirmou que estará em casa coordenando uma coisinha ou outra para receber amigos, parentes. Passei-lhe o horário do nosso encontro virtual e encerramos o bate papo, estando eu mais do que tranquilo. Apesar de ser uma bela sexta-feira, fico em casa, e passo a a-guardar a chegada do sábado, então, banho, janta e cama.

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*Sabão – o sabu tudo – personagem palhaço de minha autoria, que não tem um pingo de vergonha de ser feliz.

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É hoje o dia

despertador mostrou serviço. Berrou como nunca no ho-rário pré-estabelecido.

Magníficos raios de sol brindavam este amanhecer. - Sol e eu e sol, sol e eu e Sol. Pássaros cantando. Havia música, perfume no ar. Daqui para frente só alegria. Eta! Eu! Tenho como residência uma kit, onde quase todos os espaços são ocupados por qualquer coisa, ora por necessidade ora por bagunça, na qual me considero um mestre. No ato de dar aquela senhora espreguiçada, minhas mãos en-contraram com uma certa violência, não só a parede na qual a cabeceira da cama se encontra encostada, mas também a mesi-nha onde estava o relógio acima citado que saiu voando dali. A mão esfolou um pouquinho, e quanto ao despertador; é, vou precisar comprar outro. Na procura dos chinelos, descobri com a testa que havia dei-xado a porta do armário aberta. A canela esquerda percebeu as duras penas que o banquinho na cozinha não estava em baixo da mesa. Meu dedão do pé direito, de novo, lembrou daquele minúsculo degrau de acesso ao banheiro e que mais uma vez havia esque-cido a toalha quando já estava no chuveiro. Também não iria precisar, não tinha água. ...O que? Não tem água? Isso mesmo, nada de água. Mais por instinto do que curiosidade: ...O que pode ter acontecido? Não iria procurar a causa, vou ver o que posso fazer com o que tenho por aqui; água mineral. Para essa higiene pessoal racionada, vou precisar de um pouco mais de luz do que aquela que a natureza me oferecia

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naquele horário matinal. A luz artificial. Tenho por hábito antes de acionar o interruptor, de citar aquela frase bíblica: - Faça se a luz. E agora não tinha porque fugir a regra, então: - Faça se a luz! Com o dedo no interruptor: Tec, tec, tec, tec... Nada! ...Lâmpada queimada? É possível. Vou para o quarto e no interruptor, deixando a frase pra lá: Tec-tec-tec-tec! Nada também. ... Hum! Sorte grande ou sei lá; no dia que estou preparando-me para conhecer Sol; sem água e luz em casa. Está tudo bem! - Sol e eu e sol, sol e eu e Sol. ...Tenho velas. Ah! Aqui estão. Velas e meia dúzia de garrafas de água mineral com gás, e geladérrimas. Aquilo que um dia chamei de sabonete, agora era uma lamina fina, delgada e transparente. ...Caspta! Só tem isso de sabonete? Será que a vizinha me em-presta um? Acho que não.Ok! Vou aplicar outra frase bíblica: - Crescei-vos e multiplicai-vos! Mas quem sou eu! Quem sou eu para tal. Se milagres não a-contecem, então, vou ter que fazer um de qualquer jeito. Uma garrafinha para os pés. Minhas frieiras ficaram “encanta-das” com as borbulhas da água gelada. Agora...as partes que aqui vou denominar de sensíveis. Mais uma vez água gelada. Seria bobagem citar que “ele” se encolheu tanto que quase desapareceu. Que perigo, sô! Dando continuidade no esfrega e esfrega e enxágua; sovacos, braços, cabelos e dou por encerrado o banho, mesmo porque já havia usado toda a água, e agora enxugar. ...E a toalha de banho...? É; ficou lá no armário. Corro para o quarto, pelado, pingando e dando risadas, porque

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algumas bolhas retardaram em estourar. E me ponho a enxugar aqui, enxugar ali. Mais ou menos seco começo a procurar uma roupa para vestir e é claro que aconteceu. Aquela pequena poça d’água que se formou sob os meus pés, deixou aquele trecho do piso frio mais liso que quiabo. Foi fatal quando passei por ali para pegar cuecas e meias. Vi minha perna direita disparando em direção ao teto, a perna esquerda querendo fazer o mesmo, e a minha cabeça em rota inevitável de colisão com o chão. Por pouco

embram que eu escrevi que a minha testa havia encontra-do a porta do armário aberta? Não?

Capítulo anterior, nono parágrafo. Pois é, ainda estava, para minha sorte. Já sem apoio, me con-torci no ar e a agarrei. Aqui posso citar, sem medo de errar que ela foi a minha tábua da salvação. E agora é uma tábua realmente, pois a agarrei com tanta força que a arranquei. A vantagem é que agora tenho um armário permanentemente aberto, minha testa agradece. Sem mais tropeços, estou vestido e diante do espelho dou uma geral no visual e quando passo a mão no rosto. A barba. ...Hum! Mais essa agora; preciso apara-la. E água para tal? Tinha acabado, mas tenho uma mania dentre tantas. No congelador sempre deixo um pote de margarina com água para congelar. Tenho um certo fascínio por esses mini icebergs sem uma aplicação útil até agora. ...Para a barba, pedrona de gelo. ...E nossa! Até você? Não é possível.

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É; o creme de barbear que também já vinha anunciando há um bom tempo o seu fim, e agora nem isso fazia. Era um tubo es-turricado, todo retorcido; dali não sairia mais nada. Lembrei do detergente para louças, onde lê: ...“testado dermatologicamente”. Tentador né? Pensei, pensei e decidi pelo não. O restolho do sabonete teria a sua utilidade final. Como a temperatura ambiente não estava propícia para o dege-lo, decidi passar a pedra no rosto para adiantar. Por que eu fui fazer isso? Por que? Tenho uma obturação que mais parece tampa de bueiro e quando acontece de haver choque térmico é uma agulhada in-descritível. Isso sempre acontece quando do ingerir líquidos muito gelado. Agora essa dor porque passei o gelo no rosto foi a primeira e se tudo der certo será última vez. ...Sarou, sarou. Tudo bem, tudo bem, agora a barba. A posição do espelho do banheiro não é favorecida pela ilumi-nação natural. Então aqui mais velas que dispus no beiral da pia. A minha imagem ficou meio que fantasmagórica, mas eu conseguia aos poucos me barbear. Estava com o queixo levantado e com a lâmina por ali, quando escutei um “ploc”; a qual não dei muita atenção até começar a sentir cheiro de algo queimando. Quando olhei; fogo na pia. O “ploc” foi o barulho de uma vela que caiu justo em cima do tubo vazio do creme de barbear, que agora em chamas, lança-va uma fumaça fedida no ambiente. Tentando controlar o princípio de incêndio deixei o meu coto-velo em uma das velas acessa. Queimou só um pouquinho, mas o que ardeu... cascavel! Apesar disso, consegui terminar o barbear. Para finalizar; escovar os dentes; cujo tubo parecia uma mode-lo de passarela com anorexia.

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Esquálido e com ar de que dali também nada iria conseguir tirar, mesmo com reza brava. O sabonete já era. O detergente testado etc e tal, sem chance; então tinha que ser esse tubo mesmo, querendo ou não. Com brutalidade e uma raiva imensa, espremi o tubo até os nós dos dedos ficarem roxos. Caiu uma gota na escova e lá vou eu novamente fazer o milagre da multiplicação. Dou por encerrado a escovação, ent. Tinha deixado a pedra de gelo em cima de um copo que já me oferecia algo como meio copo de água, mais que o suficiente para o bochecho final, e o entornei. Ela ainda estava hiper gelada. Lembram da tampa de bueiro que tenho na boca; reage violen-tamente à bebida gelada... isso mesmo; preciso dizer que doeu horrores de novo? Fiquei de cócoras com as bochechas enfia-das no meio dos joelhos para tentar esquenta-las. A dor passou, e eu estou pronto para cair fora deixando para trás o quer que fosse que procurou de varias maneiras me a-borrecer, mas que não conseguiu. - Sol e eu e sol, sol e eu e Sol. Com todo o cuidado, pé ante pé comecei a sair de casa carre-gando a minha mochila, e como de praxe abençoando toda a minha bagunça. Nada mais poderia acontecer para testar a mi-nha paciência, pois dentro de alguns instantes estaria fora. - Sol e sol e eu, eu e sol e Sol. Quando puxei a porta; esta se travou, e a maçaneta ficou na minha mão. Não a parte maior, a menor, que é designada co-mo fêmea. Procurei encaixar na ponta que eu via, mas não consegui, pois esta correu para dentro. ... É, vou ter trabalho para entrar em casa quando retornar. - Mas está tudo bem! Sol e sol e eu, eu e sol e Sol.

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Ônibus e metro

o guichê da empresa de ônibus que irá me levar para São Paulo:

- Bom dia! Dentro de quinze minutos estará saindo um. Ah! Prefere um pouco mais tarde, para poder tomar um café sosse-gado; certo, tem sim senhor, dentro de quarenta minutos, lhe agrada este? Qual é a sua poltrona favorita? Qualquer uma? Perfeito. Eis a sua passagem e faça uma boa viagem. Olha a-qui, um jornal do dia para se entreter, por favor, pegue-o, leve-o é o ultimo exemplar. Sai dali não acreditando no tratamento que recebi. Até ganhei um jornal. ... Sim! Sim! Dia de Sol e eu e sol. Precisava tomar um café e no primeiro boxe que entrei a aten-dente quase que cantando: - Bom dia e parabéns, você é o cliente número mil a entrar a-qui. O seu premio é cinquenta por cento de desconto em tudo que vier a consumir, exceto bebidas alcoólicas e cigarros, né. O que só um café? Só um? Não vai comer nada? Hã? Não en-tendi. Ah! Vai começar a contar os clientes e quando chegar no cliente 999 vai entrar e estará com bastante fome para a-proveitar a promoção. E hoje, se eu dou um desconto no café? Bom, por hoje... é por conta da casa. Ok? Gostou, né! ... Uau! Apesar do amanhecer meio turbulento, a coisa estava melhorando, tudo corria às mil maravilhas. A viagem transcorreu super tranquila. Do meu lado sentou uma garota que puxou assunto a viagem toda; com isso não percebi as horas passando. Quando me dirigia para o metro para poder chegar ao outro terminal rodoviário, um senhor me parou e me entregou dois bilhetes, e enquanto se afastava falou algo sobre não poder

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encontrar a namorada, pois a esposa estava retornando para casa, ou algo assim. ... Poxa! Ganhei dois bilhetes de metro. Que sorte. O que mais pode acontecer?

á no outro terminal rodoviário procurando o guichê da em-presa rodoviária que iria me levar até a cidade em que Sol

mora, quando vi em cima de uma mureta um celular, isto é, um smartphone. ... seja lá quem for, foi de uma péssima ideia deixar isso aqui. Quando o peguei, este tocou; e sim, atendi. Do outro lado, que eu supunha ser o dono, com a voz embar-gada de aflição perguntava onde eu estava, e se poderia espe-ra-lo porque estaria retornando para recuperar o aparelho es-quecido, e que para tanto haveria até uma recompensa. Dei as referências de onde eu estava e ali fiquei. Logo, um casal em passos rápidos se aproximou. O rapaz chegou se apresentando e apresentando aquela que o acompanhava; a sua irmã. E logo perguntou do telefone, o qual entreguei sem tirar os olhos da moça muito bonita, que ostentava um sorriso constante e cativante. Enquanto eu estava hipnotizado pela presença dela, o rapaz apertava a minha mão, chacoalhando-a para cima e para baixo, agradecendo, e ao mesmo tempo explicando o quanto precisa-va daquele minúsculo aparelho. ...Ta, ta cara! Vá ver se estou lá na esquina, e deixe-a aqui. A moça que até então meneava a cabeça, concordando em tu-do com que o rapaz falava, tomou a iniciativa de me recom-pensar; sapecou um beijo demorado na minha face esquerda. Sorrisos femininos e beijos de garotas bonitas, não necessari-amente nessa ordem, eu nunca recuso.

