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17 n. 5 / 2016-2 / pp. 17-30 Fábio Augusto Morales Pontifícia Universidade Católica de Campinas [email protected] Edifícios como fonte histórica: o caso do templo de Ares, na ágora de Atenas (século I a.C.) Os historiadores, em geral, têm dado pouca atenção aos edifícios como fontes históricas. Este descaso se explica, ao menos em parte, pelo processo de formação disciplinar que situou, em ramos diferentes das ciências humanas, a História e a História da Arquitetura. Esta última, derivada da História da Arte, compartilha com a Arqueologia o conceito de genealogia que remonta ao antiquarianismo, compreendido como conhecimento produzido acerca dos artefatos antigos que sobreviveram aos mais diversos processos pós-deposicionais; a partir do século XIX. Ou seja, a História da Arquitetura se constituiria como estudo sistemático dos edifícios e espaços do passado, em busca, ora das intenções do arquiteto e/ou comandatário, ora do espírito da época e/ou da nação, materializado nas escolhas técnicas e estilísticas 1 . A História, por sua vez, herdou, de sua matriz filológica, a ênfase quase obsessiva nos textos como fonte histórica primordial. A partir do século XIX, os historiadores passariam a buscar nas fontes textuais – após o trabalho filológico – evidências dos eventos políticos, das realidades econômicas e sociais, do cotidiano, da cultura etc. Esta cisão de origem se reproduziria no arranjo disciplinar das instituições de formação de arquitetos e historiadores. Se os primeiros têm, na História da Arquitetura, uma base para a formulação de repertórios, os últimos entram em contato apenas tangencialmente com os vestígios arquitetônicos do passado. A consequência da permanência desta cisão, no campo da pesquisa, é o ainda tímido diálogo entre as duas áreas, tanto do ponto de vista dos métodos, quanto dos debates que constituíram cada uma das áreas. Mas, afinal, seriam os edifícios fontes, somente para a História da Arquitetura? Tal postura é, obviamente, insustentável, na medida em que estas disciplinas se definem menos pela tipologia documental e mais pela abordagem e conjunto de problemas colocados às fontes. O objetivo deste artigo é, pois, discutir as possibilidades oferecidas, para o conhecimento, pela incorporação de edifícios como fontes históricas. Não se trata, obviamente, de um levantamento de todas as possibilidades de análise, suas abordagens, métodos e objetos. Antes, 1 Andrew Leach. What is Architectural History? Cambridge: Polity, 2010; Hazel Conway e Rowan Roenisch. Un- derstanding Architeture. An introduction to Architecture and Architectural History. London and New York: Routledge, 2005, pp. 33-54.

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Fbio Augusto Morales Pontifcia Universidade Catlica de [email protected]

Edifcios como fonte histrica: o caso do templo de Ares, na gora de Atenas (sculo I a.C.)

Os historiadores, em geral, tm dado pouca ateno aos edifcios como fontes histricas. Este descaso se explica, ao menos em parte, pelo processo de formao disciplinar que situou, em ramos diferentes das cincias humanas, a Histria e a Histria da Arquitetura. Esta ltima, derivada da Histria da Arte, compartilha com a Arqueologia o conceito de genealogia que remonta ao antiquarianismo, compreendido como conhecimento produzido acerca dos artefatos antigos que sobreviveram aos mais diversos processos ps-deposicionais; a partir do sculo XIX. Ou seja, a Histria da Arquitetura se constituiria como estudo sistemtico dos edifcios e espaos do passado, em busca, ora das intenes do arquiteto e/ou comandatrio, ora do esprito da poca e/ou da nao, materializado nas escolhas tcnicas e estilsticas1. A Histria, por sua vez, herdou, de sua matriz fi lolgica, a nfase quase obsessiva nos textos como fonte histrica primordial. A partir do sculo XIX, os historiadores passariam a buscar nas fontes textuais aps o trabalho fi lolgico evidncias dos eventos polticos, das realidades econmicas e sociais, do cotidiano, da cultura etc. Esta ciso de origem se reproduziria no arranjo disciplinar das instituies de formao de arquitetos e historiadores. Se os primeiros tm, na Histria da Arquitetura, uma base para a formulao de repertrios, os ltimos entram em contato apenas tangencialmente com os vestgios arquitetnicos do passado. A consequncia da permanncia desta ciso, no campo da pesquisa, o ainda tmido dilogo entre as duas reas, tanto do ponto de vista dos mtodos, quanto dos debates que constituram cada uma das reas. Mas, afi nal, seriam os edifcios fontes, somente para a Histria da Arquitetura?

Tal postura , obviamente, insustentvel, na medida em que estas disciplinas se defi nem menos pela tipologia documental e mais pela abordagem e conjunto de problemas colocados s fontes. O objetivo deste artigo , pois, discutir as possibilidades oferecidas, para o conhecimento, pela incorporao de edifcios como fontes histricas.

No se trata, obviamente, de um levantamento de todas as possibilidades de anlise, suas abordagens, mtodos e objetos. Antes,

1 Andrew Leach. What is Architectural History? Cambridge: Polity, 2010; Hazel Conway e Rowan Roenisch. Un-derstanding Architeture. An introduction to Architecture and Architectural History. London and New York: Routledge, 2005, pp. 33-54.

