É POSSÍVEL RELIGIÃO, ESTADO E EDUCAÇÃO … · Resumo: O Brasil encontra ... 8 BOCK, Ana...
-
Upload
nguyencong -
Category
Documents
-
view
214 -
download
0
Transcript of É POSSÍVEL RELIGIÃO, ESTADO E EDUCAÇÃO … · Resumo: O Brasil encontra ... 8 BOCK, Ana...
1
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
É POSSÍVEL RELIGIÃO, ESTADO E EDUCAÇÃO TRABALHAREM
JUNTAS CONTRA A VIOLÊNCIA DE GÊNERO?
Maria Cristina Furtado1
Resumo: O Brasil encontra-se nas estatísticas mundiais sobre a violência de gênero como: - a quinta
maior taxa de feminicídio do mundo; - o país onde cerca de cinquenta mil mulheres, anualmente, são
vítimas de estupro, com mais da metade de meninas menores de treze anos violentadas em suas
próprias residências; - lider em número de assasssinatos de travestis e transexuais, tendo a cada vinte
e oito horas alguém pertencente ao grupo LGBTTI assassinado. Diante desse quadro, procuraremos
analisar as causas dessa violência, e a importância de se debater sobre gênero nas escolas, através de
currículos voltados para a conscientização de meninxs sobre o respeitar o ‘outro’ diferente delxs
próprios, de modo que através da educação, a mulher e o grupo LGBTTI possam vir a ter uma vida
livre de violência. Refletir sobre as dificuldades enfrentadas frente à rejeição dos setores religiosos
em relação a qualquer debate ligado a sexualidade e gênero, culminando com a retirada da palavra
‘gênero’ dos planos de educação no Brasil. Finalmente, abordar a necessidade das universidades e
dos cursos de formação de professores, independente de matéria e seguimento, produzirem
conhecimento científico, ético, e didático sobre ‘gênero’, de modo que possamos ter professores
capacitados a dialogar com a sociedade sobre este tema.
Palavras-chave: gênero, sexualidade, educação, religião.
Introdução
Quem estuda ‘violência de gênero’, embora lamente, não deve se surpreender com o fato do
Brasil, possuindo um índice altíssimo de violência contra a mulher e contra o grupo LGBTTI2,
apresentar, em alguns setores públicos e privados, forte resistência para aprovar o debate sobre
‘gênero’ nos planos de educação. Se pararmos para refletir perceberemos que a educação
convencional que se recebe nas escolas, desde a ‘educação infantil’ ao ‘ensino médio’ é sexista, e
ainda hoje, distingue os papéis de gênero para o feminino e para o masculino, com visível
delimitação de espaços e valores, sendo por isso mesmo considerada como uma das causas da
permanência deste tipo de violência no país. Os legisladores e os que possuem poder decisório para
modificar esta situação são oriundos dessa educação que receberam em suas escolas, casas, e igrejas,
o que de certa maneira explica a forte rejeição que têm ao se depararem com a palavra “gênero” no
plano educacional. Esta palavra, por trazer novas conotações e questionamentos sobre o discurso e a
ação educativa convencional, assusta, pois esse debate deverá levar a uma significativa mudança de
1 Doutoranda em Teologia da PUC-Rio (defesa marcada para Agosto de 2017). Finalizou em Outubro de 2016 o
doutorado sanduiche sobre “Gender Violence” em René Girard, em Roehampton University, London, UK. É psicóloga,
teóloga e professora-tutora da PUC-Rio. Professora de Ética, Psicologia, e Religião em cursos de capacitação de
professores. Membro fundador do grupo de pesquisa Diversidade sexual – cidadania e religião, da PUC-Rio, e atual
coordenadora do Projeto de Inclusão social, no Centro social São Francisco de Paula – Barra, RJ. Autora de 9 livros
infanto-juvenis (Ed. do Brasil), nos quais une literatura e valores éticos. Contato: [email protected].
Trabalhos publicados no site: http://www.diversidadesexual.com.br/. 2 LGBTTI – sigla que significa: lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexuais.
2
atitude. Para algumas pessoas mudar seria o mesmo que romper, cortar, e não simplesmente
transformar, refazer, alterar, modificar. Dessa forma, colocam-se defendendo a continuidade da
célula mater da sociedade; a família, sem perceberem que aos poucos a família tradicional, já há
algum tempo, fora do âmbito religioso, vem ampliando, e mudando a sua configuração. Em 1994, a
OMS declarava: "o conceito de família não pode ser limitado a laços de sangue, casamento, parceria
sexual ou adoção. Família é o grupo cujas relações são baseadas na confiança, suporte mútuo e um
destino comum" (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 1994)3. Entretanto, mudar é sempre
difícil, pois pode provocar crise, dor, e até a necessidade de se repensar certas crenças ligadas à sua
história, tradição, e a medos pessoais e coletivos.