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Será que eu preciso descrever a “sensação” que eu tive? Claro que não, né? O rapaz volta a falar: - Agora a recompensa... - Nada disso. Não precisa. Com esse beijo da tua irmã já me sinto mais do que recompensado... esqueça isso! - Insisto na recompensa. Hã? Vamos fazer os seguinte! Para onde você está indo? Ah! Sei. Nossos avôs têm um sítio lá, então, lhe pago a passagem, se ainda não comprou. Isso mes-mo, passagem de ida e volta, por favor, aceite. Tudo bem! Aceitei mais por insistência dele. E já estávamos nos despedindo, quando humildemente pedi se ela poderia me beijar de novo (concordo com vocês; eu abusei da generosidade deles, aliás, mais dela). Ela sem parar de sorrir, sapecou outro “chuac” na minha bo-checha direita enquanto me abraçava demoradamente. Ah! Onde a minha cabeça estava encostada e o perfume , pro-vocaram um estado de embriaguez que demorou um certo tempo para passar. ...Eta! Porre bão sô. Permaneci ali até o casal desaparecer no meio da multidão, e passo a dar um comando mental para mim mesmo: ... Acorda Celso. Ela já foi embora. Que pena, né! Que garota. Cruzes! Acho que ainda estou grogue. Tudo bem, ao meu pen-samento feliz... é? Esqueci! Qual era? Ah!... lembrei. Ufa! ...Sol e sol e eu...Eu e Sol e sol. Sol e sol e eu...Eu e Sol e sol Então, um chamado da natureza me tira desse devaneio. Na procura do banheiro, percebo as pessoas me olhando. Uns rindo, outros com expressão de admiração. Uma criança passou e apontando para mim: - Mãe olha lá, olha lá a... A mãe olhou, sorriu e repreendeu a garotinha:

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- Apontar é feio, não faça assim! Até encontrar o banheiro fui alvo das atenções de todas as pes-soas com quem cruzei. Cá com os meus botões: ...Será que todo mundo aqui ouviu ou viu a cena na qual eu entregava o celular? Poxa! Foi um ato de honestidade que qualquer um poderia faze-lo. Não, não foi isso. Impossível es-se fato ter corrido assim dessa maneira. Aqui não. Ou... ou... estou irradiando felicidade. Hum! Pode ser isso; mas é isso mesmo, eu estou radiante e as pessoas estão percebendo. Então, meu caro Tarzan vá cuidar dos chifres porque hoje quem está com a macaca sou eu. -... e... ãh? A é...Sol e sol e eu, eu e sol e Sol. Entrei...

anheiro público masculino, eu considero uma área perigo-sa. Nunca se sabe a orientação sexual de quem está ao seu

lado e o assédio pode começar por um olhar insistente. Estou concentrado no que tenho que fazer, concluo, balanço, guardo, e me viro para o lavatório. Pasmem! Todos ali me olhando, até o encarregado da limpeza. ...Será que eu mijei na calça ou na pior das hipóteses entrei num ambiente não destinado a héteros? Se for isso to ferrado. Discretamente, calculei a distância até a saída caso precisasse sair às pressas. ...Se eu não escorregar naquele piso molhado, com quatro pas-sadas, consigo sair daqui rapidinho. Ensaiando mentalmente a fuga caso fosse necessária, e sob os olhares, dirijo-me até o lavatório. Como quem está com um olho no gato outro no peixe, comecei a lavar as mãos, e quan-do me olhei no espelho...

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Era isso...

oi então que eu descobri a razão de eu estar chamando tan-tas atenções. Lembram o momento de quando entreguei o

telefone; o beijo da garota e depois pedi outro? Pois é... Tanto do lado direito como do esquerdo do meu rosto, havia marcas enormes de batom vermelho deixado pela encantadora jovem. Ambas eram do mesmo tamanho. Eu não tinha percebido, mas ela foi tão carinhosa que até as impressões labiais estavam ali nas minhas bochechas. ...Aha! Isso merece uma foto de recordação. Hum! Droga; a máquina está com a bateria descarregada. E agora? A solução é copia-las em toalhas de papel. À medida que umedecia as marcas, estas essas se desfaziam. ...paciência. Não terei como provar o que aconteceu. ...Tudo bem; Sol e sol e eu; eu e sol e Sol. E vou para a plataforma de embarque. No meio daquele burbu-rinho, empurra-empurra, aguardo a chegada do ônibus que en-costou dez minutos antes do horário. Alguém do meu lado comentou dessa pontualidade, coisa rara de acontecer. Já dentro do ônibus começo a procurar o meu assento... ...É aqui... aqui no corredor. Muito bom. Sendo que do meu lado foi ocupado por uma senhora que tinha uma mala gigantesca em mãos. Abriu-a, tirou um par de meias de lã e as calçou sobre as que já calçava. Depois, uma calça de moletom que vestiu por cima da que tra-java. Colocou também uma blusa grossa impermeável.Um gorro que lhe cobriu as orelhas e por cima o capuz da blusa da qual fechou o zíper, puxou os cordões; ops! Quase que esque-ço de falar das luvas. Quando deu por encerrada toda essa atividade, cruzou os bra-ços e se encolheu no banco.

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Considerando aquilo um tanto exagerado: ...Para que tudo isso, heim? Não vamos para o pólo norte tão pouco para o sul. Estamos indo para a cidade de Sol. Mas ela não foi à única a se agasalhar com esse extremo. Vi gente tirando cobertores enormes e se enrolando. Gente vestida como estivesse indo para uma estação de esqui. Todos super agasalhados e eu, como dizem; numa boa, de camiseta, tênis, jeans e rindo de todos eles trajados daquela maneira. Alegria acaba.

uinze minutos depois que o ônibus se pôs em movimento, descobri o porquê daquele desfile de inverno rigoroso, si-

beriano em pleno verão. Aquilo não era um ônibus, era um frízer sobre rodas. O ar condicionado deveria estar regulado para era glacial. ...Bruuu!! Cacete, que frio. Achei que já tinha vivido essa provação, me estrepei todinho. Num certo ponto da viagem, percebi a formação de estalagmi-tes ao longo do bagageiro. Ainda olhava aquilo com desprezo quando senti uma coceira no nariz. Ato contínuo. Vou coça-lo e comprovo a presença de uma es-talagmite em estado avançado de formação e eu nem havia percebido. Discretamente procurei retira-la. Tentativas em vão, gelo seco na pele é uma cola daquelas...e na ponta do nariz então, quase que o arranco. ...Mas está tudo bem! Sosol eee eeeeu eee sososol! Merda! Quanto mais eu penso em Sol ou sol, mais frio eu sinto. Dormir nem pensar. Assustava-me o pensamento de acordar congelado e morto. Olhar a paisagem? Boa ideia, todavia o ar condensado nas ja-nelas as deixava com zero de visibilidade.

Q

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Ler seria uma alternativa, desde que eu conseguisse segurar o livro. Tremia sem parar, os meus dedos estavam roxos, rígidos e doíam pra burro. ...Um momento. Não acredito que algum daqueles casulos vi-esse a utilizar o banheiro. Quem iria ter a coragem de segurar o pingolim com um frio desses? E no caso das mulheres? É, ninguém iria se aventurar a tal, então eu o tenho só para mim. Nessa hora, o meu lado piromaníaco se manifestou. ...Lá dentro, pego o livro, arranco folha por folha, jogo na pri-vada e ponho fogo. E como o rei da cocada preta, sento naque-le trono aquecido e ficaria até o sistema circulatório voltar ao normal, e é claro que iria sair meio defumado ou inteiro. ...E se o motorista descobrisse? Como castigo eu seria obrigado a descer ali no meio do nada, sim no meio do nada. Não tinha a mínima idéia de onde eu estava. Outra alternativa. Procurei com um ar de coitadinho ver se al-guém estava a par do drama que eu vivia e viesse a ter dó; daí a me oferecer uma pontinha de agasalho. Ninguém. ...Gente insensível, egoísta. Não preciso de vocês, sei me virar. Vou procurar extrair um pouco de calor destes tufos de vapor que saem da minha boca. E toco a fazer fuuu e mais fuuu nas mãos e esfrega-las freneti-camente para obter calor. Esse exercício deve ter me levado a um estado de coma; pois dormir nem pensar (já mencionei o motivo). Retornei a vida com um balanço, barulhos de freios, de uma porta abrindo e alguém falando:

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Ponto final!

ão conseguia me mover. Estava totalmente travado. Sentia-me como 1/ 4 de vaca num caminhão frigorífico.

Seria necessária a presença de alguém que me jogasse no om-bro para me ajudar a descer. Bom, eu poderia ficar ali também e a bola de algodão e acríli-co que estava ao meu lado querendo descer não conseguiria, então iria chamar o motorista para me tirar. ...E se ela passasse por cima? Estaria arriscado a ficar e fazer a viagem de volta. Apavorei-me com esse pensamento. A porta do corredor foi aberta. Uma lufada de ar quente invadiu aquele ambiente expulsando o frio por todos os lados. Comecei a me recuperar, e decidi que seria o primeiro a descer. (aqui o tema de: Indiana Jones – e os caçadores da arca perdida) Nada de gentilezas. Quem eu pude empurrar eu empurrei; sem contar as cotoveladas que distribui e chutes nos calcanhares e saia da minha frente. Na área de desembarque percebi um certo grau de insanidade de minha parte; de braços aberto rodopiando e cantando desa-finado pra burro: - “I singing in the sun, I singing in the sun...” Lembro também que abracei o motor do ônibus, procurando dançar qualquer coisa, e só sai dali porque ele estava de parti-da para outra viagem. Não tenho certeza disto, flash de memória; para aproveitar um pouco mais daquele calor eu devo corrido atrás do ônibus, mas acho que foi só um trechinho.

N

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Por favor,...

onsidero e respeito muito os motoboys como um poço de sabedoria em termos conhecer a cidade, mas este, assim

que me viu se aproximando, cruzou os braços e se pôs a olhar para algum lugar ou alguma coisa. Completamente imóvel. Discretamente, procurei ver o que poderia ser; nada na minha opinião, então voltei ao endereço de Sol. Ainda olhando para lá e irradiando “simpatia” respondeu: - Xei não. Oxê não xabe ondxe fica? Xe oxê xoubexe eu leva-va oxê lá. Não tchem axim um pontcho de refererênxia? Num tchem? Num tchem nada? Então fica difíxil; po! Agradeci pedindo desculpas pelo transtorno, e morrendo de curiosidade para saber o que poderia ser tão atrativo que pren-deu a atenção do motoboy enquanto ele falava comigo, e é cla-ro, qual seria o seu problema de dicção. - Tudo bem, tudo bem. Sol e sol e eu...Eu e Sol e sol. Vou procurar outra pessoa que possa me orientar.

C

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Claro; motorista de...

o lado da rodoviária em que eu me encontrava há um ponto de táxi, e ali, tinha um estacionado.

À medida que eu me aproximava, vi que quem estava ao vo-lante era a cara do motoboy. O motorista assim que me percebeu, manteve o celular na mão esquerda e começou a olhar sabe se lá para onde. Escancaradamente mastigava um palito de dentes, e parecia que também estava procurando se acomodar para tirar uma soneca, e o pateta aqui foi interrompe-lo. Pra que? Ainda rolando o palito na boca e uma coisinha à toa de mau humor começou a falar, e eu não entendendo porra nenhuma. Então, vou resumir aqui: “o diplomático e atencioso” motoris-ta de táxi, também não sabia. - Vamos lá; Sol e sol e eu...Eu e Sol e sol.

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casa de Sol

erguntei para mais algumas pessoas, até encontrar uma que demonstrou conhecer a cidade de cabo a rabo.

- Caminhante tchê? Então, tu segues aqui; tchê, e na terceira esquina tu viras a esquerda; tchê; e depois toda à frente, tchê. Sem saber como agradecer segui como foi indicado. ...Ufa! Mais alguns metros e lá estarei. Para os que estão lendo: Vocês acham que eu preciso descre-ver a ansiedade que tomou conta de mim, uma vez que já esta-va a caminho e no horário? Não, né? Cheguei na rua, e começo a procurar a casa que é... esta aqui. Ali passei a escutar muita gente falando, risadas, até gargalha-das. Eu deduzi que mais alguma casa ou até a rua inteira tam-bém estaria se preparando para algum tipo de festa. Acionei a campainha e um silêncio se fez presente. Não con-segui deixar de estranhar o fato. ...É um botão liga e desliga barulho ou eu me enganei de casa? Puxei o endereço novamente para confirmar o número, quando uma garota que eu já sabia quem era, a filha mais nova de Sol, judoca; saiu e me perguntou: - O que deseja? Eu de Sabão gago (meio nervoso, confesso). - Popopor fafavovor, Sosolalangegege essstatatá? - Um momento. Do portão pude escutar este diálogo: - Mãe, tem um gago aqui procurando você. - Quem? O que? - Um gago, mamãe, um gago. Não sabe o que é um gago? - Um gago me procurando? Credo! Por que? Já estou indo. Eu não sabia que você existia – Leno e Lílian - é o tema musi-cal deste momento.

