Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade...
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Dossiê Identidades Capixabas:
elementos para uma reflexão sobre as práticas e a política cultural
“TURBA
Quereis fugir,
Ondas em pânico?
Não há onde ir “
(Waldo Motta)
William Berger
Resumo: Neste texto estão levantados alguns elementos que considero
importantes para uma reflexão das práticas e da política cultural no
Espírito Santo e no Brasil, relacionando-os com fatos históricos, políticos,
econômicos e culturais-simbólicos de diversas épocas. Atento a
Este texto se constitui em uma série de elementos históricos, políticos, culturais e
simbólicos da produção cultural capixaba sistematizados ao longo de 4 anos de
estudos na Escola de Teatro e Dança Fafi (com orientação do poeta Waldo Motta
a quem agradeço imensamente pela generosidade em todos esses anos), e no curso
de Serviço Social da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Não há aqui
a pretensão de esgotar o tema, mas proporcionar alguns elementos em rede para a
reflexão das práticas e das políticas culturais.
Assistente Social, ator, educador popular, multiplicador do Teatro do Oprimido
e membro fundador do Grupo Poiesis coordenado pelo poeta Waldo Motta.
Mestrando em Serviço Social pela PUC-Rio.
elementos da realidade político-cultural dos povos indígenas e
quilombolas em seu território, à realidade atual de repressão às minorias
étnicas e às camadas populares e à atual criminalização da pobreza e
dos movimentos sociais por parte do Estado, o texto que ora se apresenta
busca, em alguns pontos, uma interface com a política social a partir da
perspectiva de Antônio Gramsci de ampliação do Estado e superação da
sociedade de classes. Baseado nessa visão, em que a participação da
sociedade civil ganha real importância, convido artistas, demais
trabalhadores e movimentos sociais a um compromisso ético-político para
superação das desigualdades e opressões de classe, etnia e gênero, em
prol de uma nova sociabilidade que conjugue democracia, cidadania e
ampliação dos direitos sociais.
Introdução
e diga o seu nome e eu direi quem tu és. Deveria ter
dito o filósofo. Mesmo compartilhando da máxima de
que é preciso primeiro comer para filosofar, acredito
piamente que nem só de pão vive o homem, mas de tudo o
que a cultura pode produzir, ou quase tudo. E o primeiro fator
é sem dúvida a língua e seus múltiplos significados.
M
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Começando pelo aspecto simbólico e linguístico, pode-se
dizer que os nomes que recebemos nos conferem uma
identidade, embora muitas vezes ignoremos a sua
significação. Cada nome possui uma origem e uma história, e
um ou mais significados, os quais podem definir ou pelo
menos delinear algumas das características daquilo que
nomeia. A dimensão simbólica pode falar muito sobre um
lugar, uma pessoa ou um objeto. Assim sendo, todo nome
tem uma história, que deve ser lembrada e refletida,
perpetuando aquilo que podemos chamar de identidade.
E o que seria a identidade em si? Poderíamos dizer que são
os traços ou as características que nos permitem definir o que
e como alguma coisa é, de tal modo que nos permita
conhecê-la e reconhecê-la. Por outro lado, a identidade é
também a afinidade ou semelhança que aproxima seres e
coisas.
Pode-se apreender daí que a perda dos traços identitários
constitui um desarraigamento perigoso, que leva à alienação.
Gera impactos desastrosos, como o impedimento do
florescer cultural e do vigor espiritual de um povo.
O texto que hora se apresenta, traz elementos de reflexão
históricos do local articulados ao global, elementos
simbólicos, políticos e econômicos de diversas épocas para
pensar a prática e a política cultural dos capixabas e situar a
discussão relacionada à perspectiva emancipatória da
política social brasileira, das lutas dos movimentos sociais.
A participação torna-se, pois, uma necessidade vital para a
afirmação identitária, a garantia e ampliação dos direitos
sociais e da cidadania. Mesmo diante de um forte discurso
neoliberal contrário às conquistas dos trabalhadores e de um
suposto “empoderamento” do indivíduo pelo mercado e pelo
consumo, o texto que ora se apresenta retoma a perspectiva
de superação das desigualdades sociais e sua geratriz, a
sociedade de classes.
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Acreditamos que nossa ação na realidade mais concreta e no
plano simbólico podem nos transformar a nós mesmos e ao
outro, nossos projetos de vida e sociedade, nossa cultura-
política, para daí transformarmos a sociedade, o mundo: eis o
maior de todos os desafios.
Dando nome aos bois
[ . . .] Acredito que quanto mais a cultura genuína de
nossa terra for resgatada e devidamente valorizada,
mais claramente se poderá garantir o respeito aos
limites geográficos, porque a cultura é o verdadeiro sítio
de cada nação. De origem etimológica ligada à palavra
colo, o termo cultura fala daquilo que propicia o sentido
de pertencimento e de amor-próprio.
(Espírito Santo, 2010: 18)
Comecemos assim pela origem simbólica e lingüística do
nome “capixaba”. Segundo o “Dicionário de Língua Tupi” de
Gonçalves Dias (Dias, 1941), o termo faz referência àquilo
que é da roça, isto é, roceiro, do mato, e, logo, também na
ótica do colonizador e do etnocêntrico, o atrasado, ingênuo,
simplório, boçal, estúpido, tabaréu, capiau, ignorante, bocó.
Na origem da palavra, está a partícula “Cáa”, que significa
mato, erva, folhas, ramo. Numa outra variante de “Ca” está a
partícula “Co”, que quer dizer roça, quintal. Eis o surgimento
do vocábulo “cópixaba çuí”. Um dado que corrobora com a
origem do nome é a existência de uma roça nativa de milho à
época da colonização na área que hoje vai da Capitania dos
Portos até a Pedra da Gruta da Onça, no centro de Vitória
referenciada nos relatos dos idos de 1500.
Numa análise histórica da invasão européia às terras que
chamaram de Brasil, os portugueses chegaram, no Dia de
Pentencostes, em 23 de maio de 1535, a uma terra situada a
60 mil quilômetros do meridiano de Tordesilhas. Aí,
instituíram a 6ª Capitania, que logo chamaram de Espírito
Santo, numa referência ao calendário litúrgico apostólico
romano. Conforme o texto bíblico que inaugura essa data, o
Espírito Santo de Deus desceu sobre os apóstolos de Cristo
em línguas de fogo, dando-lhes sabedoria e conhecimento,
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para que, falando em diversos idiomas, pudessem ser
entendidos pelos estrangeiros.
No solo onde desembarcaram esses supostos emissários dos
apóstolos de Cristo, a linguagem exercida foi outra: a da
violência e do extermínio de diversos povos indígenas, por
meio de armas e vírus, aliada ao apagamento da sua
identidade. José de Anchieta, padre da Companhia de Jesus,
foi um dos maiores cúmplices desses horrendos crimes, o que
lhe valeu a beatificação pela Igreja Católica. Por outro lado,
consideramos que muitas das informações que temos desse
período devemos a ele, através de vários escritos, como o
emblemático “Auto da Vila de Guarapari”. A intenção era
“catequisar”, em outras palavras, alienar culturalmente os
indígenas ao impor-lhes valores cristãos destruindo as
culturas desses povos em prol dos valores e dos costumes
europeus para a dominação territorial, a escravização, o
domínio econômico, material. Uma de suas estratégias foi
sincretizar os mitos desta terra, como Jurupari, o messias dos
índios, e relacioná-los a figuras como o Diabo. Isto é, o
sincretismo operou no sentido de satanizar figuras
importantes do imaginário indígena, e endeusar figuras do
imaginário europeu.
Em seu artigo “O Capixaba Metafísico” no livro “Identidade
Capixaba”, da série Escritos de Vitória, Oscar Gama Filho
nos fala da “Fonte da Capixaba”, uma bica d‟água que
desembocava dentro da roça de milho, muito recorrida à
época pelos recém-chegados à capitania do Espírito Santo
para realizarem uma espécie de batismo. Isso era visto como
algo profano pela Igreja Católica. As crianças recém-nascidas
recebiam banho daquela água, como forma de afirmação de
que a partir daquele momento elas estariam destinadas a
serem ricas e felizes.
Assim como a fonte, a roça de milho que originou o termo
“capixaba” também tem um sentido simbólico, mágico, muito
forte para os povos indígenas centro e sulamericanos. O
milho na cultura Guarani, por exemplo, tem um significado
especial: é dele que se produz uma bebida ritual, o cauim,
que possibilita êxtases e transes que ligam o mundo real ao
mundo simbólico. A “roça de milho” é considerada, nessa
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mitologia, o quintal da morada do Deus Yanderuvuçú. Junto a
esse Deus vive um Jaguar que é o guardião da entrada da
casa divina e virá pôr fim ao mundo, deixando a terra sem
mal. Conforme o mito, o animal sagrado dorme aos pés de
Yanderuvuçú e aguarda seu sinal para avançar sobre a terra
e destruí-la. Por isso os Guarani até hoje migram de tempos
em tempos em busca do seu paraíso, isto é, a Terra Sem Mal.
Eles estão fugindo da ecatombe iminente, no tempo em que a
terra, as águas e ar reclamarão a Yanderuvuçú os
impropérios desferidos pelo homem por poluir as águas e o ar
e infesfar o solo de cadáveres (Nimuendaju, 1978).1
Não é justamente isto que estamos presenciando, no final do
século XX e nessa primeira década do século XXI, com os
reclames do planeta ante a destruição da camada de ozônio e
1 - Conforme um dos cronistas do “Descobrimento” Pero Magalhães
Gândavo, à época a Capitania do Espírito Santo era considera um
verdadeiro paraíso, a melhor provida de caça, pesca e mantimentos
Olivieri & Villa (1999) Em 1500, conforme Nimuedaju (1987) os Guarani já
estavam em busca da Terra Sem Mal.
a poluição e a degradação dos recursos naturais que
resultam em enchentes, degelo das colotas polares, aumento
dos oceanos, efeito estufa, mortes e destruição? Sem ser
messiânico ou catastrofista, não estamos trilhando esse
caminho que levará a essa ecatombe antevista pelos Guarani
em suas profecias e visões? O capitalismo em sua fase
desorganizada, monopólica, neoliberal é insustentável de
todos os pontos de vista, desde o aspecto sócio-econômico
ao político-cultural e ambiental.
Interessante notar que os Guarani-Mbya, o povo da Terra
Sem Mal, foram parar no Espírito Santo na década de 60 do
século XX dizendo ser ali o lugar onde deveriam morar,
habitar e viver. Aí estaria o seu paraíso ou de lá achariam a
resposta de onde está a Terra Sem Mal.
