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"Fazendo acontecer: materialidades e movimentos em duas religiões afro-
brasileiras".1
Cauê Fraga Machado (PPGAS/MN/UFRJ - RJ)
Mariana Vitor Renou (PPGAS/MN/UFRJ - RJ)
RESUMO
Esta proposta é um esforço comparativo a partir de duas experiências
etnográficas em religiões de matrizes africanas brasileiras, em que a materialidade e a
centralidade dos objetos foram pontos comuns. Em candomblés angola de Nova
Iguaçu/RJ e no batuque gaúcho de Nação Oyó é preciso fazer a “religião acontecer”, e
para isso, uma materialidade específica. No primeiro caso, através das oferendas, foi
possível refletir sobre sentidos sagrados e como a religião acontecia, além do modo
como a religião se relacionava, atuava, constituía, fazia acontecer e concebia outras
esferas, como a da política, a partir de movimentos pelo direito de realizar oferendas em
espaços públicos. No batuque, foi possível observar e refletir o fazer acontecer através
dos “serviços” envolvendo a feitura de comidas para que os orixás trabalhem, do
assentamento das divindades nos “ocutás” e na cabeça de seus filhos, das rezas e
danças, do “se ocupar” e de diversos objetos sagrados no esforço de presentificar as
potências divinas, num aqui e agora vivido. Apesar das diferenças dos contextos
etnográficos, observamos uma continuidade no fluxo ininterrupto de movimentos que
fazem “a religião acontecer”. A proposta é avançar no sentido de compreender o
significado dos objetos e a materialidade que envolve essas religiões de maneira mais
geral e ampla, e tomar as práticas e concepções nativas para desestabilizar os modos
pelos quais as noções de objeto e matéria vêm sendo pensados pela antropologia.
Palavras-Chaves:
INTRODUÇÃO
Assentar, fixar, representar, fazer fetiches, oferendas e outros. Palavras comuns
para descrever práticas das religiões afro-brasileiras, que envolvem um tipo de
materialidade bastante específica. Levadas ao pé da letra, através de concepções
demasiado ocidentais, podemos incorrer num engano não menos comum nas descrições
1 Trabalho apresentado na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e05 de julho de 2012, em São Paulo, SP, Brasil.
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dessas mesmas práticas, a saber, a materialidade como algo dado, estancado, imóvel.
Ancorados em dados etnográficos produzidos por nós e em propostas teóricas de Bruno
Latour (2004; 2006; 2008), percorremos um caminho alternativo, no qual os conceitos
dos sacerdotes da religião são pensados “ao lado” e em diálogo com as teses sobre re-
presentação, actancia e movimentação. Assim, buscamos refletir e compreender de que
maneira alguns materiais, objetos ou coisas existem no candomblé no processo em que
se faz a "religião acontecer", de modo que possamos pensar de outras formas e por
outras direções a noção de materialidade, objetos e matéria.
São dois contextos etnográficos, duas religiões afro-brasileiras, o candomblé
angola praticado em Nova Iguaçu/RJ e o batuque gaúcho de Nação Oyó. Considerando
as diferenças e guardadas as especificidades no que concerne as crenças, cosmologias,
divindades, línguas, cantos, ritos e etc, que não trataremos nesse espaço, as duas
religiões se encontram em práticas ou, sobretudo, em movimentos e princípios básicos
que os norteiam, no sentido de fazer as religiões acontecerem, e que envolvem
materiais. Mariana Renou descreverá algumas situações que vivenciou com sacerdotes
do candomblé angola de Nova Iguaçu quando fazia a pesquisa para a dissetação de
mestrado em 2010, e Cauê Machado tratará do que têm vivido no batuque de Oyó ao
realizar sua pesquisa para a dissertação. Juntos apresentaremos como a religião e outras
coisas acontecem em determinados momentos. O verbo acontecer é privilegiado em
nossa descrição. Seja no cuidado cotidiano da uma casa de religião, seja em rituais
extraordinários – como o Mutirão de Limpeza, uma Festa, a construção e reconstrução
de uma Casa de Santo – observamos uma movimentação ininterrupta, que não cessa ao
atingir o pretendido, pois a ênfase no verbo faz do pronto um novo início. Assim, o
macumbódromo nunca está limpo, um assentamento sempre tem fome, um Orixá ou
Nkise sempre têm que ser feitos ou assentados. Dito isso, apresentamos o material
etnográfico dos dois campos, para ao final confrontá-los e levar à cabo nosso intentoinicial: a observação de um movimento contínuo que permite a aproximação das duas
religiões e o extrapolamento de algumas considerações para além dos campos
específicos.
O Batuque Oyó
Nesta sessão dedicada ao batuque gaúcho de nação oyó discutiremos, a partir de
um caso específico, as noções de matéria/objeto e de movimento encontradas nareconstrução de uma casa de religião no interior do Rio Grande do Sul. Deparamo-nos
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com a importância da ação, do verbo fazer e refazer e do re-construir – pois nada se
constrói a partir do nada2. Ao longo da comunicação alguns conceitos mais específicos
ao batuque gaúcho serão explicitados.
Aos 27 dias do mês de fevereiro de 2012 a casa de religião que Pai Odacir do
Ogum mantém em São Luiz Gonzaga/RS (doravante SL) incendiou devido um curto
circuito na rede elétrica, o que destruiu por completo o quarto de santo – onde os fios de
luz incendiaram – e a cozinha, uma das partes mais importantes de uma casa de religião.
É na cozinha que se fazem as comidas para os orixás, que “trabalham” à base de
alimentos3 preparados e posicionados de diversas formas nos feitiços (também
chamados de oferendas, serviços ou trabalhos). A sala de estar, o banheiro, o quarto de
dormir e a sala de búzios foram atingidos por fumaça forte, o que destruiu, também,
parte dos objetos desses outros cômodos. Inatingida apenas Oxum, na imagem de Nossa
Senhora Aparecida. A sua volta os restos daquilo que fora um local sagrado.
Tal fato fez com que essa parte da comunicação fosse repensada de última hora,
pois a partir do trabalho de campo foi possível acompanhar o encadeamento de ações
que propiciaram a feitura de uma nova casa, repleta de “novos” objetos rituais, de novas
“obrigações”. Por conseguinte, partindo da descrição do observado remontamos os
diferentes movimentos e materialidades do oyó.
Os jornais do município de SL noticiaram o milagre da santa que guardou a casa.