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Sol chegou sorrindo, radiante; quebrou todo o meu esquema, mesmo assim ensaiei os parabéns pra você à moda do Sabão: - Ppapa ra bbéns pra para vovovocê... Sol como que adivinhando: - Só podia ser você, adorei a surpresa... Ola! Celso. Por favor, ouçam: Você é linda – Caetano Veloso - é o tema musical para este momento indescritível. Nos abraçamos. O nosso primeiro encontro. ...Enfim, Sol e sol e eu...Eu e Sol e sol. Sem mais delonga Sol pegou a minha mão e me levou para dentro de sua casa com a filha a nos acompanhar. Agora na sala de estar, Sol e eu de tanto que havia para con-versar comentar, simplesmente trocávamos fragmentos de as-suntos atuais, o que provocou ainda mais a curiosidade da ca-çula a meu respeito: - Quem é? Fala mãe, quem é ele? Mãe? Sol pacientemente começou a deixar a garota a par de quem eu era, falando do livro que escrevi e outras coisas. Permaneci calado enquanto elas conversavam e comecei a ou-vir novamente aquela balbúrdia. ...Qual seria a razão de uma multidão reunida aqui por perto? ...Comício? Não, né! Não é época para isso. ...Uma partida de futebol de várzea? Não poderia ser, perce-bia-se eco, então só pode ser um ambiente fechado. ...Tááá! Mas é claro, o ginásio poli esportivo, onde os filhos de Sol participam de competições. ... Já vi as fotos do local ou parte dele. Então vai acontecer uma festa no ginásio e pelo jeito, umas duzentas pessoas de-vem estar lá arrumando, limpando, decorando... uau! Sei que Sol por suas atividades é conhecidíssima, querida, daí a ter tanta gente assim; é, vai ser uma senhora festa. Estava nessa linha de pensamentos quando Sol falou:

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- E como tenho um sobrinho que também faz aniversário hoje, então, vamos fazer um churrasquinho também, vai ter o bolo, né; uma festinha...por isso tem gente me ajudando. ...O que? Festinha? Como eu já havia imaginado o tamanho da recepção, só me sobrou admirar a sua modéstia. E Sol tocando em minha mão: - Venha! Vou lhe apresentar as pessoas que estão me ajudan-do, dando uma mãozinha... Sou péssimo para memorizar nomes, e mais ou menos passei esse pormenor para Sol, enquanto caminhávamos em direção ao local que ela me indicava. Decidi que não iria apertar a mão de cada um que ali estivesse. Do alto das arquibancadas em alto e bom som me apresentaria, um discurso de 30 segundos, coisa rápida. Sol e a filha estavam a minha frente e transpuseram a cortina que é uma divisória de ambientes e assim que eu a passasse, também estaria no local da festa. Novamente o silêncio se fez. ...Sol deve ter anunciado a minha presença, daí... Eu a menos de um passo da cortina, sem ninguém perceber procuro limpar a garganta e começo a fazer huhu! De cabeça baixa transpus a cortina e quando a levantei não conseguia mais parar de fazer os huhu! E agora um pouco mais alto quando percebi onde que eu me encontrava. ... Hã? Uma cozinha? Sim senhor! A cozinha da casa de Sol. Muito mais ampla das que eu estou acostumado a ver, mas era uma cozinha com seus moveis, pia, fogão, mesa para as refeições, cadeiras, geladeira, ou seja, uma imensa cozinha e silenciosa. E ali estavam cinco mulheres, e contando Sol mais a filha, to-tal de sete mulheres, e só, mais ninguém.

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E aquele tumulto

que poderia ser? ...Será que tinha gente escondida no banheiro ou no

quintal, prontos para me dar um sustão daqueles? Preparei-me para isso; tencionei todos os músculos do corpo; agora que venham. Frustração geral, não saiu ninguém de lu-gar nenhum em nenhum momento. ...Bom, pode ser um sistema de som, ai explica aquela zorra de muita gente falando que eu ouvi. Com os olhos discretamente procurei caixas de som e nada. ...Aha! E se a geladeira não fosse uma geladeira e sim uma daquelas enormes caixas de som? Aí sim fica explicado aquela arruaça de torcida. Mas minha teoria foi por água abaixo. Sol abriu a geladeira que é uma geladeira mesmo e de lá retirou uma cerveja que me ofereceu – sorrisos femininos e cerveja, não necessariamente nessa ordem, eu nunca recuso – e eu aceitei. Atenção aqui, por favor, preste atenção neste detalhe: Eu aceitei a cerveja e a coloquei na mesa, repetindo; eu a co-loquei na mesa – este ato vai salvar a minha vida logo adiante. Retornando ao assunto. ...É mesmo! Por que não tinha pensado nisto antes? Uma tv, um aparelho de Dvd, um sistem tipo home theater, e um Dvd de lutas medievais. Daqueles, sabe, onde exércitos numerosos a cavalos, armados de espadas e escudos; aos ber-ros se empenham numa batalha sangrenta. Mais uma vez procurei com os olhos o que imaginei. A única coisa que encontrei com carinha de televisão foi um micro ondas, só isso. Nem um radinho de pilhas CCE via-se por ali. ...Sei lá!

...O

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Até aqui, sempre usei o verbo ouvir no passado, sendo que agora eu realmente nada ouvia, exceto duas cachorrinhas la-tindo no quintal de felicidades ou doidinhas para morder uma perna nova na área, ou seja, a minha; o ronco de uma tartaruga acho que era de fome, e o barulho de um hamster; fazendo ba-rulho como todo bom hamster. ... Será que aquele frio dos diabos afetou meus ouvidos, daí a ficar ouvindo coisas de mais? Pode ser. ... Ou será que ainda estou dormindo e este pesadelo de vozes foi provocado por aqueles quibes que eu comi na janta, e que pareciam que estavam meio passados? Eu não estava dormindo. Senti o calor da mão de Sol quando segurou a minha para me conduzir em direção as duas que estavam encostadas no fogão, e Sol as apresentou: - Esta é a esposa de um dos meus sobrinhos, e esta é a sogra dela e minha irmã. Fiquei admirado com a doçura daquelas vozes. Depois Sol me apresentou aquela que estava diante da pia: - Esta é uma grande amiga, trabalhamos juntas. A voz da amiga era um uma brisa primaveril. Após, fomos até onde estava uma senhora sentada e uma moça em pé, dali, esta foi a primeira a ser apresentada: - É a minha filha mais velha. A voz da filha mais velha, o murmúrio de um córrego. Da minha parte até então, para todas que me foram apresenta-das utilizei o convencional: - Muito prazer, estou adorando conhecer você. Devo frisar também que eu me sentia ótimo naquele ambiente, já me considerava da casa e agora era a vez da senhora que estava sentada, então Sol: - Celso, minha mamãe.

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... Hum! A matriarca. Capricha ai! Vou ter que modificar o cumprimento; com o melhor do meu timbre de voz e da minha postura, me apresento. Segurando-lhe a mão, inclinei-me ligeiramente e falei: - Senhora; meu nome é Celso, e estou encantado em conhece-la, por favor, aceite todo o meu respeito. Acho que não terminei a frase, porque nesse ponto tudo ficou muito confuso para mim. Alguém num tom fora do comum e no meu ouvido direito: - Fala mais alto que ela é surda. Vocês que estão lendo, pode parecer uma simples frase: - Fala mais alto que ela é surda. Eu, eu que estava ali e que recebi toda aquela onda de choque, trinquei geral! Aquilo não partiu de cordas vocais de um ser humano. Nunca. Já assisti a filmes de ficção cientifica, em que máquinas dispa-ram ondas, raios que imobilizam quando não extermina quem esta à frente. ...Será? Se for isso, Sol nas nossas trocas de mensagens omitiu esse fato de que possuía em casa uma arma mortífera, o que é lamentável, pois Celso está em processo de extinção, e até on-de eu sei, não tramita nem câmara ou no senado leis para me preservar, então eu mesmo tenho que dar meus pulos, e por ingenuidade estou aqui completamente exposto. Bom, pode ser que eu esteja viajando na maionese em pensar assim. O mais racional seria que alguém entrou na cozinha sem que eu visse e me agrediu, mas com o que e por que? Eu não via sangue, meu sangue. Tão pouco sentia dor. Meu lado direito paralisou, e o ouvido direito não parava de fazer Ziiim.

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Com o pouco de movimento que eu tinha do lado esquerdo olhei para Sol e a caçula que sorriam. ...Sorriam ou estavam rindo de mim? Não tive tempo para encontrar a resposta, pois meu lado es-querdo também deixou de funcionar e o respectivo ouvido começou a fazer Zeee. Neste estado de semiparalítico em que me encontrava, obtive um dom: eu não ouvia por causa do Ziiim e do Zeee, mas eu via as palavras e coloridas saindo da boca das pessoas; juro que é verdade. Tisc! Ninguém acredita nisso. Sol com certeza não percebeu o que eu estava passando e com uma mão em minha cintura me levou até a mesa. Eu com imensas dificuldades, sem contar o medo de cair, tre-mulando sem parar consegui sentar. Peguei a lata de cerveja assim como a mão de Sol. O meu instinto me orientava que um choque térmico nas ex-tremidades me seria muito benéfico, e foi. O ziiim e o zeee diminuíram de intensidade e aos poucos recu-perei meus movimentos, isto é, quase todo. Um membro aqui outro ali ainda parecia não saber o que tinha que fazer. Caos

o inicio era o caos. Toda vez que eu lembro desta frase, eu me contorço de

tanto gargalhar que chega a incomodar os meus vizinhos, pois quem a escreveu nunca esteve na cozinha da casa de Sol. Cinco; cinco mulheres ali estavam quando cheguei e mais Sol e a caçula, total: sete mulheres. Como Sol me dava atenção e a caçula é de pouco falar, então somente cinco mulheres.

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Somente cinco mulheres conversando? Sinto-me completamente incapaz de afirmar que elas realmen-te estavam fazendo isso, conversando. Está muito além da mi-nha compreensão tudo aquilo que eu presenciava. As duas do fogão conversavam entre si e comentavam sabe lá o que com a senhora sentada, assim como com a neta que es-tava em pé que amplificava o que foi falado para que a surda (perdão!) a senhora ficasse a par do assunto. A grande amiga de Sol, – a doidinha da pia - que eu achava que estava falando com a torneira ou com as panelas que lava-va, não era nada disso. Ela conversava com a duas do fogão, ao mesmo tempo dava palpites no que a neta estava fazendo com o cabelo da avó, e mais uma vez; ao mesmo tempo comentava os últimos capítu-los da novela com a velha (mil desculpas) senhora, e fazia tu-do isso sem se virar; incrível. A senhora sentada dava bronca na neta – a amplificadora de conversa - que lhe arrumava os cabelos e esta retrucava. Pito-cava a doidinha da pia; com as duas do fogão comentava as ultimas lutas do UFC nos mínimos detalhes, e sem tirar os o-lhos de mim, o que comentei com Sol, e ela: - Não liga não Celso, a mamãe não enxerga muito bem. ...Hã?? A surda (conseguem me perdoar mais uma vez?) é mí-ope também. E fala pelos cotovelos. Então, lá estão elas conversando entre si, mas com um detalhe muito importante a destacar. Todas, todas elas tinham a aten-ção voltada para mim; como eu percebi isso? Simples. Desde que sentei, achei prudente me manter calado, bico fechado, enquanto elas se digladiavam com palavras, mas a essa situação de ficar quieto começou a me incomodar e o bobão aqui fez uma pergunta para a filha de Sol, uma vez que ela estava mais perto, e em tom baixo:

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- E as compe... Adivinharam? É, também não consegui completar a frase. Vocês podem não acreditar, elas sem perder o embalo do que falavam, dispararam na minha direção uma tonelada de infor-mações sobre competições de judô. Além de não entender nada, ainda me deixou meio tonto. Algo parecido como uma luta de boxe quando o sujeito leva uma no queixo e o juiz intercede. Bom, zonzo eu já estava, e cadê o juiz? ...Raios! Cadê o juiz? Fez-se presente na maravilhosa Sol que me perguntou se eu queria ver os troféus dos filhos, que se encontram em um outro ambiente. ...Claaaaaaro que eu quero ver os troféus, onde estão? ...Depois de uma calçada de brasas ou forrada de cacos de vi-dros? É para atravessa-la descalço ou engatinhando? Encaro qualquer coisa para sair dali. Quando fui responder, percebi que não tinha controle no maxi-lar inferior e que não iria conseguir falar, então me limitei com uma certa dificuldade a fazer um sinal com cabeça, o que Sol interpretou como uma brincadeira de minha parte: - É brincalhão mesmo. Seus textos, as crônicas; bate papo on line, eu já o imaginava assim... Cedi a frente para Sol e a caçula para que me indicassem o caminho. Ao atravessar a porta da cozinha para o quintal veri-fiquei se era a prova de som. Não era, mas a fechei, não para impedir que os animais domésticos entrassem na casa, e sim que uma ou todas elas saíssem por ali. Quando perceberam que saímos a arruaça aumentou em do-bro.Olhei para porta que agora parecia vibrar e prestes a cair.