Eis que o poeta Waldo Motta, preocupado com a questão,
responde:
[ . . .] A Terra Sem Mal que buscas
O paraíso que sonhas
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Sempre esteve em ti mesmo
Está em tuas entranhas [ . . .]” 2
A resposta está em nós mesmos e só uma mudança radical
nos rumos de nossas ações poderá salvar o planeta do fim
iminente.
Um dos maiores flagelos à terra e seus povos irmãos foi o
roubo aos povos Tupiniquim e Guarani de Aracruz, cidade
situada ao norte do Estado. Em 1940, a extinta Cofavi
(Companhia de Ferro e Aço de Vitória), explorou cerca de dez
mil hectares da floresta dos Tupiniquim para a produção de
carvão vegetal, com autorização do Estado.
A Aracruz Florestal S/A, que deu origem à transnacional
Aracruz Celulose, aprofundou, por sua vez, a partir de 1967, a
devastação da Mata Atlântica, com a instalação da perversa
monocultura do eucalipto. Formou-se, assim, o Deserto
2 - Estrofe do poema “Assim Fala o Trovão”, do
livro inédito de poemas “Terra Sem Mal”, cedida gentilmente pelo poeta.
Verde. Onde se planta eucalipto não nascem outras plantas
além de pequenos matos e não vivem outros animais além
de cupim e formiga.
Além desses povos, as comunidades quilombolas também
tiveram suas terras expropriadas e sofrem, até hoje, violentos
ataques por parte do Estado e da empresa, com apoio da
mídia capixaba e de um grupo de empresas que fazem parte
do movimento “Espírito Santo em Ação” (Vale, A Gazeta,
Samarco, entre outras). O que se pode observar na história
recente do Espírito Santo, é que tal associação é, na
realidade, uma reação burguesa às manifestações e à
organização dos movimentos sociais. O Estado brasileiro e a
mídia, corroboram, assim, com uma clara criminalização dos
movimentos sociais e da pobreza.
Os impactos desse roubo geram um processo de
aprofundamento das condições de sobrevivência dos negros
e seus descendentes, diga-se pauperização e miséria, que se
reverberam hoje na discriminação e violência como
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expressões da Questão Social em sua face da questão
racial3. Não podemos deixar de mencionar que os negros no
Brasil tiveram suas terras tomadas, e seus direitos de posse
cerceados através Lei de Terras. Muitos quilombos foram
destruídos, na região norte do Espírito Santo (São Mateus) e
também em Aracruz. Muitas famílias quilombolas foram
empurradas para a região da Grande Vitória ocasionando um
processo de favelização, daí surgindo as comunidades da
Fonte Grande, Forte São João, Romão, Cruzamento, e
imediações só para citar a cidade de Vitória. Atualmente, no
município de Aracruz, a transnacional Aracruz Celulose detém
grande parte do território dos quilombolas e indígenas. Lutas
sociais em parceria com movimentos sociais e organizações
não-governamentais são empreendidas, porém a repercussão
ainda é abafada pela mídia e pelo poder judiciário. Negros e
indígenas são constantemente agredidos até pela polícia
federal e nada é feito. O Estado exerce coerção para obter o
consenso. Hegemonia encouraçada de coerção no dizer de
Gramsci. Sobrevivem ainda entre essas comunidades
3 - Assunto este que poderíamos nos estender por diversas páginas. O
texto, porém, não pretenciona esgotar o assunto.
quilombolas alguns costumes e festividades como o
“Ticumbi”, espécie de dança típica de roda com influências
africanas, indígenas e portuguesa; o “Festival do Beiju”
(comida típica dos povos negros e indígenas feita à base de
mandioca), que é de extrema importância para afirmação
identitária, a preservação de seus costumes. Essas
festividades e costumes, ou seja, a tradição pode inclusive
ganhar força político-cultural através da luta por garantia e
ampliação dos direitos sociais e da cidadania desses povos.
Reivindica-se aqui o seu direito primordial sobre seu território
que lhe foi roubado e a recomposição da Mata-Atlântica que
foi devastada: o “espaço de vida” sobre o qual os indígenas
estabelecem suas relações sociais, e constroem o “espaço
vivido” (Koga, 2003).
A resistência dos povos indígenas no Brasil, a expropriação
de terras, a devastação ambiental, e a questão do extermínio
e do etnocídio de povos e comunidades indígenas inteiros é
uma problemática que remonta a 1500. A expansão
econômica ultramarina dos povos europeus provocou um dos
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maiores extermínios em massa, tendo por base a escravidão
de indígenas e negros. O caso dos Tupiniquim e Guarani
(1967-2007) se inscreve nesse bojo: foram privados do
acesso a seu “espaço de vida”, a terra e seu bioma, a Mata-
Atlântica, o que interrompeu uma relação sagrada e
harmoniosa e sequelou culturalmente várias gerações, até a
devolução de parte de seu território, em 2007, arrasado pelo
plantio monocultural do eucalipto e suas nefastas
consequências.
O tema é polêmico. A expropriação de terras indígenas no
Brasil é questão histórica da luta de classes e ainda muito
delicada, pois envolve muitos interesses. No ano de 2005
tivemos o assassinato da missionária americana Dorothi
Steng e voltando só mais um pouco, Chico Mendes foi
assassinado no quintal de sua casa com um tiro de escopeta,
no dia 22 de dezembro de 1988, por defender os direitos dos
povos da mata. O caso do roubo aos Tupiniquim e Guarani-
Mbya (1967 – 2007), em particular, envolve interesses
oligárquicos nacionais, aliados aos dos oligopólios
internacionais, através da Aracruz Celulose.
Na década de 1960 chegaram os Guarani-Mbya em
peregrinação mítico-religiosa, vindos do litoral do Rio Grande
do Sul, tendo visões em pajelanças de que nesse mesmo
território se encontra o tão suspirado paraíso, a Terra Sem
Mal onde deveriam habitar, morar e viver. Foram logo
reprimidos pelo Estado e pela empresa. A partir daí se instala
o xadrez da problemática: de um lado estão dois povos
indígenas expropriados, quilombolas e, do outro, um Estado
oligárquico que atende os interesses dos latifundiários e das
grandes empresas, aliados ao capital financeiro parasitário
internacional. O resultado foram mais de 40 anos de lutas e
uma série de eventos que culminaram em ações violentas da
polícia federal, em 3 autodemarcações, negociações,
tentativas de cooptação e criminalização dos movimentos
sociais envolvidos, ações públicas contra pessoas ligadas ao
Movimento Indígena, transferência de Guarani-Mbya e
Tupiniquins para outro território em MG, ações estatais
desastrosas, devastação ambiental. As intervenções
violentas do Estado através da Polícia Federal numa
articulação com a Aracruz Celulose em março de 1998 e em
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02 de junho de 2005, após a 3ª autodemarcação, e em 20 de
janeiro de 2006, quando prendeu, algemou e espancou
indígenas desarmados, chamou a atenção da OEA
(Organização dos Estados Americanos) e diversos outros
organismos internacionais que reprovaram a ação; o MPF
(Ministério Público Federal) recorreu de liminar. Isso fez com
que o Ministro da Justiça se comprometesse a realizar a
demarcação até o fim do ano de 2006. Houve uma forte
pressão de setores da sociedade em apoio aos Tupiniquim e
Guarani através de “redes auto-organizadas” e “malhas de
articulação” (Escobar, 2004) com movimentos sociais e
organizações não-governamentais como o MST (Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), “Rede Alerta Contra o
Deserto Verde”, CIMI (Conselho Indigenista Missionário),
Pastoral Indigenista, a Fase (Federação de Apoio Social e
Educacional aos Movimentos Sociais), entre diversos outros
atores, que realizaram manifestações, atos públicos e intensa
mobilização da sociedade civil organizada.
No ano de 2007, o ministro Márcio Thomas Bastos assinou a
homologação de demarcação das terras. Foi realizada
publicação no Diário Oficial no dia 28 de agosto de 2007 de
portaria declaratória reconhecendo 18 027 hectares como
área indígena Tupiniquim e Guarani em Aracruz – ES. Terras
essas repletas de eucalipto onde antes havia Mata-Atlântica
e biodiversidade. Entre as comunidades está uma imensa
pergunta: o que fazer?
Não é possível que discutamos a prática e a política cultural
no Espírito Santo e no Brasil sem levar em conta o momento
atual e a realidade concreta de nossos povos oprimidos
dentro do povo brasileiro e capixaba, onde destacam-se os
aspectos de dominação, hegemonia, luta de classes,
exploração, expropriação, violência física, política, econômica
e cultural-simbólica contra grupos étnicos e trabalhadores. Os
indígenas não são figuras nos livros existindo apenas em
1500. Resistem até hoje, miscigenados, expropriados e
acusados de não serem mais indígenas por não manterem
seus costumes. Costumes dos quais foram destituídos,
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geração após geração pelos mesmos que os acusam, ou os
que se silenciam e omitem diante da opressão. Ora, devemos
observar que isso não justifica tomar-lhes as terras de seus
ancestrais que são deles por direito de herança. No século
XXI ainda continuam intensas as opressões contra esses
povos.
Quando abordamos o tema identidade devemos levar em
conta também que não existe uma identidade nacional
homogênea. O mais certo talvez seria falarmos em
identidades. Observemos o que nos diz o antropólogo Darcy
Ribeiro: somos um povo miscigenado oriundo de três grandes
etnias - indígenas, negros e europeus. Além das muitas
culturas que aqui se mesclaram, e ainda se chocam e
entrecruzam ao longo dos séculos. Vejamos a nossa língua
portuguesa repleta de palavras indígenas, nagô, banto e
yorubá, além de árabes etc. Ao falar de identidades não
poderíamos, porém, nos furtar à denúncia de como ainda
desconhecemos e oprimimos nossos indígenas, em sua
cultura, sua história, seus mitos e sua realidade político-
social.
A nação brasileira foi criada por decreto, de cima para baixo,
onde leis, instituições, governo e religião foram criados fora
daqui, como afirma o escritor Oscar Gama Filho em seu livro
“Razão do Brasil” (Gama Filho, 1991).
Começando pelos jesuítas, eles destruíram o que havia de
autóctone no território brasileiro: “a língua portuguesa e o tupi
como língua geral fizeram com que se aculturassem
numerosas tribos e perdessem sua identidade” até os
jesuítas terem total controle sobre “os Brasis” (Gama Filho,
1991).
Ora, para matar uma nação basta destruir seus costumes,
sua língua, suas tradições, sua cultura no seu sentido mais
complexo. E muito bem o soube fazer o padre José de
Anchieta, que, como já mencionado, foi a mola-mestra do
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empreendimento português nas terras as quais se apossaram
e chamaram de Brasil.
