DUAS MEMÓRIAS DO TERRAMOTO DE 1 DE NOVEMBRO DE 1755

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    DUAS MEMRIAS DO TERRAMOTO

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    No dia 1 de Novembro de 1755, sbado, Dia de Todos os Santos, um sismo de grandeintensidade fez-se sentir em grande parte da Europa e Norte de frica e, muitoespecialmente, em Portugal, onde grande nmero de povoaes sofreram, mais oumenos intensamente, os seus efeitos. Lisboa, capital do reino, cidade rica e populosa,seria a mais afectada pelo terramoto a que se sucedeu um violento tsunami que viria aarrastar consigo grande nmero de pessoas que tinham procurado refgio no espaoaberto beira do Tejo. Posteriormente um incndio que lavrou, sem controle, durantedias, alimentando-se das runas e dos edifcios que tinham resistido ao violento sismo,viria a completar a destruio da cidade antiga relativamente poupada pelos fenmenosssmicos desde a ocorrncia de 26 de Janeiro de 1531.

    Cr-se hoje que o megassismo de magnitude estimada entre os graus oito e nove daescala de Richter ter tido o seu epicentro no mar, a sudoeste de Lisboa, muitoprovavelmente no Banco de Gorringe.

    A catstrofe de dimenses sem precedente numa capital da Europa das Luzes teverepercusses profundas nos meios cultos da poca, alimentando reflexes de ordemfilosfica e cientfica por parte de academias e personalidades como Voltaire, Rosseau,

    Goethe e Kant.

    De modo mais pragmtico e urgente, o ento conde de Oeiras e futuro marqus dePombal faria enviar a todas as parquias do reino um inqurito com treze quesitos deresposta obrigatria, sob pena de sanes, justamente considerado como instrumentopercursor dos estudos sismolgicos.

    Fora da esfera oficial, muitas foram as memrias ou simples notas deixadas peloscontemporneos da catstrofe, muitas delas j referenciados1. Outras, porm, continuame continuaro a revelar-se medida que cresa o nosso conhecimento da documentaodisponvel nos nossos arquivos, pblicos e privados.

    Tal o caso das memrias a seguir apresentadas, redigidas espontaneamente, a partir daexperincia directa do acontecimento, em concelhos limtrofes do norte alentejano, Avis

    e Fronteira, por dois indivduos de formao diversa, um sacerdote e um tabelio queconservaram, nos prprios livros de registos oficiais, as suas observaes do sucedido.

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    Avis: memria do padre Gaspar Xavier Leito

    Em o primeiro dia do ms de Novembro de mil e setecentos e cinquenta e cinco cujo diaera sbado em que se celebra a festa de Todos os Santos, das nove para as dez horas dodia houve nesta vila um terramoto to violento que durou quase um quarto de hora e da a pouco repetiu segundo, com igual furor fez nesta matriz o estrago de fender a parededa parte do poente na sacristia e rachar-lhe a abbada desuniu a torre da parte do Nortedo corpo da igreja e a esta lhe levou a maior parte dos telhados da mesma parte do Norte; corria este castigo do Cu com vento rijo entre Norte e Nordeste viram-se brandir astorres como se fossem bandeiras as linhas de ferro que tem a igreja eu as vi torcer comose fossem varas de marmeleiro a cimalha da porta principal que se achava fendida deum raio h anos se v quase caindo Na igreja do convento caiu do nicho em que estavanossa me Santa Escolstica no cho e s lhe perigou a ponta de um dedo da mo; aabbada de sua igreja abriu ; o dormitrio que fica ao Nascente chamado o novo o seupavimento se desuniu e afastou das paredes prometendo total runa muitas celas apadeceram ; os telhados de quase todo o convento voaram e as suas madeiras estalaramfazendo-se inteis vrias pirmides caram e uma sobre o telhado das casas do prior-morque era D. Frei Francisco Caetano Mascarenhas que lhe furou com espanto o telhado.

