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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CURSO DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA A TEORIA DA GESTALT E A ABERTURA À LEITURA DE MERLEAU-PONTY Jonas Fornitano Cholfe São Carlos 2005 Monografia realizada como parte das exigências para obtenção do Grau de Bacharel no Curso de Graduação em Psicologia da UFSCar, sob a orientação do Profa Dra Débora Morato Pinto

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CURSO DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

A TEORIA DA GESTALT E A ABERTURA À LEITURA DE MERLEAU -PONTY

Jonas Fornitano Cholfe

São Carlos

2005

Monografia realizada como parte das exigências para obtenção do Grau de Bacharel no Curso de Graduação em Psicologia da UFSCar, sob a orientação do Profa Dra Débora Morato Pinto

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Dedicatória

Dedico este trabalho à minha família pelo carinho, à Simone pela inspiração e aos meus amigos Luiz, Danilo e Fabiano por terem me mostrado outras maneiras de ver o mundo, me

fazendo buscar perguntas em vez de respostas para minha vida. Um abraço do fundo do meu coração para todos vocês

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Agradecimentos

Agradeço especialmente à minha orientadora Débora por todo o apoio a esse trabalho e por ter lutado por nós durante esses dois anos. Também agradeço o professor Júlio de Rose pela

bronca mais importante da minha vida, que pode ser resumida pelas palavras “Jonas, você acha que sabe das coisas, a gente acha que sabe as coisas, mas a gente não sabe nada”. Poucas vezes um discurso tão curto me afetou tanto, me fazendo buscar cada vez mais

conhecimento e humildade na minha vida. Por último, meus agradecimentos ao CNPQ pelo apoio financeiro à pesquisa.

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Resumo

O fenômeno da consciência humana mostra-se um dos mais interessantes problemas

da ciência psicológica e da filosofia. Enquanto a primeira buscou durante grande parte de

sua história construir um sistema de leis que fundamentassem o comportamento humano

aliado às ciências naturais, à parte do que aparecia como o mundo vivido das pessoas, a

última se reteve na análise da consciência como algo fundamentalmente reflexivo,

cognitivo, da mesma maneira afastado da experiência direta, como seu a priori. A ciência e

filosofia permaneceram distantes, buscando respectivamente um objetivismo e um

subjetivismo inconciliáveis. O objetivo principal da Fenomenologia de Husserl e da Teoria

da Gestalt foi superar as dicotomias existentes entre o subjetivismo da filosofia e o

objetivismo da ciência, concebendo o ser humano como inerentemente situado. As

reflexões merleau-pontianas buscam a todo momento continuar o questionamento iniciado

pela Gestalt e pela Fenomenologia de Husserl, apontando nessas escolas a continuidade de

algumas das dicotomias anteriores, o realismo na Gestalt e o idealismo em Husserl.

Palavras-chave: Gestalt; Koffka; Percepção; Fenomenologia; Estrutura; Consciência.

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Índice

Introdução...............................................................................................................................6

1. As discussões teóricas que contextualizaram o surgimento da Psicologia da Gestalt........9

2. O Papel da Psicologia entre as Ciências e seus fundamentos...........................................10

3. Questões sobre o Objeto da Psicologia ............................................................................15

4. As relações entre comportamento e consciência na psicologia de Koffka.......................20

5. O método fenomenológico na Psicologia da Gestalt, os problemas da percepção e

fundamentos para uma nova teoria.......................................................................................30

6. O Ego no campo psicofísico e seu papel no comportamento ...........................................41

7. O desenvolvimento do conceito de Estrutura em Merleau-Ponty a partir das críticas à

Gestalt...................................................................................................................................49

Conclusão .............................................................................................................................58

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Introdução

O fenômeno da consciência humana mostra-se um dos mais interessantes problemas

da ciência psicológica e da filosofia. Enquanto a primeira buscou durante grande parte de

sua história construir um sistema de leis que fundamentassem o comportamento humano

aliado às ciências naturais, à parte do que aparecia como o mundo vivido das pessoas, a

última se reteve na análise da consciência como algo fundamentalmente reflexivo,

cognitivo, da mesma maneira afastado da experiência direta, como seu a priori. A ciência e

filosofia permaneceram distantes, buscando respectivamente um objetivismo e um

subjetivismo inconciliáveis. Enquanto a ciência excluía a participação do sujeito no mundo,

muitas vezes dando-lhe o lugar de epifenômeno, ou efeito do mesmo, a filosofia tirava o

mundo do sujeito, conferindo-lhe uma forma universal de ser que transformava um mundo

sensível em algo cognoscível.

Nesse contexto, surgem como reações ontológicas e epistemológicas a

Fenomenologia, com Edmund Husserl, no campo da filosofia, e a Teoria da Gestalt, com

Max Wertheimer, Kurt Koffka e Wolfgang Köhler. O objetivo principal dessas Escolas foi

superar as dicotomias existentes entre o subjetivismo da filosofia e o objetivismo da

ciência, concebendo o ser humano como inerentemente situado. Husserl contribui com a

noção de consciência intencional, que pode ser definida como a imanência da consciência a

um objeto, do sujeito a um mundo vivido. A Gestalt, por sua vez, contribui com o conceito

de campo comportamental como uma totalidade, cujos pólos são o Ego e o Ambiente.