Porém, apesar de não surpreender e até ser possível compreender a reação de setores mais
conservadores da sociedade sobre o debate de gênero nas escolas, essa questão precisa ser enfrentada,
pois educar não significa apenas ‘ensinar conhecimentos’. Sua função vai além, pois,
etimologicamente, o termo educar, em latim educare, educere significa ‘conduzir para fora’ ou
‘direcionar para fora’, o que nos remete a função de preparar os alunos para viver em sociedade,
mostrando as diferenças que existem no mundo. Dessa forma, não se pode fechar os olhos para a
violência de gênero existente, pois o Brasil é um país que: - Tem “a quinta maior taxa de feminicídio
do mundo” (ONUBR, 2016)4. - Possui cerca de “cinquenta mil mulheres estupradas por ano”5
(GLOBO.COM, 2014). - “É lider mundial em número de assasssinatos de trans”6 (R7, 2017), e “a
cada vinte e oito horas um homossexual morre de forma violenta” (GLOBO.COM, 2016).7
Portanto, é preciso aprender com o passado, olhar para o presente, e modificar o futuro.
Neste artigo refletiremos sobre caminhos possíveis para esta mudança.
Causas e tipos de violência de gênero
3 SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE VILA NOVA DE FAMALICÃO. Festa da família. Portugal, em 2010.
Disponível em: http://www.scmfamalicao.pt/3/noticia/0/133.php. Acessado em 21/06/2017. 4 ONU: Taxa de feminicídios no Brasil é quinta maior do mundo. Diretrizes nacionais buscam solução, em 09/04/2016.
Acessado em 22/05/2017. 5 GLOBO.COM. Cinquenta mil mulheres são estupradas por ano no Brasil. Notícias, em 21/01/2014. Disponível em:
http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2014/01/50-mil-mulheres-sao-estupradas-por-ano-no-brasil-diz-estudo.html.
Acessada em 22/05/2017. 6 R7. Brasil lidera assassinatos de pessoas trans no mundo. Notícias Brasil, em 30/01/2017. Disponível em:
http://noticias.r7.com/brasil/brasil-lidera-assassinatos-de-pessoas-trans-no-mundo-30012017. Aces sada em 25/06/2017. 7 GLOBO.COM. A cada 28 horas, um homossexual morre de forma violenta no Brasil. Fantástico, em 19/06/2016.
Disponível em: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2016/06/cada-28-horas-um-homossexual-morre-de-forma-violenta-
no-brasil.html. Acessado em 26/06/2017.
3
São diversos os fatores subjetivos que levam a este tipo de violência. Existem os fatores
sociais, culturais e simbólicos da percepção do feminino que com a ajuda das interpretações bíblicas
tradicionais, do ideal filosófico, e do interesse dos governos, levaram a sociedade ocidental a
introjeção de uma primazia masculina, que ainda na contemporaneidade, contamina as relações,
incita a rivalidade, e consequentemente, colabora para a violência de gênero.
Em um mundo onde o homem é o paradigma: cisgênero, heterossexual, forte, inteligente,
valente, corajoso e provedor; a mulher fica em segundo plano, como sua auxiliar, sensível, com a
finalidade de procriar, cuidar de filhos, da casa, do marido, sob a justificativa de que
‘biologicamente’ é feita para este fim. Todas as pessoas LGBTTI também são consideradas
inferiores, abomináveis, e pecadoras, pois ousam perverter a ordem ‘biológica’, que por séculos, com
a ajuda do estado e da religião cristã, foi introjetada como ‘natural’; embora, hoje, as ciências
mostrem a forte influência da cultura, e das estruturas sociais na construção de gênero. Junto a isso,
acrescenta-se que simbolicamente a mulher é aquela que sangra mensalmente, e pode procriar por
diferentes parcerias. Isso atrai e causa temor, pois o sangue é ligado à sexualidade, à impureza, à
traição, à violência, aos rituais de sacrifícios, e aos crimes sexuais.