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Troféus

a ala dos troféus, ambiente silencioso, comecei a agrade-cer a todos os santos que eu conheço. Devo ter atingido

aparentemente, o estágio pleno do êxtase da existência. Porque eu estava muito quieto, Sol me perguntou o que foi. Para disfarçar aleguei algo de como é bom ser campeão e eu agora estava tendo a oportunidade de conhecer dois jovens, e diante de tantos troféus... medalhas, muita emoção. Se ela tivesse olhado para os meus pés iria ver que estavam uns dez centímetros acima do piso, bom, assim eu sentia. Sol ficou sensibilizada, massageou o meu braço esquerdo, de-pois apertou a minha mão e começou a falar das medalhas, das quais pego uma e me concentro para ler quando: - Sol, o telefone... O telefone Sol. Sol? Ouviu? O telefone. ...Cara...!!!Um tiro de canhão? Nunca estive perto de um canhão disparando, mas aquelas cin-co falando a mesma coisa e ao mesmo tempo, só isso que eu pude pensar assim que me recuperei do susto. Sol se desculpando, pedindo licença a nós entrou. A filha permaneceu, e de uma ou outra medalha ou troféu fa-zia o seu histórico resumido. Eu a escutava, mas evitava a concentração total, pois alguma coisa me dizia que de uma hora para outra, elas lá de dentro iriam se manifestar novamente. Dito e feito. Berraram a plenos pulmões anunciando uma visita para a garo-ta, que foi verificar quem era. Estou sozinho, isto é, eu achava que estava até escutar: - Vamos brincar de pega-pega? - Vamos brincar de esconde-esconde? ...Oh! Duas crianças querendo brincar agora? É, seria uma dis-tração, mas onde elas estão?

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Poderia ser da casa vizinha. Encostei o ouvido no muro para saber se as crianças eram dali, parece que não; nada ouvi. ...Não vou me preocupar com elas, agora preciso dar um jeito de sair desse barulho todo. Sou pacato, falo, escuto. Mas lá não se consegue isso. E aquela paralisia? Deixou-me um bocado assustado. O que fazer? ...Hum! Fugir! Por que não? ...Esse corredor dá acesso aos portões da frente e por esta es-cada de alvenaria chego no telhado, nada mais simples, uma fuga de mestre. ...Mas desaparecer assim vai deixar Sol preocupada, e justo no aniversário dela? Isso não. Outra saída, qual seria? Agora a minha mente começou a trabalhar ao meu favor. ...Aha! É isso ai! Perfeito. Sempre falei, aliás, sempre escrevi para Sol que eu gostava, e pesquiso essas coisas de ets, discos voadores; então, para justi-ficar o meu repentino sumiço, vou alegar que fui abduzido, raptado pelos verdinhos. Isso mesmo E envio um e-mail explicando tudo:

i gata, perdoe-me. Eles, os ets, isso mesmo, aqueles dos quais já lhe falei, isto é, escrevi, então, eles sempre me

avisavam que veriam me buscar e aconteceu. Mais uma vez se confirma que não sou dono do meu destino. Aterrissaram agorinha a pouco, enquanto você estava no tele-fone. As moças “papeando alegremente” na cozinha, a impe-diu de ouvi-los chegando. Já estou dentro do disco voador. Levaram-me para uma sala onde me obrigaram a bater uma pu... isto é, com equipamentos superultra moderno de todo o

O

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universo retiraram o meu sêmen, que já passou pelo teste de qualidade, e parece que estão injetando em uma fêmea (assim espero) da raça deles, e agora me deixaram usar o computador de bordo para poder enviar esse e-mail. Que pena né! Hoje, nosso primeiro encontro pra valer; você reunindo tanta gente carinhosa, simpática, agradável de se conversar, eu doi-dinho para usufruir e acontece isso. Lamentável, é muito azar da minha parte. Oh! Céus. O bam-bam-bam da nave veio me avisar que vai precisar re-tornar a sua base, que está localizada em uma área de conflitos bélicos, fronteira da Índia com o Paquistão, para poder fazer pequenos reparos na nave e entregar os relatórios. Tudo isso feito, sairia novamente para me deixar onde eu estava. Sabe gata, essa coisa de tirar sêmen sem anestesia, andar de disco voador (é a minha primeira vez), me deixou com o es-tomago meio embrulhado. Decidi ficar aqui no meio dessa guerra para me recuperar. O comandante perguntou se era isso realmente o que eu estava querendo. Respondi que sim, claro que era. Sempre procurei viver em ambientes de batalhas sangrentas, porque eu gosto disto, iria me sentir como se estivesse em um paraíso. (Se ele soubesse de onde me tirou, teria a mesma opinião). Ele me entendeu, e dando de ombros falou algo assim: *Ohgyawoowhkznemmawngmmwyjgdnbtbtcwykgxua!! Então gata, mil desculpas às moças, aos seus filhos e a sur... é...à senhora sua mãe, pela minha súbita ausência. Assim que eu conseguir retornar ao Brasil entro em contato para poder nos encontrar novamente. Beijos; te amo, felicidades e já morrendo de saudades; Do seu eterno Celso, ou o que sobrou dele. * Traduzindo: - Ce que sabe!

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A minha consciência

mensagem seria essa. Deve ter uma lan house na rodovi-ária, assim que chegasse lá a enviaria.

...E agora? Por onde? Corredor lateral ou pelas escadas? Para controlar as descargas de adrenalina e superar essa inde-cisão momentânea eu respirava fundo varias vezes. ... Decidido. Pela escada. Uma vez no telhado, chego até a garagem e depois pular para a rua, pular para a liberdade. Poderia acontecer de vir a quebrar um osso na queda, mas, o que é um osso quebrado diante da situação que eu estava vi-vendo? Lá vou eu, quando escuto: - Boa sorte panaca! ...É, quem diria que aquele “fala mais alto que ela é surda” causou mais danos do que eu poderia ter imaginado. Ouvi duas crianças me convidando para brincar e não as vi, e agora a minha própria voz me destratando. Não gosto de me automedicar, mas agora não vejo outra alter-nativa; encontrar um hospício e implorar para ser internado por tempo indeterminado. - Está esperando o que? Banana! De novo aquela voz arrogante, e agora deu a impressão que esta aqui por perto. ... Deixa pra lá. Foco, foco, foco no que eu pretendo fazer. Olhei para a ala de troféus como que fazendo uma despedida simbólica e não acreditei no que vi. ...Madagáscar.O que é isso? Era eu ali. Mesma calça, tênis, camisa, de Ray-ban, só que pe-quitítico. Não deveria ter mais que vinte centímetros de altura, meio vermelho, e falando grosso para eu aqui fora.

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Identificou-se como a minha consciência; muito mal educada por sinal, e cruzes; que palavreado. - Então você acha que essa sua desculpa esfarrapada vai colar? Seu quadrúpede! A maravilhosa Sol vai acreditar nisso? Et, disco voador? Tenha dó; seu anencéfalo! É, aquela coisinha sabia de tudo mesmo, e queria me deixar sem saída, e eu vacilante procurava sustentar a minha decisão: - Vai... sim... pode... ser que.... sim, sim...acho... que... ela... vai.... vai...acreditar acho. Depois explico... escrevo... - Tantos anos de trocas de mensagens de carinhos, respeito e você vai enfiar tudo isso no c...? Aborto de uma ameba! - Assim também não, sem ofensas. Você não sabe nem imagi-na o que eu passei lá dentro. - Aloooo! Sou a sua consciênciaaa. Lógico que eu sei, eu esta-va lá também. Assisti tudo, seu monte de estrume. - E o que você estava fazendo enquanto eu passava por toda aquela situação, todo aquele apuro? - Estava filmando e cagando de tanto dar risadas da sua cara, mas não se preocupe, já tomei banho e troquei as roupas, sou uma consciência limpa, sabe disso, né! Seu idiota. - Então você sabe que não sou páreo para elas. Uma só é capaz de conversar um assunto diferente com as outras sem perder o rebolado, e ainda cuidar do ambiente em volta. Isto porque estão em cinco. Imagine se fossem cinquenta ou quinhentas, que foi a aterrorizante sensação que eu tive; estar no meio de quinhentas mulheres querendo se fazer entender e conseguiam. Estou apavorado, morrendo de medo só de pensar em voltar lá. - O que? Com medo? Seu mijão! Agora você me provocou, se não tivesse que ir junto eu o mandaria para a p...q...p! - Não e não. Sem chance. Estou saindo, vou cair fora e acabou, ninguém vai segurar, nem você.

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Com todas as silabas pronunciadas cadenciadamente, a minha consciência com cara de poucos amigos me intimou: - O ca... que você vai sair daqui, entendeu? Seu resto! Assim que terminou de me ofender; vruum; alçou vôo, ou foi essa impressão que eu tive. ... Eu não estou bem, eu não estou bem. Ouço vozes de crian-ças, estou discutindo com a minha consciência, e que agora parece que voou. ....Sábado à tarde, nesta cidade, quem pode atender uma ocor-rência de alguém com seriíssimos problemas mentais? - Estou aqui; seu merdão! Olhei para o meu ombro direito. Ali estava a minha consciên-cia; aproveitei para fazer uma recomendação: - Por favor, com muito cuidado, pois este ouvido esta um pou-co sensível, traumatizado. - Sei disso, seu babaca! Serei cauteloso. E contrariando o que acabou de dizer, berrou: - Preste atenção, olhe para mim, porque só vou falar uma vez, seu zero a esquerda. E mesmo porque, eu não preciso que seus ouvidos estejam bons para que você me escute. Entendeu? Seu prematuro de lombriga. Entre o Zeee e o Ziiim respondi: - Entendi, entendi, e o que é? - Olhe a sua frente o que você vê? - A minha frente? Aqui? É...troféus - Troféus e...? O! Retardado, está na sua frente! - Na minha frente... Medalhas. Isso, troféus e medalhas. - E por que ai estão? Ouviu a minha pergunta? Responda seu minhoca empalhado. - É...bom, alguém...alguém...alguém as ganhou. - Para um incompetente inteiro até que você é meio esperto; quase que lhe dou os parabéns; e quem as ganhou?

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Como acho que recebi um elogio, comecei a me sentir mais confiante: - Oos filhos de Sol, claro, foram eles... a garota e o rapaz. - E por que eles ganharam? - É...Hum!... Hum! Porque... mereceram. A minha consciência segurando o lóbulo da minha orelha: - Certo, seu múmia! E por que eles mereceram? - Bom...bom.. .Porque eles são determinados. - Ok! Determinados e...? - É...é...é..., são capacitados. - Esta indo bem; determinados, capacitados e...? - E tem mais? Recebi um tapão na orelha acompanhado de um berro: - Quem faz as perguntas aqui sou eu e você só responde, en-tendeu? Seu unha encravada. - Eles são determinados, capacitados e...? E...? Fazendo os foo! foo! para controlar a ansiedade e suando por todos os poros, procurava desesperadamente a resposta: - Determinados,...capacitados e...e...possuem a... a... força, força interior, é isso. Força, força... - Certíssimo! Agora você já sabe como ser um vencedor. Repi-ta para você mesmo: Força, determinação, capacidade e vá levantar o seu troféu, receber a sua medalha, e suma. - Não, não, não. Espera ai. Está faltando alguma coisa. - Fala pé no saco! O que é que você acha que esta faltando? - Posso ficar repetindo infinitamente: capacidade, determina-ção, força, mas a essência de um competidor, onde está? Como desenvolve-la, adquiri-la? - Ah! O espírito esportivo de luta, garra e força. Bom, ele habi-ta em cada um desses troféus, medalhas; de os teus pulos aí e invoque-o. Agora se me dá ou não dá licença, estou de saída. - Aonde você vai?

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- Hei!Hei! Eu não tenho que lhe dar nenhuma satisfação en-tendeu? Mas desta vez, e somente desta vez vou deixar barato. Lembra que eu falei que estava filmando lá dentro? Então, a-gora vou editar e depois colocar no youtube para todo mundo tirar sarro da sua cara! Tchau! Bundão. Acabando de falar, desapareceu deixando um cheirinho de enxofre no ar. ...Será que era o...?

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Eu e o espírito

h! Então, em cada um destes troféus e medalhas residi aquele que irá me socorrer nesse momento de apuro ex-

tremo. Bom! Assim a minha consciência o disse. Que seja. Ajoelhei-me com todo respeito; com as palmas das mãos no chão, de cabeça baixa, comecei a entoar um cântico sacro que bolei na hora: - Ooooooooooh! espírito esportivo de luta, garra e força atende o meu pedido. Ooooooooh! Espírito esportivo de luta, garra e força, que da longínqua Grécia, nos começos dos tempos, gui-ou o grande Ulisses, Aquiles e todos os deuses, semideuses e heróis, atende o meu pedido Oooooh! Espírito esportivoo de luta, garra e forçaa; apareça, cacete! Fez-se ouvir e sentir a presença de algo. Tãtãtãtãtãtãtãtãtãtãtãtãtãtãtãtã! Meus joelhos afundaram um pouco mais naquele piso. Era o sinal que ele estava chegando e chegou ordenando: - Levanta aquele que me chamou. Eu naquela posição meio ingrata de bunda para cima, só levan-tei a minha mão direita: - Fui eu quem o chamou, Ooooooooooh! espírito esportivo de luta, garra e força! - Sei disso e pode se levantar. - Então posso ver a face do grande espírito esportivo de luta, garra e força? Ooooh! Espírito esportivo de luta, garra e força. - Quer parar com essa droga de Oooooh! Que já esta me en-chendo o saco. Que coisa chata. Vai levanta, saia dai, você está ajoelhado em cima da merda de cachorro! Desembucha logo, o que é que você esta querendo? Levantei-me e olhei a para o espírito esportivo de luta, garra e força. Não acreditei.