A foto de Nossa Senhora Aparecida sobre os escombros, chamuscada, era prova cabal
de que a casa estava sob sua proteção. Contudo, comentários de leitores oscilavam entre
o sentimento de pena e as observações mais raivosas. “Casa de feiticeiro tem que
queimar”. “Tanto fez, que teve o que mereceu”. Na contramão das agressões publicadas
e de comentários que “se ouviu”, um número bastante significativo de clientes e amigos
fez um mutirão para alugar uma nova casa, salvar o que era possível – como roupas,
móveis e demais utensílios domésticos – comprar o que faltava e levantar o ânimo dePai Odacir. O babalorixá pensou em desistir de sua casa em SL, pois seus assentamentos
e o de seus filhos ficam em sua casa no município de Gravataí, também no Rio Grande
do Sul. Além disso, ele possui outra casa em Laguna, no estado de Santa Catarina. Foi a
força da gente amiga que não deixou que ele desistisse de tudo que construíra em SL.
2 Para uma discussão mais aprofundada sobre o dado e o feito em religiões de matriz africana verGoldman, 2009 e 2012.
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Devemos estender a noção de alimento a outros objetos, como velas e toda sorte de presentes, pois o orixá, basicamente, come para trabalhar. O que não exclui que se lhe peçam coisas apenas com palavras proferidas, para pagamento posterior, quando da graça alcançada.
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Na cidade pertencente ao chamado Sete Povos das Missões o sacerdote cuidou
de imagens centenárias – que continham o axé de antigos pais e mães de santo e de seus
orixás – , assentou um Bará de trabalho (orixá não pessoal, mas da casa) e muitas
amizades. Filhas de Santo fez duas. Fez quartinhas para segurança de crianças também.
Perder no fogo, imagens, quartinhas e outros objetos religiosos tão antigos foi o que
mais lhe doeu. Preferia que a casa tivesse queimado por completa, perder a cama, as
roupas e tudo. Essa dor ainda não superada serviu como motor para que trabalhasse
mais. Foram as clientes que compraram objetos novos – tanto rituais, quanto profanos –
e cuidaram de arrumar aquilo que podiam. Além disso, recebeu muitas doações de
objetos já antigos: imagens, móveis, eletrodomésticos. Trataram de aumentar o valor do
jogo de búzios, mesmo que Pai Odacir não o desejasse num primeiro momento. Assim,
ele voltou a atender em suas novas instalações, em uma casa maior, “uma mansão!”,
como diz. A algumas quadras da casa queimada, uma nova casa religiosa, como a
antiga, sem placas nem qualquer tipo de sinalização de que ali se joga búzios; o que é
corriqueiro em SL.
Bará, orixá de frente, dono dos caminhos, das portas, das chaves, dos cruzeiros
abertos, dos mercados, da fartura, do movimento e da sexualidade é o primeiro a receber
tudo no batuque. Bará, Elegbará ou Exú é o orixá para quem primeiramente se
homenageia, com presentes e rezas, tudo primeiro é dado a ele, caso contrário não se
chega aos outros orixás, nem a lugar algum. É orixá de frente, protege a casa e a rua.
Por isso, mesmo tendo Bará e Bará Lôde (orixá que mora em casa separada na rua) em
Gravataí, Pai Odacir assentou um Bará de trabalho para proteger a casa em SL.
Lôde tem sua casa vermelha na frente das casas de religião, Ogum Avagã pode
morar com ele, são os chamados orixás da rua. Os outros barás (Lanã, Tiriri, Bô, Dei,
Ajelú, etc.) são assentados dentro do quarto de santo onde estão os demais orixás,
entretanto, cada um deles fica em uma pequena casa de madeira, vermelha, no chão,nunca em prateleiras. Em SL o Bará morava dentro de casa, no quarto de santo, em sua
casinha vermelha. Com o incêndio a casinha fora queimada, seu alguidar e suas
ferramentas também, o ocutá fora chamuscado. O fato é que ainda não se sabe se aquela
pedra (o ocutá) está viva. Na casa nova ele (Bará) está sob uma árvore, encostado na
raiz, tomando sol e chuva, em contato com a natureza e seu movimento ( maré). As
cinzas da antiga casinha, o alguidar, a quartinha e as ferramentas foram despachadas no
mato. Já tinham perdido sua vida, seu axé. O ocutá não. É preciso ir aos mais velhos nareligião e pedir para que joguem e vejam o destino (odú) dessa pedra: o mato ou a uma
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nova casinha. No caso da segunda hipótese Bará necessitará de uma série de cuidados e
ofertas. Carinho, suas folhas sagradas, ori, dendê, sangue de carneiro e de galos
vermelhos. Tudo isso transmite axé. O sangue (axorô) é a forma mais concentrada de
força vital, mas as mãos de um pai de santo ao tocar uma pedra a envolvem de axé forte
também. Caso seja necessária outra pedra, essa também deverá passar por diversos
rituais.
Os ocutás são encontrados na natureza ou em casas de religião de conhecidos.
Como o Ossanha de Pai Odacir, “encontrado” na casa de sua irmã de santo. A pedra do
orixá das folhas se assemelha a um pé, símbolo do santo que não tem a perna esquerda.
Do mesmo modo, é através do jogo de búzios que se define se a pedra “escolhida” será
aceita ou não pelo orixá.
Semelhante a noção de “viva” ou “morta” utilizada ao se falar das pedras
(ocutás) está a noção de “crua” ou “preparada” aplicada as imagens de santos. Quando
se vai a uma flora (loja especializada em artigos religiosos) se encontram imagens cruas,
não adianta acender velas, dar comida ou rezar para elas. É preciso fazer um mieró –
banho de ervas – para a imagem; que deve permanecer imersa nesse preparado por
alguns dias. O correto é que tal ritual seja realizado dentro do quarto de santo. Quando
das matanças se derrama o sangue do animal correspondente ao orixá na imagem.