A introjeção da superioridade do modelo masculino, o medo da figura feminina, o mimetismo
de ação constante em relação às gerações anteriores, traz a violência como um mecanismo que é fruto
de um padrão familiar de subordinação. É essa estrutura familiar que se pretende manter ao desejar
impedir que se debata gênero na escola, “o modelo familiar da autoridade paterna que determina a
submissão dos filhos e da mulher à autoridade paterna” (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 1988).8
Embora a sociedade venha passando por modificações em relação à liberdade da mulher, do
grupo LGBTTI, e haja uma maior conscientização do patriarcalismo nas relações estabelecidas, os
jogos de poder continuam presentes, com muita rivalidade, e, ainda são os homens que, normalmente,
assumem o poder. Portanto, quando a mulher não aceita como ‘natural’ o papel a ela imposto, é
comum os homens recorrerem à violência, desde as formas mais sutis à violência física, podendo
chegar ao assassinato. Quando uma pessoa lésbica ou gay afirma não sentir atração pelo sexo oposto,
e que deseja se relacionar com alguém do mesmo sexo, ainda é comum haver agressão por parte da
família, liderada pela figura paterna, hostilizando, espancando, e até expulsando de casa. Em relação
às trans e travestis, o mesmo acontece, sendo o desfecho mais comum; a expulsão de casa.
Além desses, ainda existem fatores psicológicos pessoais marcantes. Por exemplo, quando
alguém sofre ‘violência’, ou quando precisa reprimir fortemente algum desejo, existe a possibilidade
8 BOCK, Ana Mercês Bahia; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes. Psicologias: uma introdução ao estudo
da Psicologia. São Paulo: Saraiva, 1988.
4
de rejeitar a condição que x levou a sofrer a violência ou a se reprimir. Como consequência essa
pessoa procura desviar o seu medo de forma agressiva contra qualquer outra que se encontre na
mesma situação que ela quando viveu a agressão, ou que apresenta o mesmo desejo que reprime.
Segundo o psicanalista
Calligaris, "Quando as minhas reações são excessivas, deslocadas e difíceis de serem justificadas,
elas emanam de um conflito interno” (CALLIGARIS, 2011)9. Dessa observação, alguns exemplos
podem ser dados, tais como: - mulheres que sofreram estupro e colocam-se raivosamente contra
outras mulheres, mesmo que seja filha, sobrinha, etc, ao saberem que estas também sofreram este tipo
de violência. Considera-as culpadas pela agressão, pois foi assim que a fizeram sentir quando
também foi estuprada. - Homens que atacam o grupo LGBTTI por palavras, fomentando ódio, ou
usam a violência física contra eles, por não conseguirem aceitar a feminilidade que possuem dentro
de si. Especificamente sobre a homofobia, Calligari diz: “Como tenho dificuldades de conter a minha
própria homossexualidade, acho mais fácil tentar reprimir a homossexualidade dos outros, ou seja,
condená-la, persegui-la e reprimi-la, se possível até fisicamente, porque isso ajuda a conter a minha”
(CALLIGARIS, 2011).10
A violência de gênero pode ser explicitada ou encontrar-se simplesmente oculta
em um sorriso ou olhar, e em outras formas de expressões corporais. Žižek aponta os diferentes
tipos de violência existentes na sociedade. Segundo ele, existe a violência sutil, como a
simbólica que pode acontecer de várias maneiras: 11 (ŽIŽEK, 2014, p.180) Em uma única frase, nos
discursos, nas ações, nos jogos, nas piadas, nos presentes, em qualquer ação que possa reforçar a
diferença entre homens e mulheres, homens e LGBTTIs, e etc. Segundo Homi Bhabha, a violência
sutil está na valorização do dominador. Em nosso caso, na valorização das diferenças sexuais, onde
tudo o que pertence ao homem é valorizado, e o que está relacionado com o feminino tende a ser
desvalorizado. É o que ocorre nas piadas que colocam as mulheres como histéricas, ou ridicularizam
os homossexuais, as travestis, ou valorizam o homem heterossexual em detrimento dos demais.
Žižek também faz referência à ‘violência objetiva’ ou ‘sistêmica’, existente na ‘estrutura
social’, que envolve a todos. Esta violência encontra nos sistemas econômicos, políticos e religiosos a
sustentação das relações de dominação e exploração do mais frágil. Por exemplo, o salário da mulher,
na maioria das empresas, é 30% a menos que o do homem. Os cargos de chefias em muitas
organizações são negados às mulheres pelo fato de serem mulheres. A negação de trabalho a pessoas
9 CALLIGARIS, Contardo. Homofobia e homossexualidade. Folha de São Paulo, em 10/11/2011. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1011201119.htm. Acessada em 23/05/2016. 10 IDEM. Ibidem. 11 ZIZEK, Slavoj. Violência. Seis reflexões laterais. S. Paulo: Boitempo Editorial, 2014, p. 180.
5
do grupo LGBTTI, embora possam ter a especialização necessária, e possuir melhores condições para
o trabalho do que x candidatx cisgênerx, heterossexual.
