DUALISMO E HOLISMO NO EXAME DA CONSCIÊNCIA APÓS A MORTE

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1 DUALISMO E HOLISMO NO EXAME DA CONSCIÊNCIA APÓS A MORTE 1 Dr. Samuele Bacchiocchi A crença na imortalidade da alma deriva de um entendimento dualístico da composição da natureza humana. Historicamente, a vasta maioria dos cristãos tem crido e ainda crê que a natureza humana é dualística, consistindo de um corpo material e mortal, ou uma alma imaterial, imortal. Por ocasião da morte, a alma se desligaria do corpo e sobreviveria num estado desincorporado, seja no gozo do paraíso ou no tormento do inferno. Isso significa que a primeira etapa em analisar de uma perspectiva bíblica a crença popular na vida desincorporada após a morte é estudar o que a Bíblia nos ensina com respeito à composição da natureza humana. Este será o enfoque e nossa atenção neste estudo. Até recentemente apenas um punhado de denominações evangélicas, nem sempre consideradas cristãs, ensinava e pregava que a natureza humana é holística, consistindo de um ser indivisível, sendo o corpo, alma, e espírito somente características da mesma pessoa[...] Por ocasião da morte, o corpo e alma não se separam, mas simplesmente cessam de existir e descansam de modo inconsciente na sepultura até a ressurreição. Nesse tempo, a pessoa mortal integral será ressuscitada, seja para a vida eterna ou para a morte eterna. Católicos e protestantes têm historicamente rejeitado a visão holística da natureza do homem e rotulado como “sectária” as poucas i grejas que mantêm tal ponto de vista. Mas comprazo-me em relatar que uma mudança radical vem ocorrendo durante os últimos 50 anos no pensamento da comunidade de eruditos. Destacados eruditos católicos e protestantes têm reexaminado o ponto de vista bíblico da natureza do homem e têm concluído que não existe na Bíblia qualquer dicotomia entre um corpo mortal e uma alma imortal que “se separa” quando da morte. Tanto o corpo quanto a alma são unidades indivisíveis que deixam de existir ao tempo da morte, até a ressurreição. Em resumo, o veredicto da erudição moderna é de que o ponto de vista holístico é bíblico, enquanto o entendimento dualístico popular é antibíblico, derivado que é do dualismo platônico, antes que das Escrituras. Esses fatos têm suscitado sérias preocupações de parte daqueles que veem seu entendimento dualístico da natureza humana severamente desafiado e minado. De fato, alguns líderes evangélicos têm reagido vigorosamente, adotando em alguns casos táticas ameaçadoras. Ele escreveu: “Nenhuma de minhas publicações provocou tanto entusiasmo ou tão violenta hostilidade” 2 . 1 Texto compilado e adaptado da internet. 2 Oscar Cullmann, Immortality of the Soul orResurrection of the Dead? The Witness of the New Testament (N. York, 1958), p. 5. Oscar Cullmann (1902-1999) Filho de pais luteranos foi criado nessa confissão. Em sua obra, mostra através de um estudo exegético, o contraste ou a diferença radical entre a esperança cristã da ressurreição dos mortos e a crença Oscar Cullmann, renomado teólogo suíço, por exemplo, viu-se ferrenhamente atacado por muitos que faziam fortes objeções a seu livro Immortality of the Soul or Resurrection of the Dead? [Imortalidade da alma ou ressurreição dos mortos?]

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DUALISMO E HOLISMO NO EXAME DA CONSCIÊNCIA APÓS A MORTE1

Dr. Samuele Bacchiocchi

A crença na imortalidade da alma deriva de um entendimento dualístico da composição da

natureza humana. Historicamente, a vasta maioria dos cristãos tem crido e ainda crê que a natureza

humana é dualística, consistindo de um corpo material e mortal, ou uma alma imaterial, imortal.

Por ocasião da morte, a alma se desligaria do corpo e sobreviveria num estado desincorporado,

seja no gozo do paraíso ou no tormento do inferno. Isso significa que a primeira etapa em analisar

de uma perspectiva bíblica a crença popular na vida desincorporada após a morte é estudar o que a

Bíblia nos ensina com respeito à composição da natureza humana. Este será o enfoque e nossa atenção

neste estudo.