Na casa de SL além de cuidar do Bará, renovando sua frente (suas comidas) e
seu ecó (alguidar contendo água, dendê e moedas) todas as segundas-feiras, o ecó de
Iemanjá (vasilha de vidro transparente contendo moedas, mel, perfume e água) deve ser
renovado no mesmo dia. Nas segundas-feiras após o último jogo de búzios e o último
feitiço cuida-se do Bará e da Iemanjá. É justamente esse dia, considerado o primeiro da
semana, que é o dia do menino (Bará). Milho torrado, sete batatinhas, sete balas de mel,
pipoca, o opeté (bolo feito de batata cozida e moldado em diferentes formatos de acordo
com cada orixá), miam-miam (farofa feita com farinha de mandioca e azeite de dênde, oepô) e o ecó são despachados na frente de casa. O opeté é despachado no verde, nos
fundos da casa, o ecó no meio da rua, na frente de casa – é jogado primeiro para frente,
depois para um lado e para o outro, cuidando dos caminhos, das direções. O restante da
“frente” é misturado dentro de um alguidar grande e jogado aos poucos na rua em frente
a casa. Durante o rito se pede por uma boa semana, deve-se agradecer pelo tudo, pelo
muito, pelo pouco e pelo nada e pede-se que “seja de vida e saúde”. O ecó de Iemanjá
deve ser despachado nos fundos da casa, no verde (lugar com folhas). Algumas semanasse prepara cinza – a partir da brasa fria – para Iansã. As cinzas são sopradas na frente de
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casa, no ar, pedindo para que a dona dos eguns (mortos) proteja a casa de todo mal, que
a dona dos ventos sopre o mal olhado, a inveja, o feitiço, a morte para longe da casa.
Somente após esse ritual se pode descansar, tomar banho, jantar, beber e conversar
sobre o dia que passou, até o sono chegar.
Nos fundos da casa, no verde, é o local onde se plantam feitiços e diferentes
tipos de obrigações, como as penas e inhalas (miúdos e patas dos animais) utilizados
nas seguranças depois de ficarem no quarto de santo até o período necessário. Alguns
serviços devem “cheirar bem”. É o perfume dos orixás, o sangue putrefato. Aquilo que
chamamos de vermes ou larvas são as flores dos orixás, que quanto mais rápido
florescem, sinal de que melhor foi aceito qualquer tipo de serviço.
A casa é tomada por um ritmo grande de clientes, filhos e amigos que
preenchem o dia do pai de santo com jogos de búzios marcados e outros serviços,
marcados ou não. Pois podem aparecer na mesa de búzios como sendo de urgência, ou
alguém pode telefonar ou chegar contando algum problema que exija a imediata feitura
de algum feitiço.
Na nova casa, um novo quarto de santo, novas prateleiras, novas imagens, tudo
em processo de transformação do “cru” para o “preparado”, de “talvez-morto” para o
“vivo”. O novo se constrói com um já “sempre aí” (Anjos, 2006) presente nas
religiosidades afro-brasileiras, o axé está disperso em tudo esperando para ser passado.
Tal força, talvez seja mais bem descrita como um movimento, um monismo que
compreende em diferentes porções e modulações tudo no universo (Goldman, 2012).
Assim como no novo quarto de búzios, mesa e cadeira novas, porém com búzios
antigos. No quarto de santo, prateleiras novas, toalhas e castiçais antigos. Além disso, as
ervas e o axorô.
Na re-construção e re-organização da nova casa podemos observar a ação de
deuses e humanos sobre objetos e vice-versa. Afora isso, é preciso parar e dar atençãoao conceito nativo de “obrigação” que engloba tanto o que traduzimos por objetos
rituais, quanto por algumas ações e pelos próprios orixás em seus assentamentos.
“Obrigação” designa o fazer, o cuidar, mas também aquilo que fica guardado, atrás das
cortinas em sopeiras e manteigueiras. São as ferramentas, armas dos orixás; como a
chave e a foice do Bará. São, também, os próprios ocutás. E, ainda, momentos, como os
cortes (matanças), festas e outros eventos. Ouvimos falarem do tempo em que fizeram
sua obrigação, ou “na obrigação da minha mãe vai ori”.
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A partir dessa breve descrição sobre a casa de Pai Odacir do Ogum, podemos
depreender uma série de “obrigações”, o encadeamento de ações que fizeram com que
uma casa queimada desse lugar a um novo templo, com o antigo axé. Nesse processo o
que traduzimos por material e por imaterial podem ser unidos sob o conceito de
“obrigação”, que não confunde ingenuamente o que tendemos dividir, mas coloca numa
mesma movimentação diferentes séries de acontecimentos. Acontecimentos que
precisam ser feitos para acontecer.
Restaria, ainda, tecer breve comentário sobre os orixás “no mundo”, quando eles
acontecem nos corpos de seus filhos terrenos, que emprestam o corpo de tal forma que
transluzem a força do orixá, sublimando o que de pessoa exista. Semelhante a Berma
proustiana que se torna Fedra em cena, pessoas são territórios que se tornam puro orixá
em determinada temporalidade. Diferente do que ocorre em outras religiosidades afro-
brasileiras, no batuque gaúcho, em seus diferentes lados/nações, quem recebe um orixá
(“se ocupa”) não pode sabê-lo. Esse se constitui no maior segredo da religião: a
ignorância da própria possessão pelo orixá dono da cabeça.
Candomblé Angola
Em outra direção, nessa sessão encontraremos os objetos e a materialidade no
candomblé angola de Nova Iguaçu, município do Rio de Janeiro. No inicio desta
pesquisa um limite foi estabelecido, o de não tratar dos aspectos pertinentes ao culto
propriamente dito, aspectos litúrgico, cosmológico, ritual, mítico ou simbólico das
religiões de matriz africana, visto que as condições da pesquisa- tempo reduzido, pouca
inserção em casas de culto, conhecimentos prévios limitados- diziam que não seria
possível tratar dessas questões de maneira adequada. A ideia era, partindo da
observação de algumas comunidades de terreiro do Rio de Janeiro e as ações definidas
como “sociais” e “culturais” que colocavam em prática, bem como ações e relações quetravavam com e na política, refletir sobre essa dinâmica, sobre essas práticas, o caráter e
as relações, fluxos e associações que elas possibilitavam. Evidentemente, estudar algo
“fora” da religião propriamente dita, mas relacionada a ela imporia a necessidade de
repensar e refletir, a partir das concepções e ações dos grupos estudados, sobre a própria
definição, o caráter, os conteúdos do que compõem e é inscrito no âmbito da religião, do
social e da política, assim como repensar as divisões, separações e relações entre essas
esferas, entre o “religioso” e o “não religioso”, o “interno” e o “externo”, de que se partia inicialmente.
