DOMINIUM E IUS: CONTROVÉRSIAS EM TORNO DA...

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DOMINIUM E IUS: CONTROVÉRSIAS EM TORNO DA FUNDAMENTAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS, A PARTIR DA RECEPÇÃO DA POLÍTICA DE ARISTÓTELES EM FRANCISCO DE VITORIA (1483-1546) E DA INFLUÊNCIA DE SUA INTERPRETAÇÃO SOBRE PENSADORES LATINO-AMERICANOS DOS SÉCULOS 16 E 17 Renata Floriano de Sousa 1 Resumo: O artigo apresentado a seguir trata-se da pesquisa sobre a recepção da Política de Aristóteles na concepção dos pensadores do período da chamada Scholastica Colonialis. Alguns desses autores como Las Casas, que influenciados por Francisco de Vitória, fizeram parte desse novo pensamento em relação ao reconhecimento dos direitos humanos dos índios. É deverás importante ressaltar que Francisco de Vitoria exerceu influência entre renomados pensadores através do exercício de sua cátedra na Escola de Salamanca, onde aplicou sua releitura da Política de Aristóteles dentre seus alunos. O que de modo prático, por sua vez, culminou nas mudanças de tratamentos das instituições coloniais a fim de que fossem respeitados os direitos fundamentais dos ameríndios do Novo Mundo. Mudanças essas que infelizmente não passaram de tentativas, visto que a prática escravagista durou até o século XIX América espanhola. Assim, também será mostrada a recepção e compreensão de Aristóteles através do pensamento escravocrata espanhol. O trabalho visa mostrar como alguns autores receberam e introduziram a influência de Vitoria e outras interpretações da Política de Aristóteles nas disputas a cerca da legitimidade da escravidão indígena. Palavras-chave: Aristóteles; Francisco de Vitória; Direitos Humanos; Política; Scholastica Colonialis. 1. Considerações Iniciais A presente pesquisa tem como objetivo destacar a relevância do Frei Francisco de Vitoria(1483-1546) 2 para a construção do pensamento humanista de sua época e sua influência nos pensadores do período que conhecemos como Escolástica Colonial. Vitoria foi considerado o percursor nas teorias relacionadas ao direito das gentes em perspectiva 1 Graduada em Licenciatura de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E- mail: [email protected]. Tel.: (51) 8117-4223. 2 Esse ponto na biografia de Francisco de Vitoria é controverso. Não existe definição sobre em qual cidade ele nasceu, se em Vitória ou em Burgos, ambas situadas na Espanha. É sabido que ingressou jovem na ordem dominicana. Por volta de 1509, foi enviado a Paris para realizar seus estudos no colégio de São Jaques, onde completou seus estudos em humanidades, filosofia e teologia. Suas obras mais conhecidas são De potestate civili (1528). Outras, no mesmo nível são: De Jure belli Hispanorum in barbaros, de 1532, e De Indis (1532) todas elas produzidas, digno de nota, no prazo de cinco anos. Cf PICH,R.H. Dominium e ius:Sobre a fundamentação dos direitos humanos segundo Francisco de Vitoria(1483-1546). Teocomunicação, Porto Alegre, v.42, n.2, p. 376-401, jul./dez. 2012.

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DOMINIUM E IUS: CONTROVÉRSIAS EM TORNO DA FUNDAMENTAÇÃO DOS

DIREITOS HUMANOS, A PARTIR DA RECEPÇÃO DA POLÍTICA DE

ARISTÓTELES EM FRANCISCO DE VITORIA (1483-1546) E DA INFLUÊNCIA DE

SUA INTERPRETAÇÃO SOBRE PENSADORES LATINO-AMERICANOS DOS

SÉCULOS 16 E 17

Renata Floriano de Sousa1

Resumo: O artigo apresentado a seguir trata-se da pesquisa sobre a recepção da Política de

Aristóteles na concepção dos pensadores do período da chamada Scholastica Colonialis.

Alguns desses autores como Las Casas, que influenciados por Francisco de Vitória, fizeram

parte desse novo pensamento em relação ao reconhecimento dos direitos humanos dos índios.

É deverás importante ressaltar que Francisco de Vitoria exerceu influência entre renomados

pensadores através do exercício de sua cátedra na Escola de Salamanca, onde aplicou sua

releitura da Política de Aristóteles dentre seus alunos. O que de modo prático, por sua vez,

culminou nas mudanças de tratamentos das instituições coloniais a fim de que fossem

respeitados os direitos fundamentais dos ameríndios do Novo Mundo. Mudanças essas que

infelizmente não passaram de tentativas, visto que a prática escravagista durou até o século

XIX América espanhola. Assim, também será mostrada a recepção e compreensão de

Aristóteles através do pensamento escravocrata espanhol. O trabalho visa mostrar como

alguns autores receberam e introduziram a influência de Vitoria e outras interpretações da

Política de Aristóteles nas disputas a cerca da legitimidade da escravidão indígena.

Palavras-chave: Aristóteles; Francisco de Vitória; Direitos Humanos; Política; Scholastica

Colonialis.

1. Considerações Iniciais

A presente pesquisa tem como objetivo destacar a relevância do Frei Francisco de

Vitoria(1483-1546)2 para a construção do pensamento humanista de sua época e sua

influência nos pensadores do período que conhecemos como Escolástica Colonial. Vitoria foi

considerado o percursor nas teorias relacionadas ao direito das gentes em perspectiva

1 Graduada em Licenciatura de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-

mail: [email protected]. Tel.: (51) 8117-4223. 2 Esse ponto na biografia de Francisco de Vitoria é controverso. Não existe definição sobre em qual cidade ele

nasceu, se em Vitória ou em Burgos, ambas situadas na Espanha. É sabido que ingressou jovem na ordem

dominicana. Por volta de 1509, foi enviado a Paris para realizar seus estudos no colégio de São Jaques, onde

completou seus estudos em humanidades, filosofia e teologia. Suas obras mais conhecidas são De potestate civili

(1528). Outras, no mesmo nível são: De Jure belli Hispanorum in barbaros, de 1532, e De Indis (1532) – todas

elas produzidas, digno de nota, no prazo de cinco anos. Cf PICH,R.H. Dominium e ius:Sobre a fundamentação

dos direitos humanos segundo Francisco de Vitoria(1483-1546). Teocomunicação, Porto Alegre, v.42, n.2, p.