Até recentemente apenas um punhado de denominações evangélicas, nem sempre consideradas

cristãs, ensinava e pregava que a natureza humana é holística, consistindo de um ser indivisível,

sendo o corpo, alma, e espírito somente características da mesma pessoa[...] Por ocasião da morte,

o corpo e alma não se separam, mas simplesmente cessam de existir e descansam de modo

inconsciente na sepultura até a ressurreição. Nesse tempo, a pessoa mortal integral será ressuscitada,

seja para a vida eterna ou para a morte eterna.

Católicos e protestantes têm historicamente rejeitado a visão holística da natureza do homem

e rotulado como “sectária” as poucas igrejas que mantêm tal ponto de vista. Mas comprazo-me em

relatar que uma mudança radical vem ocorrendo durante os últimos 50 anos no pensamento da

comunidade de eruditos.

Destacados eruditos católicos e protestantes têm reexaminado o ponto de vista bíblico da

natureza do homem e têm concluído que não existe na Bíblia qualquer dicotomia entre um corpo

mortal e uma alma imortal que “se separa” quando da morte. Tanto o corpo quanto a alma são

unidades indivisíveis que deixam de existir ao tempo da morte, até a ressurreição. Em resumo, o

veredicto da erudição moderna é de que o ponto de vista holístico é bíblico, enquanto o entendimento

dualístico popular é antibíblico, derivado que é do dualismo platônico, antes que das Escrituras.

Esses fatos têm suscitado sérias preocupações de parte daqueles que veem seu entendimento

dualístico da natureza humana severamente desafiado e minado. De fato, alguns líderes evangélicos

têm reagido vigorosamente, adotando em alguns casos táticas ameaçadoras.

Ele escreveu: “Nenhuma de minhas publicações provocou tanto entusiasmo ou tão violenta

hostilidade”2.

1 Texto compilado e adaptado da internet. 2 Oscar Cullmann, Immortality of the Soul orResurrection of the Dead? The Witness of the New Testament (N. York,

1958), p. 5. Oscar Cullmann (1902-1999) – Filho de pais luteranos foi criado nessa confissão. Em sua obra, mostra através

de um estudo exegético, o contraste ou a diferença radical entre a esperança cristã da ressurreição dos mortos e a crença

Oscar Cullmann, renomado teólogo suíço, por

exemplo, viu-se ferrenhamente atacado por muitos que

faziam fortes objeções a seu livro Immortality of the Soul

or Resurrection of the Dead? [Imortalidade da alma ou

ressurreição dos mortos?]

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De fato, a crítica tornou-se tão intensa e tantos revelaram-se ofendidos com suas declarações

que ele decidiu manter-se deliberadamente em silêncio por um tempo. Devo acrescentar que Cullmann

não se deixou impressionar pelos ataques contra seu livro porque entende serem baseados, não em

argumentos exegéticos, mas em considerações de ordem emocional, psicológica e sentimental.

O respeitado teólogo canadense Clark Pinnock menciona algumas das “táticas de pressão”

usadas para desacreditar aqueles eruditos evangélicos que abandonaram o ponto de vista dualístico

tradicional da natureza humana e sua doutrina relacionada de tormento eterno num inferno de fogo.

Uma das táticas tem sido associar tais teólogos com liberais ou denominações tidas por sectárias, como

a dos adventistas. Escreve Pinock:

“Parece que um novo critério para a verdade foi descoberto, segundo o qual, se os adventistas

ou os liberais mantêm algum ponto de vista, esse deve estar errado.

Aparentemente, a defesa de uma verdade pode ser decidida por sua associação e não precisa

ser testada por critérios públicos em debate aberto. Tal argumento, conquanto inútil em

discussão inteligente, pode surtir efeito com os ignorantes que são ludibriados por tal retórica”3.

A despeito das táticas de pressão, o ponto de vista holístico da natureza humana que nega a

imortalidade da alma e, em consequência, o tormento eterno dos perdidos no inferno, ganha espaço

entre os evangélicos. Seu endosso público por John R. W. Stott, pregador popular e teólogo britânico

altamente respeitado, está decerto encorajando tal tendência.