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Mas, o que de fato aconteceu foi que, os praticantes do candomblé angola
mostraram de maneira concreta o que significava problematizar as divisões. Nas
palavras deles tratava-se de um estudo sobre o candomblé angola em Nova Iguaçu,
portanto, determinadas dinâmicas, que mesmo que postas de fora, integravam,
participavam e se relacionavam com a religião propriamente dita, e que, de fato,
permitiam entrar em contato com conteúdos, princípios e sentidos das religiões de
matriz africana, no caso, do candomblé angola. Era possível tecer e movimentar-se por
fluxos que faziam vir de um lado para outro, observando as coisas em funcionamento,
onde separações pareciam arbitrárias e ineficazes, onde a religião perpassava e estava
em tudo. A experiência e ponto de vista dos praticantes demonstrou o quanto as coisas
estão articuladas, imbricadas e relacionadas, em movimentos conjuntos, gerando e
inscrevendo composições diversas. As diversas experiências vividas, em constante
relação, fazem parte de um mesmo movimento, mesmo que às vezes os atores
expressem certas separações. Portanto, era possível deparar-se com questões da religião,
à articulação e à imbricação das instâncias e experiências diversas da vida.
Assim, acompanhando diversos “trabalhos sociais”4, relações e atuações com e
na política do município de Arlene de Katendê, Pai Roberto e Mãe Margarida, era
possível encontrar as oferendas e toda uma materialidade do candomblé que acabava
exposta em espaços públicos. Os sacerdotes estavam envolvidos na atividade
denominada de Mutirão da Limpeza. Ideia que surgiu na preparação da Semana dos
Cultos Afro de Nova Iguaçu, que aconteceu no âmbito das atividades relativas ao mês
da Consciência Negra de 2009, para a qual os líderes da Coordenadoria de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial de Nova Iguaçu (COPPIR) reuniram sacerdotes e
adeptos com os quais já tinham relações, conhecimentos e parcerias. A Semana foi
planejada e executada pelos religiosos em novembro de 2009, compreendendo a
realização de atividades itinerantes em cinco casas religiosas de matriz africana, dentreas quais as de Mãe Margarida e Roberto. O tema estabelecido para as atividades foi o da
relação dos Cultos Afro com o Meio Ambiente. Ao final de debates e atividades em
torno da temática, os sacerdotes e adeptos sugeriram um ‘Mutirão de Limpeza’ para
recolher o ‘lixo religioso’ em alguma área municipal utilizada por adeptos para a
realização de rituais religiosos. Conceberam e realizaram a atividade em novembro de
4
Nesta sessão termos e falas nativas serão colocados em aspas simples, para se diferenciar dostermos em aspas duplas referentes a termos problematizados e/ou usados como conceitos e referente aautores.
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2009, no Parque Natural Municipal de Nova Iguaçu. A pesquisa começou em fevereiro
de 2010, justamente em uma reunião na COPPIR, com representantes da Secretaria
Municipal de Meio Ambiente e Agricultura de Nova Iguaçu (SEMAM), ONGs e
adeptos de religiões de matriz africana do município destinada a discutir e avaliar a
atividade do I Mutirão de Limpeza e planejar novas ações para o ano de 2010.
A preparação do II Mutirão e outros momentos da pesquisa evidenciaram
questões e relações que se desenvolveram entre os sacerdotes, políticos, membros das
secretarias de governo e de ONGs, entre outros, que não serão debatidos aqui, e colocou
em destaque o debate sobre ‘oferendas’ e ‘lixo religioso’. Em uma das reuniões, a
subsecretária da COPPIR exibiu alguns vídeos gravados com os sacerdotes no dia do I
Mutirão. No primeiro vídeo que exibiu, Mãe Margarida enfatizava que o Centro Social
Raiz, instituição que coordena, trabalhava
‘tirando crianças da rua e oferecendo capoeira, educação e cultura, e principalmente preservação da natureza. Porque as crianças são a esperançade um futuro melhor, se antes houvesse mais consciência do que é a natureza,de sua utilidade, e de que os orixás são todos oriundos da natureza, nãoestaríamos nessa situação’.
Mãe Margarida expressava algo frequente na fala dos adeptos: a ‘natureza’ é a
fonte de energia primordial, a energia que move o mundo, o axé. As divindades
principais do candomblé, por ex. os Nkisis das tradições angola-bantu, são concebidascomo forças oriundas da natureza, e é na natureza, portanto, que é possível encontrá-las,
cultuá-las, trabalhá-las, presentificá-las. Através dela e de seus elementos é que tudo na
religião pode ser criado, a partir do ‘trabalho’ com seus elementos potenciais, e é
possível produzir o que possibilita a manutenção de um equilíbrio e a produção de
novas forças dinâmicas e ativas capazes de interferir no mundo e na vida de cada
pessoa. A religião e todo o resto acontecem.
De todos os rituais que envolvem a natureza e que são praticados em áreas
‘naturais’, a produção e depósito de oferendas é talvez o mais comum e observável, e
sobre a qual se desenrolava debates mais intensos. Os atos de ‘fazer a cabeça’, ‘fazer os
santos’ de cada pessoa e cuidar dos santos – Orixás ou Nkisis – e das demais divindades
que cada um possa ter, e fazer com que eles aconteçam e se atualizem, pressupõe
alimentá-los. Esse cuidado pode começar antes mesmo da iniciação para o Nkisi, que
pode nunca ser concretizada. O ato de ‘dar comida’ às divindades pode ser realizado em
períodos determinados, quando se cumprem ‘obrigações’ correspondentes a etapas da
vida de santo, ou em épocas em que se comemora a divindade cuja culminância dos
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festejos se dá nas festas públicas com a incorporação dos santos. A divindade também
pode requerer a oferenda a algum cliente ou adepto, ou a própria pessoa pode oferecer o
‘presente’ ao realizar algum ‘trabalho’ em sua honra buscando a realização de um
pedido ou agradecimento, e o cliente pode ‘alimentar a cabeça’ ou seu santo, mesmo
antes da iniciação. Realizam-se assim os ebós, os atos de ‘dar comida às forças’,
segundo os adeptos, que evidenciam todo um corpo litúrgico e ritual que permite que as
divindades aconteçam plenamente, o que é essencial para a vida dos seres humanos.
Procedimentos que são também chamados de ‘obrigações’, assim como seus resultados
materiais. Assim, a oferenda é uma forma de estabelecer comunicação com as
divindades, um dos procedimentos na direção de criá-las de maneiras específicas,
transformando-as, ou de torná-las possíveis, atualizando-as ao renovar suas forças ou ao
dotá-las de forças que fazem com que ajam em alguma direção; reforçá-las em
agradecimento e retribuição ao que têm feito, da mesma maneira em que se recria e
reforça a pessoa, isso possibilita que as divindades satisfeitas ajam em seu favor. A
alimentação é fundamental para que divindades e pessoas existam plenamente, para
manter as forças em equilíbrio, o universo em bom funcionamento.