O método dessas escolas corresponde à descrição da percepção, mostrando que a

experiência direta, o mundo vivido, tem muito a contribuir para o conhecimento. O ponto

de partida, portanto, passa a ser outro, não um mundo perfeito, com leis absolutas, mas o

mundo incerto e irrefletido da vida humana. As reflexões desses autores encontram uma

interessante confluência na Filosofia Contemporânea através das idéias de Merleau-Ponty.

As reflexões merleau-pontianas buscam a todo momento continuar o

questionamento iniciado pela Gestalt e pela Fenomenologia de Husserl, apontando nessas

escolas a continuidade de algumas das dicotomias anteriores, o realismo na Gestalt e o

idealismo em Husserl.

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Utilizando radicalmente o método fenomenológico desenvolvido por Husserl,

Merleau-Ponty buscará apontar as questões deixadas pela Teoria da Gestalt no

desenvolvimento do conceito de Forma e na sua aplicação à Psicologia, questionando a

concepção de ciência implícita nesta teoria, bem como propondo uma reformulação

ontológica a partir da noção de Gestalt.

As estruturas encontradas na percepção, para Merleau-Ponty, são a grande

contribuição da Gestalt para a solução das antinomias oriundas das teorias filosóficas e

científicas de sua época. O objetivo deste trabalho foi apresentar criticamente a Psicologia

da Gestalt, segundo as idéias de Kurt Koffka, apontando as questões relativas à consciência

imediata deixadas por ele, para, em seguida, abrir uma leitura das reflexões merleau-

pontianas segundo suas críticas ao realismo da Gestalt e tendo como horizonte a

radicalização do conceito de Estrutura na compreensão do fenômeno da percepção humana.

O primeiro capítulo apresenta o surgimento da Teoria da Gestalt como uma reação

ao elementarismo presente nas teorias psicológicas de Watson e Titchener. Trata-se da

proposta de uma nova maneira de conceber os fatos, apresentada no segundo capítulo, em

que são discutidas as concepções de ciência de Koffka, os seus planos para a psicologia

como uma ciência integradora do conhecimento à vida humana.

O capítulo 3 consiste na apresentação do conceito de Gestalt como solução das

antinomias entre materialismo e vitalismo, quantidade e qualidade, enfim, da dicotomia

entre psicologias compreensivas e psicologias empiristas, através da integração dos

conceitos de ordem, significado e valor.

As reflexões sobre o objeto da psicologia, para onde convergem esses conceitos, o

surgimento da hipótese de organismo isomórfico e a escolha do universo de discurso da

Física como soluções para os problemas decorrentes do uso do meio comportamental como

unidade explicativa são expostas no quarto capítulo. Também foram discutidas as primeiras

questões envolvendo a relação entre consciência e comportamento, consciência e fisiologia.

No capítulo 5 é desenvolvida uma reflexão sobre o papel do método

fenomenológico e as conseqüências das noções de isomorfismo e campo fisiológico na

teoria da percepção da Gestalt. Trata-se da análise das idéias referentes a um dos pólos do

campo comportamental, o ambiente, em que aparecem também conceitos importantes para

Merleau-Ponty, com a relação figura-fundo e a noção de estrutura. Neste capítulo iniciou-se

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também a inserção das críticas merleau-pontianas, através da discussão sobre as causas da

percepção.

Uma reflexão sobre a aplicação da noção de campo ao outro pólo do sistema

psicofísico, o ego, é abordada no capítulo 6. Procuramos apontar relações entre a Teoria da

Gestalt e as idéias de Merleau-Ponty, bem como a participação da consciência nas relações

eu-corpo-comportamento.

O capítulo 7 consiste na retomada das questões deixadas pela teoria de Koffka,

segundo as críticas de Merleau-Ponty, bem como na indicação introdutória dos principais

argumentos e das soluções propostas por este autor através da radicalização da noção de

Forma e da apresentação do pensamento dialético como alternativa ao pensamento causal

do realismo.

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1. As discussões teóricas que contextualizaram o surgimento da Psicologia da Gestalt

A psicologia da Gestalt constitui-se como uma reação a duas principais escolas do

início da história da Psicologia, o behaviorismo de John Watson e o estruturalismo de

Titchener. Ambas apresentam um problema comum: a relação entre a experiência humana e

os princípios psicológicos. Titchener busca encontrar os átomos da consciência através da

introspeccção treinada, visando descobrir as leis que determinam suas relações. Watson,

por sua vez, se propõe a estudar o comportamento humano enquanto relações causais entre

estímulos ambientais e respostas motoras, buscando explicar a aprendizagem pela

associação de estímulos incondicionados e condicionados na eliciação da mesma resposta.

O que há de semelhante nas duas teorias é que ambas buscam explicar a experiência

humana pela soma de elementos isolados, seja explicando a percepção por soma de

sensações e imagens, seja explicando o comportamento pela soma de reflexos

condicionados e incondicionados. Tal situação também mostra outra dicotomia: a relação

entre percepção e comportamento. Enquanto o estruturalismo não alcança leis para as

causas do comportamento, o behaviorismo exclui a consciência da psicologia como um

objeto ilegítimo.