376-401, jul./dez. 2012.

internacional ou da relação entre os povos, além de fundador da escola espanhola de direito

natural. Torna-se, portanto, imperativo relacionar Vitoria ao período histórico em que viveu,

em meio à conquista das Índias Ocidentais e o contato com o até então desconhecido povo

nativo. A sua inquietação era em relação ao modo em como se dava a ocupação espanhola

durante o período da colonização, e que outro sistema deveria ser adotado a fim de estabelecer

um bom relacionamento entre o homem europeu e os nativos do além-mar. Nesta época a

filosofia usada predominantemente como referência era a aristotélica interpretada a partir de

leituras de comentadores como Alexandre de Afrodísia, onde a escravidão era considerada

natural para aqueles bárbaros do novo mundo. Não convencido dessa interpretação do filósofo

estagirita, Vitoria negou a crença na escravidão por natureza, e assim, ele discutiu os

princípios vigentes do domínio e de direitos na tentativa de provar uma dignidade universal

do ser humano. Para que esta fosse estendida aos índios do Novo Mundo. Consequentemente,

ele buscou fundamentação para suas conjecturas a respeito dos direitos dos bárbaros em

Tomás de Aquino3. Mais tarde, quando assumiu a cátedra na Universidade de Salamanca,

Vitoria optou por reimplantar os estudos a cerca do pensamento do Doutor Angélico, trazendo

através de fundamentos metafísicos as respostas para as questões éticas cristãs em relação aos

povos das Índias Ocidentais.

Para Vitoria, era crucial a adesão do princípio tomista de que todos os seres humanos

são racionais e, portanto, essencialmente senhores de si e livres. Logo, ele considerava que os

índios eram soberanos em suas terras e que tinham o direito de defender a sua soberania

contra qualquer agressão injusta.

Vitoria exerceu influência na obra de Bartolomé de Las Casas, que por sua vez entrou

em disputas filosóficas contra Juan Ginés de Sepúlveda. Essas disputas, que tiveram sua base

políticas suscitadas na Corte de Castela a respeito da legitimidade da conquista, com auge nas

chamadas “Juntas de Valladolid”, convocadas pelo rei Carlos V entre os anos de 1547 e 1550.

Um marco fundamental na atividade dos intelectuais (e religiosos) europeus com respeito aos

direitos dos povos indígenas.

Mesmo anterior às disputas de Valladolid, já havia uma sensibilização por parte do

Papa Paulo III que em 1537 publicou a Sublimus Dei4, onde declara os indígenas entes

3 Consta que en París, además de recibir las enseñanzas de la escuela tomista, a através de maestros como Pedro

Crokaert, estuvo em contacto com varios professores de la corriente nominalista, que habían llevado a sus

consecuencias los planteamientos de Guillermo de Ockam. Cf. PANDO.J.C. Francisco de Vitoria: Relectio de

Potestate Civili. Estudios sobre su Filosofia Politica. Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Cientificas,

2008. p 317. 4 “[...] e buscar com todas as nossas forças para trazer as ovelhas do seu rebanho que estão fora para o rebanho

comprometidos com a nossa carga, considere , no entanto, que os índios são verdadeiramente homens e que eles

racionais. Essa publicação se deu independente do consentimento de Carlos V, que por sua

vez considerou esta uma oposição à sua autoridade nas Índias. Mais tarde no ano de 1542, o

próprio Carlos V promulgou as “Leyes Nuevas”, leis essas que foram o cânone de como tratar

os povos das Índias Ocidentais, pelo menos até o ano de 1545.

2. O pensamento Escravocrata

Para delinear o pensamento de Vitoria, antes é preciso entender as bases do

pensamento escravocrata espanhol. Nesse perfil encontramos Juan Ginés de Sepulveda5, que

por sua vez concluiu seu doutorado em Bolonha sob orientação de Pedro Pomponazzi6.

Naquela época, em Bolonha os fundamentos filosóficos se firmavam sobre a tradição

aristotélica alexandrina, já que estavam circulando as traduções do comentador Alexandre de

Afrodísia7. Como Pomponazzi não aprendeu grego, e seu latim era medíocre, ele viu-se

obrigado a estudar os clássicos através das traduções recorrentes dos comentadores gregos

reencontrados, em especial Alexandre de Afrodísia. Seguindo então a tradição aristotélica

alexandrina, Pomponazzi entrou em disputas com aristotélicos averroistas (predominantes em

Pádua), e com os aristotélicos escolásticos (caracterizados, sobretudo, pelos tomistas).

Ginés por sua vez, irá se apropriar do pensamento alexandrino, via orientação de

Pomponazzi e também através de traduções que fará tanto de Afrodisia quanto do próprio

Aristóteles. Também aqui é importante ressaltar a influência de Agostinho de Hipona8, onde

de acordo com ele a escravidão era tida como consequência acidental do pecado, sendo todo

não só são capazes de compreender a fé católica , mas , de acordo com as nossas informações , eles desejam

muito de recebê-la.” Cf. IGREJA CATÓLICA. PAPA (1534-1549: Paulo III). Carta encíclica Sublimus Dei.