Os religiosos das religiões de matriz africana, e aqui em especial o candomblé,
se defrontam constantemente com a acusação de que são grandes poluidores e
depredadores de “áreas naturais” e do “meio ambiente”. Para o grupo de religiosos de
Nova Iguaçu, essa acusação é grave, porém não é sem fundamento. Tomam-na com
seriedade e a somam aos discursos e conhecimentos divulgados por órgãos estatais e
organismos não governamentais sobre os processos de degradação do “meio ambiente”.
Agregam a esses discursos o fato de que a preservação do ‘meio ambiente’ também
interessa ao povo de santo.
No vídeo do I Mutirão, Arlene aparecia enfatizando que ‘todos devem se
conscientizar que poluir não faz parte da cultura e da religião e que deve-se trabalhar para preservar e não poluir’. Outro sacerdote que os acompanhava reforçou essa ideia,
dizendo que a poluição não agradava a Orixás, Nkisis e Voduns, e que ‘o lixo degrada a
principal fonte de axé, que são as florestas e as águas doces que nos levam ao contato
com nossa Mãe Oxum’. Deve-se combater a ignorância que faz com que religiosos
pensem que jogar lixo na cachoeira é axé: ‘isso não é axé, isso é contra-axé’:
‘Orixá não se alimenta de louça, trazer a louça do seu axé, da suacasa de santo, barracão, terreiro, o que for, para cachoeira, isso é imundiçar,
isso é quebrar a força da natureza, essa magia. Colocar uma folha demamona, fazer a função real recipiente dessa tigela de louça é colocar umafolha de mamona, colocar o ‘admum’, a comida do orixá, retirar, suspender a
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folha de mamona e entregar às águas, isso é o culto, a louça volta para casa,ela não tem função na natureza, só de poluir.’
No dia 21 de março de 2010 aconteceu o II Mutirão de Limpeza no Parque
Natural Municipal de Nova Iguaçu (PNMNI). Na verdade, a atividade aconteceu na áreanatural fora dos limites do Parque, já que este é de responsabilidade e está sob
fiscalização da prefeitura que proíbe realizar qualquer tipo de ritual religioso. Além
disso, era logo próximo a entrada do Parque que existia um ‘macumbódromo’5. Na
ocasião, Roberto e Arlene tiveram a ideia de confeccionar algumas placas educativas,
reservando alguns lugares para a realização dos rituais e orientando para que estes
fossem feitos conscientemente. Arlene contou que eles têm um projeto que inclui
colocar um grande recipiente onde as pessoas possam depositar os resíduos orgânicos
resultantes das atividades sagradas, formando em um adubo natural. Outro local seria
reservado para o depósito dos recipientes utilizados que poderiam ser reaproveitados
para plantação de ervas sagradas, que inclusive são destruídas por religiosos que não
sabem extraí-las devidamente da natureza. Essas ervas poderiam ser levadas pelos
religiosos. Este projeto, contudo, segundo os sacerdotes, não tem recebido apoio
político ou aprovação da SEMAM.
Em conversa, Arlene respondia se havia problema em retirar os ‘trabalhos
feitos’, dizendo que ‘o processo só funciona no momento em que está sendo realizado,
depois pode ser tirado sem problemas’. Ela mostrou um casarão antigo que deveria ser
comprado para ser a sede do projeto que formularam. Mãe Margarida com seus
capoeristas também fizeram parte da atividade, e além de limpar se apresentaram para
os presentes.
A atividade foi um sucesso, e muito lixo, religioso ou não, foi retirado. A
preparação do III Mutirão foi mais complicada, uma vez que todo o planejamento do
início do ano ficou comprometido pela desativação da COPPIR e pelas trocas dos
secretários municipais, como no caso da SEMAM, com o rearranjo das forças políticas
locais e com a saída do prefeito do PT, Lindberg Farias. O III Mutirão só aconteceu
devido ao esforço de Arlene e Roberto, que trabalharam para rearticular as relações e
5 Este termo é usado por adeptos e não adeptos para designar espaços exclusivos, delimitados eestruturados – existentes ou apenas em projeto – especificamente para a prática de rituais das religiões
afro. Por sua inadequação, expressões como ‘espaço sagrado’ aparecem como mais adequado na fala dosadeptos. O termo também é utilizado de maneira pejorativa e acusatória pelos não adeptos ou pelos próprios praticantes para designar áreas não oficiais ou não regulamentadas muito usadas para rituais.
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parcerias com as secretarias e outros órgãos públicos, direcionar o movimento, resgatar
antigos contatos e parceiros, conduzindo, quase sozinhos, a iniciativa.
Por todos os problemas, o III Mutirão se realizou com poucos participantes, nem
mesmo Arlene pode participar, pois estava em viagem, e Mãe Margarida não foi
convocada, uma vez que não era possível providenciar o necessário para levar todo seu
grupo. Roberto e Pai Sérgio, pai pequeno do terreiro de Roberto, conduziram o evento.
Pouco antes do inicio do trabalho de recolhimento do ‘lixo religioso’, Roberto disse aos
funcionários da EMLURB que eles não deveriam ter medo de mexer nos ‘trabalhos’ ,
nas ‘obrigações’ que estavam depositadas, que ‘não havia mais nada sagrado ali’, já era
tudo lixo, ‘lixo religioso, como as próprias pessoas de santo dizem’. O sacerdote
argumentou que, passados 15 minutos, depois de arriar 6 o ‘carrego’, o material deixava
de ser oferenda sagrada. A oferenda já havia sido recebida pelas divindades e se tornava
a mesma coisa que os funcionários recolhiam na porta das casas das pessoas. Alguns
funcionários encaravam seriamente o problema, enquanto outros brincavam e se
divertiam às custas daqueles que demonstravam certo receio. De qualquer maneira,
Roberto e Pai Sérgio estavam presentes para assegurar que a empreitada era segura e
para tranquilizar aqueles que pareciam se importar com a questão, o que não impediu
que alguns se mantivessem o mais afastados possível do ‘lixo religioso’.