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procurarei desenvolver o problema da interpretao dos edifcios, compreendidos como parte da cultura material, para o conhecimento das sociedades do passado. Assim, aps uma discusso acerca do problema da leitura dos edifcios como fontes histricas, procuro promover um dilogo mais profundo da Histria da Arquitetura com a Arqueologia, medida que ambas so fundamentais para a construo de um conhecimento histrico no logocntrico2.

1 Arte, Arquitetura, Arqueologia e Histria: dilogosComo os edifcios signifi cam? Seriam os edifcios textos a serem lidos? Em artigo recente3, o

historiador da arquitetura, W. White, prope um modelo alternativo ao edifcio-texto. Para tanto, o autor realiza um balano dos processos interpretativos, na Histria da Arquitetura, desde sua formao, entre o sculo XVIII e XIX, at os desafi os ps-estruturais de fi ns do sculo XX. Para White, o nascimento da Histria da Arquitetura, no mbito da Histria da Arte, herdou uma abordagem hegeliana, qual seja a de que os edifcios seriam materializaes (ainda que imperfeitas, pois utilitrias) do esprito da poca, do povo; ou mesmo o esprito universal. Tal paradigma, sistematizado por Hegel em seu estudo sobre a fi losofi a esttica da arquitetura4, j estava presente em J. Winckelmann5, nos princpios da Histria da Arte, no sculo XVIII, assim como informaria estudos centrais da Histria da Arquitetura como Renascena e Barroco de H. Wlffl in6, publicado em 1898, ou The Englishness of English Art, de N. Pevsner7, publicado em 1955, na primeira metade do sculo XX.

O paradigma se desenvolveria com o dilogo mais intenso com as cincias humanas, e o esprito da poca conviveria mais ou menos harmoniosamente com categorias como raa, cultura, civilizao e sociedade; paralelamente, paradigmas alternativos que enfatizavam, seja os aspectos mais biogrfi cos e psicolgicos relacionados aos edifcios (as intenes de arquitetos e comandatrios), seja os aspectos formais de estilos e tcnicas (com menos preocupao em relao ao contexto social) se desenvolveriam, ainda que de modo subordinado. Mas, como ler os edifcios?

White argumenta que, ainda que as analogias com a linguagem escrita j estivessem presentes nas primeiras obras de Histria da Arquitetura, foi somente na dcada de 1960 que uma metodologia lingustica foi rigorosamente aplicada e construda no contexto da expanso estruturalista das cincias humanas. Edifcios foram tomados como textos, participando, assim, de estruturas compostas por sintaxes, morfologias e semnticas. Elementos arquitetnicos tornaram-se palavras e edifcios formariam frases regidas por gramticas especfi cas. Era possvel, assim, ler a linguagem dos arquitetos.

A partir dos anos 1980, no entanto, tal abordagem foi duramente criticada pelas abordagens ps-estruturalistas. Por um lado, a nfase no escritor-arquiteto foi deslocada para a diversidade de interpretaes do leitor-usurio, que conferiam signifi cados aos edifcios no previstos no projeto. Por outro lado, o edifcio passou a ser visto como parte da produo social do espao, incorporando as dimenses do vivido e do percebido ao concebido dos projetistas. Neste contexto, o arquiteto perderia a centralidade, conferida pelas abordagens estruturalistas, para fazer parte de um campo de foras

2 Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses. A cultura material no estudo das sociedades antigas. Revista de Histria, 115 (1983), pp. 103-117.3 William White. How do buildings mean? Some issues of interpretation in the History of Architecture. History and Theory, 45 (2006), pp. 153-177.4 Georg Wilhelm Friedrich Hegel. A arquitetura. So Paulo: Edusp, 2008.5 Johann Joachim Winckelmann. Geschichte der Kunst des Alterthums. Dresden: Walther, 1764.6 Heinrich Wlffl in. Renascena e barroco: estudo sobre a essncia do estilo Barroco e a sua origem na Itlia. So Paulo: Perspectiva, 2000.7 Nikolaus Pevsner. The Englishness of English Art. New York: Praeger, 1956.

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multifacetado e complexo, no qual a materialidade e os signifi cados dos edifcios seriam objeto de mltiplas intervenes. a morte do arquiteto, escreve White, parafraseado a morte do autor, de Barthes.

Neste novo contexto, retorna a questo: como ler edifcios? White, ainda que critique o logocentrismo das analogias com a comunicao verbal, mantm o paradigma comunicacional, ao dialogar com a lingustica de Jakobson e a teoria literria de Bakhtin, para a formulao de um novo paradigma de interpretao. Para o autor, um edifcio objeto de diferentes transposies (Bakhtin) entre meios verbais e no verbais de comunicao (Jakobson). Assim, do projeto ao canteiro e do canteiro ao uso e reuso do edifcio, e do uso s mais diferentes representaes verbais e imagticas, a construo de signifi cados dos edifcios passa por diferentes gneros (planta, modelo, uso, crtica, ilustraes), produzindo o que Bakhtin chamava de obra: A obra [do edifcio] inclui todos estes contextos, todos estes diferentes signifi cados. Mais do que tentar identifi car qual o entendimento correto, parece mais razovel reconhecer esta variedade de signifi cados. Uma verdadeira interpretao do edifcio dever levar em conta todas estas diferentes verses todas estas diferentes tradues8.