Roma: < http://www.papalencyclicals.net/Paul03/p3subli.htm>. Acesso em 23 mai.2014. 5 Juan Ginés de Sepúlveda nasceu no ano de 1489 ou 1490, é incerta a localização exata do seu nascimento,

ficando entre em Pozoblanco, perto de Córdoba, na região de Andaluzia que pertencia ao Reino de Castela. Foi

um importante filosofo e jurista. Faleceu em Pozoblanco em 12 de julho de 1565. Cf RODRIGUES. J. P. M,

Juan Ginés de Sepúlveda:Gênese do Pensamento Imperial.2010,230f. Tese (Doutorado em Letras) - Centro de

Artes e Comunicação – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

2010.p.20 - 28. 6 Ou Pietro Pomponazzi (1462-1525) que por sua vez recebeu a típica educação aristotélica das universidades

italianas da segunda metade do século XV. Pomponazzi foi médico, catedrático de filosofia na Universidade de

Pádua, Ferrara e Bolonha, ministrando sempre em suas aulas diversas obras de Aristóteles, algumas até então

inéditas. Cf PRADEAU, J.F. História da Filosofia: Sob a Direção de Jean- François Pradeau. Trad. Jorge

Pereirinha Pires. Portugal, Dom Quixote, 2010. In o Aristotelismo. Pedro Pomponazzi. 7 Alexandre de Afrodísia conhecido como o exegeta, foi comentarista de Aristóteles. Teve muita influencia

durantes os séculos II e III d.C. Em Atenas foi chefe do Liceu e professor de Filosofia Peripatética. Teve grande

repercussão no mundo eclesiástico com a sua argumentação contra a imortalidade da alma influenciando

Pomponazzi. Cf. SCHULER,A.Dicionario enciclopedico de teologia.1.ed. Canoas: Ed.Ulbra, 2002. p 33. 8 “Esse nome [o de servo, escravo] mereceu-o, pois, a culpa, não a natureza. [...] Tornavam-se servos; palavra

derivada de servir. Isso também é merecimento do pecado.” Cf. AGOSTINHO. A Cidade de Deus. São Paulo:

Vozes , 2001, parte II. p. 406.

homem escravo de seus pecados, e que alguns também eram punidos convertendo-se em

escravos de senhores temporais.

Os estóicos também encontram-se representados no pensamento de Pomponazzi e, por

conseguinte, em Sepúlveda, onde o princípio é viver de acordo com a natureza. Para os

estóicos gregos, existem três acepções de physis: a) Princípio ou força que dá unidade ou

coerência; b) Deus, o princípio cósmico imutável, inteligente e inteligível, princípio ativo,

matéria inteligente que todo o penetra e recta ratio (que depois será o Direito Natural); c)

fogo artístico que avança em direção a um fim criador. Por fim, conclui-se que a natureza está

munida de um Logos, a racionalidade por excelência, e nesse sentido, a natureza é Deus como

pricípio racional supremo. Logos pode significar então, palavra, discurso ou razão.

Entretando, o logos não se revela igual em todos os seres: será hexis nos seres inorgânicos,

physis nos orgânicos e psyche nos homens, que é racional porque é um fragmento do logos, o

que faz o homem partícipe da divindade. Os estóicos acreditam que viver virtuosamente seria

viver seguindo essa natureza, de modo que todos os homens têm obrigações morais uns com

os outros e todos os fatos obedecem a um estrito regime de causa e efeito. Partindo dessas

referencias, Sepúlveda irá defender a seguinte interpretação da A Política de Aristóteles:

Assim, em toda parte onde se observa a mesma distância que á

entre a alma e o corpo, entre o homem e o animal, existem as

mesmas relações; isto é, todos os que não têm nada melhor para

nos oferecer do que o uso de seus corpos e de seus membros

são condenados pela natureza à escravidão. Para eles, é melhor

servirem do que serem entregues a si mesmos. Numa palavra, é

naturalmente escravo aquele que tem tão pouca alma e poucos

meios que resolve depender de outrem.9

Ou seja, para Sepúlveda, aquele que se mostre inferior racionalmente deve ser posto

em regime de escravidão sob a tutela de alguém racionalmente superior. Uma vez que o

superior está mais próximo da natureza divina, ao passo que o inferior está próximo da

natureza animal. Outro ponto importante nos argumentos de Sepúlveda será o argumento de

Afrodísia quanto à racionalidade. Segundo o aristotélico alexandrino, a razão é restrita ao

homem, uma vez que os animais movem-se pela faculdade impulsiva, assim essa distinção é

usada para analisar a função racional, exclusiva aos homens unicamente. Onde procedendo

desse método, Afrodísia também sugere uma ordem em que a dignidade do objeto é acentuada

9 ARISTÓTELES. A Política. Tradução Roberto Leal Ferreira. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.13.

pela sua posição final, sendo que o último a ser considerado é o elemento racional e é o que

possui maior grandeza10.

E em referência ao regime estóico de causa e efeito, Sepúlveda defendia que os índios

mereciam o tratamento que recebiam por que seus pecados e idolatrias se constituíam em uma

ofensa contra Deus. E essa interpretação ele emprega ao seguinte paragrafo de A Política de

Aristóteles:

Limitando-nos aos aspectos materiais, como no caso das

estátuas dos deuses, não hesitamos em acreditar que os

indivíduos inferiores devem ser submissos. Não pretendemos

agora estabelecer nada além de que, pelas leis da natureza, há

homens feitos para a liberdade e outros para a servidão, os

quais, tanto por justiça quanto por interesse, convém que

sirvam.11

Sepúlveda condena os sacrifícios humanos e atos dos indígenas como ofensa à Lei

Natural12. Quanto a Lei Natural, Sepúlveda entende que a mesma é de conhecimento de todos,

mesmo entre os bárbaros, já que essa lei foi impressa por Deus no coração e razão dos

homens. E de modo que os sacrifícios humanos que os índios praticam ferem a lei natural,

isso legitima a intervenção sobre a soberania de um povo, mediante a guerra justa e a

ocupação, já que a Lei Natural está acima do Direito dos Povos. Assim, há um único motor

inicial, Deus e uma única ordem natural, physis, cujas leis são inexoráveis. Ginés defende que

qualquer um pode seguir a lei natural, já que é de caráter quase intuitivo, longe da

complexidade e corruptibilidade do direito positivo, mesmo os índios são capazes de

compreender.