“Numa deliciosa peça de ironia”, escreve Pinnock, “isto vem criando uma medida de crédito

por associação, contrariando as táticas mesmas usadas contra ela. Tem-se tornado quase

impossível alegar que somente heréticos e quase-heréticos [como os adventistas do sétimo dia]

mantêm essa posição, embora esteja seguro de que alguns descartarão a ortodoxia de Stott

precisamente sobre esse terreno”.4

O próprio Stott expressa ansiedade quanto às consequências divisivas de seus novos pontos de

vista na comunidade evangélica onde é um renomado líder. Ele escreve:

“Sinto-me hesitante em ter escrito essas coisas, em parte porque tenho grande respeito pela

longa tradição que reivindica ser uma correta interpretação da Escritura, e não a ponho de parte

levianamente, e em parte porque a unidade da comunidade evangélica mundial sempre

significou muito para mim. Contudo, o assunto é por demais importante para ser suprimido, e

estou-lhe grato (a David Edwards) por desafiar-me a declarar meu atual modo de pensar. Não

dogmatizo a respeito da posição a que cheguei. Eu a mantenho tentativamente. Mas eu apelo a

diálogo franco entre os evangélicos com base nas Escrituras”.5

O apelo de Stott por um “diálogo franco entre evangélicos com base nas Escrituras” pode ser

muito difícil, se não impossível, de materializar-se. A razão é simples: Os evangélicos condicionam-

se a seus ensinos denominacionais tradicionais, assim como os católicos-romanos e ortodoxos

orientais. Em teoria, eles apelam à Sola Scriptura, porém na prática os evangélicos muitas vezes

interpretam as Escrituras de acordo com seus ensinos denominacionais tradicionais. Se novas pesquisas

bíblicas desafiam suas doutrinas tradicionais, na maioria dos casos as igrejas evangélicas preferirão

apegar-se à tradição antes que à Sola Scriptura. A diferença real entre evangélicos e católicos romanos

é que os católicos dão grande destaque à autoridade normativa de sua tradição eclesiástica, enquanto

as igrejas evangélicas não o fazem.

grega na imortalidade da alma. O texto apresenta, portanto, argumentos convincentes em favor da doutrina cristã da

ressurreição dos mortos e sua superioridade em relação às ideias platônicas do dualismo e da imortalidade. 3 C. H. Pinnock, “The Conditional View”, in Four Views on Hell, W. Crockett, ed., (Grand Rapids, 1993), p. 161. 4 Ibid., p. 162. 5 10. John W. Stott e David Edwards, Essentials, A Liberal-Evangelical Dialogue (Londres, 1988), pp. 319-320.

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Ser um “evangélico” significa sustentar certas doutrinas tradicionais fundamentais sem

questionamento. Quem quer que questione a validade bíblica de uma doutrina tradicional pode tornar-

se suspeito de ser um “herege”. Numa importante conferência em 1989 para discutir o que significa

ser um evangélico, sérias questões foram suscitadas quanto a se pessoas como John Stott ou Philip

Hughes deveriam ser considerados tais, uma vez que adotaram o ponto de vista da imortalidade

condicional e da aniquilação dos que não se salvarão. O voto para excluir tais teólogos apenas não se

confirmou por pouco.

Por que os evangélicos são tão teimosos em recusar reconsiderar os ensinos bíblicos sobre a

natureza e destino humanos? Afinal de contas, eles tomaram a liberdade de mudar outros ensinos

tradicionais.

Talvez uma razão de sua insistência em conservar o ponto de vista dualístico é que isso causa

impacto sobre muitas outras doutrinas. Fizemos notar anteriormente que o que os cristãos creem sobre

a composição da natureza humana determina em grande medida o que creem sobre o destino humano.

Abandonar o dualismo também provoca o abandono de todo um conjunto de doutrinas que resultam

disso, especialmente a acariciada crença na consciência da vida após a morte. Isso pode se chamar

“efeito dominó”. Se uma doutrina cai, várias cairão junto.

Para os leitores apreciarem a importância de uma correta compreensão do ponto de vista bíblico

da natureza do homem, neste primeiro artigo desejamos comparar brevemente e contrastar as

implicações práticas e doutrinárias do entendimento dualístico e holístico da natureza humana.