    Da a quarenta dias houve outro terramoto no foi to extenso mas foi violento o seuimpulso na matriz fez o dano de partir com fenda a torre da parte do norte fazendodestruio na abbada da casa da pia baptismal este castigo do dia quarenta foi pelascinco horas da manh e no dia cinquenta ouve outro sem que a terra aqui padecesseruna grave ; em todos os dias desde o primeiro do ms de Novembro at hoje que so28 de Dezembro tem havido tremores na terra mais ou menos perceptveis. A Corte deLisboa padeceu a sua ltima runa, a mesma infelicidade teve o Reino do Algarve,

    Setbal e Cascais e outras muitas vilas do Ribatejo; Em Vila Viosa caiu a abbada daigreja e matou sessenta e seis pessoas; desgraa que se viu suceder na Corte em que donmero dos mortos se no pode averiguar assentam passa de cem mil pessoas alifalecidas. o Rei e a Corte tm vivido at hoje abarracados no campo. Reina ao presenteo senhor D. Jos primeiro do nome. El-rei de Inglaterra lhe mandou um presente comgenerosidade real porque ouo chegara a dois milhes milho e meio em dobres de seismil e quatrocentos e o meio em dobras de 82.000 acompanhava este dinheiro tantas mil

    barricas de vaca salgada outras muitas mil de manteigas, arroz e seis mil moios de trigocinco mil enxadas cinco mil alvies tantos mil pares de sapatos e meias e chapus ouo

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    que s o comestvel aceitara Sua Majestade a verdade constar de tudo com juzo certoda histria eclesistica ou crnica do sobre dito nosso monarca com todas as maisparticularidades. que sucederam nesta tragdia lamentvel de Portugal. Sua MajestadeCatlica o rei D. Fernando cunhado de nosso soberano acima dito lhe mandou um bomsubsdio de dinheiro que ouo tambm no aceitara. Os mais reis at hoje no consta lhemandassem coisa alguma verdade que h pouco tempo sucedece esta destruio e nocabe no tempo o poderem todos os aliados mandar pelas distncias em que sabemosexistem. Por curiosidade deixo aqui esta memria que talvez seja a nica que se escrevaem Avis onde me satisfao se saiba o que padecemos os que hoje vivem e eu em nomede todos peo pelo amor de Deus nos encomendem as nossas almas quele Senhor queas criou de nada e remiu com seu preciosssimo sangue. Avis vinte e oito de Dezembrode 1755. Todo o acima dito afirmo ter sucedido assim como o escrevo muitas coisaspelas ver e outras pelas ler em cartas de pessoas fidedignas.2

    Fundo: Parquia de Nossa Senhora da Orada de AvisCota:

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    Fronteira: memria do tabelio Joo Feliciano de Oliveira

    Em o ano do nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de mil e setecentos e cinquenta ecinco anos em o primeiro dia do ms de Novembro no dia Sbado Dia de Todos osSantos foi Deus nosso senhor servido a que das oito para as nove da manh houvesseum tremor de terra que foi to sucessivo que tremiam paredes e corpo de sorte que veioa cair igreja do Esprito Santo a metade da abbada e outras mais que se apartaramuma da outra e a gente que estava ouvindo missa sahio toda fora da igreja e os prpriossacerdotes que estavam dizendo a missa sairam fora da igreja sem acabarem a missa osbrutos que estavam presos manjedoura cairam por se no poderem ter em p e duroueste tremor mais de um quarto de hora e parecia a tormenta enquanto dura comlabaredas de fogo e que Deus nosso senhor nos livrou e todo o fiel cristo rezar umaave-maria Virgem nossa senhora para que nos alcance de seu santssimo filho Jesus oprmio da bem-aventurana e nos tire de tormentos eternos mem. Fronteira era utsupra.

    O tabelio que de sua curiosidade faz notrio aos viventesJoo Feliciano de Oliveira

    Depois deste primeiro tremor houve outro no mesmo dia mas foi mais pequeno massempre se arruinaram muitas abbadas de igrejas e casas dos moradores deste povoporque j do primeiro tremor vinham principiadas ao mais do dia esteve ameaando otremor de terra mas pouco.3

    1 BARATA, M. R. Themudo, e outros. Sismicidade em Por tugal: estudos da documentao dos sculos XVII e XVIII: vol. II : apndice documental. Lisboa : Gabinete de Proteco e Segurana Nuclear [da] Secretaria de Estado doAmbiente e Recursos Naturais [do] Ministrio do Planeamento e da Administrao do Territrio, [1989]. ISBN972-9403-05-8.

    2 Arquivo Distrital de Portalegre. Parquia de Nossa Senhora da Orada, Avis.PT/ADPTG/PRQ/PAVS02/002/0002M, f. 405v.

    3 Arquivo Distrital de Portalegre. Cartrio Notarial de Fronteira. PT/ADPTG/NOT/CNFTR02/001/0007, f. 143. Emcorreio posterior, o corregedor da comarca lavrou no mesmo flio a seguinte nota: Foi um asno em pr no livro dosescriptos esta memria.