Um ponto controverso de Sepulveda é quando ele relata que seja preferível obedecer a

príncipes injustos e até tirânicos do que colocar em perigo o princípio de autoridade da

república.13 Logo, observa-se através de nomes como Pomponazzi e Sepulveda têm como

10 ZINGANO, M. O Tratado do Impulso e da Faculdade Impulsiva de Alexandre de Afrodísia e sua versão em

Miguel de Éfeso. Journal of Ancient Philosophy, São Paulo, Vol II, No 2, 2008. p. 6. 11 ARISTÓTELES. A Política.Tradução Roberto Leal Ferreira. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.14. 12 Por Lei Natural entende-se todas as coisas, que a razão prática, naturalmente apreende, como ser o bem do

homem, pertencem aos preceitos da lei natural sob o aspecto das coisas que se hão de busca ou evitar. Cf

CAVALLARO.M.F. Lexicon: Dicionário teológico enciclopedico. São Paulo: Ed. Loyola, 2003. p.436. 13 Aqui nota-se uma preocupação com qualquer tipo de insubordinação ao poder vigente. Isso deve ao fato de

que Sepulveda durante os oito anos que permaneceu na Itália ( 1515 – 1523) permitiu-lhe estabelecer relações

com pessoas importantes no âmbito politico e intelectual – Julio de Medicis, que logo seria o papa clemente VII,

Adriano, também papa, Alberto Pio, príncipe de Capri de protetor de Pomponazzi. CF BRUIT.H.H. Bartolomé

de Las Casas e a simulação dos vencidos. Campinas: Ed.Unicamp,1995.p.120. Seu biografo e apologista Ángel

Losada o descreve como”dominado pelo desejo de aumentar sua propriedade”. E continua Losada, “ quem

consultar os numerosos documentos sobre a vida de Sepúlveda no Arquivo de Protocolo, em Córdoba, deve

fundo uma interpretação de Aristóteles arraigada também por interesses políticos e

econômicos da sua época.

3. A escola de Salamanca

A escola espanhola de direito natural foi fundada por Vitoria, e a ele também foi

atribuído o pioneirismo ao tratar do direito natural das gentes em perspectiva internacional ou

das relações entre os povos. Sob influência de Crokaert, Vitoria dedicou-se aos comentários

à Suma de teologia. E mais tarde, quando assume a cátedra na escola de Salamanca, Vitoria

segue o exemplo de Crokaert e introduz o estudo dos textos do Aquinate.

Dentre os feitos de Vitoria, destaca-se o mérito de ter formulado, o que hoje é o

Direito Internacional dos Povos. Mesmo perante os riscos de ameaças da Santa Inquisição,

Vitoria questiona a autoridade do Papa nas relações internacionais 14, descentralizando essas

mesmas relações da esfera da ética cristã. Ainda sobre autoridades, Francisco de Vitoria

defende a existência de um direito superior à vontade do soberano, uma vez que criado pela

volição divina, e intrínseco à natureza humana, o Jus naturale15, que seria paradigma para a

regulamentação do Jus positivu instituído pelo rei. Nas Epístolas de São Paulo16, baseia-se na

fraternidade existente entre os seres humanos, acentuando a condição de regra moral aliada a

uma origem divina. De fato, frei Francisco de Vitoria escreveu o Direito Internacional dos

Povos visando à proteção dos Direitos Humanos dos povos recém descoberto da América.

Enquanto que, os defensores do domínio sobre esses povos os consideravam passíveis de

escravidão e maus tratos, devido a sua baixa racionalidade e costumes condenáveis, tais como

os sacrifícios humanos, e a sua infidelidade. Vitoria altera o significado político da relação

concluir que ele nada fez na vida exceto comprar, vender, arrendar, e acumular benefícios eclesiásticos”. CF

HANKE.L. Aristóteles e os índios americanos. Tradução de Maria Lucia Galvão Carneiro. CARNEIRO. São

Paulo: Livraria Martins, 1955. p 103 e 104. 14 No dia 4 de maio de 1493 foi publicada a A Bula Inter Coetera expressão em latim que em língua portuguesa

significa "entre outros (trabalhos)", foi a primeira bula do Papa Alexandre VI. Esta bula tratava-se de uma

doação do Papa beneficiando os Reinos de Espanha e Portugal na divisão do chamado novo mundo. O Papa

atribuía a sí este poder sobre as novas terras segundo a visão medieval Santo Agostinho de que a Igreja seria

responsável por ordenar e organizar a cidade dos homens a fim de aproximar-se da cidade de Deus.

Cf. SEITENFUS.R.LegislaçãoInternacional.2.ed.Barueri:Ed.Manoele,2009.p.1411.pg 1360 15 O direito natural tem suas origens no Direito Romano Clássico, uma vez que de inspiração dos filósofos

estóicos, conforme a definição de Gaio: “quod vero naturalis ratio inter omnes homines constituit, id apud

omnes populus peraeque custoditur, vocaturque ius gentium” traduzido livremente por mas a que a razão

natural estabelece entre todos os homens, que igualmente observadas entre todas as pessoas, e é chamado a lei

das gentes. Cf. RUIZ.R. Francisco de Vitoria e os direitos dos índios americanos: a evolução da legislação

indigena espanhola no século XVI. Porto Alegre: EDIPUCRS,2002.p.9. 16 Não há, pois, judeu nem negro, escravo ou livre, varão ou fêmea, pois sois um em Jesus Cristo. Galátas, 3,28.