A reação da Psicologia da Gestalt será apontar as inadequações dessas escolas e

propor uma nova categoria explicativa, a Gestalt, em que as relações de determinação são

dadas pelo conjunto, fazendo com que uma Forma tenha uma certa autonomia diante de

eventos exteriores. Isso significa que o que vem de fora de uma Gestalt não determina sua

modificação e sim a reorganização interna de todas as suas partes segundo suas leis de

organização. O estímulo, por exemplo, é um contexto organizado, com significado e valor e

não uma soma de estimulações de receptores sensoriais, gerando uma resposta para cada

estímulo; o comportamento, por sua vez, é algo com objetivo, visando a alguma coisa, e

não uma reação automática a um estímulo. Na percepção encontram-se objetos com valores

diferentes, que nos dizem algo sobre nossas possibilidades de ação sobre eles, e entre eles

há coisas invisíveis, mas cuja presença é notável, como uma mesa por debaixo de um livro,

ou a continuidade da relevância do espaço por trás da pessoa no seu comportamento,

portanto, na experiência não há apenas a soma de elementos e sim a articulação de uma

situação comportamental.

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A obra de Koffka, Princípios da Psicologia da Gestalt (1975), é um dos exemplos da

tentativa da Escola da Gestalt de apresentar uma psicologia sistemática, alternando

resultados de pesquisas e reflexões teóricas baseadas na experiência direta. Os principais

fatos expostos são fenômenos em que diversos elementos agem como um sistema

integrado, devido ao qual as partes possuem sentido e papel determinados. As idéias

apresentadas nesse livro, portanto, apresentam importantes questões para a psicologia e

para a filosofia.

Uma das principais implicações das idéias desenvolvidas pela Gestalt para a

metodologia da Psicologia é a introdução da descrição da experiência direta como relevante

à compreensão do comportamento. Ao mesmo tempo tal escola introduz, para discussões de

natureza epistemológica e ontológica (discussões especialmente desenvolvidas por Maurice

Merleau-Ponty), o conceito de Forma, buscando integrar às ciências os conceitos de

significado e valor.

2. O Papel da Psicologia entre as Ciências e seus fundamentos

No início do primeiro capítulo de seu livro “Princípios da Psicologia da Gestalt”

(1975), Koffka explicita o pano de fundo de sua teoria psicológica, apresentando suas

concepções sobre a ciência e o papel da psicologia como tal, discutindo questões sobre o

conhecimento como um todo integrado e os motivos que fizeram a ciência desviar desse

caminho.

Para chegar a conclusões sobre a função da Psicologia como ciência, Koffka

apresenta uma interessante discussão sobre o papel da interação entre fatos e teorias na

investigação científica. Para ilustrar o problema, pergunta: “... o que é que um estudante de

Psicologia poderá ganhar através do seu curso; em que é que, em termos mais gerais, a

Psicologia pode contribuir para o imperecível patrimônio da raça humana” (Koffka, 1975,

pp 16).

Em primeiro lugar, ele apresenta como credo dos cientistas a idéia de que os fatos

são determinantes para a ciência em detrimento das teorias. Essa filosofia, segundo Koffka,

amplamente aceita no século XX, pede ao cientista que “descubra fatos, fatos e mais fatos;

quando você estiver seguro de seus fatos, tente construir teorias” (Koffka, 1975, pp 16). Os

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fatos objetivos seriam independentes dos cientistas, enquanto as teorias seriam puros

produtos mentais. A teoria da Gestalt, na perspectiva desse autor, e seus resultados

experimentais serão utilizados no decorrer da sua obra para argumentar contra essa

concepção, principalmente na introdução do conceito de meio comportamental. Afinal,

tudo o que o cientista observa ocorre no seu meio comportamental, que é o meio em que

ocorre o comportamento, não necessariamente correspondente ao meio geográfico, o meio

físico em si1.

Ainda nesse capítulo, ele defende que as teorias construídas a partir dos fatos abrem

a possibilidade de aprofundamento do conhecimento dos mesmos e de novos fatos, pois “...

não existem fatos sem ordem; portanto, se conhecermos profundamente um fato, saberemos

muitíssimo mais fatos a partir do conhecimento daquele” (Koffka, 1975, pp 18). Dois

argumentos são interessantes para ilustrar esta posição. O primeiro corresponde à

comparação entre dois tipos de conhecimento, significados pelos dois sentidos da palavra

“muito” no latim: multa e multum. Para Koffka, sabe muito mais aquele que conhece

multum, por exemplo, dois elementos em sua relação intrínseca que formam um todo, do

que aquele que conhece multa, por exemplo, diversos fatos isolados. O segundo trata-se de

um exemplo: “é um “fato” que os corpos pesados caem mais velozmente que os leves,

como qualquer pessoa pode verificar deixando cair um lápis e uma folha de papel. Mas é

um fato complexo, não um fato simples” (Koffka, 1975, pp 17). Afinal, existem diversos

fatores que influenciam a queda dos objetos, como a resistência do ar. Então, é importante

investigar os elementos que agem no sistema para poder construir uma teoria que explique

o fato, dando uma resposta precisa para o problema. Nesse exemplo, se a pergunta for