Implicações Práticas do Dualismo versus Holismo

O Ponto de Vista Dualístico da Vida. Os cristãos que mantêm o entendimento dualístico da

natureza humana conceitualizam a vida presente dualisticamente. Encaram a vida espiritual da alma

como mais importante do que a vida física do corpo. Historicamente, esse ponto de vista dualístico tem

retratado os santos como pessoas que se dedicam primariamente à “vita contemplativa” (vida

contemplativa), desligando-se da “vita activa” (vida secular). Uma vez que o cultivo da alma tem sido

visto como mais importante do que cuidar do corpo, o bem-estar físico do corpo muitas vezes tem sido

intencionalmente ignorado ou até suprimido.

Eu testemunhei essa mentalidade dualística durante os cinco anos que passei na Universidade

Pontifícia Gregoriana de Roma, Itália. Muitas vezes vi alguns de meus colegas de classe, a maioria

deles monges e sacerdotes católicos de todo o mundo, primeiro indo para a capela para cultivarem sua

alma mediante oração e meditação, e daí indo até o bar ao final do corredor para intoxicar seus corpos

tomando bebidas alcoólicas e fumando. Eles não viam conflito entre as duas atividades, porque,

segundo sua mentalidade dualística, o que faziam com seus corpos não afetava a salvação de suas

almas.

A mesma mentalidade dualística prevalece no mundo protestante, onde a redenção associa-se

grandemente à salvação da alma, antes que ao cuidado do corpo. Muitos cristãos divorciam o corpo

humano de sua alma tornando a salvação uma experiência interna da alma, antes que uma

transformação total da pessoa inteira.

Ouve-se constantemente o comentário em várias discussões de grupo de que participo

compartilhando o que a Bíblia ensina sobre questões de estilo de vida, como a observância do sábado,

vestuário e adornos, uso de bebidas alcoólicas, casamento, relações sexuais pré-matrimoniais: “Está

dando muita importância a coisas de menor valor! Isso não é o evangelho. A salvação trata com

aceitar e professar a Cristo como nosso Salvador pessoal, e não com questões de estilo de vida”. Tais

comentários refletem uma mentalidade dualística: Na medida em que as pessoas aceitam a Cristo com

a mente, o que fazemos com nossos corpos de fato não importa.

A Visão Holística da Vida. Essa mentalidade dualística é abertamente rebatida na Bíblia, que

nos ensina a glorificar a Deus não só com a mente, mas também com nosso corpo, por ser ele “o templo

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do Espírito Santo” (1 Cor. 6:19) para ser apresentado como um “sacrifício vivo” a Deus (Rom. 12:1).

Temos há muito reconhecido e realçado que o modo como tratamos nosso corpo reflete a condição

espiritual de nossa alma, pois nossos corpos e almas são um. Se poluímos o corpo com fumo, drogas,

alimentos prejudiciais ou estilo de vida intemperantes provocamos não só a poluição de nossos corpos,

como também a poluição espiritual de nossas almas.

O desafio que os cristãos adeptos do ponto de vista holístico da Bíblia enfrentam hoje é integrar

tal visão mais plenamente a seus programas de ensino, pregação, instrução e assistência médica. A

perspectiva bíblica da natureza humana nos desafia a preocupar-nos com a pessoa inteira. Isso significa

que em nossa pregação e ensino, precisamos não só atender às necessidades espirituais da alma, mas

também as necessidades físicas do corpo. Precisamos ensinar as pessoas não só a cultivar sua

vida espiritual, como também cuidar de seus corpos físicos.

O evangelho não nos dá base para uma doutrina de redenção que salva a alma à parte do corpo

ao qual pertence. A comissão evangélica não é salvar almas, mas pessoas inteiras. O que Deus juntou

por ocasião da criação e redenção na cruz, nenhum cristão tem o direito de separar.

Na educação bíblica cristã o holismo significa que devemos ter por alvo o desenvolvimento dos

aspectos mentais, físicos e espirituais da vida. Um bom programa de educação física deve ser

considerado tão importante quanto o seu programa acadêmico e religioso.

Na medicina, o holismo bíblico significa que os médicos devem tratar a pessoa integral,

incluindo a condição nutricional, espiritual, emocional e espiritual do paciente. O holismo bíblico nos

desafia também a servir o mundo, e não evitá-lo.