Cf RUIZ.R. Francisco de Vitoria e os direitos dos índios americanos: a evolução da legislação indigena

espanhola no século XVI. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p.222 (Coleção filosofia: 147).

entre ordem natural e ordem sobrenatural a partir de Tomas de Aquino. “Mas o sobrenatural

tem como sujeito um ser natural, uma natureza que sobreleva sem exprimi-la. Não existe uma

ordem das realidades sobrenaturais que existiria separadamente da ordem das realidades

naturais”.17E interpreta que existe uma autonomia da ordem natural como criada por Deus. E

sendo assim, todo homem é naturalmente a imagem e semelhança de Deus, de modo que nele

contém em si um conjunto de direitos naturais próprios que não são subjugados a nenhuma

outra ordem externa, seja ela jurídica, política ou religiosa. Todavia, Vitoria não considera a

lei natural como incondicional ou irrestrito, dado que o ser humano não é um ser a se, e sim

um ser ab alio18. De modo que como animal social, como determinou Aristóteles, o homem

tem deveres para com os outros homens, e como tal, também têm direitos, dentre eles a

manutenção da própria vida; e deveres para com Deus, uma vez que ciente de sua condição,

esse homem deve procurar orientar-se moral e religiosamente ao seu criador, o ser a se. Ainda

que submetido às autoridades externas, o homem mantém a sua essência independente, com

propriedades que são imutáveis, universais e necessárias, de maneira que a sua falta destrua

essa essência. Logo, essas propriedades são livres de qualquer domínio positivo, religioso e

político, sendo elas inerentes à natureza humana e devendo ser respeitadas por todos. Com

tudo, a dignidade humana é para Vitória, o princípio natural que determina todo o sistema

político e jurídico. Da essência da natureza humana e sua dignidade se deriva a lei natural.

Lei natural é prévia a qualquer lei positiva ou civil. Ou seja, nenhuma lei positiva pode violar

a lei natural19.

3.1 Bartolomé de Las Casas

O pensamento inovador de Vitoria se propagou no meio acadêmico e influenciou

pensadores como Bartolomé de Las Casas20, tido como patrono dos povos indígenas das

17 Cf .AQUINO.T. Suma Teológica I. 2.ed. São Paulo: Ed.Loyola, 2001. p.91-92. Cf. DOIG. G. Direitos

Humanos e Ensinamento Social da Igreja. São Paulo: Ed. Loyola, 1994.p.57. 18 No vocabulário latino da escolástica, é comum distinguir as expressões a se e ab alio. A se significa por si

mesmo, a partir de si; ab alio significa procedente de outro. Diz-se que Deus é um ser a se. Em contrapartida, de

uma entidade criada se diz ser ab alio. CF MORA.J.F. Dicionário de Filosofia, tomo I(A-D).2.ed.São Paulo: Ed

Loyola, 2004. p.8. 19 La ley civil, em efecto, es fruto de la razón humana, así como la ley natural. Esta última, sin embargom es

anterior a la ley positiva y es fundamento de la ley humana civil. Este origem condiciona no sólo el valor moral y

jurídico, sino la misma obligatoriedad de las leyes civiles, que, en realidad, no son auténticas leyes, cuando no se

derivan de la ley natural. Cf VITORIA, Francisco de. De Legibus; estúdio introductório Simona Langella;

traducción al español Pablo Garcia Castillo; tradución al italiano Simona Langella. Salamanca: Ediciones

Universidad de Salamanca, 2010, p 45. 20 Las Casas Bartolomé de Las Casas nasceu em Sevilha, em 1474. Em abril de 1502, já formado em direito pela

Universidade de Salamanca, embarcou para a América em companhia de Nicolas de Ovendo. Morreu em 1566

na Espanha. Cf. NETO.J.A.F. Bartolomé de Las Casas: a narrativa trágica, o amor cristão e a memória

americana. São Paulo: Annablume, 2003. p.34, 64.

Américas. O primeiro contato de Las Casas com a questão indígena se deu quando seu pai

recebeu um índio escravo de presente do comandante da expedição. Nascido numa família

com dificuldades financeira, Las Casas viu nas promissoras Índias Ocidentais a possibilidade

de mudar a sua condição social. Com esse propósito no ano de 1502, Las Casas parte para o

Novo Mundo, entretanto, é importante salientar que ele chegou a Santo Domingo como

clérigo assumindo as atividades de encomendero21 e doutrinador dos índios. Contudo no ano

de 151422, Las Casas renuncia a sua encomienda em prol da causa dos índios. Mais tarde entre

as idas e vindas ao velho continente, ele retorna a Espanha mais uma com o objetivo de

denunciar os maus tratos empregados contra os índios. Então no ano 1517, ele consegue falar

com o rei recém-instalado Carlos V que por sua vez autoriza o seu projeto de colonização

pacífica na região de Tierra Firme. Projeto esse que fracassou no ano de 1522, com o ataque

indígena na aldeia de Las Casas, exterminando o maior numero de pessoas que ali estavam.