A discusso de White densa e bem fundamentada, apontando um caminho extremamente promissor para a desmontagem do processo de signifi cao dos edifcios. No entanto, duas observaes merecem ser feitas. Em primeiro lugar, a transposio de signifi cados de um gnero a outro uma etapa do processo de produo do signifi cado. Entre o signifi cado e o signifi cante, como apontou Derrida, h instabilidade, sujeita ao das diferentes foras que produzem os sistemas de signifi cados9. Assim, alm de ser transposto de um gnero a outro, o signifi cado continuamente fi xado e transtornado em sua relao com este gnero. As mltiplas interpretaes agem, no apenas na transposio, mas nas prprias tentativas de fi xao. Seria, neste sentido, interessante adicionar, transposio, os processos de fl utuao de signifi cados e suportes, objeto da interao de diferentes agentes no campo de foras da produo social do espao. Tal fl utuao, como veremos, encontra nos templos e igrejas fl utuantes, um exemplo particularmente rico.

Em segundo lugar, quando discute o debate arqueolgico a respeito da interpretao dos signifi cados da cultura material, o autor deixa de lado uma abordagem que seria fundamental para sua discusso: a cadeia comportamental, tal como proposta por M. Schiff er10. A noo de cadeia comportamental procura dar conta dos diferentes processos culturais e naturais que acompanham a histria de um artefato; a saber, a procura, a manufatura, o uso, o descarte e o eventual reuso. Se, inicialmente, no mbito da hegemonia da arqueologia processual, a abordagem comportamental enfatizava os aspectos tcnicos e naturais da cadeia, as crticas ps-processuais levaram incorporao das dimenses culturais e comunicativas que interagem em suas diferentes etapas11.

Assim, a etapa da procura envolve tanto a busca por materiais e recursos para fi nanciar a construo, quanto o acesso a repertrios tcnicos e formais para a elaborao do projeto; a

8 William White. How do buildings mean?, p. 177.9 Jacques Derrida. La Diff erance. Bulletin de la Societ franaise de philologie, 62: 3 (1968), pp. 73-101.10 Michael Brian Schiff er. Behavioral Chain Analysis: Activities, Organization, and the Use of Space. Fieldiana (Anthropology), 65 (1975), pp. 103-119.11 James M. Skibo e Michael Brian Schiff er. People and Things. A Behavioral Approach to Material Culture. New York: Springer, 2008.

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manufatura envolve tanto a materializao dos saberes tcnicos, quanto as relaes sociais de produo; o uso envolve a incorporao do edifcio nos sistemas de usos e funes demandados por determinada sociedade seja em relao funo projetada, seja quanto s funes no previstas o descarte envolve tanto as patologias materiais do edifcio, quanto com as transformaes dos sistemas de utilidades que podem promover a demolio do edifcio ou sua dessignifi cao, que d lugar a um processo de reuso e o retorno cadeia comportamental, com novos signifi cados e possibilidades. Em cada etapa, diferentes transposies entre gneros materiais, imagticos, verbais etc.

O dilogo com a arqueologia comportamental, aqui, retomado em funo da importncia do descarte e processos de reuso. Edifcios so projetos, construdos e utilizados, mas tambm so abandonados, demolidos, reformados, reconstrudos, restaurados. Os processos de destruio so tambm processos de construo de espaos, e as mudanas de signifi cado de cada edifcio se rearticulam a diferentes programas de produo do espao. A noo de programa, tambm derivada da arqueologia12, utilizada, aqui, como o conjunto de princpios coerentes que estruturam intervenes na realidade material, condicionando todas as etapas da cadeia comportamental de um artefato. , assim, mais ampla que a noo de projeto, limitada s fases iniciais e ainda escrava da ideia de inteno de fabricadores e comandatrios.

A coerncia dos princpios do programa sua lgica no totalitria, ainda que busque ser totalizante. Lgicas divergentes convivem com lgicas hegemnicas, podendo ser subordinadas ao programa dominante, ou resistindo a ponto de orientar os novos programas. Um edifcio, assim, um elemento do conjunto que compe o programa, e suas caractersticas tcnicas e formais respondem s lgicas hegemnicas ou subordinadas. Dialoga, deste modo, com a produo social do espao ou, melhor seria dizer, com a reproduo espacial da sociedade. E este um dos caminhos pelos quais, acredito, a Histria, compreendida como Histria da Sociedade, pode melhor usufruir da incorporao dos edifcios como fonte histrica e do dilogo com a Histria da Arquitetura.

A histria espacial, vinculada chamada virada espacial13, ainda est por se construir, especialmente no Brasil. A escolha do espao como categoria central para a anlise da histria das sociedades no aleatria. uma opo vinculada aos desafi os colocados pelo atual processo de globalizao; seja s narrativas temporais tradicionais (as etapas civilizatrias da Histria Universal novecentista), seja fragmentao derivada das abordagens ps-modernas (a histria em migalhas de que falava F. Dosse).