Por fim, existe ainda a ‘violência subjetiva’ que pode ser feita por agentes sociais, nos quais
colocamos, entre outros, os políticos, empresários, clero, líderes religiosos, e fanáticos, que utilizam
o poder para marcar as diferenças e não a igualdade, muitas vezes até fomentando o ódio. Ou no dia a
dia através de pais, mães, professores, que supervalorizam o menino em detrimento da menina. Por
exemplo, enfatizando que ele precisa estudar, e ela cuidar da casa. etc. Ou podemos lembrar-nos dos
pregadores que enfatizam leituras bíblicas nas quais as mulheres são pecadoras, e precisam ser
submissas aos seus maridos. Ou ainda que os homossexuais são abomináveis, e deveriam ser
exterminados. Entretanto, um dos mais gritantes é a impunidade para os que praticaram violência de
gênero. Sabemos que, apesar da lei Maria da Penha, e da lei do feminicídio, muitos agressores,
inclusive assassinos continuam livres. Notícias como “Marido bate. Preso, é solto. E depois mata a
esposa”12 (HISAYASU & RESK, 2016) são encontradas com frequência na parte interna dos jornais.
Em relação ao grupo LGBTTI, a negação de leis específicas para a transhomofobia reforça a
impunidade com os que fazem as agressões. A morte da travesti Dandara dos Santos, cuja morte foi
filmada pelos próprios assassinos, mostra a crueldade com que elas são mortas, e desde, então, surgiu
uma proposta de lei do código penal para prever o LGBTcídio como circunstância qualificadora do
crime de homicídio, colocando este tipo de crime no rol
dos crimes hediondos.13 Será que conseguiremos a aprovação dessa lei?
Poderíamos ainda relatar outros tipos de ‘violência de gênero’ que os dois grupos são
submetidos, mas na realidade, seja qual for a causa e o tipo de violência: simbólica, emocional,
psicológica, sexual, institucional, ou física, a violência corrói, destrói, mata, pois atinge o mais
profundo do ser.
A rejeição dos setores religiosos e a tentativa de diálogo
O ponto de partida dos estudos de gênero tem sido a igualdade entre homem e
mulher, como também a inclusão e a total cidadania do grupo LGBTTI. No entanto, a principal
crítica a esses estudos, na igreja católica, tem sido no sentido de que para haver a igualdade de gênero
12 HISAYASU, Alexandre & RESK, Felipe. Marido bate. Preso, é solto. E depois mata a esposa. NOTIBRAS.
Disponível em: http://www.notibras.com/site/marido-bate-preso-e-solto-e-depois-mata-a-esposa/. Publicado em
23/10/2016. Acessado em 23/06/2017. 13 Alterando o artigo 1 da lei n. 8072/1990. Pelo projeto é considerado LGBTcídio quando o crime envolve menosprezo
ou discriminação por razões de sexualidade e identidade de gênero.
6
tem-se valorizado “a minimização da dualidade dos sexos, o que questiona a família”14 (LIMA,
2016) nos moldes pai, mãe, com a autoridade paterna. O papa Francisco, também criticou,
mostrando a sua preocupação em relação a uma ideologia chamada ‘gênero’. Segundo ele, essa
ideologia nega a diferença e a reciprocidade natural entre homem e mulher, o que nos levaria a uma
sociedade sem diferenças de sexo, e a uma identidade pessoal desvinculadas da diversidade biológica
entre homem e mulher. Segundo o Papa, a identidade humana não pode ser uma opção, pois o sexo
biológico e a função sociocultural do sexo tem que estar juntos. Podem se distinguir, mas não se
separar 15 Para o Papa a eliminação da diferença seria verdadeiramente o problema, não a solução
(FRANCISCO, 2015)16.
Além dessas críticas, há um grupo de católicos no Brasil que faz uma forte propaganda nas
igrejas e através de publicações ‘contra’ o que chamam de ‘ideologia de gênero’. Eles possuem um
material didático que coloca as questões de gênero e de orientação sexual de forma caricatural. Como
exemplo, citamos o desenho de um menino nu olhando para o seu pênis e perguntando: ‘Não sou
homem? Então... O que é isto?’ Neste material há também referência a estes estudos como ideologia
de “neototalitarismo e morte da família”. Ideologia que estaria controlando a ONU, a União Europeia
e o Banco Mundial, incidindo em organismos, programas e em empréstimos para o desenvolvimento
de países pobres, com cláusulas de difusão de gênero (SIQUEIRA, 2012).
Por outro lado, existem grupos de educadores e teólogos, dentro das diversas
denominações cristãs17 que acreditam ser importante levar este tema para ser debatido nas escolas,
pois a violência contra as mulheres aumenta, e a população LGBTTI enfrenta uma situação
gravíssima pela evasão escolar, e violência diária que vem sofrendo.