Sendo que Las Casas escapou apenas por que estava em viagem. Após esse episódio,

Bartolomé de Las Casas ingressa na ordem dominicana retomando seu período de estudos,

tendo como modelo os padres da Igreja, em especial Tomás de Aquino, documentos papais,

além dos filósofos gregos. Participou de missões evangelizadoras de sua ordem religiosa em

viagens, inclusive com a companhia de Hernán Cortés. No ano de 1540 Las Casas retorna e

Espanha, e em 1542 publica a Brevísima relación de la destruición de las Índias23

tencionando a suspensão das encomiendas. A obra escrita em linguagem calamitosa perturbou

a corte espanhola. Tanto que em resposta o rei Carlos V, convocou um conselho e promulgou

as Leis Novas, substituindo as Leis de Burgos24 (1512). Com a implementação das Leis

21 A encomienda foi estabelecida a partir de um arranjo contratual, caracteriza-se pela submissão de um número

variável de indígenas pagadores de impostos a um encomendero, – inicialmente os mais notáveis soldados

espanhóis nas guerras de conquista – responsável por viabilizar sua incorporação aos moldes culturais,

econômicos e sociais europeus. No âmbito da circunscrição territorial, a encomienda não é uma concessão de

terras, mas uma concessão de recolhimento de tributos em troca da educação cristã e de proteção. Cf

BETHELL,L. História da Ámerica Latina: America Latina Colonial, volume II. São Paulo: Ed. USP, 1999.

p.219-224. 22 Conta-se que a conversão de Las Casas se deu durante as festas de Pentecostes, após a leitura de um trecho

Eclesiástico (34,18) escolhido para celebração. O trecho diz que “oferecer um sacrifício fruto da iniquidade é

fazer uma oferenda manchada”. Cf NETO.J.A.F. Bartolomé de Las Casas: a narrativa trágica, o amor cristão e

a memória americana. São Paulo: Annablume, 2003. p.41. 23 Certo número de índios pacíficos vieram pôr-se em suas mãos oferecendo-lhes seus serviços, que eles haviam

mandado pedir; mas como não vinham bastante depressa, ou então, segundo o costume que têm, pelo fato de

querer gravar neles um temor horrível e espantoso, o governador ordenou que fossem entregues aos outros índios

que os consideram inimigos, motivo pelo qual, chorando e suplicando, imploravam que os matassem os

espanhóis mesmo e não os entregassem a seus inimigos; e não querendo sair da casa em que estavam, foram

feitos em pedaços enquanto gritavam e diziam: Nós vimos vos servir em paz e vós nos matais; nosso sangue fica

nessas paredes em testemunho de nossa morte injusta e de vossa crueldade. Cf: LAS CASAS, B. Brevíssima

relação da destruição das Índias: O paraíso destruído. Porto Alegre: LePM Editores Ltda, 1984. p. 97. 24 Estas leis autorizavam e legalizavam a prática colonial de se criar encomiendas, onde índios eram agrupados

para trabalhar para senhores coloniais, limitando o tamanho destes estabelecimentos. Elas também estabeleciam,

Novas, Las Casas finalmente conseguiu atingir seu objetivo que era a proibição de novas

encomendas, a retirada das que estavam sob a responsabilidade do clero, a proibição da

servidão indígena, mesmo em situação de guerra, uma vez que estes eram livres.

3.2 Juntas de Valladolid

Dado o panorama em que foi inserido Las Casas, era natural que ele encontra-se

oposição em Sepúlveda, visto que os dois defendiam publicamente opiniões opostas quanto

aos tratos aplicados na colonização espanhola. Sepúlveda escreveu em 1533 o tratado

Democrates primus o de la conformidad de la milicia con la religion Cristiana, onde defendia

a ação bélica em determinadas condições, mesmo nos conflitos religiosos. E em 1543, no

mesmo ano da edição das Leis Novas, Sepúlveda escreve o segundo texto, o Democrates

Secundus, contra os opositores da conquista espanhola e críticos das ações do império e da

Igreja até aquele período.

As Juntas de Valladolid foram convocadas por Carlos V com o objetivo de ouvir as

argumentações prós e contra as ações da coroa espanhola durante a ação colonizadora nas

Índias Ocidentais, e se elas poderiam ser estendidas a outras terras conquistadas pela coroa. O

intuito era a construção de valores universais que seriam aplicados na expansão do império

espanhol sobre culturas e raças distintas das deles. A teoria triunfante foi a do patrono dos

índios, Las Casas, que, por sua vez, erigiu suas teses alicerçando-as em Vitoria.

Apresentaremos aqui as três teses centrais da discussão:

- Racionalidade inferior e costumes condenáveis: Como já vimos Sepúlveda, baseado

em A Politica de Aristóteles irá dizer que devido a sua condição de racionalidade inferior

quase paralela com os animais classifica os índios como servos naturais, cabendo aos

espanhóis, como portadores da cultura civilizada, tomar tutela sobre eles25. De maneira que

essa mesma racionalidade pífia apresentada pelos índios impede que eles possam exercer o

governo sobre suas terras e si próprio. Vitoria irá contra argumentar dizendo que:

no entanto, um regime de trabalho minuciosamente regulado, o salário, as provisões, o alojamento, a higiene e o

cuidado pelos índios num espírito razoavelmente humanitário. CF. RUIZ.R. Francisco de Vitoria e os direitos

dos índios americanos: a evolução da legislação indigena espanhola no século XVI. Porto Alegre:

EDIPUCRS,2002.p.163. 25 Consta no Sumário da Disputa entre o Bispo Dom Frei Bartolomé de Las Casas e o Doutor Sepúlveda: Outra

conclusão era que os índios são obrigados a se submeter-se para ser governados pelos espanhóis, como os menos

sábios devem submeter-se aos mais prudentes e sábios; e que, se não querem submeter-se, os espanhóis podem

mover-lhes guerra. Cf: LAS CASAS, Frei Bartolomé. Brevíssima relação da destruição das Índias: O paraíso

destruído. Porto Alegre: LePM Editores Ltda, 1984. p. 116 .

