E o morador de rua, que não pode acumular água?

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www.arquidiocesedesaopaulo.org.br | 25 de fevereiro a 3 de março de 2015 | Reportagem | 13 As mãos ágeis e queimadas, as pernas cambaleantes. O olhar desconfiado. Ele veio em dire- ção a um grupo de pessoas reu- nidas em frente à Sala São Paulo. “É o Padre Julio?”, perguntou, ao ver o Vigário Episcopal para a Pastoral do Povo da Rua, Padre Julio Lancellotti, retirar engra- dados com garrafas de água de dentro de uma Kombi, estacio- nada ali. “Sim, é o Padre Julio”, alguém respondeu. “E ele tem água? Nós estamos como came- los no deserto”. Antes mesmo de obter a resposta, o jovem ga- nhou uma garrafinha de água e saiu, ainda mais rápido do que havia aparecido. Ao segurar a tão desejada água, guardou na pochete uma espécie de cachimbo de alumínio. “Deixa guardar meu cachimbo do mal”, disse. O nome e a idade daquele jovem permaneceram desconhecidos, mas ele saiu em direção à Cracolândia, a um quar- teirão dali, lugar onde estão insta- ladas, provisoriamente, cerca de 700 pessoas, a maioria absoluta usuária de crack. Em procissão, o grupo seguiu para a Cracolândia com garrafas de água nas mãos, e após distri- buir pelas barracas de plástico espalhadas por ali, se posicionou em frente a outra barraca, onde estava preparado um altar para a missa, que aconteceu no domin- go, 22, às 15h. Jovens, leigos e religiosos participaram daquele momento, que pretendia ser o primeiro de outros, pois a situação do povo da rua está cada vez mais críti- ca com a crise hídrica da cidade. “Antes, eles tinham água na ten- da e podiam, além do consumo, usar para a higiene pessoal. Hoje, falta água quase diariamente e os comerciantes locais não querem mais doar copos ou encher as garrafas”, alertou Padre Julio. A presença de muitos jovens foi imensamente significativa na- ‘Dar de beber a quem tem sede’ MORADORES DE RUA SOFREM COM A CRISE HÍDRICA EM SÃO PAULO; SEM CONDIÇÕES PARA ACUMULAR OU COMPRAR, O PROBLEMA SE AGRAVA E ELES NÃO TÊM ÁGUA NEM SEQUER PARA O CONSUMO NAYÁ FERNANDES [email protected] de oferecer lugar para comer e dormir, a missão ensina ativida- des para essas pessoas e, com o tempo, ajuda na busca de trabalho e convivência na sociedade. “Todo o meu dinheiro vai para a droga e eu preciso mudar, pois tenho um filho de 3 anos para cuidar”, disse um dos que procurou os missionários. Ele não quis se identificar, mas antes de seguir para a casa da Missão, que fica no Belém, buscou algumas coisas que possuía e as colocou numa sacola. ‘Até a cinza de um cigarro vale’ Jeferson, agora membro da Missão Belém, também passou pela Cracolândia. Com um sor- riso no rosto e a disponibilidade para ajudar a qualquer momen- to, ele contou à reportagem do O SÃO PAULO que foi deixado na rua aos 8 anos. Usuário de maco- nha e cocaína por 15 anos, chegou à Cracolândia, onde permaneceu por três anos. Um ano permane- ceu na mesma rua, quase sem se locomover. “Um dia, duas irmãs da Missão Belém passaram e me convidaram a ir com elas. Eu esta- va com tuberculose, quase no fim, e por isso fui”, contou Jeferson, que está na comunidade há dois anos e é o atual coordenador da casa no Belém. “Demorei três dias para con- seguir trocar de roupa quando cheguei. Estava há um ano com a mesma calça e já não sentia o que era tecido e o que era minha pele. Embaixo da chuva e do sol, fica- va dentro de um buraco.” Jeferson começou a trabalhar na padaria da comunidade e, mesmo com as dificuldades da abstinência nos primeiros meses, conseguiu nunca usar nenhum tipo de droga ou ál- cool desde que saiu da Cracolândia. Ele explicou que, na Cra- colândia, é possível fumar com apenas R$ 1 e por isso o lugar recebe pessoas de todo o Brasil para comprar. “Dentro das tendas há pedras de até R$ 1 mil. Tudo serve como moeda de troca. Um prato de comida, uma camiseta, um chinelo velho e até a cinza de um cigarro vale, pois é utilizada na composição do crack. Se você tiver R$ 10 compra uma pedra e divide em até 40 pedacinhos, ven- didos a R$ 1 cada um. Assim, você pode fumar por longos períodos com pouco dinheiro.” Depois de aprender a ler, Jeferson quer começar uma caminhada voca- cional para o sacerdócio e, breve- mente, deve iniciar a faculdade de Filosofia. quela tarde. Membros da Pastoral da Juventude e de comunidades como a Missão Belém, Voz dos Po- bres, O Caminho e coletivos como Observadores Legais, transmiti- ram acolhida e calor humano aos moradores da Cracolândia e mui- tos quiseram contar sua história ou fazer algum desabafo. Três quise- ram acompanhar os membros da Missão Belém para suas casas de acolhida. Um deles se aproximou de Jeferson Cavalcanti de Souza, 35, e perguntou: “Quero ir para a casa de internação. Como faço?” e o missionário prontamente res- pondeu: “Só vir com a gente”. A Missão Belém, em São Pau- lo, tem casas de acolhida e reinser- ção para dependentes químicos e pessoas em situação de rua. Além Na Cracolândia, Padre Julio Lancelloti alerta para impactos da crise hídrica junto aos mais pobres Fotos: Luciney Martins/O SÃO PAULO A água não pode ser negada Durante toda a missa, pes- soas vinham pedir água e, an- tes do término da celebração, chegou também ao local Dom Eduardo Vieira dos Santos, bispo auxiliar da Arquidiocese na Região Sé, que parabenizou os missionários pela iniciativa. Um grupo de Campinas (SP) providenciou a doação de 700 marmitas com macarronada que também foram distribuídas na ocasião. Padre Julio fez um apelo às pessoas das paróquias e comu- nidades e ressaltou a importân- cia de não se negar água para as pessoas em situação de rua. “Eles não têm como acumular, não têm dinheiro para comprar e estão sofrendo mais que to- dos nós. A água não é só para os paroquianos, mas dever ser para todos, porque água é dom de Deus e todos têm direito”, fa- lou, fazendo um alerta aos pa- dres para que não se negue água nas paróquias aos moradores de rua. Naquela tarde, um cami- nhão da Sabesp passou fazen- do a lavagem da rua com jato d’água. Nele podia-se ler “Água de Reuso – não potável”. Ainda que o aviso fosse claro, a cena, forte, não passou despercebida.