“quanto a massa dos corpos influencia na velocidade da queda?”, a resposta precisa seria:

“nada, pois no vácuo, os corpos cairiam na mesma velocidade”. À relação entre as variáveis

“massa” e “queda”, presente no fato científico, podem ser adicionadas outras variáveis

como o ar e a configuração dos objetos. Dessa maneira, pode-se derivar o fato cotidiano do

fato científico, mas o inverso não é possível, pois nem todo sistema cotidiano responde à

pergunta científica precisamente. Para obter uma resposta precisa, é necessária a

manipulação de algumas variáveis, ou seja, de fatos. Portanto, “o próprio conceito de fato

torna-se problemático” (Koffka, 1975, pp 17). Pode-se concluir que a teoria confere ao fato

1 Esses conceitos serão analisados mais profundamente nos próximos capítulos

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aquilo que, isoladamente, ele não diz. No entanto, a validade da teoria depende também dos

fatos. No exemplo acima a hipótese supõe que quando não há a resistência do ar, a

velocidade é a mesma para massas diferentes. Para que esta hipótese mostre-se válida é

necessário manipular o meio para retirar a influência dessas variáveis. Pode-se, por

exemplo, comparar a velocidade da queda de dois objetos com a mesma configuração

espacial, mas com massas diferentes, de modo a igualar a resistência do ar, se a velocidade

for igual: a hipótese é verdadeira. Assim, buscou-se um novo fato que não seria investigado

se não houvesse uma suposição a ser testada, e a partir desse fato a teoria ganha subsídios.

Portanto, pode-se considerar a relação entre fatos e teorias como o sistema integrado da

ciência, cada parte contribuindo para o todo.

Ainda dentro da discussão sobre fatos, teorias e ciências, Koffka expõe sua posição

sobre os objetivos da ciência, posição que abrirá espaço para responder à questão da ciência

psicológica. Para esse autor, a ciência deve buscar ampliar cada vez mais os fatos

abrangidos pela sua teoria, de forma a se tornar cada vez mais universal, dando respostas

para os problemas que teve que ignorar para firmar-se como ciência. Essas questões são

aquelas que deram o primeiro impulso para o conhecimento, como “quem sou”, “o que é

Deus”. Para Koffka, portanto, a ciência teve que se afastar desses problemas, selecionando

fatos mais suscetíveis aos sistemas científicos de investigação, e buscando aprofundar-se

cada vez mais em fatos da mesma natureza. Esse aspecto da história da ciência fez com que

o conhecimento se tornasse especializado e desintegrado e, embora Koffka o considere

necessário, ele defende que, agora, a ciência deva caminhar para a unificação, função da

Psicologia entre as ciências. É na psicologia que se cruzam “as três grandes províncias do

nosso mundo, (...) a que chamamos natureza inanimada, vida e mente” (pp. 22). Os

fenômenos que são considerados objetos de investigação psicológica, principalmente o

comportamento humano, são fenômenos que ocorrem integrando forças físicas e químicas,

um organismo e um significado, que é baseado numa história individual e num contexto

cultural. Esses objetos, portanto, possibilitam a discussão entre as diferentes especialidades

científicas, orientando-nas ao entendimento da vida humana.

A psicologia seria então responsável pela reintegração do conhecimento científico e,

conseqüentemente, da ciência à vida humana. Para ilustrar essa idéia, Koffka narra uma

história sobre o conhecimento humano. Inicialmente, os homens agiam de acordo com o

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meio, que lhe dizia o que fazer, mas, progressivamente, com o desenvolvimento do

pensamento, passaram a classificar, construir categorias e ultrapassar o limite do presente e

passado, ou seja, passaram a prever efeitos no seu meio. No entanto, o conhecimento para a

ação tornou-se muito complexo, pois algumas situações encaixavam-se em categorias

diferentes, tornando o pensamento muito trabalhoso. As verdades científicas, então, não

foram capazes de orientar a ação humana, mostrar o que é bom ou mau, e foram

responsáveis pela desintegração do mundo humano. Dessa situação surgiu o dualismo entre

a ciência e a religião. A religião passou a exercer mais influência na vida das pessoas do

que a ciência, pois se permitia lidar com as questões mais importantes para o ser humano,

dando-lhe orientações sobre sua conduta. O problema do conhecimento gerado pelas

religiões é a falta de investigação dos fenômenos e de preocupação com a coerência de seus

dogmas (teorias). O método da maioria das religiões é considerar as palavras de alguns

homens importantes, a quem são atribuídos os títulos de profetas, messias, deuses e santos,

como leis inquestionáveis, formando assim corpos dogmáticos imutáveis. A religião é um

exemplo interessante do que se torna uma teoria sem fatos para apoiá-las. A ciência

psicológica é a esperança da ciência de poder se apropriar de algumas dessas questões, para

orientar a conduta humana baseada num conhecimento unificado e coerente. É importante

acrescentar que a psicologia não poderia tomar o papel da religião, mas essa não é uma

discussão imprescindível no momento. Se a psicologia for capaz de integrar o

conhecimento humano, talvez possa desenvolver uma ciência que oriente a conduta

humana.