“É evidente que têm certa ordem nas coisas: que têm cidades devidamente

organizadas, casamentos bem definidos, magistrados, senhores, leis, professores, industrias,

comércio; tudo isso exige o uso da razão” ( De Indis, I1, 15,p.29)26.

Enquanto que Las Casas considera absurdo o conceito de bárbaro empregado aos

índios por Sepúlveda, e defende a racionalidade indígena argumentando que o conceito de

servidão natural do estagirita aplica-se apenas a espécie de povos bárbaros que são de

costumes perversos, que vivem nos campos e selvas, sem organização politica, sem leis e sem

ritos. O que não era o caso dos índios do Novo Mundo.

De modo que como defende Vitoria, os índios não eram escravos por natureza, mas

livres e senhores de seus domínios. “os índios, antes da chegada dos espanhóis eram

verdadeiros senhores, publica e privadamente (De Indis, I 1, 16,33-34, p.31)27.

- Infidelidade: Aqui Sepúlveda acusa os índios pelos pecados, torpezas e impiedades

cometidas pelos indígenas, em especial os pecados de sodomia e idolatria. Defendendo que os

índios deviam sofrer a guerra para que fossem desviados dessas perversões. Vitoria responde

a esse argumento da seguinte dizendo que os atos de cometerem incestos, atos de

homossexualismo não eram exclusividade dos índios, sendo praticados também por europeus,

como os franceses e italianos. De modo que se fosse considerar este um motivo válido para

aplicar a chamada Guerra Justa contra os índios, também autorizaria os índios a declarar

guerra aos europeus pelos mesmos motivos. Ainda que infiéis, a sua infidelidade não pode ser

castigada pelo Papa, justo por que o pontífice não pode legislar sobre os índios por não ter

jurisdição sobre eles. Já que os prelados só podem exercer autoridade sobre aqueles que se

submeteram a fé. Las Casas utiliza-se da tradição tomista e vitoriana dizendo que os infiéis

não podem ser punidos por nenhum juízo do mundo antes que recebam por vontade própria o

santo batismo28.

- O sacrifício humano: Como já apontado, Sepúlveda condena os sacrifícios humanos

de vítimas inocentes como ofensa à Lei Natural, argumentando inclusive que o não respeito

essa lei legitima qualquer interferência sobre a soberania de um povo. Las Casas aqui aceita a

26 Apud. RUIZ.R. Francisco de Vitoria e os direitos dos índios americanos: a evolução da legislação indigena

espanhola no século XVI. Porto Alegre: EDIPUCRS,2002.p.81. 27 Apud. RUIZ.R. Francisco de Vitoria e os direitos dos índios americanos: a evolução da legislação indigena

espanhola no século XVI. Porto Alegre: EDIPUCRS,2002.p.83. 28 Segundo o Extrato da Sexta Razão: Acusaram-nos também de idolatria, como se, ainda eu fosse idólatras

pudessem ser punidos pelos homens e não unicamente por Deus, contra quem eles pecam. Possuindo terras e reinos e não devendo obediência a ninguém senão a seus próprios senhores naturais, estão na situação de nossos

antepassados que do mesmo modo foram idólatras antes que lhes fosse pregada; todo o mundo era idólatra no

momento em que veio Jesus Cristo. Cf: LAS CASAS, Frei Bartolomé. Brevíssima relação da destruição das

Índias: O paraíso destruído. Porto Alegre: LePM Editores Ltda, 1984. p. 130 .

argumentação de Sepúlveda e acrescenta que nesse caso a Igreja tem autoridade de promover

a guerra justa, considerando que a por lei divina a Igreja tem obrigação de defender a vida dos

inocentes. No entanto, Vitoria, mesmo aceitando que o principio de defesa da vida, levantado

por Sepúlveda fosse verdadeiro, ira defender que intervenção nesse caso deverá ser feita por

solidariedade internacional, podendo ser proibidos pelos reis da Espanha. Esta intervenção,

feita por solidariedade humana é o que evidencia a linha moderna na teoria vitoriana. De

maneira que Vitoria a articula sobre esse nova pessoa jurídica, a humanidade. De modo que o

crime contra a lei natural se configuraria em injúria contra a humanidade. Todavia,

preocupado com a distorção dessa premissa, Vitoria legitima a ação da solidariedade

internacional nas seguintes condições: “sem dolo nem fraude e não se procurem fingidas

causas de guerra” (De Indis, I 3, 7, 33, p.28) 29.

Enfim, a despeito de todos os impedimentos, tanto Vitoria quanto seus seguidores

sobrepujaram os argumentos de Sepúlveda. Mesmo que o imperador tenha escrito ao superior

de Salamanca solicitando a proibição das discussões sobre as conquistas espanholas; em

contrapartida, o próprio imperador ordenou aos seus subordinados que não abusassem da

doação papal como titulo justificador da conquista do Novo Mundo. De modo que, graças ao

empenho de Vitoria em desmantelar o pensamento escravocrata espanhol, erguido sobre as

teses aristotélicas e suas influências na escola de Salamanca, que Las Casas comovido com a

condição indígena fez uso das concepções vitorianas no intento de denunciar e reverter à

situação indígena.

4. Outros argumentos a partir de Aristóteles

Ainda no século XVI, o jesuíta José de Acosta publica De procuranda Indorum Salute

em 1588, sendo este o primeiro livro produzido na América pela ordem jesuíta. O livro foi

escrito em Lima, onde podemos traduzir o título como “Para garantir a segurança dos índios”.