De fato, a incorporao das mltiplas leituras sobre a histria narrativa historiogrfi ca caminha ao lado da necessidade de produo de novas snteses os processos de globalizao so, a um s tempo, mltiplos e totalizantes14. O retorno ao espao, neste sentido, um retorno perspectiva de uma histria total, que procure dar conta das diferentes dimenses e temporalidades envolvidas, tanto na grande, quanto na pequena escala15. Exerccios de histria espacial tm sido realizados em diversos centros, em particular no dilogo com as tecnologias de geoprocessamento. Considere-se, por exemplo, o projeto de Spatial History da Universidade de Stanford. No entanto, a perspectiva adotada

12 Philippe Bruneau. Quatre propos sur larchologie nouvelle. Bulletin de correspondance hellnique, 100 (1976), pp. 103-135.13 Barney Warf e Santa Arias. Spatial Turn: Interdisciplinary Perspectives. Abingdon, New York/ Londres: Routledge, 2009.14 Milton Santos. Por uma outra globalizao. Rio de Janeiro, So Paulo: Record, 2000.15 Jngen Osterhammel. Global History and Historical Sociology. In: James Belich, John Darwin, Margret Frenz e Chris Wickham. The Prospect of Global History.

Oxford: Oxford University Press, 2016, p. 26.

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aqui se aproxima mais das propostas de Henri Lefebvre para uma histria do espao, publicadas, em 1974, em seu A produo do espao. Para Lefebvre,

na histria do espao como tal, o histrico, o diacrnico, o passado gerador se inscrevem incessantemente sobre o espacial, como sobre um quadro. Sobre e no espao, h mais que traos incertos deixados pelos acontecimentos; existe a inscrio da sociedade em ato, o resultado e o produto das atividades sociais16.

Assim concebida, a histria espacial visa retraar as etapas pelas quais o espao produzido, de modo que, inversamente, perceba-se a sociedade em ato; ou seja, a reproduo da sociedade em suas estruturas e processos. Neste sentido, os edifcios so fontes particularmente importantes para a histria espacial (ou histria da reproduo espacial da sociedade), na medida em que so produtos e vetores da reproduo espacial da sociedade nos termos dos padres associados procura de repertrios e materiais, s relaes sociais de produo, aos diferentes usos e aos modos de descarte e reuso dos edifcios e os espaos produzidos por eles e por meio deles.

A interpretao dos diferentes signifi cados associados a cada um destes momentos, inspirada pela Histria da Arquitetura ps-bakhtiniana sugerida por White e pela Arqueologia Comportamental de Schiff er, pode superar as leituras que se limitam s intenes dos projetistas ou diluda ideia de um esprito da poca. Os signifi cados dos edifcios se associam sua natureza, enquanto produto e vetor das relaes sociais, ou seja, como parte da cultura material17. Como estudo de caso, discutirei a histria das transposies semnticas e estruturais de um templo ateniense construdo no sculo V a.C. em um demo rural ateniense e transferido, no sculo I a.C., para o centro da gora da cidade: trata-se do templo de Ares, um dos clebres templos fl utuantes da gora de Atenas.

2 O templo de Ares: transposio e fl utuaoO fenmeno dos templos fl utuantes ainda no recebeu um estudo compreensivo. Sabe-se que

so espaos religiosos transferidos de local, com ou sem a transposio de elementos arquitetnicos e/ou a comunidade vinculada ao culto. Assim, por exemplo, podemos mencionar a transposio das igrejas da Nossa Senhora do Rosrio, tanto em So Paulo quanto em Campinas. Enquanto a primeira foi transferida, no incio do sculo XX, do antigo Largo do Rosrio (atual Praa Paulo Prado) para o Largo Paissandu, a cerca de 500 metros de distncia18, a segunda foi transferida, somente na dcada de 1950, do antigo Largo do Rosrio (atual Praa Visconde de Indaiatuba), para o Jardim Chapado, cerca de 2,6 km distante19.

Em ambos os casos, o processo de afastamento da religiosidade negra dos centros urbanos foi acompanhado do apagamento do nome do Largo do Rosrio. Por outro lado, se, no caso paulistano,

16 Henri Lefebvre. The production of Space. Transl. Donald Nicholson-Smith. Oxford: Blackwell, 1991, p. 110.17 Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, A cultura material, op.cit.18 Raquel Rolnik. Territrios negros nas cidades brasileiras: etnicidade e cidade em So Paulo e Rio de Janeiro. Revista de Estudos Afro-Asiticos, 17 (1989). Raquel

Rolnik. A Cidade e a Lei. Legislao, Poltica Urbana e Territrios na Cidade de So Paulo. So Paulo: FAPESP, Studio Nobel, 1997, pp. 67ss.19 Ricardo Badar. Campinas, o despontar da modernidade. Campinas: Centro de Memria da Unicamp, 1996. Antnio Carlos Cabral Carpinteiro. Momento de

Ruptura: as transforma es no centro de Campinas na d cada dos cinqenta. Campinas: Centro de Mem ria da Unicamp, 1996. Slvia Amaral Palazzi Zakia. Construo, arquitetura e confi gurao urbana de Campinas nas dcadas de 1930 e 1940: o papel de quatro engenheiros modernos. 2012. Tese (Doutorado). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de So Paulo, pp. 14-85.