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Já diz o provérbio africano: na briga entre dois elefantes, quem sofre mais é sempre a grama. A crise hídrica afeta a todos na capital, mas, e os moradores de rua, como estão conseguindo lidar com o problema sem água nos parques, nas torneiras e lhes sendo negado um copo d'água nos comércios?

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As mãos ágeis e queimadas, as pernas cambaleantes. O olhar desconfiado. Ele veio em dire-ção a um grupo de pessoas reu-nidas em frente à Sala São Paulo. “É o Padre Julio?”, perguntou, ao ver o Vigário Episcopal para a Pastoral do Povo da Rua, Padre Julio Lancellotti, retirar engra-dados com garrafas de água de dentro de uma Kombi, estacio-nada ali. “Sim, é o Padre Julio”, alguém respondeu. “E ele tem água? Nós estamos como came-los no deserto”. Antes mesmo de obter a resposta, o jovem ga-nhou uma garrafinha de água e saiu, ainda mais rápido do que havia aparecido.

Ao segurar a tão desejada água, guardou na pochete uma espécie de cachimbo de alumínio. “Deixa guardar meu cachimbo do mal”, disse. O nome e a idade daquele jovem permaneceram desconhecidos, mas ele saiu em direção à Cracolândia, a um quar-teirão dali, lugar onde estão insta-ladas, provisoriamente, cerca de 700 pessoas, a maioria absoluta usuária de crack.

Em procissão, o grupo seguiu para a Cracolândia com garrafas de água nas mãos, e após distri-buir pelas barracas de plástico espalhadas por ali, se posicionou em frente a outra barraca, onde estava preparado um altar para a missa, que aconteceu no domin-go, 22, às 15h.

Jovens, leigos e religiosos participaram daquele momento, que pretendia ser o primeiro de outros, pois a situação do povo da rua está cada vez mais críti-ca com a crise hídrica da cidade. “Antes, eles tinham água na ten-da e podiam, além do consumo, usar para a higiene pessoal. Hoje, falta água quase diariamente e os comerciantes locais não querem mais doar copos ou encher as garrafas”, alertou Padre Julio.