Conforme Oscar Gama Filho, os inacianos no Espírito Santo
tinham em suas mãos o “aparelho ideológico escolar”, tanto
que no século XVI fundaram o 1° colégio da Capitania, e, até
sua expulsão no século XVIII, foram detentores do monopólio
no ensino público. Produziram também a ideologia cultural
capixaba da época: poemas, cartas, estudos, obras
arquitetônicas e principalmente sobre a forma de peças
teatrais, sermões, danças, e músicas como instrumentos
catequéticos. Possuíam, no Espírito Santo, ricas fazendas
como a de Araçatiba, Muribéca e Itapoca, regidos sob a
batuta de Roma e Portugal.
Segundo Gama Filho, os jesuítas, em suma, trouxeram “o
inferno para os índios que viviam no paraíso” 4. Anchieta pode
4 Aqui o autor nos aparece um tanto idealista, mas consideremos essa uma
expressão de efeito numa análise interessante sobre a época colonial no ES,
observada também sua perspectiva althusseriana, da qual não compartilho, mas
que não deixa de ser interessante.
ter sido “herói sim, mas do colonialismo português, não dos
índios”, graças à persuasão de suas peças, de suas palavras
e de sua conduta, que lhe angariou, através da Igreja
Católica, o título de beato. Entretanto, não podemos deixar
de observar que, se por um lado os jesuítas foram peões de
batalha do empreendimento português, foi graças a eles que
temos grande parte dos relatos da época, seja na produção
catequética, seja nas cartas que escreviam a Portugal.
Enfim, a nova terra que os jesuítas ajudavam a arrematar,
com a aculturação do nativo, ficou à mercê da dominação
européia, numa espécie de transição entre uma identidade
que deveria negar e abjurar a tradição indígena e uma nova
identidade cristã amorfa que deveriam adotar. Esse processo
não se deu sem conflitos e por ora via-se sincrético. Tal
conflitividade entre profano e sagrado, sustentada por uma
linha muito tênue, está no cerne de uma identidade barroca.
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O Barroco, por sua vez, tem sua base na conflituação de
valores, emoções e sentimentos. Há um dualismo entre o
antropocentrismo e a herança teocêntrica do homem.
Gama Filho menciona um pré-barroco no Espírito Santo, que
estaria ligado aos jesuítas, onde destacam-se Álvaro Lobo e
José de Anchieta. No entanto, é no Romantismo que se
começa a dar voga à inspiração individual, aos sentimentos e
emoções como verdadeiros criadores da obra de arte. Criava,
através do nativismo e do indianismo, um certo espírito de
autonomia nacional.
Em José de Alencar, por exemplo, seu indianismo aliena a si
e ao público, levando e um ambiente idílico, à fuga, à visão
maniqueísta simplória, manifestando a falta de empenho na
mudança radical por parte do artista. Não deixa, porém, de
ser uma aproximação à temática nacional, ao pitoresco,
mesmo considerando a visão europeizadora e preconceituosa
sobre o indígena.
O surgimento do movimento romântico capixaba dá-se
oficialmente na metade do século XIX, quando o café passou
a ser produto de exportação do Espírito Santo. Bibliotecas
foram inauguradas, o movimento maçônico cresceu junto
com o abolicionismo (Gama Filho, 1991).
A efervescência causada pelo café no século XIX deu vazão
a uma classe dominante que podia dedicar-se à produção
literária e artística. Foram criados jornais de circulação
regional como: “O Estafeta” (1840), “Correio da Vitória”
(1849), “A Regeneração” (1853), “O Capixaba” (1853), “O
Semanário” (1857), “Aurora” (1859), e assim por diante até
alcançar o total de 143 títulos de jornais e revistas que foram
arrolados entre 1840 a 1899, registrados por Heráclito
Amâncio Pereira em seu livro “A Imprensa no Espírito Santo”.
(Gama Filho, 2001)
Segundo Fábio Lucas em seu livro “O Caráter Social da
ficção no Brasil”, o período romântico acolhia personagens da
classe dominante e espiritualizava as relações. No teatro, o
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dramaturgo não se preocupava em escrever bem, mas sim
em surpreender o público. Os chamados dramalhões não
possuíam muita qualidade, sendo que os personagens eram
mal construídos. Todavia as peças teatrais do século XIX,
redescobertas por Oscar Gama Filho, nos dizem muito acerca
dos costumes e do pensamento dos capixabas da época,
sendo de enorme importância literária, histórica e sociológica
para refletirmos sobre o processo de produção e reprodução
das relações sociais no nível ídeo-cultural.
Uma pista do que podemos depreender com um breve olhar
sobre a natureza do Romantismo capixaba no século XIX nos
dá um de seus escritores, Affonso Cláudio, em seu livro
“História da Litteratura Espírito-Santese” (1908), quando diz:
[ . . .] A literatura em toda a América tem sido um
processo de adaptação de idéas européas às
sociedades do continente, adaptação que tendo sido
mais ou menos inconsciente no tempo colonial,
hodiernamente, tende a tornar-se deliberada e
compreensiva. [ . . .] (sic)
[ . . .] Ora, nós, os brasileiros, ainda não alcançamos a
cultura dos supramencionados países ou das
respectivas civilisações na época do maior
florescimento de cada uma delas. (sic)
(Cláudio, 1981: p. 254 e 255)
Nesta última frase, bem como na anterior, está estampada a
ideologia cultural do Romantismo capixaba do século XIX,
seja no teatro, nos jornais e produções literárias: não havia
uma identidade nacional, muito menos com o sentido de
afirmação do local, onde o povo possa ter valorizados os
traços de sua cultura. Tudo era uma imitação barata dos
modelos europeus.
Mais uma vez prevalecia a lógica da dominação. Apenas
trocou-se de elite: de jesuítas versados na arte de aculturar
nações indígenas a ricos barões do café que sustentam o
luxo da classe dominante sobre o sangue e o suor de negros,
indígenas, mestiços e imigrantes europeus que para cá
vieram substituir a mão-de-obra escrava nas lavouras de café
com a abolição escrita da escravatura. Substituem-se os
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espoliadores, substituem-se os espoliados, mas a espoliação
continua.
Na verdade, a Abolição foi mais um exemplo de mudança na
vertical e uma forma de os dominadores se livrarem dos
custos da mão-de-obra, antes escrava. Como trabalhadores
“livres” seriam explorados da mesma forma, só que agora
responsáveis diretos por sua própria subsistência. Marx
chama esse processo de “troca de modo de produção”: do
colonial escravista, passamos ao modo de produção
capitalista, onde o trabalhador vende sua força de trabalho,
imprimindo valor na mercadoria e sendo explorado, pois
apenas uma ínfima parte de sua mais-valia lhe é entregue. A
maior parte fica com o detentor dos meios de produção e da
terra.
Nesse período a literatura capixaba retrocedeu, pois em
relação aos outros estados de capital cultural industrial
ficamos atrasados, já que aqui predominava o agrícola (Gama
Filho, 2001).
Gama Filho nos informa que, entretanto, não faltava ao
estado do Espírito Santo, já em princípios do século XX,
entrosamento com artistas dos grandes centros. Havia até
um movimento antropofágico em 1929, a ponto de Vitória ter
sido escolhida como sede do Primeiro Congresso Mundial de
Antropofagia. Todavia, a forte presença do positivismo no
governo desestruturou a iniciativa, levando novamente à
derrocada uma grande tentativa de integração do estado no
circuito cultural nacional (Gama Filho, 2001).
Só para se ter idéia, no governo Jerônimo Monteiro (1908-
1912), cantava-se o hino francês nas cerimônias cívicas,
sendo somente mais tarde substituído pelo Hino Nacional
Brasileiro. Com seu projeto desenvolvimentista surge no
Espírito Santo um certo bairrismo, mas que é logo
desarticulado na administração de Eurico Resende, quando
transforma os organismos da ideologia cultural capixaba em
departamentos do governo (Gama Filho, 2001).
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Oscar Gama Filho lamenta profundamente no livro
“Identidade Capixaba” o fato de terem sido extintas a
“Fundação Jones dos Santos Neves” e a “Fundação Cultural
do Espírito Santo”, pois isso foi um escancaramento das
portas ao neocolonialismo cultural oriundo do estrangeiro e
dos grandes centros que nos cercam: Rio de Janeiro, Minas
Gerais e Bahia.
A alienação do povo e o desconhecimento de sua própria
história são alguns dos instrumentos das classes dominantes
para manter o povo passivo e inoperante. Leve-se em conta
também aspectos da cultura patriarcalista, patrimonialista e
do favoritismo que impregnam as relações sociais em todo o
Brasil, aliada a uma forte cultura de massa num contexto de
globalização crescente.
Conforme Gama Filho, por incrível que pareça, a UFES
(Universidade Federal do Espírito Santo), em 1996 extinguiu a
editora Fundação Ceciliano Abel de Almeida, responsável por
uma das poucas épocas brilhantes na literatura capixaba.
Mas a maior atrocidade foi vender a quilo um acervo de obras
raras: 32 peças de teatro do século XIX, diversas partituras
de operetas, vários poemas do século XIX e início do século
XX, os primeiros livros de contos e novelas espírito-
santenses, além de originais de Rubem Braga e José Carlos
de Oliveira, descobertos pelo historiador e psicólogo Oscar
Gama Filho. Essa reunião de raridades foi vendida
(pasmem!) para ser transformada no “célebre papel
higiênico”. E o pior é que essa barbárie foi cometida por
causa da mudança de sede da Fundação. Carlos Nejar, “um
dos melhores poetas de todos os tempos descreve o fato em
seu artigo „A queima da biblioteca da Alexandria‟ (jornal A
Gazeta, Vitória, 25/01/1996, Caderno Dois, p. 4)” (Gama
Filho 2001).
Em 1923 havia nascido a revista “Vida Capixaba”, que foi, por
mais de três décadas, a principal fonte divulgadora das
características de nossa terra. No teatro destaca-se a figura
de Virgínia Tamanini autodidata, da cidade de Itapina, que
tem uma produção vultosa no interior, vindo a se apresentar
16
algumas vezes no Teatro Carlos Gomes em Vitória. O teatro
nessa época era produzido ou por estudantes ligados ao
seminário da igreja católica, ou importantes nomes do setor
do judiciário da capital.
Com a Segunda Guerra Mundial, a base agrícola do Espírito
Santo foi abalada, surgindo, em 1942, a Companhia Vale do
Rio Doce (CVRD) - hoje apenas Vale -, e a Companhia Ferro
e Aço de Vitória (Cofavi), algumas das principais
responsáveis pela destruição da Mata-Atlântica para produzir
carvão vegetal, suprir a demanda energética da produção de
ferro gusa. Começa nessa época o roubo das terras
Tupiniquim e Guarani e dos Quilombolas. A CVRD foi
responsável pelo primeiro grande plantio de mais de 1 milhão
de mudas de eucalipto em Aracruz em 1962, conforme jornal
A Gazeta de 18/02/1962, p. 3: “A CVRD S/A cuida de
reflorestamento”.