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Um brutamontes com a cara do taxista, até o jeitão de olhar para longe, só que agora, ele olhava para um troféu. Ah! A dosezinha de mau humor também. Nada falei sobre isso, podia ser que não gostasse, e fui tratando do meu assunto: - Então, seu espírito, eu... eu preciso de força, muita força. Ele olhou para mim, meneando a cabeça em negativas: - Tisc! Tisc! Isso vai dar mais trabalho do que eu imaginava! O seguinte cara; ainda não inventaram anabolizantes para gen-te do teu físico. Só pele e osso; pode esquecer, ta bom? - Vai ai; desenvolva a minha capacidade de luta, entende? - Você não esta bem, né. Acabou de bater a cabeça ou já nas-ceu assim? Você deve estar pensando que se consegue isso de uma hora para outra. Não é assim. Cada um que me aparece. - Determinação, a determinação eu quero a determinação. - Esquece, esquece! Nesse seu estado atual, é espiritualmente impossível fazer qualquer coisa para mudar. Vamos sentar ali, e me conta o que é que está te incomodando, tenho tempo. Quando fomos para escada de alvenaria para nos acomodar, percebi que ele estava puxando uma perna: - Desembucha; o que é que está te deixando em frangalhos? Embora eu ache que você é assim mesmo. Contei tim tim por tim tim o que eu estava passando. Ele oca-sionalmente fazia huhu! huhu! Muito atencioso não me inter-rompeu em nenhum momento. E quando acabei o relato: - É isso seu espírito. Se você me ajudar, serei algo assim como seu escravo pelos restos dos meus dias. - Sem essa de escravo, nada disso. O que estou ganhando não dá para sustentar mais ninguém. - Ué? Vocês espíritos ganham pouco assim? - Vocês não. Eu... é que estou ganhando pouco, porque... estou com uns problemas... físicos; estou encostado.

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- É, notei que mancava, mas não acredito; o grande espírito esportivo encostado? O que aconteceu? - Sei lá cara o que foi. Um dia, acordei com uma dorzinha en-joada. É quando eu fico em pé ou ando, e não sara; é bem aqui. Mostrou-me o local, um pouco acima do seu rim direito. Com as pontas dos dedos pressionei o local: - Aqui? É, parece inchado. Você já procurou um médico? - Vixiii! Até perdi as contas. Cada um fala uma coisa diferen-te, pedem mais e mais exames, socam remédios na gente, e com a cara lavada:- “se não sarar retorna”. Haja grana. - Injeção...? - Nada feito. Morro de medo de agulhas. - Está me parecendo que é distensão. - Você é médico? - Eu médico? Nããão, mas é que já passei por essa de distensão lombar, e só sarou com massagem. Você, bem maior do que eu... algumas sessões de apucuntura... talvez... - Apucuntura não. Já falei que morro de medo de agulhas. Massagem? É! Pode ser... Opa! Opa! Estamos fugindo assun-to, o que é que você realmente esta querendo que eu faça? - Seguinte seu espírito: fique comigo para me proteger enquan-to eu permanecer nessa casa. Um tipo de guarda costa; aquelas mulheres falando; meu; não é fácil. Você fazendo “só isso” de me acompanhar; tudo, mas tudo mesmo que o seu espírito vier a querer eu farei.Um templo, queimar incenso, distribuir pan-fleto para que venham conhece-lo; cantar; Oooooh! Espírito esportivo de luta, garra e força; salve, salve. Divulgação, exal-tação, devoção, recolher uma grana, hã? Coisas assim. Ele tocando no meu ombro: - “Só isso”; acompanha-lo? Sei, sei. Bom; muito obrigado pela dica da massagem, valeu mesmo; não vou esquecer, mas agora estamos tratando de negócios, você entende né?

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- Claro seu espírito, isso mesmo, agora negócios. - Então, depois de tudo que você contou, quer então que eu entre naquela cozinha para protege-lo, e o que eu vier a querer como pagamento... você... - Isso, isso, isso mesmo seu espírito, tudo que vier a querer. O espírito esportivo de luta, garra e força se levantou com uma careta de dor; ficamos frente a frente, e ele olhava-me fixa-mente. Agora pousando as mãos nos meus ombros, e ao mes-mo tempo nós dirigimos o olhar para porta da cozinha que pa-recia que estava preste a explodir, e ele falou: - Tentadora a sua proposta, mas bicho...! Eu...eu quero, eu quero que você se fo..., porque lá eu não entro. Fui! E o superfrouxo desapareceu. A minha salvação também.

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De novo

erguntas e mais perguntas martelavam a minha cabeça: ...E elas? Por que não eram afetadas? Falando e fazendo o

que tem fazer, como pode isso? Será que as mulheres pré-históricas já eram assim? Se sim, é herança genética; cruzes, então não tem jeito. E se somente aquelas cinco agem dessa maneira? Aí, quem não tem jeito sou eu. Se houvesse um pesquisador corajoso o suficiente para ser co-locado naquele meio, ele poderia tirar algumas conclusões, dar as respostas, isto é, se sobrevivesse. Nada mais me resta a não ser retornar para aquele liquidifica-dor, mas antes vou curtir um pouco mais esse silêncio. Vocês que estão lendo; a música tema para este momento: Anônimo Veneziano - Tony Renis. E procurava encontrar uma solução, quando surgiu outra per-gunta: Será que o motoboy e o taxista já tinham passado por semelhante situação? Tal como eles, agora eu também olhava fixo para o nada. Estava neste estado, quando ouvi novamente: - Vamos brincar de pega-pega? - Vamos brincar de esconde-esconde? ...Hã? As vozes infantis de novo. E agora estão aqui pertinho. Procurei as crianças e só vi as cachorrinhas, alegres, abanando os rabinhos e a que estava a minha direita: - Vamos brincar de pega-pega? A da esquerda: - Vamos brincar de esconde-esconde? Glulp! Meu coração parecia querer entrar em erupção ou sair pela boca de tão rápido que batia. Nisso, chega a tartaruga com uma voz rouca:

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- Saiam, saiam cadelas, que eu estou passando. Não estão ven-do que o cara está precisando de um papo cabeça? Eu sou branquelo por natureza, ouvindo a tartaruga tornei-me transparente. Aos poucos, lentamente comecei sair dali em di-reção a casa quando ouvi outra voz, só que vibrante. Era o hamster em uma pose indecente. De barriga para cima mexendo na genitália, e assim que me viu mudou a postura. Juntou as patinhas dianteiras, e com um ar angelical: - Hei? Você? Arruma umas fêmeas para mim? Hã? Por favor, sou um procriador nato, preciso delas. Você não entende, né? Voltando rapidamente para a posição de deitado: - Então, fica aí para ser testemunha da quebra do meu recorde. Kkkkkkkkk! “Essa” que acabei agora é a trinta e cinco, ufa! ufa! vamos lá trinta e seis; vai! vai! A porta da cozinha da casa de Sol abre para dentro, eu quase a arranquei tentando abri-la para fora. Quando consegui, entrei e a fechei imediatamente. Permaneci encostado nela como se assim eu conseguisse impedir que al-gum daqueles animaizinhos viesse a entrar. Como eu ouvia as batidas descompassadas do meu coração, passei a perceber também o silêncio que reinava na cozinha, então, o meu sexto sentido disparou um alarme: - Dééééé’! Dééééé’! Alerta vermelho, perigo, perigo! Tem coi-sa errada! Dééééé’! Dééééé’! Como se estivesse em um ambiente hostil, virei rapidamente e as vi. Elas olhavam-me fixamente e estavam... caladas. ...Por que? Assustadas? Assustadas não. Adentrei correndo; foi isso. E se não foi? Passo a verificar a situação para tentar entender porque estão assim, quietas. ...As duas do fogão, ainda estão no fogão; ok! ...A doidinha da pia, ainda está na pia; ok!

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...A amplificadora de conversa que mexia nos cabelos da avó, não se deu conta que a velha não estava, e continuava com as mãos no ar como se ela ainda estivesse ali (é, não sou o único batendo pino por aqui), só que agora está parada porque está olhando para mim, então essa também está ok. ...E a velha? Cadê? Aha! Então é ela que fuça o formigueiro, cutuca a colméia. Yes! Descobri quem é o estopim da zorra... Nisso, Sol sorrindo entrou justificando-se: - Desculpem-me, desculpem-me; era gente que não acabava mais no telefone me dando os parabéns... que delícia. Enquanto Sol falava, eu vi (juro!) a velha materializando-se logo atrás dela, e ao que parece Sol já está acostumada a isso, mas eu não, e mais uma vez troquei de cor. E Sol vendo-me encostado na porta em um tom azul degradê e com os olhos saltando das órbitas: - Celso! Aconteceu alguma coisa? ...E agora? Pense rápido, fale alguma coisa, conte uma piada. - É... a... a tartaruga; isso... ela estava correndo atrás de mim, e parecia... que queria me ... pegar, me morder. O olho do furacão

m um ambiente normal, alguns riem, outros não; comen-tam, pedem mais ou alguém conta outra piada, é assim.

Ali na cozinha elas foram divinas, maravilhosas; todas riram até a surda (perdão) senhora, um pouquinho atrasado em rela-ção às outras, não que não tivesse entendido, mas porque não ouviu o que eu acabei de falar. Coitada! A falha foi da “amplificadora de conversa”, que também não percebeu que a senhora, do nada ali tinha aparecido. Bom, diante de tantas risadas, até eu comecei a achar que a piada não foi das piores, mas a minha alegria durou pouco.

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Agora em gargalhadas, sem pudor e falando mais do que alto, elas começaram a criar suas versões. Todas ao mesmo tempo procuravam contar as novas piadas do Celso e a tartaruga. ...Você provocou, agora sai dessa. Como um herói de filme de ação abaixado sob intenso fogo do inimigo em campo de batalha, atravessei a cozinha correndo, agarrai a mão de Sol e a arrastei para fora dali, e só fomos pa-rar na sala de estar. A trégua merecida

u ofegante e Sol rindo sentamos no sofá sob um enorme ventilador que nos brindava com uma brisa refrescante.

Sol talvez fosse perguntar por que fiz aquilo, mas passou a questionar a minhas impressões a respeito das moças, e antes que eu pudesse responder, ela mesma comentava: - Então, o que você achou? Elas são assim mesmo. Basta ter um motivo para se reunirem; isto sempre acontece aqui em casa. Não parece que estão discutindo? Elas que se ofereceram para me ajudar, e eu vou aproveitar, né. Agora, se você está achando que elas são barulhentas, hoje até que estão compor-tadas, deve ser a sua presença que as deixou um pouco inibi-das. Turma do barulho mesmo é a que vem para festa. Essa sim; acredita que às vezes nem eu consigo entende-los. Tanta gente falando, dando risadas... ninguém segura. O que acabei de ouvir começou a me provocar espasmos que eu procurava controlar, mesmo assim consegui falar: - Um... mercado de peixes... Sol gostou da comparação, porém discordou levemente: - Um mercado de peixes? Sei não! Dois... três no mínimo. ...to perdido, to perdido, quem pode me socorrer agora? E depois falando para as moças da cozinha:

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- Celso acha que está num mercado de peixes... A enxurrada de comentários acompanhada de muita risada, quase que arrancou a cortina divisória, e agora, apesar da pou-ca distância eu não conseguia mais escutar Sol, mas estava prestando uma atenção. Pelas expressões dela, notei que tinha feito duas perguntas. Eu permaneci com a boca semi-aberta balançando a cabeça, o que poderia significar sim ou não. Outro toque de Sol em meu braço foi o suficiente para que eu me concentrasse ainda mais para procurar entende-la: -... supermercado para mim? ... Hu? Supermercado? Que supermercado? - Oiiiii; estou falando com você... ... e eu estou ouvindo, por favor, continue... Estava para falar com Sol, quando percebi que ela não olhava para mim, e sim um pouco mais à minha direita, e procurei olhar também. Que baita susto, sô! ... Como que ela chegou aqui? Não vi por onde entrou. Será que ela possui o mesmo dom da avó? O de se volatilizar? Era com a caçula que agora se encontrava sentada do meu la-do, que Sol procurava conversar: - Meu bem? Vai para mim, preciso ajeitar algumas coisas... ...Oba! É a minha chance de verificar se fora daquelas paredes a vida corria normalmente, então, eu também vou. A garota aquiesceu-se, e eu me prontifiquei a acompanha-la. Justifiquei a minha prestatividade alegando que tinha feito um curso intensivo de carregador de pacotes, e havia a extrema necessidade de coloca-lo em prática. Não tenho certeza, mas acho que enquanto eu me oferecia para ir, devo ter ficado de joelhos diante da garota; mãos postas em fervorosa oração, e encerrei o pedido com um sonoro amém. O silêncio da jovem eu interpretei como sim.