No entanto, a própria psicologia encontra-se desintegrada. No seu âmbito, a

necessária seleção dos fatos que fundamentariam a ciência é especialmente problemática.

Isso se deve a um aspecto particular do comportamento, objeto da psicologia segundo

Koffka: não há como estudar um comportamento em si, pois a observação de qualquer

comportamento é também um comportamento, mas não do ser que está sendo observado,

do cientista. Isso tem sido ignorado por algumas abordagens psicológicas, como o

behaviorismo metodológico. A escola de John Watson excluiu como fato a ser investigado

a mente humana, ou seja, nessa teoria não se encaixa a consciência e a percepção passou a

ser vista como uma cadeia de estímulos e respostas. Entretanto, essa cadeia é observada sob

a ótica de uma consciência que não é investigada, tornando o corpo teórico desse

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behaviorismo contraditório e pouco abrangente. Para Koffka, os fatos pedem as teorias,

pois fazem parte de um sistema integrado e a seleção dos fatos e explicações realizadas

pelo behaviorismo se basearam em preceitos da neurologia e hipóteses insatisfatórias de um

funcionamento desintegrado do sistema nervoso2. Desse modo, esse sistema psicológico

torna-se incapaz de explicar comportamentos essencialmente humanos, como a arte, a

moral, o porque as pessoas fazem o que fazem. Sua explicação se restringe aos reflexos

condicionados e incondicionados, que parecem não se encaixar nessas áreas do

comportamento.

Tendo em vista esses problemas da filosofia, Koffka tem como objetivo desenvolver

uma psicologia que seja capaz de explicar os fenômenos do comportamento humano, tanto

os moleculares (como reflexos), quanto os molares (como a conduta humana, a arte, etc.).

Considerando que a partir da concepção molecular do comportamento não foi possível

explicar o comportamento molar, Koffka partirá da concepção molar (dimensão do

significado), buscando um lugar para o comportamento molecular e abrangendo a física

(natureza inanimada) e a fisiologia (ordem). Assim, ele se diferencia das psicologias

“compreensivas”, que buscam o sentido do comportamento ignorando suas dimensões

físicas e biológicas. Para integrar comportamento molar e fisiologia, Koffka utilizará o

conceito de isomorfismo de Wertheimer. Assim, sua psicologia terá o papel defendido por

ele no meio científico, ou seja, a integração do conhecimento humano de diferentes áreas e

a explicação da conduta humana, vinculando, finalmente, a ciência à vida humana. Uma

teoria que abranja o maior número de fatos é justamente a posição que Koffka defende de

uma ciência ideal.

As idéias de Koffka são também importantes para a filosofia, especialmente na obra

de Merleau-Ponty. No livro “A estrutura do comportamento”, Merleau-Ponty, realiza, por

exemplo, a mesma divisão do mundo que Koffka aponta nas ciências, ou seja, em “física”

(natureza inanimada), “vida” e “espírito” (mente). O conceito de estrutura, como um

sistema integrado, anterior às partes, também estará presente nas obras de Merleau-Ponty,

aplicado à relação consciência-mundo da percepção.

2 Koffka apresentará argumentos em prol do isomorfismo, idéia desenvolvida por Wertheimer, que contraria as noções neurológicas vigentes na sua época

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3. Questões sobre o Objeto da Psicologia

Na fundamentação do seu sistema psicológico, no livro “Princípios de Psicologia da

Gestalt”, Koffka apresenta os problemas que a psicologia deve enfrentar para cumprir seu

papel de ciência integradora das três grandes províncias do mundo, que convergem em seu

objeto de estudo. O comportamento - objeto da psicologia - é um fenômeno em que estão

presentes a natureza inanimada, a vida e a mente, portanto a psicologia terá que lidar com

os problemas das relações entre essas dimensões, como o problema da relação natureza

animada - inanimada e da relação mente – corpo.

Primeiramente Koffka rejeita duas soluções propostas para os problemas dessas

relações, o materialismo e o vitalismo. Segundo o autor, o materialismo nada mais faz do

que negar arbitrariamente a existência de duas dimensões, a vida e a mente, caracterizando-

as como ilusórias. Os materialistas defendem a existência de apenas uma substância, a

natureza inanimada, e os animais e seres humanos não seriam nada mais do que a dinâmica

de combinação de átomos. A Física, portanto, seria suficiente para explicar todos os

fenômenos. Koffka argumenta contra o materialismo afirmando não só a arbitrariedade da

escolha de uma entre as dimensões possíveis, mas também que as outras dimensões contêm

tanto da verdade quanto as outras. Não há, na minha opinião, nada que garanta a Física,

portanto, a matéria inanimada, como dimensão única do universo, já que o único fenômeno

que é diretamente observável é a minha consciência do mundo. A matéria e a vida

apresentam-se primeiramente à consciência imediata, antes de serem colocadas em teorias,

portanto, a afirmação de que o funcionamento da matéria inanimada é a principal fonte da

verdade é mais uma hipótese do que uma constatação. O materialismo torna-se uma

contradição quando se leva em conta que toda observação e construção teórica parte da

consciência humana. Partindo da consciência, o materialismo chega a conclusões que não

encontram um lugar para a mesma, ou seja, nega aquilo que o sustenta. A consciência

mostra-se também como sustentada por forças físicas e biológicas, apresentando-se como

uma interação necessária entre diferentes dimensões, portanto, cada uma deve ser

verdadeira para que a consciência o seja, como é evidente sua verdade, as outras dimensões

têm sua verdade garantida.