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a comunidade negra acompanhou a igreja, no caso campineiro, a comunidade negra escolheu uma outra igreja como espao focal, a igreja de So Benedito, localizada a cerca de 500 metros do antigo Largo do Rosrio (em um curioso paralelismo com So Paulo). Os exemplos poderiam ser estendidos s igrejas-barco, na Amrica do Norte, ou ao prprio tabernculo judaico, mas um levantamento exaustivo s seria possvel com uma pesquisa de larga escala.

Trataremos, aqui, de um caso particularmente interessante de templo fl utuante: o templo de Ares na gora de Atenas, escavado na dcada de 3020. Escavadas a partir da dcada de 30, as fundaes e as centenas de elementos arquiteturais encontradas na rea centro-ocidental da gora (fi g. 1) foram, sem grande difi culdade, equacionadas meno de Pausnias ao santurio de Ares ( ; 1.8.4) no Cermico. No roteiro do periegeta, o santurio est entre as esttuas () de Licurgo, Clias e Demstenes, de um lado, e de Harmodios e Aristogiton, de outro.

O santurio interessa Pausnias por conter esttuas. Dentro do templo, estavam duas esttuas de culto () de Afrodite, de Ares (feita por Alcamenes), de Atena (feita por um prio chamado Locrus), de nio (pelos fi lhos de Praxteles). Ao redor do templo, estavam esttuas de Hracles, Teseu, Apolo prendendo o cabelo com um lao Calades que teria dado leis aos atenienses e Pndaro em agradecimento a uma ode aos atenienses.

Figura 1. Proposta de planta da gora, no perodo imperial (II d.C.), feita por R. Anderson em 1992 (ASCSA21).

20 Marian Holland McAllister. The temple of Ares: a review of the evidence. Hesperia, 28 (1959), pp. 1-64.21 Disponvel em: http://agora.ascsa.net/id/agora/image/2002.01.2671.

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Voltaremos, adiante, para a discusso sobre a decorao escultrica do santurio. Aqui, importante destacar que a localizao das fundaes corresponde descrio de Pausnias; o que torna a identifi cao segura. Bastante controversa, entretanto, a histria do local e do edifcio, em virtude de um fato sem paralelo na arquitetura grega: a transposio integral de um templo, de um lugar a outro.

As evidncias, para tal reconstituio, so o estilo arquitetural do templo, do perodo clssico bastante semelhante, no plano e na elevao, ao Hephaisteion) um vaso associado s fundaes, na gora, e datado do fi nal do sculo I, e, acima de tudo, as marcas dos construtores, por meio de duas ou trs letras do alfabeto grego, em praticamente todos os fragmentos encontrados, cujo estilo epigrfi co data do fi nal do sculo I. As letras se referem posio que o bloco deve ocupar no edifcio, sendo que, segundo a hiptese de M. McAllister22, a primeira letra indica a posio horizontal, a segunda a posio vertical, e a terceira, o lado do edifcio, a partir da entrada. Esta hiptese corresponde grande variao nas duas primeiras letras e limitao da ltima letra a quatro possibilidades: A ( = lado esquerdo), ( = lado direito), ( = entrada) e ( = fundos).

O templo de Ares um perptero drico hexastilo de 14 x 34 metros, com fundaes em poros e toda a superestrutura em mrmore pentlico, com um pronaos com duas colunas in antis, o que se repete no opistodomo; fragmentos das colunas e do entablamento permitem uma reconstituio aproximada (fi gs. 2-3). Uma srie de fragmentos escultricos foi associada por A. Delivorrias23, seguido por P. Baldassarri24 ao fronto do templo de Ares. So fi guras femininas e masculinas, que fariam parte, no fronto leste, de uma composio fi gurando o julgamento de Paris, com esttuas de Atena, Afrodite e Hera no centro, e, no fronto oeste, de uma composio fi gurando a amazonomaquia de Aquiles.

No entanto, ainda que os dois temas sejam coerentes com a presena de esttuas de Afrodite, Ares, nio e Atena divindades atuantes na Ilada no templo, os indcios nos quais se baseia tal reconstruo so extremamente fragmentrios e, no mais das vezes, sem ligao direta com o templo. De resto, a semelhana, na planta e na elevao, com o Hephaisteion, fez com que Dinsmoor (1940) o atribusse ao mesmo arquiteto, datando, assim, sua construo original na dcada de 430.

22 Marian Holland McAllister. The temple of Ares, op.cit., pp. 47-54.23 Angelos Delivorrias. Attische Giebelskulpturen und Akrotere des fnften Jahrhunderts. Tubingen: Ernst Wasmuth, 1974.24 Paola Baldassarri. Sebastoi soteri: edilizia monumentale ad Atene durante il Saeculum Augustum. Roma: G. Bretschneider, 1998, pp. 157-158.

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Figura 2. Proposta de reconstituio da planta do templo de Ares, segundo M. McAllister (1959, p. 61, fi g. 24).

Figura 3. Proposta de restaurao da seo longitudinal da elevao do templo de Ares, segundo M. McAllister (1959, p. 57, fi g. 23).