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E Sol se apoiando em mim e dando risadas: - Mas é um palhaço mesmo! Essa foi de mais. Lista na mão; e onde fica o supermercado? Do outro lado do bairro? Em outra cidade? Qual é o ônibus? Avião? - Não, não. É só atravessar a rua. ...Brincou! É sério? Necessito de tempo. Preciso reativar, pelo menos uns cinquenta por cento da minha razão, se é que ainda tenho tudo isso para recuperar. Tenho cá minhas dúvidas. Vamos lá! Na ida, eu passava por uma árvore e abraçava-a: - Árvore é uma árvore. Folhas, folhas. Olha as raízes... Nos poste dando tapinhas: - Poste, é um poste mesmo. Fios, lâmpadas... Pássaros ao redor, eu os apontando com o dedo: - Ah! Passarinhos voando. Ali uma bicicleta, carro... Dentro do supermercado o que eu pude pegar, manusear e di-zer o que era, eu o fiz. Latas, pacotes, frutas, legumes, embalagens, garrafas. O gerente era só sorriso, pois imaginava que eu iria levar tudo. Mas a garota - com uma prática invejável - acabou com a mi-nha aula de recuperação mental. Logo o carrinho já havia passado pelo caixa; as compras nas sacolas e prontas para serem carregadas. ...Mas já? Não acredito, voltar? Eu preciso de mais tempo, umas trezentas horas no mínimo. Em desespero total, sugeri levar um pacote de cada vez. - Você vai e eu fico aqui guardando o resto. Boa idéia né? A caçula como que mordendo os lábios e com o sobrolho fran-zido não respondeu, porém deve ter pensado: - Preciso conversar seriamente com a minha mãe a respeito da saúde mental desse cara! Embora eu acho que foi a minha gracinha sem graça, e o meu sorriso mais que amarelo que não a convenceu.

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O retorno

inhas pernas estavam pesadas, não pelos pacotes que eu carregava, era pavor mesmo.

Quando do atravessar a rua quase fui atropelado. Isto é, eu fi-quei parado na frente de um carrinho de sucata que era empur-rado por senhor de idade bem avançada. Eu assumiria toda a culpa do ocorrido; juro; e gemendo muito sairia dali em uma ambulância e exigiria no mínimo vinte e quatros horas de observação. Mas não aconteceu. O senhorzinho muito simpático vendo o meu estado, carregan-do todas aquelas sacolas, parou para que eu passasse. Comecei a odiar a lentidão dos carrinhos de sucata. O portão foi aberto. Acho que vou desmaiar. Dão-me passagem para o interior da casa. Passo a respirar de-sesperadamente pela boca, o ar que entra pelo nariz é pouco, insuficiente; quando escuto: - Elas saíram, foram se arrumar. ...Hã? Elas saíram? Todas? É mesmo, mulheres tem dessa coi-sa de se arrumar, e para uma festa então... A alegria que me invadiu ao ouvir isso me deixou novinho em folha, revigorado e um completo idiota. Com Sol e filha me olhando, equilibrei uma lata de ervilhas na testa enquanto dançava um funk feroz. Como a minha memória não me perdoa, toda vez que lembro disto sinto uma vergonha danada.O! Micão. - Mãe, posso conversar com você? É a saúde men... - Depois filhinha, depois. Nos duas já estamos atrasadas. Sol entregando-me uma lata de cerveja e carinhosamente dan-do me um beijo no rosto: - Você consegue ficar um pouco sozinho? Eu também vou me produzir, afinal de contas, eu sou a aniversariante.

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- Claro que sim gata, por mim cedo-lhe todo o tempo do mun-do, você é a razão desta festa. Para não incomodar ninguém achei por bem ficar na cozinha apreciando a minha cerveja. Feliz por estar com o controle total do meu cérebro e dos meus membros procurei dar um pouco mais de conforto para minhas pernas quando as esbarrei em alguma coisa. ...O que é isso? Abaixei para olhar e vi uma planta herbácea, prostrada, da fa-mília das cucurbitáceas (citrullus vulgaris) de origem africana, de folhas bastante subdivididas, e cultivada por causa dos fru-tos, enormes bagas uniloculares e polispermas, muito sucosas, de casca verde e polpa vermelha com sementes negras. ...Ah!Uma melancia. E com pensamentos nada recomendáveis. ...Será que algumas das moças tem o dom de se transformar em melancia? E quem seria? ...Ou será que fui eu quem lhes rogou uma praga? ...Não. Não sou tão mau assim, posso até pensar em maldades, mas colocar em prática, não. E também acho que não tenho esse poder, ou tenho? Huum! Não custa nada tentar. Isto é, se eu conseguisse me fazer ouvir, até que poderia intimida-las. ...Parem de falar ou as transformo em uma melancia. ...rsrsrs!Bolo de aniversário de Sol? Não me assustaria se essa melancia fosse um bolo de aniversário. Aliás, já vi e passei por tantas coisas hoje que nada mais irá me surpreender; rsrs! ...e não posso deixar imaginar a cena: no centro da mesa, a melancia cheia de velinhas acessas e todos cantando os para-béns para você, com direito a bis, lógico! Agora, Sol fecha os olhos, faz um pedido, e em um só fôlego apaga as velinhas. Entre palmas, vivas e fotos, cerimoniosa-mente corta a melancia, sendo que o primeiro pedaço vai para

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a pessoa mais estimada e depois que cada um estiver com o seu pedaço; é a hora do salve-se quem puder, a guerra de cus-parada de semente de melancia não iria deixar de acontecer. ...É, estou bem; para ficar imaginando essas bobagens, só es-tando de plena posse das minhas faculdades mentais. Volto a minha atenção para a lata de cerveja que estava deli-ciosa, o que me leva a fechar os olhos, e só abri porque come-cei a escutar uma música, alguém estava cantando. ...Um rádio? No quintal? Quem ligou? Eu tenho certeza que ninguém passou por aqui, bom, quase; a vó e a neta usam do teletransporte, mas não foram elas, ainda devem estar se arru-mando para festa. Vou verificar o que pode ser. A presença

em devagar, sem barulho entreabri a porta do quintal. O que vi, me deixou com a boca mais que aberta.

...Minha nossa! Que eles falam, eu sei, agora isso também? As cachorrinhas estavam fazendo uma graciosa coreografia, e a tartaruga... cantando e que voz. ...Tem coisa nessa cerveja; isso só pode ser um “barato”. Mesmo sem acreditar, deixei a porta como estava, e silencio-samente retornei para a minha cadeira que ajustei mais pouco, o que me deixou completamente de costas para o resto da casa, e assim podia ouvir melhor o que a tartaruga agora cantava:

“I was born to love you, with every single beat of my heart;

Yaaa, I was born to take care of you;

Every single day of my life…”

Não tinha o que tirar nem pôr, Fred Mercury cantando, e as cachorrinhas agora fazendo back voice. Sensacional. Sim, também se ouvia o hamster; esse um caso perdido: - Trinta e nove, vem, vem, veeeem!

B

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Eu poderia até sair e procurar saber se eles também me enten-diam, mas cadê a coragem? Fico aqui mesmo em paz, curtindo ao máximo essa calmaria e a música também. Mais um gole da gelada foi quando senti um terrível arrepio que deixou todos os pelos do meu pescoço levantado. ...Que sensação estranha, sobrenatural. O que poderia ser? Ah? A minha consciência retornando em grande estilo? Ok! Levantei e me postei no meio da cozinha, olhando para baixo como se o eu naniquinho ali estivesse, e eu passei a sussurrar bravamente para ele: - Por que voltou? Hã? Já postou o vídeo, e agora veio para dar o endereço? Suma, vá procurar outro para ser sua consciência; eu não preciso. Como não sou mal agradecido; muito obrigado por me deixar sozinho; passei muito bem sem a sua insignifi-cante presença, e vou continuar assim. Nhé! Nhé! Consciência limpa! Nhé! Nhé! Nhé! Fora daqui traste. ...Uah! De vez em quando fazem bem essas encenações. ...E se fosse o espírito terere terere? Passo a lavar a alma de novo. Agora com as mãos nos quadris, pernas abertas e como esti-vesse olhando para alguém bem mais alto, e novamente sus-surrando raivosamente entre dentes: - O que você quer, hein? Agora quem manda aqui sou eu. Quem te chamou? Seu inútil. Pela sua atitude vou denuncia-lo no - C.R.E.E.L.G.F. (conselho regional dos espíritos esporti-vos de luta, garra e força) do estado de São Paulo. Sol também comentou que está gastando muito com rações para os animais. Eu acho que é você quem esta comendo, e isso eu vou falar para ela. Se ela quiser também, exorcizo a ala dos troféus para te expulsar de uma vez daqui, e para não ter o perigo de retornar, coloco uma seringa com uma agulha da grossura de um dedo lá. O que? Vai me encarar?

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Passo a pular nas pontas dos pés como um boxeador, e com as mãos fechadas como que protegendo o rosto, e procuro desfe-rir socos ora com a direita ora com a esquerda. - Pode vir inválido. Toma essa e mais essa. Fugindo né. Hei! Volta aqui panacão, volta para apanhar mais. Vencedor deste combate ilusório; cheio de pose, gingando começo a voltar para mesa quando levanto o olhar... ...O queeee? Chego até escorregar com o susto que tomei e esse quase que me derruba mesmo. ...Ela não enxerga muito bem e também não escuta. Calma, calma, continue andando como se nada estivesse acontecido, respire fundo, haja naturalmente. Era a senhora que estava em pé atrás da cadeira que eu ocupa-va, e me olhando fixamente falou: - Cuidado para não cair aí; qual é seu nome mesmo? Ah sei, então, esse piso é muito liso. E com quem você estava falan-do? Parecia que estava discutindo, brigando, eu detesto brigas. - Mas a senhora assiste UFC. - Aquilo não é briga, são profissionais lutando. - Parece briga... - Você está fugindo da minha pergunta. Com quem você esta-va falando? - Eu...ba...de...a… ga…, já foi embora, aliás, já foram, eram dois. Um grande e um pequeno assim. - Eu não enxergo muito bem, por isso não vi nada. Vou con-versar com Sol a respeito da saúde mental desse cara. - Hã? Perdoe-me, eu não entendi, pode repetir? - Não foi nada, bobagens, coisas da minha idade. Às vezes eu falo sozinha; você não? A entrada de Sol elegantíssima interrompe a conversa: - Mamãe já esta pronta? Olha como ela está liinda! Perfumada.

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- Sol, Sol! Viu, preciso falar com você; é a saúde ment... - Cruzes! Primeiro a minha filha, agora mamãe querendo falar comigo. O que pode ser ? Não pode esperar quando estivermos a sós? Hum? E Mamãezinha querida, o pessoal já está che-gando; vamos recebe-los? Achei que fosse ter um treco com o que eu ouvi. ...Aquela turma do barulho já está aí? Puts! Não estou prepa-rado...Adie a festa para amanhã ou depois... E para mim: - Celso, vem comigo, vou apresenta-los. Vamos? ...O! Vontade de responder não. Alegar que estava acontecen-do uma chuva daquelas na minha cidade; que deixei as janelas abertas, roupas no varal... Sol não esperou a minha resposta, tomou a minha mão e me levou em direção aos que estavam chegando. Chegaram

chegaram falando, o que poderia ser a situação mais natu-ral do mundo. É festa; legal; todos a sua maneira demons-

tram a alegria por estarem se reunindo. Este grupo também expressava a alegria do momento, mas com um detalhe; em dois tons: o alto e o bem mais alto. Tanto que para evitar qualquer trauma auditivo, eu mantinha uma certa distância daqueles que me eram apresentados. Aos poucos fui deixando o meu temor de lado, mesmo porque, isolados, não são tão como Sol havia falado, sendo assim, co-meço a sentir a necessidade de ser mais participativo. ...Hum! Onde eu posso ser útil? Claro, na churrasqueira. Até agora, durante toda minha existência, dá para contar nos dedos de uma mão quantas vezes fiz isso, e ainda sobra um bom bocado, mesmo assim eu vou.