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A solução vitalista, por sua vez, possui o mérito de não negar nenhuma dimensão,

mas sua solução também é insatisfatória, pois simplesmente reúne a vida e a mente numa

mesma categoria e defende a existência de uma força que as governa, ou seja, o vitalismo

utiliza um princípio explicativo misterioso, que permanece fora dos fenômenos observados.

Para Koffka, essa solução não passa de uma nova nomeação do problema, não sendo,

portanto, uma solução real. Essa teoria apenas ressalta a diferença entre esses tipos de

fenômenos, pois não explica a origem da força vital, simplesmente afirma-a como fator

diferencial.

Refutando o materialismo e o vitalismo, Koffka prepara o terreno para o

desenvolvimento de suas idéias. As soluções que irá propor, então, devem superar os

problemas encontrados pelas duas tentativas anteriores. Terá que considerar as três

dimensões e encontrar a participação de cada uma delas num todo, sem negar nenhuma e

sem atribuir novos nomes misteriosos aos fenômenos. A psicologia da Gestalt, portanto,

“não pode ignorar os problemas mente-corpo e vida-natureza; tampouco pode aceitar que

esses três domínios do ser estejam separados entre si por abismos intransponíveis (...)

devemos tentar usar as contribuições de todas as partes na construção de nosso sistema”

(Koffka, 1975, pp. 25). Para que esse sistema alcance seu objetivo é necessário que tenha

lugar para três importantes conceitos das ciências da Natureza, Vida e Mente: quantidade,

ordem e significado, respectivamente.

O primeiro problema a ser enfrentado nessa integração é a dicotomia presente na

psicologia entre quantidade e qualidade. “Por um lado, encontramos os que querem medir

tudo, sensações, emoções, inteligência; e, por outro lado, os que negam que os verdadeiros

problemas psicológicos sejam suscetíveis de tratamento quantitativo” (Koffka, 1975, pp.

25). No entanto, para Koffka, os conceitos de quantidade e qualidade não são opostos como

parecem. Os que defendem essa quantificação excessiva, geralmente acreditam numa

psicologia como ciência natural e tentam adequá-la aos procedimentos da Física. A própria

ciência Física, porém, não está interessada em números puros e sim em descrições, por

meio de fórmulas com números abstratos, das características dos fenômenos. “A fórmula

matemática estabelece, primordialmente, uma relação definida entre esses números

abstratos (...) a medição tem o papel de testar a validade da equação para o processo que se

pretende descrever, isto é, da relação estabelecida” (Koffka, 1975, pp. 26). Esse problema

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entre qualidade e quantidade seria, então, falso, pois “quantidade seria um modo

particularmente preciso de representar a qualidade” (Koffka, 1975, pp. 26). Portanto, para

Koffka, se as descrições qualitativas estiverem corretas haverá, mais cedo ou mais tarde,

uma descrição quantitativa correspondente.

O segundo problema consiste na defesa da objetividade do conceito de ordem,

definido por Koffka como “uma disposição ordenada dos objetos quando cada um deles

está num lugar determinado pela sua relação com todos os outros objetos” (Koffka, 1975,

pp. 27). Para o materialismo a ordem não é uma categoria objetiva, pois todo o

funcionamento do universo ocorre mecanicamente através de interações simples entre

átomos. A ordem, portanto, é apenas uma ilusão, é uma categoria produzida artificialmente

pela subjetividade humana. Já para o pensamento vitalista a ordem é a finalidade e o rumo

dados às forças mecânicas por uma nova força, gerando o fenômeno da vida. Num

organismo, cada parte tem sua função determinada, contribuindo para a sobrevivência do

mesmo. Por exemplo, o coração movimenta o sangue transportando oxigênio para as

células do corpo, mas essa função não teria sentido se o pulmão não fosse capaz de obter o

oxigênio do ar. A refutação dessas respostas por Koffka ocorre com os mesmos argumentos

que o autor utiliza contra essas duas abordagens científicas. Koffka busca encontrar um

lugar para a ordem como categoria objetiva, o que contraria a negação gratuita desse

fenômeno pelo materialismo, mas sem adicionar forças externas e novos nomes infrutíferos

ao problema, como fez o vitalismo. Para resolver esse dilema, ele busca conciliar o

reconhecimento de uma nova categoria, atitude do vitalismo, à valorização de fatos

concretos, atitude materialista.