A presença de muitos jovens foi imensamente significativa na-

‘Dar de beber a quem tem sede’Moradores de rua sofreM coM a crise hídrica eM são Paulo; seM condições Para acuMular ou coMPrar, o ProbleMa se agrava e eles não têM água neM sequer Para o consuMo

Nayá [email protected]

de oferecer lugar para comer e dormir, a missão ensina ativida-des para essas pessoas e, com o tempo, ajuda na busca de trabalho e convivência na sociedade.

“Todo o meu dinheiro vai para a droga e eu preciso mudar, pois tenho um filho de 3 anos para cuidar”, disse um dos que procurou os missionários. Ele não quis se identificar, mas antes de seguir para a casa da Missão, que fica no Belém, buscou algumas coisas que possuía e as colocou numa sacola.

‘Até a cinza de um cigarro vale’

Jeferson, agora membro da Missão Belém, também passou pela Cracolândia. Com um sor-riso no rosto e a disponibilidade para ajudar a qualquer momen-to, ele contou à reportagem do O SÃO PAULO que foi deixado na rua aos 8 anos. Usuário de maco-nha e cocaína por 15 anos, chegou à Cracolândia, onde permaneceu por três anos. Um ano permane-ceu na mesma rua, quase sem se locomover. “Um dia, duas irmãs da Missão Belém passaram e me convidaram a ir com elas. Eu esta-va com tuberculose, quase no fim, e por isso fui”, contou Jeferson, que está na comunidade há dois anos e é o atual coordenador da casa no Belém.

“Demorei três dias para con-seguir trocar de roupa quando cheguei. Estava há um ano com a mesma calça e já não sentia o que era tecido e o que era minha pele. Embaixo da chuva e do sol, fica-va dentro de um buraco.” Jeferson começou a trabalhar na padaria da comunidade e, mesmo com as dificuldades da abstinência nos primeiros meses, conseguiu nunca usar nenhum tipo de droga ou ál-cool desde que saiu da Cracolândia.

Ele explicou que, na Cra-colândia, é possível fumar com apenas R$ 1 e por isso o lugar recebe pessoas de todo o Brasil para comprar. “Dentro das tendas há pedras de até R$ 1 mil. Tudo serve como moeda de troca. Um prato de comida, uma camiseta, um chinelo velho e até a cinza de um cigarro vale, pois é utilizada na composição do crack. Se você tiver R$ 10 compra uma pedra e divide em até 40 pedacinhos, ven-didos a R$ 1 cada um. Assim, você pode fumar por longos períodos com pouco dinheiro.” Depois de aprender a ler, Jeferson quer começar uma caminhada voca-cional para o sacerdócio e, breve-mente, deve iniciar a faculdade de Filosofia.

quela tarde. Membros da Pastoral da Juventude e de comunidades como a Missão Belém, Voz dos Po-bres, O Caminho e coletivos como Observadores Legais, transmiti-ram acolhida e calor humano aos moradores da Cracolândia e mui-

tos quiseram contar sua história ou fazer algum desabafo. Três quise-ram acompanhar os membros da Missão Belém para suas casas de acolhida. Um deles se aproximou de Jeferson Cavalcanti de Souza, 35, e perguntou: “Quero ir para a

casa de internação. Como faço?” e o missionário prontamente res-pondeu: “Só vir com a gente”.

A Missão Belém, em São Pau-lo, tem casas de acolhida e reinser-ção para dependentes químicos e pessoas em situação de rua. Além

Na Cracolândia, Padre Julio Lancelloti alerta para impactos da crise hídrica junto aos mais pobres

fotos: luciney Martins/O SÃO PAULO

A água não pode ser negada

Durante toda a missa, pes-soas vinham pedir água e, an-tes do término da celebração, chegou também ao local Dom Eduardo Vieira dos Santos, bispo auxiliar da Arquidiocese na Região Sé, que parabenizou os missionários pela iniciativa. Um grupo de Campinas (SP)

providenciou a doação de 700 marmitas com macarronada que também foram distribuídas na ocasião.

Padre Julio fez um apelo às pessoas das paróquias e comu-nidades e ressaltou a importân-cia de não se negar água para as pessoas em situação de rua. “Eles não têm como acumular, não têm dinheiro para comprar e estão sofrendo mais que to-dos nós. A água não é só para

os paroquianos, mas dever ser para todos, porque água é dom de Deus e todos têm direito”, fa-lou, fazendo um alerta aos pa-dres para que não se negue água nas paróquias aos moradores de rua. Naquela tarde, um cami-nhão da Sabesp passou fazen-do a lavagem da rua com jato d’água. Nele podia-se ler “Água de Reuso – não potável”. Ainda que o aviso fosse claro, a cena, forte, não passou despercebida.