E

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Peço licença para quem estava ali, e com um ar de conhecedor supremo da causa assumo aquele braseiro. ...Que calor, sô!Acho que o fogo está muito alto. Pego o primeiro frasco ao alcance, e dou uma esguichada... Subiu uma língua de fogo, que nem lhes conto. Puu! Nessas horas, pra variar, sempre tem alguém olhando a cag... que a gente faz, e vem com o tradicional aviso atrasado: - Cuidado ai, heim? Isso é álcool; a água é aquela garrafa... Com o sorriso congelado, roendo os cotovelos de raiva agra-deço e volto a colocar os espetinhos para assar. …Acho que é meio pretinho assim que o pessoal gosta… Ainda estava tirando a primeira rodada de espetos, quando uma moça bonita, cujo nome não consigo lembrar: - Oi!Celso? É… bem… é a minha vez, sou eu agora, ta! Sorrisos femininos e convite para deixar a churrasqueira, não necessariamente nessa ordem, eu nunca recuso. Vou para um canto e permaneço lá. Entregaram-me uma cerveja e um bom bocado de petiscos a-companhado de algumas recomendações: - Olha, você é convidado, fica aí! Sol acha que você é muito magrinho então, coma bastante, e tem mais salgadinhos aqui… Acato os carinhosos conselhos sem questionar, e passo a beber e a comer quietinho. Foi quando ouvi o comentário a respeito da minha primeira rodada de espetos. Que se tivessem servido carvão com sal seria muito melhor que aquela coisa torrada. ...Essa não! Fui reprovado de novo, então, nunca mais. E sempre chega um para descontrair no bate papo. Futebol, mulheres, política; e foi aí que eu pequei e feio. Abaixei a guarda, relaxei na defesa, vacilo total. ...Po! O bolo está na mesa, as velas acessas, os aniversariantes fazendo pose para as fotos...

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Sei lá quem foi; falou comigo com se eu estivesse a quilôme-tros dali e sem noção nenhuma do que estava acontecendo: - Agora vamos cantar os “parabéns para você”. - A é...? Ziiim! E logo chega outro, nesse caso achando que eu estava a milhas e milhas distante: - Depois contar piadas. - Pia...? Zeee! Uma vez que passei por duas situações de zeee e ziiim, posso me considerar um expert no assunto, e cito as diferenças. Sem sombra de dúvidas, a “fala mais alto que ela é surda” foi muito mais destrutiva que o “vamos cantar os parabéns para você” e o “depois contar piadas”. Por que? É simples a resposta. No “fala mais alto...” a paralisação foi total, quase que imedia-ta, o lado esquerdo parou alguns segundos depois do direito, mas parou totalmente, assim como o cérebro também. Sendo que a “vamos...” e a “depois contar...”, não houve para-lisação, meus membros ficaram moles e o cérebro, male má ainda funcionava. Para movimentar os membros era só emba-lar; por exemplo, para colocar o braço direito sobre a mesa, eu ficava balançado e tome a contar: e vai um, e vai dois e vai três; pronto o braço estava em cima da mesa. Simples, viu? O que eu contei até três, puts! E o momento de abraçar e beijar, coisa de cumprimentos para a aniversariante, pois agora é minha vez. Braço esquerdo: vai um, e vai dois e vai três; levantou, agora o braço direito, vai um, e vai dois e vai três; também levantou. Lá vou eu armado pronto para abraçar. Por um triz não consegui. Passei por cima da cabeça de Sol, e só parei quando toquei na parede. …Como voltar?

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Tanto para a perna esquerda como para a direita: vai um, e vai dois e vai três. Então, se eu tenho que dar um prêmio, este seria para as moças da cozinha, que com o poder de extermínio que possuem, quem sou eu para contraria-las. Aaaah! O zeee e o ziiim; claro, em ambos os casos me deixa-ram alienado totalmente. E isso foi durante a festa toda. Só via gente gesticulando e rindo. …Eu quero participar, quero cantar, bater palmas, marcar pre-sença, sair nas fotos junto com os aniversariantes. Devo ter atrapalhado a todos na hora das piadas. Sem ouvir (olha o zeee e ziiim; aí gente!), ria sem parar, por-que de boca aberta não conseguia contar até três para fecha-la. Deu-me uma câimbra que até hoje me incomoda. Daquela turma simpática, carinhosa não ouvi um comentário sequer a respeito do meu jeitão de marionete desengonçado. Divinos e maravilhosos. E como toda festa, esta também começa a chegar ao fim. À medida que os convidados vão se retirando um sossego, uma paz celestial vai ocupando aquele espaço. Uma arrumação básica é necessária para tirar aquele ar de campo de batalha e depois cada um vai para o seu quarto para descansar, dormir. Eu, apesar de toda agitação, estava sem sono. Ouço a tartaruga e as cachorrinhas que começaram a cantar:

“Lua vai, iluminar os pensamentos dela;

fala pra ela que sem ela eu não vivo;

viver sem ela é o meu pior castigo...vá dizer...”

Não ouvia o hamster, acho que dormia. …Humpf!Também pudera, depois de todas aquelas “sessões”.

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ão consegui dormir como queria, só cochilei. Acabei des-pertando totalmente com a luz matinal, e porque a tarta-

ruga e as cachorrinhas logo cedo já estavam cantando: “... sou um príncipe pierrô, mal amado;

mestre sala desacompanhado

um bufão no salão a cantar; nananão.

Colombina; e;

Seja minha menina só minha...”

...A tartaruga também faz cover do Ed Mota, e as cachorrinhas não ficam devendo nada, que coisa. Será que Sol sabe disso? Poderia apresenta-los em um show de variedades, fazer ex-cursões, é incrível como esses animaizinhos cantam, é uma delicia ouvi-los. Nã!Nã! Nã! Comecei a” viajar “de novo! ...Ontem eu tive meus lóbulos cerebrais invertidos, por isso eu os entendo, escuto, e quantos mais no mundo já passaram por essa de trocar as bolas da cabeça? Mais ninguém, né? ...Então, cachorrinhas só latem, a tartaruga ronca de fome e o hamster, bem... o hamster...é o hamster, é isso aí. Um barulho na cozinha me incentivou a sair do quarto. Era a maravilhosa Sol passando café que me ofereceu. Sorrisos femininos e café, não necessariamente nessa ordem, eu nunca recuso. Sentamos, eu perguntando da família, e ela: - Todos, no domingo procuram matar saudades da cama, en-tão, tão cedo não vai ver a cara de ninguém. Eu porque depois de um horário não consigo ficar mais deitada, fico incomoda-da. E metade dos que estavam ontem aqui vem hoje para o al-moço de aniversário, daí... mas isso é mais tarde. ...Que bom! Sol e eu teríamos muito tempo só para nós. E como é agradável conversar com Sol.

N

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A tartaruga e as cachorrinhas “pegaram” o clima e começaram a cantar:

“Eu preciso te falar, te encontrar de qualquer jeito;

Pra sentar e conversar, depois andar de encontro ao vento.

Eu preciso respirar o mesmo ar que te rodeia;

E na pele quero ter, o mesmo sol que te bronzeia;

Eu preciso te tocar e outra vez te ver sorrindo;

E voltar num sonho lindo...”

...Falo ou não falo para Sol sobre isso? Agora não, deixa. Duas horas de muita conversa já havia passado, e várias xíca-ras de café também, quando Sol mudou o rumo da conversa: - Todos, adoraram você. Muito engraçado, brincalhão, péssi-mo churrasqueiro; sem mágoas, viu? Olha, até os animais em nossa volta como estivessem cant...! Oh! Bom dia! ...O que? Bom dia de novo? Alo! Sol! Tomou muito café? Eu ia começar a falar, quando percebi que Sol não estava olhando para mim, e sim um pouco mais a minha esquerda; e eu também olhei. Gelei de cima a baixo. Sol não notou o meu estado, e um pouquinho mais alto: - Bom dia, mamãe! ...Essa senhora tem o prazer mórbido de me assustar. Já deveria ter me acostumado; com essa coisa dela aparecer do nada e ficar parada do meu lado. O gole de café que eu ainda tinha na boca virou um cascalho quando atravessou a goela, fazendo-me tossir. Enquanto ela me dava tapas nas costas, puxou uma cadeira: - Bom dia, bom dia. Posso sentar aqui do seu lado? Eu entre uma tossidela e outra: - Por... cof... cof... favor, cof... claro que sim. Fiz menção de levantar em sinal de respeito, ela com um leve toque no meu ombro impediu-me. Sentou-se, pegou uma xíca-ra, torradas e começou apalpar o meu braço.

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...Mas que velha assanhada. Sol olha a sua mãe. Sooool? Ela começou a falar, e eu descobri porque me apertava: - Pois é; por que economizaram tanto? Veja Sol! Que dó! Que pena. Só tem osso e uma coisinha de nada de pele. E nos cabe-los também, veja só! Sem conseguir controlar o riso, Sol discretamente: - Mamãe! - Ta bom, ta bom! Então, me diz uma coisa; qual foi vento que você pegou ontem para vir para cá? Foi rápido? Confortável? - Mamãee! - Ta bom, ta bom! Qual é o seu nome mesmo? Ah! É, isso mesmo; então, você não usa guarda-chuva, né? ...Ué? Por que não? - Deve ser muito difícil você ser atingido pelas gotas de chuva. Aliás, para tomar banho também, então você deve ficar dan-çando para se molhar. É, uns cantam e você... - Mamãeee!!! - Ta bom, ta bom! Você é econômico. ...Hum? Essa não entendi mesmo. Econômico? - Isso mesmo. Das roupas que compra, manda cortar no meio e usa só a metade, magrelo do jeito que é... - Mamãeeee!!!! Credo! Acordou impossível, acho que está com ciúmes, quem diria. Olha o seu café esfriando, aqui tem mais torradas, e tem mais gente levantando. E Celso, não liga pra ela, ta. Ela está só querendo cuidar de mim, me proteger. Eu com um sorriso chocho procurava demonstrar que não es-tava levando aquilo em consideração, mas por dentro. ...O véia fia da... Se fosse muda também seria um favorzão para a natureza. Não, para a natureza não, só para mim. Aproveitando que ela começou a fazer a sua refeição matinal e atazanar quem estava chegando, escapuli dali rapidinho.

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Na base de um vulcão

pós o café, Sol convidou todas as moças que estavam presentes para ajuda-la no preparo do almoço.

Eu até pensei em dar uma mãozinha, mais para aproveitar da presença de Sol. Mas, vou nada. Agora que eu estou sentindo-me mais ou menos bem. Estou quase pensando, quase me mo-vimentando. Sem essa de procurar sarna pra se coçar. E Sol, como que lendo os meus pensamentos, adivinhando as minhas intenções de lá não entrar: - Celso! Deixe conosco. Vai demorar um pouco, mas vai ser uma bela surpresa, e espero que você goste. - Claro gata, e, por favor, não se preocupe comigo. ...Vou brincar com as garotinhas lá na frente e deixar que o bicho pegue solto na cozinha. Ontem era porta que parecia que iria cair. Hoje as paredes também. Que perigo! As garotinhas e eu ficamos afastados o máximo possível da-quela área de risco. ...Uma surpresa? Duvido que consigam fazer alguma coisa, parece final de campeonato. Concordo que ontem provaram o contrário. No meio daquela queda da Bastilha; olha que festa bonita que aconteceu. Mas hoje, sei não; parecem que estão mais ariscas. Queria ver Sol, iria lhe propor uma alternativa e talvez até conseguisse fazer com que elas se separassem. Algo assim: barras de chocolate para cada uma, que eu escon-deria pelos cantos da casa e elas iriam procurar; achou, comeu. E mastigando, nada de falar. ...Cadê Sol? E Sol chegou chamando-nos: - Meninas o almoço está pronto, e tragam o Celso.

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As duas garotinhas olharam para mim: - Você ficou branco, por que? - Ontem... a... tartaruga... correu atrás de mim e agora estou com um tiquinho de medo dela. As duas: - Seu bobo, tartaruga correr! Nunca vi! Vem com a gente, se ela chegar perto a gente baate nela. De mãozinhas dadas comigo caminhamos para a cozinha. Sentia-me protegido. Almoço; volver

ntrei examinando para ver se encontrava rachaduras, trin-cas. Se o teto não tinha alguma avaria, se o piso não havia

cedido. Eu estava preocupado com a segurança das crianças e com a minha também. Dispomo-nos a mesa e o almoço chegou. ...Minha nossa! Maionese. Hoje eu mato a saudade. ...Uau! Realmente uma magnífica surpresa! Elas são maravilhosas, apesar da impressão que se tem de que a casa vai cair quando conversam. ...Essa minha imaginação fertilizante que preciso aprender a controlar. É um grande defeito que eu tenho. ...E agora o que está chegando? É... é lasanha? Isso mesmo, uma tradicionalíssima lasanha. Massa folhada, queijo, molho de tomate e…e presunto. ... Essa não! Aqui vou abrir e fechar um parêntese, com a devida licença de quem está lendo: Eu, isto é, eu não, mas o meu sistema digestivo que não con-segue assimilar o dito presunto. É comer e correr.