Conforme o ecólogo Francisco José da Silva Gomes,
O Espírito Santo, no período de 85 a 90, promoveu
uma destruição em números absolutos de 19.212
hectares, isso aparentemente é um número pequeno
comparado com os outros estados, mas dada a
situação anterior já grave, significou um impacto
grande, ou seja, 4,56% dos remanescentes que
haviam em 85 foram destruídos em apenas 5 anos.
Para se ter uma idéia do que isso significa, a
destruição foi proporcionalmente maior na floresta
Amazônica no mesmo período. Os principais agentes
de destruição no Espírito Santo foram o
reflorestamento com eucalipto e a expansão de
pastagens.
(Capobianco, 1997 apud Gomes, 1999: p. 1)
[ . . .]
Embora os ciclos do café, cana-de-açúcar e
pastagem tenham provocado, com o auxílio do setor
siderúrgico e da indústria madereira, a grande
devastação dos remanescentes do Estado, na
década de 70 inicia-se o processo de instalação do
pólo de celulose agravando ainda mais o quadro. Em
contrapartida, surgiu uma extensa legislação
17
ambiental de proteção à Mata-Atlântica, prevendo
duras sanções administrativas, penais e civis para os
seus agressores, de forma a reduzir a até a eliminar
as degradações aos seus remanescentes; no entanto,
esta tem se mostrado ineficaz em evitar os cortes,
desmatamentos e queimadas verificadas pela
fiscalização dos órgãos ambientais.
Reverter o atual processo de devastação da Mata-
Atlântica é um desafio que somente poderá ser
solucionado com uma ampla mobilização das
instituições públicas, privadas e a sociedade;
potencializando as ações já em processo de
execução, viabilizando novos projetos e buscando
novos caminhos para a sua proteção e recuperação.
(Gomes, 1999: p. 3)
A partir da década de 1940 o veículo de reinvasão não seriam
mais as carracas e caravelas portuguesas, mas o cinema e a
rádio, difundindo o modo de vida e os valores estadunidenses
(american way of life). No entanto não se pode negar a
modernização ganha por meio desses instrumentos, pois a
dinamização da tecnologia se estendeu também às artes.
Nascia em 1946 a “Academia Capixaba dos Novos”, que,
com recitais poéticos, teatro, palestras, concursos, concertos
e exposições pretendia diminuir o marasmo literário
vitoriense. A arte ainda aqui é um instrumento das elites e a
cultura popular não era considerada expressão artística.
Houve em 1947 a “Quinzena de Arte Capixaba”. Ainda no
mesmo ano foi instituído o Hino Nacional Brasileiro nas
cerimônias oficiais.
Nas décadas de 50 e 60 temos a marcante atuação do
“Teatro Escola” sobre a direção de Flodoaldo Viana, que
passou a encenar autores nacionais.
No final de 1950 e na década de 1960 muitos artistas do
Espírito Santo foram para o eixo Rio-São Paulo, resistindo
apenas, quase solitariamente, a produção de Milson
Henriques, com um teatro de dramas e comédias de um
conteúdo político ferino (sátiras). Milson estudou com Maria
Clara Machado no Tablado e manteve relação com o
18
movimento Teatro dos Estudantes sob a direção de Paschoal
Carlos Magno. O ator e diretor, também dramaturgo, tem
destaque excepcional com seu conhecido texto “A Tímida Luz
de Velas das Últimas Esperanças”, dentre uma vasta
produção de comédias como “Ai Tia Zizi como saí a ti”,
“Entregando os veados de Vitória”, “Vitória de Setembro a
Setembrino”. Preso no período da ditadura no porão da atual
Escola de Teatro e Dança Fafi por ser suspeito de atividades
contra o governo militar, Milson Henriques cobriu o período
com uma vasta produção.
De meado de 1960 até a década de 1980 temos uma ruptura
no Teatro Capixaba com o movimento do Teatro Universitário
na UFES, sob a direção de Paulo de Paula recém chegado
dos EUA, tendo realizado lá um mestrado em Artes Cênicas.
Paulo de Paula fundou o Grupo de Teatro da Barra que até os
dias de hoje encena a peça “Anchieta Depoimentos”.
Entre uma profícua produção que relaciona a cultura brasileira
com sua raiz nagô yorubá e a tradição literária inglesa e
norte-americana, Paulo de Paula introduziu um tipo de teatro
que floresce até hoje no estado: de pesquisa. O antigo
Teatro Metrópolis foi brutalmente demolido em 2004 pela
UFES (gestão do reitor Weber) por ter sido ocupado pelos
estudantes universitários sem moradia.
Em dezembro de 1959, nos conta Paulo de Paula na revista
“Você”, Zely Simon – uma das fundadoras do Departamento
de Letras da UFES e do IBEU (Instituto Brasil - Estados
Unidos) – e Etta de Assis, alunos da antiga Fafi – Faculdade
de Filosofia e Letras montaram a peça natalina de Maria
Clara Machado “O Boi e o Burro no Caminho de Belém”, no
auditório do colégio americano.
Esse foi o pontapé para uma série de atividades do grupo
que Oscar Gama Fillho chama de TUC-IBEU em seu livro
“História do Teatro Capixaba: 395 anos”. Entre os atores
dessa “primeira experiência”, nos conta Paulo de Paula,
estava Gilson Samento, professor de artes cênicas do Centro
de artes da UFES (até a década de 90), e do mestrado de
Estudos Literários, atualmente.
19
Em 1989 a peça “O Boi e o Burro no Caminho de Belém” foi
novamente encenada, agora pelo NIAC (Núcleo Integrado de
Atividades Cênicas da Ufes), com direção musical de Márcio
Neiva e participação dos cantores-atores do Coral Opus Livre.
O figurino foi feito pela Associação Cultural de São Roque. O
cenário por Celso Adolfo. E a iluminação por Ary Roaz. A
nova montagem foi encenada no Teatro José Carlos de
Oliveira e gravada pela TVE/ES,
[ . . .] que lançou como “Especial de Natal” naquele ano.
Um dos protagonistas da peça foi Marlon Crist, o
conhecido ator („Bella Ciao‟, peça dirigida por Renato
Saudino e que teve o maior número de premiações do
SATEDES 95. Ainda na Fafi, e usando seu diminuto
palco, em 1961 o TUC encenou “Shakespeare em Preto
e Branco”, cenas de peças e sonetos do autor inglês,
em uma apresentação bilíngüe.
(Paula, 1996: p. 16)
Outro trabalho que marcou época foi a peça “Pluft, o
Fantasminha” que, em 1962 participou do IV Festival de teatro
do estudante em Porto Alegre (RS) e ganhou o prêmio de
melhor espetáculo infantil. O elenco contava com Dora
Cortat, desempenhando Pluft, Margarida Moreira como mãe
de Pluft, Elizabeth Neffa como Maribel, José Carlos
Simonetti, Manoel Nalin, Reginaldo Rabello e Ademar Pinto
(Paula, 1996)
1962 foi também o ano em que grupo montou “Our Town”
(“Nossa Cidade”), de Thornton Wilder, no auditório do Carmo.
Nesse mesmo ano um grupo de estudantes sob direção de
Dilton Lyrio, então presidente a União Estadual do
Estudantes, montam “O Auto da Compadecida” de Ariano
Suassuna. Passados os temores da censura a peça obtém
as “graças” de D. João Batista da Motta e Albuquerque e uma
elogiosa crítica. No elenco Roberto Pimentel (João Grilo) e
Everaldo Pelissari (Chicó). Estreou em Cachoeiro de
Itapemirim (ES). Apresentou-se também na cidade de Alegre
(ES) e no Teatro Carlos Gomes em Vitória (Paula, 1996)
Em 1966 Antônio Carlos Neves volta a Vitória, após o
fechamento da Escola de Cinema da Universidade de
20
Brasília, e funda o grupo Geração que montou peças de
êxito como “Arena Canta Zumbi” (1966), e “Juventude
de Raiva e muito Amor” (1967) e contava em seu elenco
com elementos que trabalharam no TUC, como Alcides
Vasconcelos e Cláudio Lachini. Este grupo lançou
valores novos como Zélia Stein e Milson Henriques,
este, recém chegado a Vitória.
(Paula, 1996: p 18)
Milson Henriques, em especial, passou a trabalhar com um
grupo de estudantes de engenharia na encenação de seu
texto “Vitória, de Setembro a Setembrino”, uma sátira política
à gestão do prefeito Setembrino Pelissari. Em 1970 Milson
apresenta sua sátira à censura “Animais não desanimais”,
com o mesmo grupo. Em 1972 encena com os estudantes da
EMESCAM (Escola de Medicina Santa Casa de Misericórdia)
sua comédia “De como Conquistar um Coronel sem Fazer
Força“, e, em 1975, “Um doutor na Família” (Paula, 1996).
De 1976 a 1979 se verá uma explosão Teatro Universitário
com os Festivais de Teatro Universitário e o programa
bolsa/arte da UFES sob direção de Gilson Sarmento. Peças:
“As Sabichonas” de Molière, “O Noviço” de Martins Pena,
“Um pedido de Casamento” e “O Jubileu” de Tchekov, além
de “Cenas do Teatro Universal” (Paula, 1996).
Paulo de Paula em seu artigo “Teatro Universitário: ontem e
hoje” (Paula, 1996) diz que é questionável a validade dos
Festivais Universitários da UFES, afirmando que 20 anos
depois, parece não ter contribuído para a formação platéia.
Argumenta que foram eventos efêmeros “com um toque de
ôba-ôba”. Paula (1996) aponta, porém, para o saldo que
significou na formação dos artistas. Esse fator é algo que não
podemos negar, pois daí surgiram nomes como o do grande
diretor Renato Saudino, atuante até os dias de hoje e uma
das peças-chave na elaboração da estrutura artística da
Escola de Teatro e Dança de Vitória FAFI. Renato é ainda
hoje professor de História da Arte na Escola de Teatro e
trabalhou em vários setores ligados ora às artes plásticas,
ora às artes cênicas e à gestão cultural. Responsável
inclusive por um salto de qualidade nos últimos anos no
“Grupo de Teatro Vira-Lata”, com a direção do espetáculo “A
21
Feira”. Um outro exemplo marcante dessa safra foi o de
Fanny Bittencourt, revelação de atriz na I Mostra de Teatro
Universitário Capixaba, que chegou a participar do elenco
paulista de “Macunaíma”, e depois e optou por voltar a Vitória
e ao curso de Língua Inglesa (Paula, 1996).