Sem renunciar a perspectiva cristã da diferença entre homem e mulher, respeitando a
importância do sexo biológico, estes grupos acompanham as descobertas das ‘ciências’ e os estudos
de gênero, reconhecendo a importância do ambiente cultural e social na vida de cada pessoa. Para a
pastora Romi Bencke, secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) a
perspectiva de gênero é importante para problematizar as construções sociais de ser homem e ser
14 LIMA, Luis Corrêa. Estudos de gênero versus ideologia: implicações teológicas. Revista Cátedra digital, em Abril de
2016. Disponível em: http://revista.catedra.puc-rio.br/index.php/2016/03/30/estudos-de-genero-versus-ideologia-
implicacoes-teologicas/. Acessada em 24/06/2017. 15 PAPA FRANCISCO. Exortação pós-sinodal Amoris Laetitia. Documentos Vaticano, em 19/03/2016, n0 56. Disponível
em: htt p: //w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-
ap_20160319_amoris-laetitia.html. Acessado em 26/06/2017. 16 IDEM. Audiência geral. Docuentos Vaticano, em 15/04/2015. Disponível em html:w2.vatican.va/
content/francesco/pt/audiences/2015.index.2.html. Acessado em 26/06/2017. 17 Estamos nos referindo às igrejas protestantes históricas, a igreja católica, e algumas evangélicas.
7
mulher, e despertam a atenção para aspectos das relações sociais que buscam manter a dominação de
um gênero sobre outro.18 Para ela:
As diferenças entre homens e mulheres não são apenas biológicas. Elas também são sociais, econômicas
e políticas, considerando que as mulheres quase não ocupam espaços de poder. [...] O debate nas escolas
seria importante [...] Juntamente com as leis, precisamos de uma profunda mudança cultural (BENCKE,
2015).19
Estes grupos20 através de pesquisas sobre este tema, defesas de teses de doutorado, e mestrado,
de inúmeros artigos, livros, apresentações de trabalhos em congressos Teológicos e Ciências da
Religião, congressos de Bioética, palestras, e debates, tem procurado dialogar em âmbito acadêmico,
nas igrejas, e fora delas, mostrando a importância desses estudos, das diversas posições existentes nos
estudos de gênero, e ponderando que esses estudos, de modo geral, respeitam a importância do sexo
biológico. Pois como diz o teólogo e padre Corrêa Lima, professor da PUC, e coordenador do grupo
Diversidade sexual – cidadania – religião da PUC-Rio, “É importante evidenciar o papel da cultura e
das estruturas sociais21” (LIMA, 2015), pois a violência de gênero vem sendo produzida e
reproduzida há séculos a partir das relações que ocorrem na esfera pessoal, social e institucional,
entrelançando-se e trazendo ainda na contemporaneidade, a cultura da desvalorização do feminino.
Em relação à Igreja Católica, apesar dos embates que até hoje tem existido entre a esta igreja e
as questões de gênero, o papa Francisco, embora refute estes estudos, convoca a igreja a ir ao
encontro dos que sofrem com as injustiças, para anunciar o amor de Deus e curar as feridas. Ele
próprio se encontrou com pessoas do grupo LGBTTI com seus/suas companheirxs, acolhendo-xs
com carinho, amizade, e respeito, além de procurar colocar mulheres em cargos decisórios na igreja,
e promover debate para o diaconato de mulheres. Dessa forma, acreditamos que se os teólogos que
estão voltados para este trabalho continuarem em suas pesquisas a realizar um diálogo dos
evangelhos com as ciências e os estudos de gênero, oferecerão subsídios suficientes para que possa
haver uma mudança na percepção deste trabalho.
18 BENCKE, Romi. Ideologia de gênero nas escolas pode contribuir para a redução da violência. Entrevista, em
26/06/2017. Disponível em: http://conic.org.br/portal/noticias/1464-romi-benckesecretaria-geral-do-conic-fala-sobre-
ideologia-de-genero. Acessado em 30/05/2016. 19 IDEM. Ibidem. 20 Entre eles citamos o Grupo de diversidade sexual – cidadania e religião da PUC-Rio, do qual sou membro fundador,
possui em seu site inúmeros trabalhos sobre gênero e diversidade sexual. Os trabalhos podem ser encontrados no site: http://www.diversidadesexual.com.br. O grupo tem publicou o livro:
(Org. LIMA, Luis Correa). Teologia e sexualidade: Portas abertas pelo Papa Francisco. São Paulo: Reflexão, 2015. 21 LIMA, Luis Corrêa. Estudos de gênero versus ideologia: desafios da teologia. Mandrágora, v.21. n. 2, 2015, p. 93.