A localizao original do templo foi primeiramente associada ao Arepago25 e gora Romana26, mas as revises arqueolgicas e a ampliao do confronto com as fontes epigrfi cas produziu uma hiptese mais fundamentada. O templo se localizaria, originalmente, no demos de Acharnai, a cerca de 12 km da gora, onde atestada a existncia de um santurio de Ares e Atena Areia, j no perodo clssico27, e cuja comunidade inscreveu uma dedicao a Ares e a Augusto (IG II2 2953).

A associao entre Atena e Ares em Acharnai, inclusive fi gurativa o decreto SEG 21.510 encimado por um relevo representando Atena coroando Ares seria coerente com a presenta de esttuas de Ares e Atena no templo descrito por Pausnias. Entretanto, at hoje, no foram

25 Wilhelm Drpfeld. Alt-Athen und seine Agora. Osnabrck: Otto Zeller, 1937, pp. 140-50.26 William Bell Dinsmoor. The temple of Ares at Athens. Hesperia, 9: 1 (1940), p. 50.27 SEG 21.519, 34.104, 39.324, 40.126. Cf. Danielle L. Kellog, D. Marathon fi ghters and Men of Maple. Ancient Acharnai. Oxford: Oxford University Press, 2013, pp.

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encontrados indcios de um templo de Ares em Acharnai, sendo mais provvel que o santurio consistisse em um recinto e um altar28. Por outro lado, os arquelogos gregos encontraram, recentemente, fundaes, no demos de Pallene, a cerca de 11 km da gora, que batem com bastante preciso com as dimenses do templo de Ares na gora29 (fi gs. 4-5). H notcia de um templo de Atena administrado pela Liga de Atena Pallenis, que, j no sculo V, demandaria reparos30. O achado, na rea do templo de Ares, na gora, de alguns elementos arquiteturais no pertencentes ao templo original a saber, um fragmento de calha que pertenceu, originalmente, ao templo de Poseidon no Snio31, e um fragmento de calha e fragmentos do forro em mrmore pentlico menos desgastado e com marcas dos construtores diferentes do resto do edifcio, todos datados da poca da transposio faz sentido se relacionada a um templo que necessitaria de reparos, j no sculo V.

Figura 4. Imagem de satlite das fundaes do templo de Athena Pallenis, esquina da atual rua Makrigianni com a rua Zalogou em Gerakas, Atenas (Google Maps32).

28 Idem, pp. 165-166, n. 67.29 Manolis Korres. Apo tons travo stin achaia agora. Horos 10-12 (1992-1998), pp. 83-104.30 Robert Schlaifer. The Cult of Athena Pallenis: (Athenaeus VI 234-235). Harvard Studies in Classical Philology, 54 (1943), p. 43.31 William Bell Dinsmoor. The Temple of Poseidon: A Missing Sima and Other Matters. American Journal of Archaeology, 78 (1974), pp. 211-238.32 Coordenadas: 38.014044, 23.844371. Disponvel em: https://www.google.com.br/maps/place/Zaloggou+7,+Gerakas+153+44,+Greece/@38.0139149,23.8444812,157m/

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Figura 5. Mapa com as indicaes do centro, na atual Acharnes (a), do local do santurio de Atena Pallenis (b), das fundaes do templo de Ares (c), e da distncia, em linha reta, entre os dois primeiros locais e a gora (Google Maps).

A relao de Acharnai e Pallene com a transposio do templo de Pallene ainda pode ser desenvolvida. Por um lado, deve-se considerar que a estela com a dedicao do demos de Acharnai a Ares e Augusto (IG II2 2953) no foi encontrada em Acharnai, mas, segundo K. Pittakis, prximo ao Arepago33. A ligao de Ares com o Arepago evidente pela toponmia Arepago como colina onde Ares foi julgado e absolvido pelo assassinato de Haliartus, fi lho de Poseidon enquanto o crescente prestgio do conselho no sculo I coerente com sua associao a Augusto (tema que ser desenvolvido mais adiante).

A dedicao a Ares e Augusto pode estar associada transposio do templo, no sentido em que a comunidade decide marcar sua presena, na gora, em associao ao novo culto. Por outro lado, um elemento pouco levado em conta bastante relevante: h indcios de que o demos de

33 Os registros de achado da estela so confusos. A primeira referncia foi feita por L. Ross, em 1838, que afi rma que a estela foi encontrada em Egina; no ano seguinte, K. Pittakis a descreve como tendo sido encontrada em Atenas, prximo do Arepago. No possvel determinar, com preciso, a provenincia, e mesmo o transporte da estela de Atenas para Egina e novamente para Atenas. Um trajeto que no implausvel. Cf. Antony Spawforth. The early cult reception of the imperial cult in Athens: problems and ambiguities. In: M.C. Hoff e S. Rotroff (eds.). The Romanization of Athens. Oxford: Oxford University Press, 1997, p. 188.

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Acharnai fazia parte da Liga de Atena Pallenis34. De qualquer forma, se exagerado sugerir uma ao conjunta entre os sacerdotes de Ares e Atena Areia de Acharnai e de Atena Pallenis, na transposio do templo, no parece prudente descartar absolutamente, aps o achado das fundaes em Pallene, a participao do demos de Acharnai na instalao do culto de Ares na gora, tendo em mente, principalmente, o fato de Ares ser sunnaos com Atena.