Os grupos eram formados por alunos dos Centros de Estudos
da UFES e diretórios acadêmicos. Ao todo foram 4 festivais
com 25 peças apresentadas como: “Bumba meu Bucho”,
criação coletiva do grupo “Phantasias do Açúcar” (DACBM),
“São Mateus Colônia” com base no trabalho de Rogério
Medeiros. Nessa última peça participaram Antônio Claudino
de Jesus, Elisa Lucinda (hoje atuante no Rio de Janeiro e São
Paulo) e Margarete Taquete (diretora de cinematográfica de
“A Mulher de Algodão”, 1995) (Paula, 1996)
Um grupo de destaque que participou desse circuito dos
festivais universitários da UFES foi o “Clio”, com participação
de Laura Lustosa, dissolvido em 1980, quando do retorno do
professor Ibarguen para a Amárica do Norte (Paula, 1996).
Outro grupo dessa formação foi o “Canalhada”, com a
talentosa direção de Virgínio Lima. Destaque para o
espetáculo “Ei, oi, psiu . . .” (Paula, 1996)
Em 1990 Celso Adolfo recebeu a indicação de melhor cenário
pelo espetáculo “Jogo de Damas” de Julio Matas (NIAC-
UFES) e indicação de melhor direção para Paulo de Paula,
tendo como assistente de direção Ary Roaz e prêmio de
melhor atriz para Lúcia Junqueira e Alcione Dias. A peça
contou com a participação da atriz Branca Santos
(SATED/ES), no festival de Blumenau. Retornando a Vitória,
a peça “foi gravada pela TVE/ES e lançada na Rede Brasil”
(Paula, 1996: p. 21).
Aliando o teatro à formação em língua inglesa os trabalhos
do Departamento de Letras tiveram grande destaque como a
montagem de “The Importance of Being Earneast” de Oscar
Wilde com direção da professora Neise Rodrigues. A peça
apresentou-se a convite na USP e contava em seu elenco
com o estudante Alvarito Mendes Filho (Paula, 1996).
22
Com direção da professora Ester de Abreu o Departamento
de Letras passou a apresentar seguidamente, pelo
NIAC/SPDC, “cenas da dramaturgia e da literatura espanhola
como o clássico „Dom Quixote‟” (Paula, 1996: p. 21), sob
direção de Ary Roaz. A instalação de Jose Zorrilla, por Elisa
Queiroz e “[ . . .] as interpretações poéticas pelo grupo
„Guardiães da Poesia” (Paula, 1996), dirigido por Margarete
Maia (socióloga).
Paralelo ao Teatro Universitário, a década de 70 gestará um
movimento de valorização da cultura popular com os Centros
de Cultura Popular (CPC‟s) junto à União Nacional dos
estudantes (UNE). A luta de muitos artistas contra a Ditadura
Militar e a resistência são alguns dos aspectos abordados por
Saulo Ribeiro em sua monografia do curso de História da
UFES sobre o período e que vale a pena ser conferido.
Destaco desse período as peças “Antígona” sob direção de
Luís Tadeu Teixeira e a criação espaço do “Teatro Aberto”,
atual SCAV Edith Bulhões, sempre na iminência de ser
demolido e que, atualmente, foi tomado pela Receita Federal
para construir ali sua sede. O Teatro está para ser demolido
e as autoridades se reusam a intervir, inclusive o próprio
Ministro da Cultura, que ao propor em Audiência Pública na
Assembléia Legislativa, um contrato de comodato para o
MINC, recebeu da intransigente Receita Federal resposta
negativa. É dessa época também a criação do espaço na
antiga Casa da Cultura (anterior Restaurante Universitário no
Centro da Cidade) que foi demolida criminosamente pelo
Estado, por envolver muitos interesses, inclusive os dos
artistas que lá desenvolveram intensa atividade de
resistência durante a Ditadura Militar.
O espetáculo “Navio Negreiro” sob direção da autodidata
Vera Viana que introduz no Teatro Capixaba a iluminação
teatral com latas de leite como refletores. A idéia de
iluminação se difunde em todo o meio teatral. A diretora,
também dramaturga com forte influência da dramaturgia de
Ibsen, aborda aspectos muito importantes e interessantes da
questão racial, do escravismo em vários de seus textos e de
suas direções, e dá todo um destaque ao papel da militância
23
e da cultura popular. Também te destaque seu célebre texto
“Devagar com o Andor que a Panela é de Barro” 5.
A década de 1970 é, sem sombra de dúvidas, o período de
maior produção artística no cenário do ES, onde a luta contra
a Ditadura se tornou um catalizador ideológico das ações e
intervenções contra um Estado autocrático, militar, que
defendia apenas o interesse da classe burguesa e militar.
Porém nem todos os artistas que participaram tinham isso
muito claro.
Lançam-se nomes como: Renato Saudino, ator e diretor de
talento, Agostino Lazzaro (ator, diretor e escritor), Alvarito
Mendes Filho (também ator e dramaturgo. Destaco sua peça
“Um Piano sobre o meu coração” onde retrata a realidade do
povo pomerano no Espírito Santo). Renato e Agostino têm
forte influência de Gilson Sarmento, diretor teatral, professor
da UFES.
5 A panela de barro é um forte símbolo da cultura no ES, tendo origem nos negros
e indígena, é utilizada para fazer a típica moqueca capixaba.
Importante revista lançada nesse período e que reunia
artistas locais e nacionais, foi a “Imã”, cuja editora-chefe
Sandra Medeiros, obteve reconhecimento nacional da
vanguarda artística encabeçada por Caetano Veloso, Gilberto
Gil e o Movimento da Tropicália, além da crítica literária por
seu empenho e constante diálogo.
Ainda dessa época temos o nome de Magno Godoy (In
Memoriam), que realizou um trabalho vultoso entre a dança,
o teatro e as artes plásticas, com forte influência da dança
clássica e da dança japonesa “Butô”6. Nessa época Magno
encenou textos de Fernando Pessoa como “O Marinheiro”
com Elisa Lucinda. Magno formou e foi mesmo uma “escola”
onde surge Marcelo Ferreira, ator, bailarino e diretor que
encena memoravelmente, nos anos 2000, os espetáculos
“Esperando Godot” e “Back to Becket”, do texto “Fim de
6 Chamada também de “Dança das Trevas” ou “Dança da Alma”. Tem como
maior expoente o japonês Kazuo Ohno. No Brasil Maura Baiochi, professora do
curso de dança da UnB (Universidade de Brasília), realiza uma pesquisa
interessante das influências do Butô em seu livro “Butô: dança veredas d’alma”.
Nesse livro está registrado o trabalho da Cia Neo-Iaô, sob direção de Magno
Godoy, que buscou criar um Butô brasileiro com referências no candomblé.
24
Partida”, ambos de Samuel Becket; e Paulo Fernandes,
bailarino negro, fundador da Cia Enki de Dança que faz um
trabalho muito interessante onde congrega, além da dança
butô (herança do grupo Neo – Iaô, formado com Magno e
Marcelo), influências africanas e do misticismo do poeta
Waldo Motta.
Nos anos 1970 surge o poeta Waldo Motta em São Mateus,
que veio a ser reconhecido como um dos maiores nomes da
literatura brasileira contemporânea. Realizou um percurso
militante no movimento gay, e enfrentou preconceito até hoje
presente contra os homossexuais, acirrado com o surgimento
da AIDS no início da década de 90. Waldo cria com o
cineasta e jornalista Amylton de Almeida, e outros nomes, o
“Triângulo Rosa” que, entre outras atividades, realizava
palestras em parceria com profissionais das áreas biomédicas
na busca da cura para a AIDS e descriminalização dos
homossexuais. Em conversa com Waldo Motta ele revela:
“Naquela época, nós, os homossexuais, estávamos com
medo até de sair à rua, tão forte era a discriminação e o
perigo que corríamos. Como bibas conscientes não
podíamos deixar a situação assim: criamos o Triângulo Rosa
para promover o diálogo, esclarecer a população e buscar a
cura da AIDS”.
É desse período o poema “ODE À IDA AO ID” e „NOS DIAS
DE AIDS”:
“ODE À IDA AO ID
„Vexilla Regis prodeunt inferni‟
Cf. Dante
Hás
de
ir
ao
Id
Hás
de
ir
ao
Id
25
Hás
de
ir
ao
Hades
Hás
de
apegar
-te a
Toda e qualquer
merda
neste
mar de
Hás de enfrentar
A nado
ao nada
para enfim dar
a Lugarnenhum
Hás de ir ao Id
hás de ir ao Hades,
apesar de Cérbero
a tudo atento
com seus mil ouvidos
e olhos cibernéticos,
apesar de toda a
hiperinfernália
de ritmos pânicos,
sabores e odores
e cores e sons alucifeéricos
do Leviatan.
Hás de ir ao Id
hás de ir ao Hades,
derrotar Satan
e as potestades.”
“NOS DIAS DE AIDS
Nos dias de Hades e seu reino podre
Hás de doar odes até o odre.
Hás de ir ao Id, de todos os modos.
Hás de ir ao Id, enquanto se pode.
Isento de ódio, imune ao medo,
Hás de ir ao Id, já não é mais cedo.
Hás de ir ao Id, hás de ir ao Id,
Para depor Hades, que a tudo preside,
26
e, depondo Hades, todos os poderes
que impedem a mútua doação dos seres.”
(Motta, 2008: p. 43 e 44)
Waldo chega a ocupar cargo público de assistente de direção
da chefia do antigo DEC (Departamento Estadual de Cultura)
no final dos anos 80, e o abandona em seguida, além de ter
abandonado o curso de jornalismo na UFES na década
seguinte, para escrever o famigerado livro “Bundo e outros
poemas”, onde entre outras coisas, realiza uma releitura gay
da Bíblia com influência de diversas tendências da poesia
brasileira contemporânea e universal, mitologia, cabala e
esoterismo. Nos anos 90 Waldo é reconhecido pela crítica
nacional e internacional realizando residência poética na
Alemanha e nos EUA, e em universidades conhecidas por
todo o Brasil. Realizam-se dissertações e monografias de
mestrado e graduação em Estudos Literários e Letras sobre
sua obra na UFES e nas universidades de Munique
(Alemanha) e da Holanda. Seu livro “Transpaixão” é hoje obra
obrigatória para o vestibular da UFES. Junto com Waldo, a
UFES adota outros capixabas como o poeta Miguel Marvilla
(falecido recentemente) e os contistas/romancistas Reinaldo
Santos Neves e Adilson de Villaça. Nos anos 2000 Waldo
cria o “Grupo Poiesis”, fruto de suas oficinas literárias e
teatrais, que entre outras coisas reúne poetas, atores,
músicos, críticos literários e editores do circuito local e
nacional. Destaca-se a realização do evento “Poesia ao Vivo”
no ano de 2008, quando traz para Vitória o poeta e editor da
editora Globo Ronald Polito, Massao Ohno da editora
homônima e Celso de Alencar, poeta e representante do
Ministério da Cultura, todos de São Paulo.