Disponível em: http://www.diversidadesexual.com.br/wp-content/uploads/ 2013/04/Mandrá gora-final.pdf. Acessada em
30/05/2016
8
O futuro e o debate de gênero no Brasil
Para nós, o debate nas escolas sobre ‘gênero’, ‘violência de gênero’ e ‘diversidade sexual’ já
está acontecendo, com ou sem o nome ‘gênero’. Essa é uma realidade que não se pode mais fugir, e
todo educador tem essa consciência. Além de que, as leis municipais não podem ser maiores do que a
constituição do país. Dessa maneira, já existem diversas reações do judiciário sobre a proibição do
debate sobre gênero nas escolas. Segundo o procurador-geral da República:
A Constituição de 1988 adota, explicitamente, concepção de educação como preparação para exercício
de cidadania, respeito a diversidade e convívio em sociedade plural, com múltiplas expressões
religiosas, políticas, culturais e étnicas. [...] Os alunos não podem ser privados do ensino com
informações referentes a orientações sexuais, tendo em vista o respeito geral mútuo aos direitos
humanos, exigido pela Constituição e pelos pactos internacionais. (CARNEIRO, 2017)22
E prossegue dizendo que a exclusão deste ensino viola os direitos de quem esteja
fora do padrão heteronormativo, citando a população LGBT.
Por ser um assunto muito polêmico e inovador, na igreja católica, nas igrejas cristãs
tradicionais, e nas igrejas evangélicas há diversidade de posições em relação a este tema. Em uma
pesquisa realizada na ‘Marcha para Jesus de 2017’23, cuja presença maciça era de evangélicos, sobre
se a escola deveria ensinar a respeitar os gays, 77% dos entrevistados responderam que sim, 18% não
concordavam, e 5% não sabiam (ORENSTEIN, 16/06/ 2017). 24 Em outra pesquisa feita pelo IBOPE em
fevereiro de 2017 com a população em geral, 72% dos entrevistados concordavam total ou em parte
que os professores promovam o debate sobre o direito de cada pessoa viver livremente sua
sexualidade, sejam heterossexuais ou homossexuais; 84% dos entrevistados concordavam totalmente
ou em parte que professores discutam sobre a igualdade entre os sexos com os alunos; e 88% eram a
favor dos alunos de escolas públicas receberem aulas de educação sexual. A variante era a idade:
42% acreditavam que o conteúdo deveria ser abordado a partir dos 13 anos, 36% a partir dos 10 anos,
9% eram de opinião que não deveria ser abordado, e 3% não souberam responder, ou não
responderam ( FERNANDES, 24/06/2017)25 Como Regina Soares26 afirma, a pesquisa do Ibope
indica que, em geral, não há resistência dos pais em relação a se debater esses temas na escola.
22 CARNEIRO, Luiz Orlando. PGR questiona leis que vedam tema “gênero” nas escolas. JOTA, em 08/06/2017.
Disponível em: https://jota.info/justica/pgr-questiona-leis-que-vedam-tema-genero-nas-escolas-08062017. Acessado em
26/06/2017. 23 Pesquisa realizada pela professora Esther Solano, da Unifesp, e por Marcio Moretto Ribeiro e Pablo Ortellado, da USP. 24 ORENSTEIN, José. Quem são e o que pensam as pessoas que participaram da Marcha para Jesus em SP. NEXO, em
16/06/2017. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/06/16/Quem-s%C3%A3o-e-o-que-pensam-
as-pessoas-que-participaram-da-Marcha-para-Jesus-em-SP. Acessado em 26/06/2017. 25 FERNANDES. 84% dos brasileiros apoiam discutir gênero nas escolas, diz pesquisa Ibope. HUFFPOST Mulheres,
em 24/06/2017. Disponível em: http://www.huffpostbrasil.com/2017/06/24/84-dos-brasileiros-apoiam-discutir-genero-
nas-escolas-diz-pesq_a_22583250/. Acessada em 24/06/2017.
9
Uma das justificativas dos que não apoiam esta abordagem nas escolas, é a falta de
credibilidade dos pais nos professores e nas escolas para a abordagem desse tema. Entretanto,
acreditamos que se houver diálogo da escola com os pais preparando-os para este trabalho, ele poderá
acontecer, sem maiores problemas. Para isso, é importante que os professores conheçam com
profundidade o tema. Nos cursos de ‘Diversidade sexual – Cidadania – Religião’ dos quais fui
professora,27 recebemos professores, coordenadores e diretores, às vezes de uma mesma escola,
normalmente escolas particulares,28 que vinham de longe, desejosos de conhecerem ou se
aprofundarem no tema, para refletirem como agir frente a certos problemas existentes na escola.