A solução encontrada pela Gestalt foi procurar a ordem na natureza inanimada,

mostrando que essa categoria existe também no domínio da Física. Koffka expõe no

capítulo 2 da mesma obra como encontra essa ordem em situações em que fenômenos

físicos se organizam formando sistemas. É o caso da água em que a união de duas

moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio resulta numa substância cujas propriedades são

diferentes daquelas de suas partes. A afirmação de que a água é apenas a união de dois

átomos de hidrogênio e um de oxigênio é, portanto, vazia, pois não aborda o sistema com

sua nova estrutura e propriedades. Assim, Koffka ao mesmo tempo contraria o

materialismo mostrando a presença da ordem na Física, e refuta o vitalismo, pois esta

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Escola pressupunha que a matéria inanimada não tivesse características da Vida devido à

ausência da força vital.

Na defesa do conceito de significado para a construção da Psicologia, Koffka faz

uma interessante observação que já começa a demonstrar a validade do significado para a

ciência. A observação refere-se ao clima intelectual de diferentes meios científicos, o

Estados Unidos e a Alemanha, e a sua influência no desenvolvimento de idéias, da mesma

maneira como o clima interfere no crescimento de uma planta. Isso mostra que quando

nasce uma idéia, a ela já são atribuídos significado e valor no meio científico, inclusive às

próprias idéias de significado e valor como categorias científicas. Koffka acredita que se

tivesse exposto essas idéias no meio científico americano antes da Teoria da Gestalt ganhar

credibilidade com a apresentação de suas pesquisas e conclusões mais básicas, essa teoria

seria imediatamente descartada, ou seja, a Gestalt teve que preparar o terreno científico

para que às suas idéias principais não fosse atribuído um significado negativo.

A dicotomia encontrada no desenvolvimento do conceito de significado é a disputa

entre as psicologias especulativas e a psicologia experimental. Essa disputa é semelhante à

que ocorria quanto aos métodos qualitativos e quantitativos, se tratando, na verdade, das

conseqüências dessas posições diferentes na concepção da mente humana. A questão, que

antes se referia à possibilidade de medir ou não, agora se refere ao que torna possível o

conhecimento verdadeiro do homem, a busca por leis de associação e sensação, em termos

de causa ou efeito, ou o conhecimento dos motivos e valores que levam o homem a

construir obras de arte, movimentos culturais e atitudes arriscadas. Na sua perspectiva de

integração, Koffka concorda com as críticas feitas pelos psicólogos especulativos à

psicologia experimental, ou seja, que esses sistemas de associação e causa e efeito não são

capazes de explicar as ações mais distintas do ser humano, mas reconhece que o que é dito

por esses psicólogos “evidenciavam o cunho das personalidades de seus autores; elas não

podiam ser verificadas, nem produzir um sistema científico” (Koffka, 1975, pp. 31). A

psicologia especulativa, portanto, não possuía princípios científicos como alicerces, mas os

princípios que subsidiavam a psicologia experimental eram insuficientes. Então, o

problema central do conceito de significado é encontrar um lugar para o mesmo num

sistema científico. Para isso, Koffka defenderá a posição de Wertheimer, fundador da

Gestalt, o qual buscava a revisão dos princípios científicos.

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O conceito de causa é um dos conceitos revisados, pois “explicar e compreender

não são formas diferentes de lidar com o conhecimento, mas fundamentalmente idênticas

(...) uma conexão causal não é uma simples seqüência fatual a ser memorizada, como a

ligação entre um nome um número de telefone, mas é inteligível” (Koffka, 1975, pp. 32). A

ampliação da abrangência do conceito de causa havia sido preparada anteriormente no

mesmo capítulo pela revisão dos conceitos de quantidade e qualidade, pois esses conceitos

referem-se respectivamente à psicologia experimental, e às ciências do espírito (psicologia

especulativa) e, conseqüentemente, aos conceitos de causa (buscada pela explicação) e

significado (buscado pela compreensão). A busca de um significado é a busca de um por

que, necessária ao entendimento total dos fenômenos, à compreensão da Gestalt de que

participam.

Ao defender a aplicação dos conceitos de quantidade (idêntica à qualidade), ordem e

significado à ciência psicológica, Koffka, na verdade, defende a existência de uma nova

categoria, a da Gestalt, na qual esses conceitos se encontram integrados. A palavra

“Gestalt” não tem um equivalente em outras línguas, por isso o termo alemão geralmente é

mantido, uma tradução possível é Forma, mas entendida como o significado de uma

totalidade com uma configuração específica, em que o todo é anterior às partes. Essa

característica específica de uma Gestalt, ou Forma, na minha opinião, contribui para o

entendimento do termo “significado”. O fato da totalidade ser anterior à qualquer divisão,

mostra a arbitrariedade da sua divisão em partes, geralmente realizada pela ciência. No

entanto, essa divisão é necessária, pois muitas vezes não se conhece exatamente a Gestalt

da qual algo faz parte. Nesse momento pode-se lançar mão do conceito de “significado”,

pois se algo tem significado, expressa algo, relaciona-se a alguma outra coisa, ou outras

coisas. Portanto, se algo pertence a uma Gestalt, não existe da mesma maneira

isoladamente, pois o significado é a referência disto à Gestalt, é sua função na totalidade de

que participa. Pode-se entender também o significado como o conjunto de relações que

cada parte mantém com todas as outras, constituindo a Gestalt. O significado é o que

caracteriza a organização das partes como um Todo.