Neste livro Acosta reprova os que insistiam em acreditar na ignorância e incapacidade dos

índios, de maneira que procurava orientar e fundamentar os métodos com que os missionários

deveriam por em prática nas pregações do cristianismo entre os indígenas. Acosta é adepto da

doutrina de Las Casas acerca da pregação pacífica. No pro oeminum faz a distinção entre os

três tipos de índios, onde classifica os índios do Caribe (os que andavam nús e comiam carne

29 Apud. RUIZ.R. Francisco de Vitoria e os direitos dos índios americanos: a evolução da legislação indigena

espanhola no século XVI. Porto Alegre: EDIPUCRS,2002.p.88.

humana) como os mais próximos da descrição de Aristóteles30. E que seriam eles uma vasta

parte dos rebanhos a serem cristianizados no Novo Mundo. Condenava a ideia de guerra justa

contra os indígenas por causa de seus crimes contra o direito natural ou motivado pela teoria

da escravidão natural de Aristóteles.

No século XVII, Juan Solórzano Pereira redigiu o livro Política Indiana (1647), onde

defendia a ação espanhola na América e os chamados criollos, os espanhóis nascidos na

América. Solórzano aceitava que vários autores adotavam a teoria de Aristóteles de que os

índios eram servos e escravos por natureza, que poderiam ser submetidos a obedecer aos que

fossem doutos, de modo que a guerra contra eles era justificada31. Todavia, juntamente com

José de Acosta dividia os índios em três categorias, de acordo com a capacidade e a

quantidade de cultura32. Onde a seu ver, apenas o último grupo, formado de indígenas nus e

obtusos que vagavam pelas florestas, estariam inclusos na classe de escravos naturais

conforme o pensamento de Aristóteles. Solórzano justifica que a dominação sobre os índios

da terceira classe serviria para fazê-los cristão, mas para isso primeiro era necessário fazê-los

homens, ensinando-os, para que se comportassem como tal33.

5. Conclusão

Com as descobertas do Novo Mundo e a conquista espanhola sobre as Índias

Ocidentais, A Política de Aristóteles precisou ser atualizada e usada como argumento para

justificar filosoficamente o domínio sobre aqueles povos. Partindo da teoria da escravidão

natural, os pensadores escravocratas, justificavam a escravidão classificando os índios como

30 No canto da página onde Acosta faz a referência a Política de Aristóteles escrito da seguinte abreviatura Arist.

I. Polit.,n.2 pass. et 5. Ao lado, Acosta escreve Huc barbarorum genus Aristoteles attigit, cum fererum more

capi et per vim domari posse scripsit, quórum in novo orbe sunt infiniti greges. Que pode ser traduzido

livremente como “"Aristóteles menciona esse gênero de bárbaros, visto que escreveu que podem ser capturados

a modo de feras selvagens e domados pela força, e desses existem no novo mundo grupos sem fim".” CF.

ACOSTA, Jose de. De Procuranda indorum Salute. Lima, 1588. Pro oeminum. sem paginação. 31 Por que los que llegan à ser tan brutos, y barbaros, son tenidos por bestiais; mas que por hombres, y entre ellas

se quantan en la Sagrada Escritura, y en otros autores, y en outras partes son comparados á los leños, y á las

piedras. Y assi segun la opinion de Aristoteles, recebida por muchos siervos, y esclavos por naturaleza, y pueden

ser forzados à obedecer à los mas prudentes: y es justa la guerra, que sobre ello se les hace. Y à un Celio

calcagnino, comentando al mesmo Aristoteles. CF SOLÓRZANO,P, J. Politica Indiana, Livro I, cap IX, n.20

(41-44). 32 Y assi advertidamente el Padre Joseph de Acosta, que miró estas materias de las Indias, è Indios, y su

naturaleza, y costumbres con mas antencion, que otros, los divide en tres classes. En la primera constituye à los

Chinos, Japones, y Orientales, que tenian, y tienen su forma de Republicas, Leyes, letras, o caractéres, y otras

cosas, que descubrem su entera capacidad. En la segunda è los Peruanos, Mexicanos, y Chilenos, que tambien,

aunque no tanta, mostraron tener alguna, y se governaben por Reyes, y en forma de poblaciones, si bien todo

tiranizado, mal ordenado, y mezclado con tantos errores, y supersticiones, que obscurecian la poca luz de razon

natural, que les alumbraba. En la tercera cuenta à los mas, que como he dicho, aun carecian de ellos, y andaban

desnudos, y por los montes. . CF SOLÓRZANO,P, J. Politica Indiana, Livro I, cap IX, n.25 (57-58), n.26, n.27

(59),n.28. 33 CF SOLÓRZANO,P, J. Politica Indiana, Livro I, cap IX, n.31.

incapazes e ignorantes, sendo o mais apropriado que permanecessem sobre a tutela dos doutos

espanhóis. Haviam os que baseados no argumento aristotélico da escravidão natural,

defendiam a guerra justa contra os índios devido ao que os espanhóis consideravam como

desrespeito aos direitos naturais.

Em meio a tudo isso, eis que surge Francisco de Vitoria que através de uma nova

interpretação da teoria aristotélica a cerca a escravidão natural, introduz uma nova concepção

em relação à dignidade dos índios e a soberania desse povo sobre suas terras. Esse

pensamento foi disseminado na Escola de Salamanca, e acabou respingando na Corte

espanhola, graça a intervenção de defensores dos índios como Vitoria, Las Casas e Acosta.

Contudo, o pensamento escravagista de Sepúlveda apoiava-se mutuamente nos

interesses dos exploradores que dependiam da mão-obra indígena e da extração das riquezas

do Novo Mundo como fonte de renda e ascensão social. De modo que a escravidão na

América espanhola só foi abolida no século XIX, depois de quatro séculos de matança,

exploração, escravidão e maus tratos empregados aos índios.

Fica então registrado aqui, que já no início houve uma tentativa real de mudar a

situação calamitosa em que os índios se encontravam por meio da conquista e dominação

espanhola.

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