A datao da transposio bastante controversa. Apenas trs elementos diretamente associados ao templo so utilizados para a datao: um vaso associado s fundaes, datado do fi nal do sculo I a.C; o tipo de letra especialmente o alfa das marcas dos construtores nos blocos reutilizados, que aparece em inscries de meados do sculo I a.C. a meados do I d.C.; e a reforma de um canal subterrneo que partia do Agrippeion, na direo do rio Eridanos, ao norte da gora, tendo sido ligeiramente desviado para o oeste, na altura do altar do templo35. Este ltimo elemento fornece o principal terminus post quem, qual seja, a construo do Agrippeion, normalmente associada passagem de Agripa por Atenas, em 16/5.

O terminus ante quem, por seu turno, s pode ser inferido por evidncias externas ao templo, mas com relaes bastante provveis. A principal fonte a inscrio, em uma base de esttua, atualmente, no teatro de Dioniso (IG II2 3250), que se refere a honras concedidas pelo demos a Caio Csar, fi lho de Augusto, o novo Ares ( ). Ainda que existam vozes dissonantes (Spawforth, 1997, p. 187), consenso de que esta inscrio est associada transposio do templo e rededicao do templo a Ares.

Caio Csar parte de Roma, no ano de 2, para assumir o comando militar do Oriente. O incio de sua misso comemorado por Augusto, com a dedicao do templo de Marte Vingador e de todo o chamado Frum de Augusto, alm da realizao de espetculos que incluam uma representao da naumaquia de Salamina de 480/79, na qual os atenienses venceram os persas. Por um lado, temos a incorporao da comemorao antibrbara ateniense, na misso prtica de Caio Csar, e a dedicao do templo de Marte em Roma; e por outro, a comemorao de Caio Csar como novo Ares em Atenas. So eventos muito coerentes para serem completamente desassociados da transposio de um templo do sculo V, construdo no contexto do programa pericleano, para a gora, em ngulo tendo o altar do templo como n com o Agrippeion (nomeado em funo do pai biolgico de Caio Csar), e rededicado a Ares. Desse modo, sugere-se a provvel passagem de Caio Csar por Atenas como o momento ideal para a realizao da transposio/rededicao36.

A associao entre Ares, Caio Csar, Augusto e Agripa, seguindo esta interpretao, seria um dos maiores smbolos da romanizao de Atenas; divindade relativamente marginal no panteo ateniense. Ares seria introduzido, no centro da gora, como traduo grega de Marte pai dos fundadores de Roma atualizado, tanto como Augusto vingador do assassinato do pai adotivo na batalha de Filipi, contando com a ajuda de Marte, e vingador dos romanos derrotados pelos partas aps o retorno das insgnias em 20/19 quanto como Caio Csar, continuador da misso de imposio da autoridade romana sobre o Oriente.

34 Robert Schlaifer, The Cult of Athena, op.cit., p. 91.35 Jeff rey Burden. Athens remade in the age of Augustus. Dissertation, University of California, 1999, p. 120.36 Burden, refl etindo sobre o processo de desmontagem/remontagem, sugere que o novo templo da gora teria sido construdo em tempo curto, dado que, sem a necessidade

do corte de novos blocos, o grosso do trabalho se concentrava na retirada dos grampos originais. Tempo curto que no signifi ca, certamente, baixo custo: a alta qualidade das inscries consideradas marcas dos construtores torna implausvel que elas tenham sido inscritas no momento da retirada; Burden sugere que os construtores mar-cavam os blocos com tintas ou outros materiais durante a retirada, para depois serem inscritas por escribas profi ssionais. Jeff rey Burden. Athens remade, op. cit., p. 123.

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A presena no templo, de acordo com Pausnias, de divindades associadas Guerra de Tria, e particularmente de Afrodite, sugere que o templo buscava situar, na gora ateniense, o mito fundador de Roma e da gens Iulia, tendo como referncia Enias; tema particularmente importante na literatura da poca augustana, em particular em Virglio e Tito Lvio. A articulao com o Agrippeion, fi nalmente, fazia com que a rea central da gora espelhando os fora imperiais, com templos avanando sobre a rea livre se tornasse um santurio dinstico, com as referncias culturais e religiosas ao pai biolgico e ao pai adotivo do (ento) futuro imperador.

Entretanto, uma interpretao oposta pode ser proposta, com praticamente os mesmos elementos. Em primeiro lugar, a representao da batalha de Salamina, em Roma, indica claramente a referncia ateniense para a estruturao do lugar de Roma na oposio aos brbaros, ecoando o jogo de associaes feito na dedicao do monptero de Roma e Augusto, na acrpole ateniense, dcadas antes. Caio Csar seria um continuador dos atenienses clssicos.

Em segundo lugar, Ares j era cultuado, em Atenas, associado Atena (no demos de Acharnai), e Pausnias menciona que havia uma esttua de Atena dentro do templo, que pode ser interpretada, ou como uma reminiscncia do culto de Atena Pallenis, ou como culto conjunto (sunnaos) de Ares e Atena Areia. Algo no to relevante para Pausnias, preocupado, ento, com as esttuas enquanto exemplares da escultura grega.