Em 23 de maio 2009, quando se “celebra” a colonização do
solo espírito-santense, o Grupo Poiesis estreou o espetáculo
“Terra Sem Mal”, versão teatral do livro de poemas
homônimo de Waldo Motta, sob sua direção com os atores
William Berger, Allan Moscon e atriz Christina Garcia.
Na década de 70, o cineasta Toninho Neves vai para a URSS
realizar um curso de Cinema e retorna ao Estado ampliando
27
a produção cinematográfica até então encabeçada por Luis
Tadeu Teixeira.
A obra cinematográfica de Luis Tadeu Teixeira se destaca
pelos filmes “Graçanã”, baseado no romance “Canaã” de
Graça Aranha, além dos curtas-metragens Castelo, Corpus
Christi (1978), Ponto e Vírgula (1986) e O Ciclo da Paixão
(2000)
Também Amylton de Almeida com o conhecido “O Amor Está
no Ar”, onde participam como protagonistas Eliane Jardini e
Marcos Palmeira do Rio de Janeiro e diversos atores e atrizes
capixabas da estatura de uma Margareth Galvão.
Como documentarista o nome de Ricardo Sá ganha destaque
com sua produção sobre a questão indígena e a Aracruz
Celulose no município de Aracruz-ES, nos anos 90 e 2000. É
reconhecido internacionalmente seu documentário “Terra
Sem Males”.
Amylton de Almeida também produz o documentário “Lugar
de Toda Pobreza”, no final da década de 80, como denúncia
da situação de miserabilidade na região da Grande São
Pedro (Vitória-ES), para onde foram empurrados os pobres,
os negros, os leprosos (Leprosário-ilha de Santo Antônio) e
onde era depositado em montanhas o lixo da cidade, do qual
se serviam os miseráveis para a sua sobrevivência. Após
anos e anos e tendo como fruto dessa época de denúncia por
parte desses e outros artistas e de setores populares
organizados, a região recebe obras de urbanização e é
criada a fábrica de lixo de São Pedro pela Prefeitura
Municipal de Vitória.
Ainda na área do cinema e áudio-visual, uma especial
menção deve ser feita a “Seu Maneozinho” de Mantenópolis.
Servente de pedreiro, Manoel Loreno é o maior produtor de
vídeos da cidade, no interior do ES. Um dos maiores do
Estado. Tem em sua obra 21 longas-metragens de foroeste e
aventuras. Com recursos mínimos nos dá um exemplo
28
emocionante de como somos capazes de realizar cultura
enquanto uma invenção criativa.
Nessa época os artistas organizados ocupam uma escola no
coração da cidade de Vitória e fundam um programa de
oficinas que dão origem à Escola de Teatro e Dança FAFI,
como um dos maiores pólos de formação, produção e difusão
cultural no Estado. Muitos artistas de grande qualidade
passaram pela Escola em todas as épocas, seja como alunos
ou professores e oficineiros. Atualmente a Escola vem num
processo de decadência, sem regulamentação junto ao MEC
e orçamento reduzidíssimo para suas atividades. A qualidade
do ensino das artes cênicas decaiu consideravelmente. No
ano de 2004 houve ainda a tentativa de privatização da
Escola pela via da terceirização dos serviços através da OS
(Organização Social) IACC (Instituto de Arte e Cultura
Capixaba), que pretendia colocar a Escola nos moldes da
educação formal. No entanto, temos de reconhecer que
algumas das melhorias físico-estruturais e organizativas da
escola constam desse período.
A década de 80 e a redemocratização do país trouxeram a
esperança de uma nova sociabilidade, inspirada nas
conquistas populares que culminaram na Constituição de
1988. É dentro dessa época também que se consegue o
reconhecimento da profissão dos artistas, com a criação dos
SATED‟s (Sindicato dos Artistas e Técnicos de Diversões de
Espetáculos), que se multiplicam por todo o país. Depois de
muita luta, arte vai deixando seu velho estigma de marginal.
Os antigos departamentos dão lugar às secretarias de
cultura. Na Saúde, temos a criação do SUS (Sistema Único
de Saúde), substituindo os antigos Institutos, ligados aos
setores produtivos. A saúde torna-se um direito universal em
sistema descentralizado e regionalizado. Cresce a demanda
e o SUS vê-se insustentável abrindo precedente para a
Saúde Privada e os Planos de Saúde. Na Educação a Lei de
Diretrizes e Bases amplia o direito universal à educação
pública. Na Previdência são instintos os antigos Institutos de
Aposentadoria e Pensão pela criação do INPS (Instituto
Nacional de Previdência Social). A Assistência Social Pública
ganha o status de direito. Em todos os setores as parcelas
29
excluídas do poder passaram a ser vistos como sujeitos de
direitos, portadores de uma cidadania política, porém em um
sistema econômico desigual. A contradição se torna evidente.
Entramos na década de 90 com um forte discurso dos
apologetas neoliberais chegando ao Brasil. Seus programas
se originaram nos anos 70 e 80 no governo com Margareth
Tatcher na Inglaterra, Ronald Reagan nos EUA e o ditador
Pinochet no Chile. No Brasil, anos 90, é Fernando Collor de
Mello quem implementa uma série de programas de
privatização das empresas estatais e dos setores produção
de base e automobilístico, além dos setores públicos. O
colapso do Estado de Bem-estar Social, (na América-Latina
economista Francisco de Oliveira nomeia um Estado de Mal-
Estar) deu abertura para o Estado Neoliberal, o desmonte das
políticas públicas, a privatização da Saúde, da Educação, da
Previdência e também da Cultura através da implementação
das “Leis de Incentivo Fiscal”, que corroboram com o
mercado, além da terceirização dos serviços. Muitos dos
artistas que antes produziam por estímulo ideológico e político
passam a ser movidos mais pelo econômico: o mercado e o
comércio parecem ter cooptado os “sobreviventes” da
Ditadura. A exceção é Augusto Boal no Rio de Janeiro e seu
Teatro do Oprimido que se ramifica por todo o mundo,
chegando inclusive no Espírito Santo, através do Centro de
Teatro do Oprimido e seu programa de formação de
multiplicadores, que põe em questão a discussão de classe
implícita nas formas da opressão cotidiana. Cria-se o
NUPRATO (Núcleo de Praticantes de Teatro do Oprimido do
ES). A década de 90 aparentemente anuncia uma nova
ordem econômica travestida de uma cidadania do
consumidor. A política social vai sofrer sérios impactos em
detrimento de uma política econômica voltada para o
mercado externo e o capital financeiro parasitário, pois se
baseia na especulação das bolsas de valores e não investe
na produção. Daí o enriquecimento dos grandes capitalistas
sobre o crescimento da pobreza e da miséria, advinda do
desemprego estrutural em massa e das péssimas condições
de trabalho. A flexibilização das normas trabalhistas, a
precarização das relações de trabalho, o aumento da jornada
30
e da informalidade se estenderão também ao campo das
artes. A carteira assinada para o artista, bem como para os
demais trabalhadores, passa a ser um sonho cada vez mais
distante nos horizontes do mercado.
Prevalecem a relações de precarização extrema, os cachês
passam a ser cada vez mais reduzidos, dando aos artistas
mais novos a impressão de que a profissão não seria
exequível fora das leis incentivo fiscal. O SATED‟s perdem
seu poder de barganha e interlocução com o sindicalismo e o
Estado. O artista sindicalizado passa a ser uma
obrigatoriedade do mercado, que dita agora, através dos
editais, o que pode e o que não pode ser dito em uma obra.
Há uma refilantropização da Questão Social, com a
multiplicação das ONG‟s (Organizações Não-
Governamentais), OSCIPIS (Organização da Sociedade Civil
de Interesse Público e OS‟s (Organizações Sociais).
Dissemina-se no Brasil um forte discurso de crise.
A Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo tem
alguns avanços na gestão de Neusa Mendes nos anos 2000,
com a criação de projetos como a “Escola Itinerante de Artes
Cênicas”, que formou núcleos por todo os estado dividindo-o
em microrregiões e agrupando os municípios. Além de
programas de formação de artistas com projetos como “Usina
da Cena” e Festival “Vitória em Cena” com oficinas e
workshops de profissionais altamente reconhecidos nos
circuitos nacional e internacional. Realizou também o “Fórum
Internacional de Cooperação Cultural”, onde lançou um
catálogo da produção cultural no Espírito Santo, a ser
entregue a representantes de diversos países. A atual gestão
extinguiu muitos dos projetos, deixando o cenário cultural um
tanto desolado.
A Secretaria Municipal de Cultura da capital Vitória criou o
projeto “Circuito Cultural”, que prevê atividades formativas de
público e artistas nas periferias, com a descentralização da
política cultural. Porém a experiência tem tido resultados
pouco satisfatórios, demonstrando queda de qualidade. Só
para termos um exemplo os cachês pagos aos artistas
beiram a cifra de R$ 300,00 por mês, inviabilizando um
31
trabalho de qualidade. Destaque-se a qualidade do Festival
de Teatro Cidade de Vitória, com peças da melhor qualidade
vindas do circuito nacional e oficinas com profissionais de
renomado valor.
O SESC (Serviço Social do Comércio) abre suas portas no
Espírito Santo nos anos 2000 na área da Cultura, criando
uma nova dinâmica que enche de esperança os presentes
produtores. Há uma relativa corrida aos processos de
adequação de linguagens. Foi criada recentemente a “Aldeia
SESC Anchieta”. Os espetáculos recebem a crítica nacional.
Intelectuais capixabas entram no circuito nacional e outros
são ignorados, ora por sua qualidade, ora pela periculosidade
de suas idéias. O mercado não aceita tudo, principalmente os
artistas radicais, que são novamente legados a um circuito
alternativo de auto-financiamento, já que não se enquadram
em certos editais e não se submetem às leis cooptadoras do
mercado. Esse tipo de artista é uma espécie em extinção em
todo o mundo. Acredito que quando as normas de um edital
passam a censurar os conteúdos da obra de um artista,
temos aí uma forma de regime de exceção, de castração e
de silenciamento de uma época.
Na segunda metade dos anos 2000, Rosa Rasuck, produtora
cultural preocupada com o diálogo entre os artistas funda o
grupo virtual de discussões Opiniões Cênicas, a partir de
uma crítica ao Espetáculo “O Pássaro Azul” do Grupo Clã de
Teatro, sob a direção de Leonardo Patrocínio. Com o
pseudônimo “Ah se eu fosse a Bárbara Heliodora” sacode o
meio teatral e demais artistas com uma mala direta para mais
de 400 email‟s, que colhera ao longo de quase 4 anos de
atuação como produtora da “Cia Circo Teatro Capixaba” sob
direção de Willian Rodrigues.