Implicações Doutrinárias do Dualismo. As implicações doutrinárias do ponto de vista

dualístico da natureza humana são até mesmo alarmantes. Muitas das heresias que perturbam o mundo

cristão hoje derivam do dualismo. Por exemplo, o dualismo deu lugar ao desenvolvimento do engano

popular da vida consciente após a morte que se está espalhando hoje como fogo na palha, um engano

promovido de forma bem-sucedida pela sutil loucura do movimento da Nova Era e pela pesquisa de

“Experiências de Quase Morte” (EQM). Esta última tem, por seu turno, fomentado tais crenças como

a intercessão dos santos, a oração pelos mortos, indulgências, purgatório, religação da alma quando da

ressurreição, o tormento eterno do inferno, uma visão etérea do Paraíso onde almas glorificadas

passarão a eternidade em eterna contemplação e meditação.

É-nos impossível calcular o impacto negativo dessas crenças enganosas sobre a fé e prática

cristãs. De um lado, essas crenças têm enfraquecido e obscurecido a expectativa da segunda vinda de

Cristo. Se por ocasião da morte a alma do crente vai imediatamente para a bem-aventurança do Paraíso

para estar com o Senhor, dificilmente haverá qualquer senso de expectativa para Cristo vir até aqui

ressuscitar os santos adormecidos. A preocupação primária desses cristãos é ir para o céu para encontrar

a Cristo imediatamente após a morte, conquanto isso seja com almas desincorporadas, não preparar-se

a si próprios e outros para encontrarem a Cristo quando Ele vier a este planeta quando de Seu Retorno.

Na Bíblia, a esperança do Advento significa uma reunião real sobre a Terra entre crentes em

seus corpos e Cristo no glorioso dia do Seu retorno. Dessa reunião de fato derivará uma transformação

radical que afetará a humanidade e a natureza. Essa grande expectativa é obscurecida pela crença na

imortalidade individual e no gozo celestial imediatamente após a morte.

O dualismo tem também contribuído para incompreensões sobre o mundo por vir. A maioria

dos cristãos entende que o paraíso é um tipo de retiro espiritual em algum lugar do espaço, onde almas

glorificadas passarão a eternidade em infindável contemplação e meditação. Como diz a letra de certo

hino, “In mansion of glory and endless delight I will ever adore Thee in heaven so bright” [Na mansão

de glória e infindável deleite eu para sempre Te adorarei no tão luminoso céu].

Essa visão etérea do mundo por vir tem sido mais inspirado pelo dualismo platônico do que

pelo realismo bíblico. A visão bíblica do mundo futuro não é a de um retiro espiritual habitado por

almas glorificadas, mas este planeta povoado por santos ressuscitados (Isaiás 66:22; Apocalipse 21:1).

Nas Escrituras, Cristo vem a segunda vez, não para ajudar os santos a escaparem deste planeta, mas

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para transformar a Terra devolvendo-lhe a perfeição original. Sim, o mundo do porvir é um mundo

real, habitado, não por almas desincorporadas, mas por corpos ressurretos, ou seja, pessoas reais como

você e eu.

Implicações Doutrinárias do Holismo. O ponto de vista holístico da Bíblia quanto à natureza

humana pressupõe uma visão cósmica da redenção que abrange o corpo e a alma, o mundo material e

o espiritual. A separação entre corpo e alma ou espírito é frequentemente comparada à divisão entre o

reino da Criação e o reino da redenção. O último tem sido associado em grande medida, tanto no

catolicismo quanto no protestantismo, à salvação das almas dos indivíduos às expensas das dimensões

físicas e cósmicas da redenção. Os santos são amiúde retratados como peregrinos que vivem sobre a

terra mas são desligados do mundo, cujas almas na morte deixam de imediato seus corpos materiais

para ascender a um lugar abstrato chamado “céu”. Esse ponto de vista reflete o dualismo clássico, mas

fracassa, como veremos nesta série de estudos, em representar o ponto de vista holístico bíblico da

criação humana e sub-humana.

Notamos que o dualismo tradicional produziu uma atitude de desprezo para com o corpo e o

mundo natural. Esse distanciamento do mundo reflete-se em linguagem de hinos tais como: “Este

Mundo Não é Meu Lar”, “Sou um estranho aqui, o céu é o meu lar; a terra é um árido deserto, o

céu é o meu lar”.