O Mutirão começou. No macumbódromo, desde a entrada na beira da estrada
principal até muito longe dentro da mata, no rio, nas pedras, no caminho, nas encostas e
na vegetação, havia uma quantidade de materiais, de ‘lixo religioso’, impressionante. A
certa altura Pai Sérgio disse não haver problema em deixar comidas e animais na
natureza, pois podem dar um pouco de mau cheiro mas, da mesma forma que o barro e
os pedaços de alguidares, degradam-se e acabam sendo ‘absorvidos’. Ao contrário de
sacos plásticos e outros recipientes utilizados para transportar as coisas, que devem ser
levados de volta para casa.Efetivamente, para os sacerdotes, recipientes como alguidares de barro, travessas
de louça, balaios, garrafas de vidro, roupas, utensílios de ferro, esteiras, instrumentos
musicais como atabaques e berrantes, velas acesas, imagens de gesso de diversos santos
católicos e outras entidades, sacos plásticos, caixas de ovos e os elementos não
6
Termo nativo que significa colocar no chão, depositar, abaixar. Possui toda uma significaçãosagrada, uma vez que o ato de depositar a oferenda significa que ela está sendo enviada e é recebida pelasdivindades.
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utilizados diretamente nos rituais não deveriam ser deixados após sua realização. Isso
não significava que não poderiam ou não deveriam ser utilizados.
Mais tarde, Roberto foi até um grupo que fazia rituais no local e lá permaneceu
um bom tempo conversando com as pessoas. Também conversava com uma ‘entidade’,
Vovó Maria Conga do Rosário. Esta parecia estar aprovando a iniciativa, já que Roberto
perguntava, ‘não estou certo, Vó?’, e ela assentia, balançando a cabeça. O sacerdote
explicava o trabalho que estava sendo realizado e convidava os irmãos a se unirem ao
esforço de ‘preservar e cuidar da natureza’. Roberto destacava que o povo de santo era o
principal acusado de poluir e degradar a natureza. ‘Toda vez que tem um incêndio aqui,
os bombeiros dizem que foi por causa de velas acesas deixadas pelo povo de santo...’
Desta maneira, apontava para a necessidade de cuidar dos espaços utilizados pelo povo
de santo para seus rituais, de modificar as formar de fazê-los, recolhendo e reciclando os
materiais utilizados, por exemplo, ou usando alternativas de suporte para apoiar as
oferendas. Contou ainda sobre a ideia de se montar ali um ‘Espaço Sagrado’ . Não
demorou muito, o sacerdote pegou os recipientes que tinham sido usados pelo grupo em
suas oferendas, esvaziou-os, dizendo que os guardaria para reutilizá-los, e entregou a
Pai Sérgio.
Depois do trabalho, Roberto contou sobre reuniões de que participou com um
fabricante que havia criado um alguidar de casca de coco, que custaria R$18,00.
Comparou esse preço com aquele que é pago pelos alguidares de barro, mais ou menos
R$3,00, e mostrou a inviabilidade do preço para as comunidades de terreiro. Na ocasião,
sugeriu: ‘Então por que não utilizarmos folha de mamona?’ Ele riu e comentou que os
fabricantes ficaram bastante irritados.
Mais tarde, Roberto disse haver perguntado ao grupo que realizava seus rituais
durante o trabalho se eles levariam embora os utensílios e eles responderam que ‘Vovó
disse que faz parte do carrego’. Ainda assim, pediu licença, esvaziou os recipientes,recolheu-os e levou embora. Vovó, por sua vez, não fez nenhuma objeção. Pai Sérgio
comentou que esses recipientes eram como os pratos que utilizamos para comer. ‘Não
comemos na mesa? Colocamos a comida no prato, tudo direitinho, mas depois que se
come se recolhe o prato, não deixa ele lá. O alguidar e outros recipientes são a mesma
coisa’. E se tinham o consentimento da divindade para serem retirados, então não
poderia haver problema.
Assim, uma vez ‘depositado o carrego’, ou ‘quando realizada diretamente nanatureza, depois que as divindades comem a oferenda’, ‘depois do ritual realizado’,
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‘após alguns minutos’ ou ‘alguns dias’, nas palavras nem sempre consonantes dos
sacerdotes, a oferenda transformou-se em ‘lixo religioso’. Era a partir desse argumento
que os religiosos asseguravam aos demais que não havia problema em fazer a limpeza
do material, contudo aquilo não era qualquer lixo, era prudente contar com a presença
dos sacerdotes para garantir continuamente que ‘não tinha perigo recolher o lixo
religioso’, garantir a correta manipulação daqueles objetos, receber ‘a orientação
religiosa’, e contar com eles para qualquer eventualidade. E, claro, algumas ‘coisas’ não
podiam ser “limpas”. Para os sacerdotes estar presente nessas atividades era ainda mais
fundamental para cuidar e ocupar o espaço que deveria ser oficialmente direcionado, na
concepção deles, a essas práticas religiosas, recebendo uma estruturação para tal do
poder público.
Desta maneira, as oferendas deveriam ser realizadas ou postas naqueles locais
‘naturais’. Neles passavam a estar sujeitas a um processo de transformação, tornando-se
‘lixo religioso’. Obviamente, classificar o que recolhiam de ‘lixo religioso’ era motivo
de indignação e reprovação por grande parte dos religiosos de matriz africana do
município, que os condenavam veementemente. A resposta deles, contudo, era apontar a
maneira como eram feitos e a degradação que o material causava às áreas ‘naturais’:
prejuízo a ‘natureza e meio ambiente’ e à morada das divindades, fonte de energia e
forças sagradas. Mas, o que os Mutirões de Limpeza e outras discussões e propostas que
se seguiram evidenciaram é que aquelas oferendas, de fato dotadas de potencialidades e
forças específicas, poderiam ter um destino mais apropriado.