A cena atual do Teatro no Espírito Santo conta com uma
quantidade razoável de grupos que movimentam o cenário
local e por vezes se expandem para o cenário nacional e
internacional. O “Festival de Teatro Nacional de Teatro
Cidade de Vitória” e o “Festival Nacional de Teatro de
Guaçuí” realizam uma ponte entre a produção local e a
32
produção nacional muito importante e ampliam os horizontes
de formação de platéia e artistas. Importante atuação se deve
ao “Festival de Teatro Infantil do Espírito Santo, Vila Velha”,
sob coordenação de Alvarito Mendes Filho. Na área do
cinema e do áudio-visual é de enorme importância do Festival
“Vitória Cine Vídeo”, que faz uma movimentação portentosa
da produção local e nacional e está em sua 16ª edição
(2010). Ainda, os festivais de música são muito interessantes,
como o “Festival de Inverno de Domingos Martins”, como
resgate da música erudita produzida em todo o Brasil; há
também o “Festival de Inverno da Sanfona e Viola”, em
Mimoso do Sul, que valoriza a música regional e a cantoria
tradicional.
Dentre os grupos teatrais mais atuantes destacam-se o
“Grupo Z” de Teatro sob direção de Fernando Marques;
Grupo “Gota, Pó e Poeira” de Guaçuí, sob direção de Carlos
Ola, o “Grupo Poiesis” de poesia-teatro e outras artes, sob
direção do poeta Waldo Motta; o “Grupo de Teatro da Barra”,
sob direção de Paulo de Paula; o “Grupo Vira-lata” de teatro
de rua, sob direção de Cleverson Guerrera; o grupo “Os
Tarahumaras”, sob direção de Wilson Coelho (diretor e
filósofo); grupo “Clã” de Teatro, sob direção de Gecimar
Lima; o grupo “Quintal” sob direção de Ednardo Pinheiro e
José Augusto Loureiro, com inserção da diretora Telma Smith
(recém chegada de São Paulo); “Grupo Rádio Terra”, sob
direção de Verônica Gomes; “Cia Circo-Teatro Capixaba”,
sob direção de Willian Rodrigues; Cia Capixaba de
Comédias, sob direção de Alvarito Mendes Filho (diretor e
dramaturgo); a “Cia Folgazões” de teatro de rua, sob direção
de Edson Santos; a “Rá – Tim – Bum Produções de Artes”. A
diretora Márcia Gáudio faz um trabalho de suma importância
na região da Grande São Pedro e Santo Antônio com o Auto
da Paixão de Cristo na época da Semana Santa, com uma
apresentação nas escadarias do Santuário de Santo Antônio
e envolve vários setores da comunidade. Na mesma linha há
um interessante trabalho feito na favela do Romão, há mais
de 30 anos com direção de Josmar Pinto do Rosário (In
Memoriam), além de George Henrique, Romualdo Manhães,
Toninha e toda a comunidade que congrega desde
33
evangélicos, católicos, umbandistas, adultos e crianças. Na
região da Grande Maruípe, também no município de Vitória,
quem desenvolve um trabalho nessa mesma época é
Verônica Gomes e seu grupo Rádio Terra. Verônica tem forte
influência do diretor conhecido diretor Amir Hadad e Dácio
Lima (clown). De Verônica são conhecidas suas duas
direções: “Clown – Situações Inusitadas” e “O Caso Herzog”.
Há também um fluxo do teatro amador, do qual não temos
informações precisas sem uma prévia pesquisa de campo
que segue um rumo paralelo.
Há um número significativo de Cias de dança como a “Cia
Balé da Ilha”; a “Cia Corpo em Cena”; “Cia Enki de Dança
Primitiva Contemporânea”; a “Cia de Dança Mitizi Marzzuti”;
“Grupo de Dança Afro NegraÔ”; a “Homem Cia de Dança”; a
“Quorum Cia de Dança” e a “Cia de Dança Emerson Barreto”,
entre outras.
Nas artes plásticas, nomes como Attilio Colnago (pintura),
Águeda Valentim (eramista), Andréa Abreu (pintura),
Argentino Vieira (pintura naif), Antônio Ramos dos Santos
(pintura, desenho, cartum e música), Douglas Salomão
(intervenções urbanas), Flávio Pimentel (arame, desenho e
escultura), Gilbert Chaudanne (pintura), Rosana Paste
(escultura), são alguns dos muitos nomes de artistas não
menos importantes, escolhidos aqui por critério de
amostragem por forma de expressão artística (I Catálogo de
Produtos Culturais do Espírito Santo, 2005).
Também no artesanato há uma enormidade de produções,
desde as paneleiras de Goiabeiras às esculturas Naif de Laila
Coutinho; artesanato de conchas. E em especial o artesanato
Guarani de Werá Djekupé, de Aracruz, que inclui arco flecha,
zarabatanas, tacapes, cestos e cerâmica (I Catálogo de
Produtos Culturais do Espírito Santo, 2005).
Na música bandas como Casaca (Vila Velha) e Manimal,
mesclam elementos do congo capixaba ao rock e ao reggae.
O grupo Sol na Garganta do Futuro, que trabalha entre o
rock, poesia, samba, funkarioca e bossa. Chico Lessa,
34
cantor, compositor e letrista de reconhecimento nacional, com
forte influência da bossa nova, samba e tropicalismo. E
Marcela Lobo, de uma voz inconfundível e talento, com
teatralidade visceral, para citar apenas alguns nomes de
determinados estilos, o que não diminui o trabalho
significativo de todos os outros (I Catálogo de Produtos
Culturais do Espírito Santo, 2005).
Há também um sem número de instituições e projetos
culturais e projetos sociais com atividades culturais, das artes
cênicas, plásticas e populares. Destaco aqui a ACES (Ação
Comunitária do Espírito Santo), o Projeto Manguerê
(idealizado por Elisa Lucinda – poetiza), a Associação de
Bandas de Congo da Serra e Associação Cultural e
Recreativa de Belém em Santa Maria de Jequitibá, em uma
amostragem simples.
Culturas Populares
Para encerrar essa parte sem a intenção de cansar o leitor
com tantos nomes, mas que de forma alguma poderiam ficar
de fora dessa reflexão, pois são os que produzem arte e
cultura no Estado do Espírito Santo, gostaria de chamar a
atenção agora para a importância da cultura popular no
nosso país e vou citar as manifestações da cultura popular de
meu Estado.
A panela de barro é símbolo da cultura capixaba,
confeccionada com uma técnica popular há mais de 400
anos, é uma prática passada de geração a geração, até os
dias de hoje em mãos calejadas de trabalhadoras como as
paneleiras de Goiabeiras. Seu processo de confecção
passou dos índios Uma para os escravos africanos,
chegando até nós (I Catálogo de Produtos Culturais do
Espírito Santo, 2005).
35
O “Bate Flecha de Zumbi” em Cachoeiro de Itapemirim é um
dos mais significativos grupos folclóricos do sul do Espírito
Santo. Praticam um folguedo de origem africana, marcado
com coreografias com flechas de bambu e instrumentos de
sopro metálicos que acompanham os cânticos (I Catálogo de
Produtos Culturais do Espírito Santo, 2005).
Em Muqui temos o “Boi Pintadinho”, uma brincadeira alegre e
divertida que acontece no carnaval, similar ao Bumba-meu-
boi ou Boi-bumbá em diversas partes do país (I Catálogo de
Produtos Culturais do Espírito Santo, 2005).
O “jongo de São Benedito”, em São Mateus é um folguedo em
louvor ao santo com cânticos, percussão e coreografias que
inclui arcos floridos e roupas coloridas (I Catálogo de
Produtos Culturais do Espírito Santo, 2005).
As “Pastorinhas” na cidade de Mimoso do Sul é uma
manifestação cultural que tem origem bíblica, imbricada na
cultura popular e compõe o ciclo de 12 noites comemorativas,
do Natal até o Dia de Reis em 6 de janeiro, com realização
de danças, bailes, e peças teatrais (autos). A festa tem
elementos de dramatização bem definidos como cenário,
figurino, canções, coreografias. Começa após a Missa do
Galo, na noite de Natal (I Catálogo de Produtos Culturais do
Espírito Santo, 2005).
As “Procissões Marítimas” se integram a Festas Populares,
como a procissão marítima de São Pedro, em Vitória (I
Catálogo de Produtos Culturais do Espírito Santo, 2005).
O “Ticumbi” na cidade de Conceição da Barra é uma versão
capixaba da congada encontrada apenas no Espírito Santo:
É uma dança dramático-guerreira, praticada por negros
que se vestem quase sempre de branco. Usam japonas
ou batas longas enfeitadas de fitas muito coloridas,
amarrando na cabeça um lenço que lhes dá um ar
mouro. Sobre o lenço usam flores de diversas cores.
Alguns colocam sobre o lenço um chapéu de palha
todo enfeitado de fitas e flores. Para dar ritmo ao
folguedo, usam chocalhos e uma viola.”
36
(I Catálogo de Produtos Culturais do Espírito Santo,
2005).
Na “Charola de São Benedito”, em Guaçuí, um grupo de
pessoas sai pela rua cantando e recolhendo donativos para a
festa de São Benedito. A tradição tem por volta de 50 anos.
Destacam-se também os grupos de danças folclóricas
alemãs, pomeranas e italianas nas serras do Espírito Santo,
região onde tiveram maior concentração desde a época da
imigração (I Catálogo de Produtos Culturais do Espírito Santo,
2005).
Várias são as festas populares como “Folias de Reis” em
Muqui, Mimoso do Sul e Boa Esperança; “Festa de Santos
Reis” em São Mateus; “Festa da Penha”, em Vila Velha;
“Festa de São Benedito” na Serra (I Catálogo de Produtos
Culturais do Espírito Santo, 2005).
Uma infinidade de terreiros de Umbanda e Candomblé se
encontram sobre todo o estado, o que se constitui em um
aspecto importantíssimo das culturas afro-descendentes e
indígenas no Brasil e que sofre intensa discriminação e
repressão por parte do Estado e da sociedade ao vulgarizar e
criminalizar as práticas religiosas não-hegemônicas como
“coisa do diabo”, “macumba e feitiçaria”, ou “coisa de preto”,
desconhecendo e oprimindo as práticas culturais religiosas
que remontam a nossas raízes africanas. O que vem do
negro e do índio é colocado na posição inferior no caldo
cultural e em grande parte criminalizado. Há um aspecto de
dominação cultural, que remonta à catequese anchietana,
que lamentavelmente ainda vivemos em nossa dita
democracia.
Pela realidade que se nos apresenta hoje no Brasil, sou
levado a crer com o sociólogo português Boaventura de
Souza Santos, que vivemos em uma uma sociedade de
discurso de “cidadania política” em um forte “fascismo social”.