Tal atitude de desprezo para com nosso planeta está ausente dos Salmos, o hinário hebreu, onde

o tema central é o louvor de Deus por Suas obras magníficas. No Salmo 139:14, Davi declara: “Eu te

louvarei pois fui formado de modo tremendo e maravilhoso: grandiosas são as Tuas obras; isso minha

alma conhece muito bem” (NIV). Aqui o salmista louva a Deus por seu maravilhoso corpo, um fato

bem conhecido por sua alma (mente). Este é um bom exemplo do pensamento holístico, onde o corpo

e alma são parte da maravilhosa criação de Deus.

No Salmo 92, o salmista insta todos a louvarem a Deus com instrumentos musicais, porque, diz ele,

“Tu, ó Senhor, alegraste-me por Tuas obras; canto de alegria pelas obras de Tuas mãos. Quão grandes

são as Tuas obras, ó Senhor!” (Sal. 92:4-5). O regozijo do salmista com seu maravilhoso corpo e

maravilhosa criação baseiam-se em sua concepção holística do mundo criado como parte integral de

todo o drama da criação e redenção.

Num estudo futuro veremos que a Bíblia não retrata o mundo por vir como um paraíso etéreo

onde almas glorificadas passarão a eternidade trajando vestes brancas, cantando, tocando harpas,

orando, perseguindo nuvens e bebendo leite de ambrósia. Antes, a Bíblia fala dos santos ressurretos

habitando este planeta purificado, transformado e tornado perfeito por ocasião e mediante a vinda do

Senhor (2 Ped. 3:11-13; Rom. 8:19-25; Apoc. 21:1). Os “novos céus e uma nova terra” (Isa. 65:17)

não são um retiro espiritual remoto e inconsequente em algum recanto do espaço; antes, são o céu e a

terra presentes renovados à sua perfeição original.

Os crentes entram na nova terra, não como almas desincorporadas, mas como pessoas

ressuscitadas em seus corpos (Apoc. 20:4; João 5:28-29; 1 Tess 4:14-17). Conquanto nada impuro

entre na Nova Jerusalém, é-nos dito que “os reis da terra trarão para ela a sua glória . . . a ela trarão

a glória e honra das nações” (Apoc. 21:24, 26). Tais versos sugerem que tudo quanto tem real valor

no velho céu e terra, inclusive as realizações da inventividade artística e conquistas intelectuais,

encontrarão seu lugar na ordem da eternidade. A própria imagem da “cidade” transmite a ideia de

atividade, vitalidade, criatividade e relacionamentos reais.

É pena que essa visão terrena fundamentalmente concreta do novo mundo de Deus retratado

nas Escrituras tenha sido em grande parte perdida de vista e substituída na religiosidade popular por

um conceito etéreo, espiritualizado do céu. O último tem sido influenciado pelo dualismo platônico,

antes que pelo realismo bíblico.

Conclusão. Historicamente, duas visões principais, radicalmente diferentes da natureza

humana, têm sido mantidas. Uma é chamada de clássica e a é conhecida como holismo bíblico. O ponto

de vista dualístico mantém que a natureza humana consiste de um corpo material, mortal, e uma alma

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espiritual, imortal. A última sobrevive à morte do corpo e parte para o céu, ou purgatório ou inferno.

Por ocasião da ressurreição, a alma é reunida ao corpo. Essa concepção dualística tem exercido um

enorme impacto sobre a vida e pensamento cristãos, afetando a visão que as pessoas têm da vida

humana, deste mundo presente, da redenção e do mundo do além.

Em tempos recentes, a visão dualística da natureza humana tem sofrido ataques de eruditos que

reexaminaram o ponto de vista bíblico do corpo, alma e espírito. Eles concluíram que a visão bíblica

da natureza humana não é de modo algum dualística, mas claramente holística. Muitas vozes de

diferentes direções estão afirmando hoje que o dualismo está perdendo terreno e o holismo ganhando.

Este breve relatório sobre o debate em andamento da posição bíblica da natureza humana demonstrou

a importância fundamental deste assunto para toda a estrutura das crenças e práticas cristãs. Faz-se,

pois, imperativo que diligentemente examinemos o que a Bíblia realmente ensina sobre esse tema vital.