Os sacerdotes não queriam que as oferendas se tornassem ou fossem vistas como
‘lixo religioso’. Concebê-las como ‘lixo religioso’ naquele estágio em que se
encontravam no PNMNI era necessário para que cuidassem da área, mantivessem-na de
maneira adequada para o prosseguimento dos rituais e, sobretudo, para que contassem
com o apoio do governo e de instituições não governamentais que identificavam o problema ‘da sujeira’ e viam como única solução a ‘limpeza’. O ‘lixo religioso’
permitia alianças, contatos e diálogos, mas, a partir dos Mutirões, estando em contato
com políticos, ambientalistas, acadêmicos e outros, os sacerdotes propunham um
projeto muito mais duradouro e uma forma de realizar oferendas de maneira
‘sustentável para o meio ambiente’. Sem dúvida, os debates e as falas dos informantes
iam no sentido da “oferenda ecológica” e dos ‘espaços sagrados’. A ideia de ‘lixo
religioso’ se limitava ao âmbito dos Mutirões de maneira a reunir apoios e aliançasvariados. Diante da crítica que outros religiosos faziam às ações de limpeza e,
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principalmente à desqualificação das oferendas como ‘lixo religioso’, os sacerdotes
propunham outra forma de realizar oferendas de maneira que não se tornassem ou
fossem concebidas como algo a ser retirado como ‘lixo’, já que todos compartilhavam
sobre o que são e o que podem conter aqueles objetos. Argumentavam que as
comunidades de terreiro em geral deveriam passar por um processo de ‘educação’,
‘formação’, ‘conscientização’ sobre a maneira de proceder corretamente em relação à
realização e ao depósito das oferendas.
“Oferenda ecológica” foi uma expressão que formulei diante de diversos
comentários de meus informantes ao reforçarem a necessidade de fazer ‘oferendas que
não agridem a natureza’, ‘oferendas que sejam mais rapidamente absorvidas pela
natureza’, ‘oferendas que sejam realizadas em materiais que se degradam facilmente’,
‘oferendas que não poluam os ambientes’ ou ‘oferendas conscientes’. O termo surgiu
mais do diálogo com os interlocutores e a partir de movimentos que têm sido
observados em todo o país, do que como uma expressão que eles próprios usassem no
dia a dia, o que aconteceu apenas eventualmente.
Assim, a partir dos Mutirões, os sacerdotes demonstravam que soluções mais
duradouras e significativas deveriam ser adotadas. Dias depois do II Mutirão de
Limpeza, Arlene me contou que fora ao local fazer ‘obrigação’ de uma de suas filhas de
santo e que ‘já estava tudo muito sujo’. Ela comentou sobre a necessidade urgente de
instalação das placas educativas e até de lixeiras na área e de, finalmente, se criar o
‘Espaço Sagrado’ no local, com estrutura adequada, apoio para os praticantes,
funcionários, tornando o local de formação dos adeptos e de valorização e divulgação da
cultura afro. Contou que sua ‘obrigação’ foi destinada a Dandalunda e que havia feito
bastante canjica e espalhado no chão. Por cima da canjica foi depositando os demais
elementos, como flores, e a oferenda ‘ficou lindíssima’ e não utilizou nenhum recipiente
ou material que não fosse orgânico. Arlene destacou que se preocupou em agredir omínimo possível a natureza, afirmando que havia posto de tal forma que ‘a própria
natureza, as águas da cachoeira, se encarregariam de limpar a obrigação’. Ela enfatizou
a necessidade de educar as pessoas para que preservem a ‘natureza’ e respeitem o
‘espaço religioso’.
Como visto, no III Mutirão, e ao longo do trabalho de campo, os recipientes que
continham as oferendas eram apontados como o que prejudicava a natureza e que
bastava o uso de outro tipo de material para que as oferendas pudessem ser ‘limpasnaturalmente pela natureza’. Em todos os Mutirões, Roberto preocupou-se em recolher
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alguns recipientes e levar para casa para reaproveitá-los, porque ‘aqui eles não têm
utilidade alguma, na minha casa têm.’ Além disso, não iriam para o lixo. Propunham,
assim, alternativas, além da limpeza: oferendas que não utilizassem materiais como
louças, alguidares de barro, balaios de palha, garrafas etc., materiais que não
desaparecem facilmente. Esses materiais podiam ser usados, mas levados embora após o
ritual: a bebida deveria ser derramada e a comida e outros materiais orgânicos e
eventualmente inorgânicos, mas que compunham as oferendas, deveriam ser
depositados, ou até enterrados. Era muito mais forte em relação às ‘oferendas já
passadas: dar a Intoto (Terra) o que é de Intoto’, e não ao lixo.
Nesse processo, pude observar até divindades participando, desde muito tempo,
do processo de criação e concepção das “oferendas ecológicas”. Oferecendo a
oportunidade de as oferendas não chegarem nunca a ser ‘lixo religioso’, de retornarem
como forças que são e/ou podem conter para natureza, de compor o espaço com suas
energias específicas em perfeita harmonia com ele e em consonância com seus
significados. Assim, a oferenda, trabalho, obrigação foi feita, o que se queria aconteceu,
a religião aconteceu, mas considerando sua força e significado não se quer que elas
sejam transformadas ou tornadas lixo, melhor que suas partes voltem para Terra –
natureza e Nkisi-, ou para as casas, e sejam novamente transformadas e aconteçam em
outras direções. O ideal é que ‘oferenda’ e ‘natureza’ se fundam harmonicamente e
conservem o equilíbrio e o estado das forças de ambas. As oferendas ou o que delas
sobrar, uma vez que já se constituíram como oferendas, devem encontrar outros espaços
adequados a seu significado e força, mesmo que neste momento signifiquem apenas
elementos oriundos da natureza e outros objetos, em si já potências, que para natureza
devem retornar. Isso é importante para manter o equilíbrio geral nos próprios espaços
‘naturais’ e para que tanto a ‘oferenda’ quanto a ‘natureza’, o espaço e o objeto,
aconteçam e se atualizem plena e constantemente.E trata-se de um duplo movimento dos religiosos, tentar se colocar no espaço
público, sendo bem vistos, valorizados e aceitos, mas fazer isso, não à custa de seus
princípios religiosos, até porque certas coisas terão que continuar sendo feitas mesmo
que “poluam”, mas fazer isso baseados em ‘fundamentos’, em princípios legítimos e
originais da religião, na concepção dos sacerdotes.
Algumas Considerações
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Nos diferentes acontecimentos religiosos acima descritos nos deparamos com
importantes pontos de confluência. O primeiro deles talvez seja que fica claro que
objetos ou coisas comuns, presentes na natureza ou fabricados pelo homem, quando
colocados em conjunto e submetidos a procedimentos rituais se tranformam em muitas
coisas: ‘oferendas’, ‘obrigações’, assentamentos ou “fetiches” que são as próprias
divindades, objetos rituais plenos de energia, de axé, enfim, coisas que são e podem
produzir efeitos. As coisas antes do preparo têm potência, potencial, como o ocutá que
irá compor o assentamento que já é e já pertence a determinada divindade
potencialmente, mas deve ser preparado e transformado para se torná-la plenamente
(Goldman, 2009; 2012), assim como os demais objetos potenciais que vão ser
preparados de modo a se tornar outras coisas e compor o universo sagrado. Ainda assim,
essas novas “coisas sagradas” não cessam nunca de serem preparadas e de transformar -
se. Era porque a oferenda tendia a se transformar que os sacerdotes de Nova Iguaçu
buscavam cuidar para que se transformassem de maneira adequada, assim como os
assentamentos ou “obrigações” do batuque que devem ser sempre cuidados e
alimentados.