O termo Cultura tem múltiplos sentidos. Poderíamos citar
aqui sete desses conforme o antropólogo Mércio Pereira
Gomes (2008):
37
1) Cultura como erudição;
2) Cultura como a arte e suas manifestações;
3) Cultura como os hábitos e costumes;
4) Cultura como identidade de um povo ou coletividade;
5) Cultura como o que está por trás dos costumes de um
povo;
6) Cultura como o que perpassa todos os aspectos da
vida social;
7) E enfim, Cultura como tudo aquilo que o homem
vivencia, realiza, adquire e transmite por meio da
linguagem.
As idéias e informações apresentadas aqui precisam ser
entendidas sob o fluxo dessas categorias, pois no que se
refere à Cultura como erudição, esse é um dos aspectos
impregnados no termo e que nos leva perigosamente àquelas
velhas acepções que Affonso Cláudio faz em seu livro
“História da Literatura Espírito Santese” (1908), de submissão
aos modelos estrangeiros e a um complexo de inferioridade
que nos foi sendo incutido desde a colonização européia.
Referente à acepção de Cultura como arte e suas
manifestações, produção cultural, ora dominante
ideologicamente, podemos perceber pelos fatos históricos e
políticos da produção capixaba até então apresentados, que
esse é o modelo que tem imperado e tem maior destaque no
campo das políticas culturais.
Acredito ser de extrema importância realizarmos uma
reflexão ética sobre o papel das políticas sociais de cultura
na criação de novos valores, mais democráticos, populares
que valorizem hábitos, costumes locais, tradições, mas que
também os transformem, pois a Cultura não é estanque, mas
está em constante transformação.
E pergunto: para onde estamos direcionando esse fluxo?
Quais valores estamos imprimindo em nossas práticas e
políticas culturais?
38
Se cultura é também entendida como a identidade de um
povo ou coletividade, qual o lugar que estamos dando ao
outro e à cultura popular? Não teríamos ainda entranhado em
nossas visões de mundo esse eurocentrismo devastador que
tantas culturas apagou e tantos outros encobre até hoje?
Quais são as nossas referências? Quem são os nossos
pensadores e os nossos produtores de Cultura?
Precisamos realizar essa conquista ao inverso, nos colocando
como o centro da Cultura e não sua periferia, como adverte o
filósofo da libertação, latino-americano, Enrique Dussel. Se
trata de uma “Revolução Copernicana ao contrário” como diz
o pensador e diretor teatral brasileiro Augusto Boal.
Boal nos adverte para a construção de práticas e políticas
culturais de cunho transformativo:
Uma estética Democrática, ao estimular os Oprimidos a
reproduzirem suas obras, vai ajudá-los a eliminar os
produtos pseudoculturais que são obrigados a tragar no
dia-a-dia da televisão e outros meios de comunicação
da propriedade dos opressores. Democracia Estética
contra a Monarquia da Arte.
Se, nas Senzalas, só ouvissem as rádios senhoriais; se
só lhes chegassem os canais de TV e jornais da Casa
Grande, as Senzalas jamais seriam capazes de
inventar Palmares.
A Cultura da Casa não serve à Senzala porque tem
valores senhoris e formas senhoriais. Mesmo a Grande
Cultura milenar deve ser reinterpretada do ponto de
vista de onde estamos, e não de onde nos disseram
que estava a Cultura.
Esta é uma Revolução Copernicana ao Contrário:
somos, sim, o centro do Universo da Arte, porque
somos o nosso centro e nele estamos: não devemos
temer invadir e pisar o meio do palco, mesmo vivendo
na periferia das cidades, nos guetos dos excluídos e
longe da arte oficial à qual não devemos obediência.
Somos quem somos, e a vida é curta”.
(Boal, 2008)
A todo tempo produzimos Cultura e em seu fluxo também
somos envolvidos. Quando o ser se perde nesse fluxo e não
se enxerga como produtor de saberes, de linguagem, quando
39
impera as leis castradoras da cultura de massa, voltamos
novamente a perguntar onde está a ação do Estado na
gestão, planejamento, implementação e avaliação de políticas
culturais. Que formas e manifestações estão sendo
privilegiadas no acesso a programas e recursos?
Estamos agora no marco da discussão da política cultural no
estado do Espírito Santo e em nosso país. A participação tem
sido ínfima por parte dos artistas. Mais uma vez temos a areia
do tempo entre as mãos. Precisamos juntá-las diminuindo
nossos interesses individuais e corporativos para pensar
coletivamente os rumos de nossa política cultural e em que
projetos societários estamos ancorando nossas identidades.
Temos que discutir o orçamento da cultura e das políticas
sociais como um todo. E temos por obrigação que incluir a
ampliação da cidadania e dos direitos sociais, lutar por um
Estado ampliado, onde nossos interesses como sociedade
civil sejam levados em conta e garantidos sob a forma da
deliberação dos Conselhos de Direito e Política Social, como
os de Cultura nas três esferas (municipal, estadual e
nacional), e dar ênfase a questão da deliberação e da
fiscalização. Precisamos ocupar qualificadamente estes
espaços e dar voz às demandas das bases. Temos que
fortalecer o SATED‟s e ocupar esse espaço
qualificadamente. Temos a obrigação de por na pauta de
todos os debates a questão dos povos indígenas e
quilombolas e trazê-los para o debate, reivindicando políticas
culturais específicas.
Também devemos prestar atenção às experiências de
produção e difusão cultural nos presídios, no sentido de
ampliar os espaços de vocalização da população carcerária e
da produção artística, pois muitos dos artistas no Espírito
Santo e em todo o Brasil são professores e oficineiros em
diversos espaços, inclusive nas cadeias. Destaco esse
aspecto devido à situação de descaso do governo Paulo
Hartung que tem sido notícia internacional no âmbito dos
Direitos Humanos, pelas condições inumanas nas cadeias do
Estado.
40
Precisamos de amplos programas de formação de artistas e
público (cidadãos). A arte e a produção cultural, em seu
sentido lato, têm o poder de integrar e reunir. Seu papel na
intersetorialidade, na aplicação de políticas públicas de
educação, saúde, meio ambiente deve ser cada vez mais
reforçado, e os artistas que aí trabalham valorizados.
A estruturação de um Sistema Nacional de Cultura, é um
avanço, mas devemos ficar atentos em sua construção,
principalmente quanto às fontes de financiamento e aos
fundos para a cultura.
A revisão das Leis de Incentivo, como a Lei Rouanet, têm de
ser acompanhadas de perto, para que as demandas
colocadas nas Conferências realizadas pelo ministro Juca
Ferreira sejam implementadas em projetos e programas.
O lançamento do “Vale Cultura”, um espécie de bolsa família
para o consumo cultural, não é a solução para as dificuldades
do para a produção artística, apesar de ser um passo
importante no acesso ao consumo dos produtos culturais.
Temos de repensar valores, culturas-políticas e a educação
para a Cultura, para a participação. As escolas, por exemplo,
podem ser pontes para programas na área cultural e artística.
Um exemplo muito bem sucedido no Rio de Janeiro é o
Projeto Teatro do Oprimido nas Escolas em parceria com o
Centro de Teatro do Oprimido (que desenvolve projetos em
todo o país e no mundo em várias áreas) e o Projeto Escola
Aberta/MEC, para formação de multiplicadores da
metodologia nas comunidades, principalmente das áreas
mais periféricas da Baixada Fluminense, Belford Roxo,
Mesquita, entre outros, que representou uma experiência
singular de diálogo entre educadores, educandos
(professores e alunos), funcionários e familiares, onde as
opressões vividas na comunidade escolar foram retratadas,
debatidas e transformadas na cena teatral como forma de
ensaiar uma nova e desejada realidade.
Outra experiência muito importante do Teatro do Oprimido é
na área da Saúde Mental em parceria com os CAPS (Centros
de Atendimento de Apoio Psicossocial) no Rio e em São
41
Paulo, que tem gerado cada vez mais o diálogo entre
profissionais e usuários, que passam a ser produtores de uma
linguagem (teatral) capaz de expressar suas demandas,
anseios e desejos.
Podemos constituir um movimento social organizado, para
isso temos que vislumbrar horizontes coletivos, mesmo que
tenhamos nossas posições e interesses.
Só assim a política cultural poderá se transformar em um
instrumento de uma nova cultura política, democrática, de
transformação e garantia de qualidade de vida para nosso
povo.
Considerações finais
“MEDITAÇÃO GUARANI
Yanderuvuçu fez sua casa
No encruzo da cruz divina,
No imo de nossa Terra;
E ali deu à Terra o seu princípio.
Ele guarda em seu seio
o sol original e verdadeiro.
E o seu secreto Céu,
guardam-no Jaguarovy
e Mboby Rekoypy
e Mboyssununguçu,
suas bestas favoritas,
seus demônios prediletos,
que, no tempo assinalado,
põem fim ao mal da Terra
-ficando a Terra Sem Mal.”
(Waldo Motta. Poema inédito do livro “Terra Sem
Mal”)
É urgente, que passemos a agir e pensar de forma mais ética
e solidária, retomando aqueles tempos em que ensinávamos
ao companheiro de profissão como melhorar seu trabalho
com coisas simples. Só que agora exigindo do Estado
melhores condições e financiamento direto das políticas
culturais, sem precisarmos implorar de porta em porta, ao
mercado que troque nossos bônus das leis de incentivo
fiscal. Precisamos deixar de lado um tanto dessa competição
e reaprender a cooperar lançando um olhar ao mais próximo
42
em seguida, juntos, ao horizonte que pretendemos como
artistas e produtores de Cultura.
Temos hoje a oportunidade de mudar a História, como já o
tiveram muitos no passado, mas não o fizeram ou por
omissão ou por interesse próprio e dos dominadores. O
tempo pode ser nosso aliado, se nos permitirmos cooperar, e
a História nos julgará impiedosamente. Sou otimista sim,
sonhador, não abro mão dessa radicalidade, ainda que me
julguem antiquado e utópico. A utopia ainda me parece o
projeto mais sensato.
Os Guarani estão sempre procurando o paraíso porque
sabem que este mundo, esta terra, estas águas, este ar já
não suportam tanta destruição, tantos cadáveres, tanta
poluição, tanto pó de minério, tantas monoculturas, tantos
latifúndios improdutivos (frutos do furto), tanto eucaliptal, tanta
miséria, tanta fome, tanta injustiça, tanta rapinagem, tanta
infâmia, tanta corrupção. Estão à busca do seu paraíso
porque este não é o seu mundo, esta não é a sua gente, o
dinheiro não é o seu Deus. Ñanderuvuçú (Nosso Grande Pai)
já iniciou a destruição deste mundo, porque não será assim
pesados pela ganância que subiremos ao céu. Ao negar este
mundo, os Guarani afirmam que um novo mundo será
nascido e que novos seres humanos poderão nele habitar.
Nós podemos ser deuses em nossa humanidade para
transformar o mundo. A terra reclama renovação.
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