Em terceiro lugar, caso o templo fi zesse, de fato, referncia Guerra de Tria considerando as esttuas de divindades mencionadas por Pausnias e a reconstruo moderna dos frontes por um lado, poderia remeter aos mitos de fundao de Roma, e, por outro, a uma j estabelecida tradio de temtica iconogrfi ca ateniense de representao da guerra de Tria associada a edifcios, sendo o templo de Atena Nike e o prprio Prtenon os exemplos mais eloquentes. A presena de esttuas de Hracles e de Teseu, no santurio, fora do templo, reitera a tradio de representao do heri da tica, em paralelo ao heri pan-helnico, como exemplifi cado no friso Hephaisteion (fi gs. 6-7) a algumas dezenas de metros do templo de Ares.

Em quarto lugar, se a posio do templo poderia remeter aos fora imperiais romanos, tratava-se, de qualquer maneira, de um templo ateniense do sculo V.; o que poderia signifi car a prestao de uma homenagem ao perodo clssico paralela naumaquia romana duplicando o templo de Hefesto (praticamente idntico), na parte baixa da gora.

Em quinto lugar, a transposio do templo pode ter partido de uma iniciativa local, vinculada a eventuais enfraquecimentos dos cultos, em seus locais originais (Pallene e/ou Acharnai), ou mesmo ao fortalecimento do conselho do Arepago, no sculo I a.C.

Finalmente, o Agrippeion e o templo de Ares, em sua articulao, reiteram a ortogonalidade produzida, no sculo II, com a construo das stoas Mdia e de talo; ou seja, mantem padres espaciais locais, presentes mais de um sculo e meio antes.

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Figura 6. Mtopa I, do friso leste do templo de Hefestos, na gora ateniense, com cena de luta entre Hracles e o leo da Nemia (ASCSA37).

Figura 7. Mtopa IV, do friso sul do templo de Hefesto, na gora ateniense, com cena de luta entre Teseu e o

Minotauro (ASCSA38).

Diante disso, evidente que propor uma leitura unvoca do templo romanizao da gora, como faz T. L. Shear Jr.39, ou orgulho local ateniense40 , no mnimo, temerrio. Diferentemente, importante ressaltar as ambiguidades envolvidas na interveno, que mescla elementos imperiais e locais, tanto no nvel arquitetural-espacial (arquitetura pericleana, disposio romana), quanto no nvel narrativo (romanos/atenienses contra partos/persas) ambiguidades que respondem aos dilemas produzidos, tanto no processo de construo do principado, quanto na construo do lugar de

37 Disponvel em: http://agora.ascsa.net/id/agora/image/2004.01.0910.38 Disponvel em: http://agora.ascsa.net/id/agora/image/2004.01.1000.39 Como em Theodor Leslie Shear Jr. Athens: from city-state to provincial town. Hesperia, 50: 4 (1981), pp. 356-77.40 Theodosia Stefanidou-Tiveriou. Tradition and Romanization in the monumental landscape of Athens. In: Stavros Vlizos (ed). Athens during the Roman period.

Athens: Mouseio Benaki, 2008, pp. 11-42.

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Atenas, dentro do projeto imperial41, sintetizados na ideia de restaurao.Como Atenas dever ser comemorada, e, inversamente, como inserir as referncias ao princeps

e sua famlia, na paisagem arquitetnica e religiosa da cidade? O antiquarianismo tardo-republicano presente em intervenes anteriores e implcito na transposio quase acadmica do templo fundado, ao mesmo tempo, em uma reverncia arquitetura clssica e uma irreverncia quanto aos locais sagrados, consolida-se, no perodo augustano, como padro de produo do espao; trazendo consigo as ambiguidades e contradies inerentes nova modalidade do evergetismo construtivo e da integrao no Mediterrneo.

Trata-se, pois, de um programa coerente, marcado pelo projeto de monumentalizao do espao urbano de Atenas com forte referncia ao passado42; o conjunto de intervenes ao qual a transposio do templo faz parte um momento fundamental da reproduo espacial da sociedade ateniense diante dos limites e possibilidades geopolticos colocados pelo principado de Augusto.

3 ConclusoA discusso da transposio do templo de Ares, aqui apresentada, procurou demonstrar as

potencialidades do uso de edifcios como fonte histrica. Sua insero, na histria espacial de Atenas, sob o principado, comea, justamente, com seu descarte enquanto templo de Atena em Palene e reuso como templo de Ares na gora. Uma abordagem centrada apenas nas intenes envolvidas no projeto e a consequente busca por um verdadeiro signifi cado do edifcio e na sua transposio. no do conta da multiplicidade de interpretaes envolvidas no processo. Comemorao da arquitetura pericleana, smbolo do poder romano, espao cultual de Ares e/ou de Atena, propaganda dinstica, afi rmao das elites locais? As interpretaes sobre o sentido da transposio so parte de sua obra, que vai alm do projeto para integrar um complexo programa espacial, cabendo, ao historiador, traar indcios que apontem para estas diferentes transposies seja no processo de construo e uso, seja nos padres de descarte e reuso.

41 Antony Spawforth. Greece and the Augustan Cultural Revolution. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.42 Fbio Augusto Morales. Atenas e o Mediterrneo romano: espao, evergetismo e integrao. Tese. Universidade de So Paulo, 2015, pp. 357-359.