As diferentes descrições foram resultado dos diferentes tipos de inserções e
objetivos de pesquisas de nós estudiosos. De fato a primeira descrição trata de maneira
mais próxima como vão se fazendo e tranformado as coisas sagradas e a religião vai
acontecendo. É nesse sentido que a primeira descrição se aproxima de uma ontologia
das “obrigações” religiosas. No caso de Nova Iguaçu, foi possível observar não apenas
as oferendas que criavam e estabeleciam uma relação importante entre religiosos e
divindades fazendo acontecer a religião, mas o ‘lixo religioso’ e a “oferenda ecológica”
que colocavam em contato e em relação actantes e as instâncias da política e da religião,
por exemplo, e a partir de que os ‘trabalhos sociais’, a religião e a política eram feitas e
aconteciam. Contudo, se focalizamos os objetos sagrados nos dois casos, iremos perceber como eles são criados e recriados continuamente, criam e agem, produzem
efeitos e movimentos, são movimentos.
Latour formula e utiliza o conceito de “actante” para englobar tudo que provoca
uma ação, que age, não importa a figuração que tenha: pode ser um ideomorfismo ou um
antropomorfismo, ou seja, uma ideia ou um ser humano, por exemplo (LATOUR, 2006: 78-
79). Tudo que vem modificar uma situação torna-se um ator, ou melhor, um actante, e é
importante considerar entidades participantes da ação. Em sua teoria os objetos são tornados
atores, já que os objetos desdobram outras maneiras de agir e agem. Neste trabalho,
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assumimos o conceito de “actantes” de maneira a trazer para observação uma variedade
daquilo que participa das ações, seja humanos ou não humanos, em suas múltiplas
figurações, objetos e materiais sagrados ou profanos, divindades e outros.
Evidenciando a ideia de ‘movimentos’ que influi diretamente na temática
proposta por esse GT, a saber a dos objetos e da materialidade nas religiões, podemos
perceber algumas coisas. As noções êmicas de ‘trabalho social’ e de ‘obrigação’, por
exemplo, associam numa mesma série, signos que tendemos a separar não apenas em
gênero ou grau, mas na própria natureza de suas existências. Ações e alguidares,
limpeza e divindades, pessoas e imagens, oferendas e natureza, para citar alguns, são
esses ‘actantes’ que estão por aí que tentamos purificar e estabilizar como matéria ou
objeto, ou seus outros lados: o imaterial e o não-objeto, não-objetificável.
Da mesma forma, o ensaio de Bruno Latour (2004), dedicado ao cristianismo
coloca questões interessantes para o que pensamos para essa comunicação. O texto tem
como intento resolver o que o autor chama de uma “dupla redução caricatural”: da
religião à crença e da ciência ao conhecimento. Para isso propõe que se fale
religiosamente sobre os diferentes geradores de verdades, adotando um modo de fala
amoroso. Sua noção de que a imagem re-presenta e não representa é capital para o
entendimento das “coisas de/na religião” no batuque e no candomblé angola. Para
Latour (2004) é quando o espectador devoto repete a mesma melodia, no mesmo ritmo eandamento que o artista que faz a obra religiosa que o “iconoclasmo interior” acontece,
re-presentificando o sagrado. As obras de arte são, elas mesmas, re-encenações de
momentos do cristianismo. De modo semelhante as imagens cruas que são preparadas
no batuque. A iconografia cristã, diz Latour, põe a imagem em movimento, não a
congela: é preciso compreender (ainda que forçados) a presença que a mensagem
carrega. É, então, a própria iconofilia um fluxo de imagens, no qual não existe um
original. “A verdade não se encontra na correspondência [...] entre original e cópia, nocaso da religião – , mas em tomar a si novamente a tarefa de continuar o fluxo, de
prolongar em um passo a mais a cascata das mediações” (Latour 2004: 371-2, grifo no
original). Pois, congelar, representar, isolar, retirar a imagem da série não permite a
transmissão do significado como verdade. É interessante, também, a reflexão que Latour
(2008) faz sobre a mão humana na feitura de ícones divinos. A mão produz o divino7.
7
Para um aprofundamento Cf. o interessante texto de Latour (2008), no qual discute um diferentemodo de por a imagem/ícone em movimento, o iconoclash. O autor faz uma espécie de tipificação, queserve apenas para pensar, pois logo após tipificar, complica o esquema inter-relacionando os tipos, de tal
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Tanto no candomblé angola, como no batuque, é um tipo de movimentação
ininterrupta que está em jogo. Não há espaço para o congelamento. É a oferenda que
passado um período se torna lixo, é a pedra que precisa se alimentar de tempo em tempo
para não morrer. É o próprio axé, ou força, que é um movimento que se apresenta em
singularizações, que são momentos de acontecimentos. Um acontecimento oferenda,
acontecimento pessoa, acontecimento preto velho, acontecimento casa de religião.
Matéria e objeto, imaterial e não-objeto, são, nas religiosidades afro-brasileiras, não
distintos ontologicamente, mas diferentes formas de presentificações do sagrado e do
profano – que, também, não deixa de ser uma modulação do sagrado. Pensamos que a
reflexão sobre o sagrado e sobre os objetos no pensamento de Latour produz um “bom
encontro” – como diria Espinosa – com as etnografias aqui apresentadas. O pensamento
do autor é posto em movimento “ao lado” do movimento da etnografia, não para
substituir conceitos nativos, mas para potencializar uma teoria religiosa que
comunmente é tratada como simples sistema de crenças.
A partir dessas considerações iniciais, lançando mão de nossas experiências
etnográficas e de alguns conceitos, queremos destacar que, guardadas as diferenças as
religiões afro-brasileiras colocam em evidencia uma existência dos materiais e vivência
da materialidade que pode nos auxiliar a pensar sobre a questão em outros contextos,
conferindo aos materiais diversas formas, movimento, ação, relação, e uma
materialidade em constante transformação.
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modo que quem quebra a imagem não pode, por muitas vezes (ou quase sempre) ser enquadrado numtipo.
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