E

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Isso independente da quantidade, origem e processo; o artesa-nal, industrializado, nacional, importado, cru, cozido, o efeito desastroso é o mesmo. Terrível, é o termo correto. E é só o presunto, sendo que outros tipos de processados, sem problema; salsicha, salame, mortadela, etc. E aquela bandeja me mostrava que havia presunto para um batalhão distribuído em uma… duas…três… cinco camadas. Sol me pergunta: - Celso, com essa cara de italiano você gosta de lasanha, né? Estava para responder e justificar, mas: - Sol? Sol? - Ai! Sim, sim mamãe! O que foi? Ela quer toda atenção! Sim! - Viu! Põe bastante pra ele. Qual é o seu nome? Ah! Sei. En-tão, encha o prato dele, senão a vizinhança vai ficar falando que a gente deixa as visitas passando fome aqui em casa. …Não, um tiquinho de nada, só massa por fav… Sol acatou a sugestão da santa mamãe dela. Quanto peguei o prato que gentilmente me entregaram, calcu-lei algo como um quilo de lasanha. Subtraindo meio quilo de massa, duzentos gramas de queijo, sobra trezentos de presunto. ...E agora, como sair dessa? Tocar no assunto? Não. Seria mui-ta falta de tato de minha parte falar sobre diarréia na hora da refeição. Já sei. Como todos já estavam com os seus respecti-vos pratos feitos, começo a conversar com quem está do outro lado da mesa, assim eu consigo que a atenção do pessoal fique voltada a quem está falando, e aqui vou retirando o presunto e jogando para as cachorrinhas. Assim começo a fazer. Enquanto as cachorrinhas comiam, a tartaruga começou inter-pretar Guilherme Arantes:

“Eu não sonhava em te amar desse jeito;

Hoje nasceu novo Sol no meu peito;

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...Morram de inveja. Almoço musical na casa de Sol, embora só eu ouvia. Discretamente faço um positivo para a tartaruga, e ela levan-tou a pata direita de volta para mim. Senti todo o ar sumir dos meus pulmões. ...Ela... ela me entende? Então, as cachorrinhas e o despudo-rado do hamster também.Foo! Foo! Sol como estava sentada do meu lado notou e perguntou: - Celso, o que foi? - Acho que foi um pedaço da... maionese que estava um pouco mais quente... a mai... - Maionese quente? - Não.... a lasanha quente, daí a fazer isso! Foo! Foo! Esfria. Ela olhou para o meu prato e ainda me censurou: - Mas você não está comendo. Conversando muito, heim? ...Droga! Agora eu sou a atenção de todos. Sorrindo frouxo, meio ofegante e evitando olhar para os ani-mais, volto a refeição. ...Putz! Caramba, como tem lasanha aqui, e eles já estão ter-minando. Pedir para embalar para viagem? Digo que adoro comer lasanha dentro de ônibus.Tisc! Não. Ah! Isso mesmo. Já que as crianças saíram para saborear a sobremesa, vou pro-por uma brincadeira para distrai-los . Funiculi Funicula

ol, pessoal, o almoço está delici... - Nossa ele fala, achei que estava dormindo...

...Ela de novo! Dá uma engasgada véia, assim para de falar. Sol segurou o meu braço, e fez um comentário sobre a mãe: - Hoje ela está com o piriquitinho verde. Não está poupando ninguém, nem você, viu Celso, e o que você ia dizer mesmo?

- S

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- O almoço está delicioso e... Huhu! Então, quando a minha família se reunia como estamos agora; massa, maionese e vi-nho, a gente cantava e fazia uma pequena brincadeira... Interromperam-me com varias perguntas: - Qual é a brincadeira? Como que é? O que cantavam? ...Teee! Eu e as minhas idéias de jumento empacado... - A... é... isso, a brincadeira é... passar o copo, que o seu vizi-nho vai colocar a sua esquerda. Pegue-o com a mão direita e coloque a esquerda dele. Fácil, né. Um deles vai estar cheio, e na frente de quem parar vai ter que toma-lo num gole só. Se não conseguir paga um castigo, como contar uma piada... ou... Entres palmas e vivas, escolheram a bebida – suco de laranja - distribuíram os copos, e qual seria música? ... E aí sua anta manca, qual é a música? - A música? Achei que vocês fossem... Bom!É...uma italiana. - Você canta. Aqui ninguém fala ou canta em italiano. ...Ta vendo seu mentiroso onde você se enfiou? Cante agora. - Certo! A música é... a Funiculi Funicula, é animada. Como só lembro de um pedaço, assim que acabar, o copo cheio tem que estar na frente de um de nós; entendido? Vamos lá: Jammo, jammo 'Ncoppa jammo ja'; Jammo, jammo 'Ncoppa jammo ja';

Funiculí, funiculá Funiculí, funiculá; 'Ncoppa jammo ja' Funiculí, funi-

culá;

Aissera, Nanninè Me ne sagliette; Tu saje addo'? (Tu saje addo'?)

Addo' 'stu Core 'ngrato; Cchiu' dispietto

Farme nun po' (Farme nun po')

Addo' lo fuoco coce Ma si fuie; Te lassa sta (Te lassa sta)

E nun Te corre appriesso; Nun te struie

Sulo a guarda' (Sulo a guarda')

Jammo, jammo 'Ncoppa jammo ja'; Jammo, jammo 'Ncoppa jammo

ja'

Funiculí, funiculá Funiculí, funiculá; 'Ncoppa jammo ja' Funiculí,

funiculá

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Encoberta pelo braço direito para pegar o copo, a minha mão esquerda estava dentro do prato separando o presunto e jogan-do para as cachorrinhas, embora eu ache que a tartaruga tam-bém comia e muito, pois não estava mais cantando. Das vezes que aconteceu de alguém pagar o castigo, era a pau-sa merecida para que eu pudesse tomar um pouco vinho e veri-ficar o quanto ainda havia no prato. ...Tudo isso ainda? Eu não aguento mais separar, cantar...mas preciso; mais duas rodadas acho, e acabo com isso. - Então, o copo está cheio? Todo mundo cantando:

Jammo, jammo 'Ncoppa jammo ja'

Jammo, jammo 'Ncoppa jammo ja' Obvio que depois de tanto executar o mesmo movimento e cantar a mesma música - que eles acabaram aprendendo alguns trechos - a brincadeira ficou mais rápida. Braços e copos pareciam voar sobre a mesa. Devo acrescentar também que fiquei hábil com a mão es-querda, que até então, era um desastre até para dar “tchau”! Agora o copo cheio está a minha esquerda, pego-o rapida-mente e passo até que ele chegue na outra extremidade...e? ...Derrubaram o copo. Oba! É a minha última chance. Enquanto todas as atenções estavam voltadas para o aconteci-do, mais que depressa peguei um bom bocado que tinha no meu prato, sem separar mesmo, coloquei para as cachorrinhas, e o que sobrou , uma ou duas garfadas eu comi. Agora com cara de estar super satisfeito, tomo um gole de vi-nho e sorrindo para todos, até escutar a neta de Sol : - Vó! Olha as cachorrinhas, estão com as bocas vermelhas... ...Merda! Cachorro bobo, não sabe nem limpar a boca! Sol aproveitou para dar um aviso, muito tarde ao meu ver: - Não dêem presunto para elas; lhes provoca diarréia... ... Eu não escutei isso; eu não escutei isso.

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Hora para chegar, hora para partir

inda estávamos na mesa quando a alguém falou as horas. O tradicional “já?” foi geral.

Não percebemos o quão rápido as horas passaram. Apesar dos conselhos de que não precisava, procurei ajudar na retirada e arrumação da mesa. Quando eu estava enxugando pratos, panelas e talheres, senti um “goru-goru” na barriga. ...Será que tinha presunto nos pedaços que comi? Oh! Não! Pelo jeitão do aviso, nervoso que só ele, sim, tinha. Nessa situação em particular, tenho a extrema necessidade de me precaver, onde vou estar, porque é um desespero só. ...Vamos calcular. Saio disparado daqui, compro uma passa-gem com no mínimo uma hora de folga, e passo o tempo de espera no banheiro. Assim consigo segurar na viajem até o terminal...Espera aí! No ônibus tem banheiro; tudo bem, mas este primeiro alerta vou ter que atender aqui mesmo. Sugeri que me esperassem no portão, porque eu ia escovar os dentes e pegar a minha mochila. Entro correndo no banheiro, quase não deu tempo. É de deixar triste, principalmente quando se é visita. ...Será que aqui tem desodorante de ambiente? Vai precisar e muito. O ambiente fica insuportável para qual-quer nariz sadio, as vezes até para o meu. Acho que extrapolei na permanência, pois o pessoal começou a me chamar. Era necessário ficar mais um pouco, mas que assim seja. Vou buscar minha mochila e passo pelo quintal, onde a tarta-ruga e as cachorrinhas estão cantando:

“Quem parte, e leva saudades de alguém;

que fica chorando de dor.Por isso não quero lembrar;

Quando partir, meu grande amor...”

A

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Celso Fernandes Fulieri

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Perto da gaiola do insaciável hamster: - doze, doze, doooooooooze, ufa! Até que para um dia de trei-no não estou tão mal assim. Hei! Você? As fêmeas, cadê? Não querendo mais entender nada daquilo, aceno para eles, e eles corresponderam acenando com suas patinhas. Sinto outro goru-goru! Agora no portão, as meninas me fizeram jurar de pé junto que voltaria um dia só para brincar de “funiculi funicula”, porque hoje não as deixaram fazer nenhuma vez. Isso me deu um nó na garganta. Um a um, abraços e beijos carinhosos de despedidas. Sol me avisa que a metade vai ficar e a outra vai para o meu bota fora. Procurei dissuadi-los. Não havia necessidade. Insis-tiram, e a opinião da maioria prevaleceu, tive que aceitar. Com a passagem na mão para daqui a quinze minutos, começo outra sessão de despedidas. Sol foi a última, que com um sorriso indescritível: - Não teve um aqui que não gostou de você, então, volta viu? Até os animais, acho que estavam cantando! Acredita nisso? ...Ela também consegue ouvi-los? E aquela coisa da Vó e da caçula de desaparecer e aparecer do nada? Ia comentar, mas não haveria tempo para tal, então, me limitei a abraça-la, beija-la, e agradecer por tudo e por todos. O ônibus encostou-se à plataforma. Na sua lateral em letras garrafais lia-se: TOILETE A BORDO. ... Que frase maravilhosa. O autor merecia uma estátua em ca-da uma das capitais e nas grandes cidades do mundo em sinal de agradecimento por tanta criatividade. Essa frase deveria constar em todos os livros de motivação pessoal, deveria mesmo. Eleva o astral. Olha o bem que me fez, apesar do meu esforço hercúleo para controlar a saída de gases ou sólido, ali-as, de antemão, já sei que é líquido e em jorro.

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Domingo com Sol

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Quase lá

ssim que o ônibus começar a andar, corro para o ba-nheiro. Por enquanto dá pra segurar. Arhg!

Era o que eu pensava enquanto trocava tchaus e jogava beijos somente para Sol que ainda estava ali, pois a vó e a caçula a-cenando-me esmaeceram em uma névoa translúcida. Outro goru-goru, e este alertando que o tempo esgotou. Para tentar distrair passei a prestar a atenção em um rádio sin-tonizado numa estação local, e o locutor com a voz empostada:

“Chuchu AM. Uma potência de rááádio.

Cochichando pra a cidade, sussurrando pro interior.

Na sequência da minha, da sua programação dominical...

Gaalll Cosssta...” “Contigo aprendi

Que existem novas dimensões da alegria

Contigo aprendi

A conhecer todas as minhas fantasias; aprendi...” Interromperam a música porque o motorista que era a cara do espírito esportivo de luta, garra e força; que era a cara do taxis-ta, que era a cara do motoboy; só que muito mais simpático do que eles; acabara de entrar. Sem olhar especificamente para nenhum de nós, e aparentando estar constrangido, pois nervo-samente coçava a nuca quando nos deu o aviso: - Boa tarde gente. Viu! Favor não usar o banheiro porque está quebrado. Se alguém precisar, mas puder segurar eu agradeço, agora se não der mesmo, eu paro em qualquer moita por ai. Muito obrigado e vamos fazer uma boa e rápida viagem. ...“Se chorei, se sorri; o importante as emoções eu vivi!”

Zeee Ziiim

...A

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Álbum de fotografias

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O presente vivo de impulso, e o futuro é uma expectativa imensa, porque é onde vou passar o resto da minha vida

Do mesmo autor 2.012 – Uma Odisséia que se encontra no site:

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