A nosso ver, é muito importante que as faculdades voltadas para a formação de professores
ofereçam matérias obrigatórias sobre ‘violência de gênero, gênero, e diversidade sexual’, de modo a
preparar os futuros professores para trabalharem este tema, sejam eles de qualquer área: infantil,
fundamental 1, ou professores de portugues, matemática, física, etc. Quando nos referimos a
abordagem em sala de aula para os futuros profissionais de educação, pensamos em oferecer
conhecimento, reflexões e debates que possam promover uma visão crítica sobre certas práticas
pedagógicas que tem se mostrado racistas, machistas, sexistas e homofóbicas, transformando-as, para
que possamos vir a ter a valorização da igualdade entre seres humanos, e o respeito às diferenças.
Proporcionar conhecimentos gerais onde possam ser estudados desde o cuidado com o corpo,
conceitos, explicações científicas, até estudos de casos, reflexões, e debates, de modo a se buscar não
só o conhecimento, mas um caminho ético onde todxs possam estar incluidxs.
Algumas faculdades já se preocupam com esta preparação, mas será necessário, se realmente
desejarmos diminuir consideravelmente a ‘violência de gênro’, que todas (públicas e particulares),
estejam voltadas para este questão.
Para os professores que já sairam das faculdades é essencial a existência de ‘cursos de
capacitação para este tema’, e que isto possa ser incentivado pela direção das próprias escolas, ou até
dado nas próprias escolas.
Conclusão
Temos consciência da dificuldade que ainda enfrentaremos para termos uma educação que vise
relações de igualdade, e respeito às diferenças. Para isso, com toda a certeza, a educação precisa não
ser ‘sexista’, o que não significa eliminar a compreensão biológica do que é ser homem ou mulher,
mas que se entenda a importância dela e do fator social, econômico e político na vida do ser humano,
26 Regina Soares é doutora em Sociologia da Religião e uma das coordenadoras das Católicas pelo direito de decidir. 27 Fui professora dos cursos de Diversidade sexual-Cidadania e Religião realizados no Centro Loyola de Fé e cultura,
RJ. Atualmente, sou professora do curso de ‘Diversidade sexual, gênero e violência’ ministrado em lugares diversos,
como clínicas, escolas, universidades. 28 No Rio de Janeiro, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, oferece cursos de capacitação para os professores de
escolas públicas.
10
saber o que realmente é a ‘natureza’ de cada pessoa, e aprendamos a reconhecer a igualdade, e as
diferenças, respeitando uma pessoa, não por ser homem ou mulher, mas por ser um ser humano.
Como diz a teóloga Maria Clara Bingemer, precisamos “erigir uma ‘ética que abra caminho para o
ethos do amor” (BINGEMER, 2002).29
Bibliografia
BINGEMER, L. Maria Clara (org.); Edson Damasceno... [et al]. Violência e Religião: Cristianismo,
Islamismo, Judaísmo: três religiões em confronto e diálogo. R.J: Ed. PUC Rio. São Paulo: Ed.Loyola,
2002.
BENCKE, Romi. Ideologia de gênero nas escolas pode contribuir para a redução da violência.
CONIC. Entrevista, em 26/06/2015 Disponível em: http://conic.org.br/ portal/noticias/1464-romi-
benckesecretaria-geral-do-conic-fala-sobre-ideologia-de-ge nero. Acessado em 30/05/2016.
BOCK, Ana Mercês Bahia; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes. Psicologias: uma
introdução ao estudo da Psicologia. São Paulo: Saraiva, 1988.
CARNEIRO, Luiz Orlando. PGR questiona leis que vedam tema “gênero” nas escolas. JOTA, em
08/06/2017. Disponível em: https://jota.info/justica/pgr-questiona-leis-que-vedam-tema-genero-nas-
escolas-08062017. Acessado em 26/06/2017.
DICIONÁRIO ETIMOLOGICO. Educar. Disponível em: https://www.dicionarioeti mo logico.
com.br/educar/. Acessado em 23/06/2017.
FERNANDES, Marcella. 84% dos brasileiros apoiam discutir gênero nas escolas, diz pesquisa
Ibope. HUFFPOST Mulheres, em 24/06/2017. Disponível em: http://www. huffpostbrasil.
com/2017/06/24/84-dos-brasileiros-apoiam-discutir-genero-nas-escolas-diz-pes q_a_22583250/.
Acessada em 24/06/2017.
GLOBO.COM. Cinquenta mil mulheres são estupradas por ano no Brasil. Notícias, em 21/01/2014.
Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2014/01/50-mil-mulheres-sao-estupradas-por-
ano-no-brasil-diz-estudo.html. Acessada em 22/05/2017.
___________. A cada 28 horas, um homossexual morre de forma violenta no Brasil. Fantástico, em
19/06/2016. Disponível em: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2016 /06/cada-28-horas-um-
homossexual-morre-de-forma-violenta-no-brasil.html. Acessado em 26/06/2017.
HISAYASU, Alexandre & RESK, Felipe. Marido bate. Preso, é solto. E depois mata a esposa.
NOTIBRAS, em 23/10/2016. Disponível em: http://www.notibras.com/site/ marido-bate-preso-e-
solto-e-depois-mata-a-esposa/. Publicado em 23/10/2016. Acessa do em 23/06/2017.
29BINGEMER, L. Maria Clara (org.); Edson Damasceno... [et al]. Violência e Religião: Cristianismo, Islamismo,
Judaísmo: três religiões em confronto e diálogo. R.J: Ed. PUC Rio. São Paulo: Ed.Loyola, 2002, p 11.
11
LIMA, Luis Corrêa. Estudos de gênero versus ideologia: desafios da teologia. Mandrágora, v.21. n.
2, 2015, p. 93. Disponível em: http://www.diversidadese xual.com.br/wp-content/uploads/
2013/04/Mandrágora-final.pdf. Acessada em 30/05/ 2016.
_________________. Estudos de gênero versus ideologia: implicações teológicas, Revista Cátedra
digital, em Abril de 2016. Disponível em: http://revista.catedra.puc-
rio.br/index.php/2016/03/30/estudos-de-genero-versus-ideologia-implicacoes-teologi cas/. Acessada
em 24/06/2017.
ONU: Taxa de feminicídios no Brasil é quinta maior do mundo. Diretrizes nacionais buscam solução,
em 09/04/2016. Disponível em: https://nacoesunidas.org/onu-femi nicidio-brasil-quinto-maior-
mundo-diretrizes-nacionais-buscam-solucao/. Acessado em 22/05/2017.
ORENSTEIN, José. Quem são e o que pensam as pessoas que participaram da Marcha para Jesus
em SP. NEXO, em 16/06/2017. Disponível em: https://www.nexojornal.
com.br/expresso/2017/06/16/Quem-s%C3%A3o-e-o-que-pensam-as-pessoas-que-parti ciparam-da-
Marcha-para-Jesus-em-SP. Acessada em 26/ 06/2017.
PAPA FRANCISCO. Audiência geral. Documentos Vaticano, em 15/4/2015. Disponível em
html:w2.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2015.index.2.html. Acessado em 26/06/2017.
________________. Exortação pós-sinodal Amoris Laetitia. Documentos Vaticano, em 19/03/2016,
n0 56. Disponível em: em http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apos
t_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20160319_amoris-laetitia.ht ml. Acessado
em 26/06/2017.
R7. Brasil lidera assassinatos de pessoas trans no mundo. Notícias Brasil, em 30/01/2017.
Disponível em: http://noticias.r7.com/brasil/brasil-lidera-assassinatos-de-pesso as-trans-no-mundo-
30012017. Acessada em 25/06/2017.
SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE VILA NOVA DE FAMALICÃO. Festa da família.
Portugal, em 2010. Disponível em: http://www.scmfamalicao.pt/3/noticia/0/ 133.php. Acessado em
21/06/2017.
ZIZEK, Slavoj. Violência. Seis reflexões laterais. S. Paulo: Boitempo Editorial, 2014.
Is it possible religion, state and education work together against gender violence
Abstract :Brazil is in global statistics on gender violence as: - the fifth highest rate of feminicide
in the world; - the country where around fifty thousand women, yearly, are victims of rape, with
more than half of girls under the age of thirteen years raped in their own homes; - a leader in number
of murders of transvestites and transsexuals, having every twenty-eight hours someone belonging to
the group LGBTTI murdered. In this context, we will seek to analyze the causes of violence, and the
importance of discussing gender in schools through curriculum geared toward awareness of girls and
boys on respecting the 'other' different than themselves, so that through education, the woman and the
group LGBTTI could have a life free of violence. Reflect on the difficulties faced forward to the
rejection of the religious sectors in relation to any debate on sexuality and gender, culminating
12
with the withdrawal of the word 'gender' of plans for education in Brazil. Finally, addressing the need
of universities and training of teacher courses, regardless of the field and follow-up, producing
scientific knowledge, ethical, and text book on 'gender', so that we may have teachers trained the
ability to engage in dialog with society on this subject.
Keywords: gender, sexuality, education, religion.