Na conclusão do capítulo 1, Koffka apresenta a categoria Gestalt da seguinte

maneira: “A ciência encontrará Gestalten de diferentes ordens em diferentes domínios, mas

nós afirmamos que toda e qualquer Gestalt tem ordem e significado, em maior ou menor

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grau (...) para uma Gestalt, quantidade e qualidade são a mesma coisa” (Koffka, 1975, pp.

34). Koffka, como se pôde observar, defende que as Gestalten podem ser encontradas em

diferentes domínios, ou seja, na matéria inanimada, na vida e na mente, mostrando-se

coerente com a posição que adotou na defesa da categoria da ordem. Com o decorrer da

apresentação do conceito de ordem, pode-se entender que Koffka entende por “ordem” que

cada elemento de uma Gestalt tem um lugar determinado, enquanto que o termo

“significado” refere-se à natureza das relações dentro deste todo.

Um aspecto da teoria de Koffka que não ficou explícito foi se ele acredita que

encontrar a causa é encontrar o lugar na categoria Gestalt correta ou se existem, além das

causas dentro de todos, causas mecânicas simples. Quando Koffka afirma que a “categoria

de causalidade não significa que qualquer evento esteja causalmente ligado a qualquer

outro, também a categoria Gestalt não quer dizer que quaisquer dois estados ou eventos

pertençam a uma Gestalt” (Koffka, 1975, pp. 34), uma pergunta pode ser feita: descobrir a

causa é descobrir a relação dentro de uma Gestalt ou a causa de um fenômeno apenas pode

ser a participação num todo? Ou melhor, existem eventos de todos e não-todos, ou

quaisquer eventos relacionados são todos? É a noção de totalidade que se torna

problemática.

4. As relações entre comportamento e consciência na psicologia de Koffka

No início do capítulo 2 da obra “Princípios de Psicologia da Gestalt” (1975), Koffka

discute qual o melhor objeto de estudo para a psicologia. Dentre as três definições que

apresenta para este, isto é, a psicologia como ciência do comportamento, da mente ou da

consciência, escolhe como objeto o comportamento, pois “se começarmos pelo

comportamento, será mais fácil encontrar um lugar para a consciência e a mente, do que

descobrir um lugar para o comportamento se começássemos com a mente ou a consciência”

(Koffka, 1975, pp. 37). No entanto, como procuraremos mostrar, esse argumento não

parece se confirmar no decorrer do seu texto, pois Koffka não será capaz de apresentar

respostas precisas relativas ao problema do dualismo e da particularidade do

comportamento acompanhado de consciência.

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Koffka define comportamento de uma forma abrangente, em oposição à definição

behaviorista de Watson e próximo à definição de senso comum. Uma hipótese que pode ser

desenvolvida é que essa aproximação com o senso comum não é, como pode parecer, um

distanciamento da ciência, essa aproximação corresponde, na verdade, a um projeto mais

amplo da Teoria da Gestalt: a integração da ciência à vida humana. Parece-me que Koffka

acredita que através de definições que encontrem correspondência no mundo cotidiano será

possível essa integração do conhecimento com a vida. Para definir conceitualmente sua

discussão com o behaviorismo, Koffka utiliza a nomenclatura de Tolman de

comportamento molecular e comportamento molar. Como exemplos de comportamentos

molares dentro de sua definição, Koffka cita “a freqüência às aulas do estudante, a lição do

professor, a navegação do piloto, a excitação dos espectadores num jogo de futebol, os

flertes de Babbit, a obra de Galileu, que revolucionou a ciência, a caçado com galgos e a

corrida da lebre” (Koffka, 1975, pp. 37). Essa definição ampla permite a Koffka incorporar

ao seu sistema psicológico as ocorrências cotidianas do comportamento, o que não é

possível sob a perspectiva molecular. O comportamento molecular corresponde ao objeto

de estudo do behaviorismo, sendo definido em termos fisiológicos através da relação entre

estímulos sensoriais e respostas motoras. Para o behaviorismo, o comportamento molar – a

perspectiva de Koffka – apresenta-se como problema, sendo necessário reduzi-lo à relação

estímulo-resposta para explicá-lo. Koffka se opõe a essa concepção argumentando que o

behaviorismo atribui realidade apenas às partes do comportamento, negando-as ao todo que

compõem. O comportamento molar, por sua vez, subentende o molecular, mas adiciona a

este um significado, caracterizando-se como uma totalidade. O comportamento, visto em

sua manifestação completa dentro de uma situação, depende, obviamente, do

funcionamento motor e sensorial, mas esse aspecto fisiológico não é capaz de esgotar todas

as dimensões comportamentais, pelo menos não no sentido de movimentos reflexos

elementares. A discussão que Koffka apresenta sobre os problemas decorrentes da

concepção molecular – o elementarismo behaviorista - é uma conseqüência de uma das

mais importantes contribuições da Teoria da Gestalt para o conhecimento: a idéia de que a

totalidade não se explica pela sua divisão em partes independentes. Para essa teoria, uma

Gestalt (totalidade) é um sistema em que as partes se organizam, definindo o papel de cada

uma de acordo com a sua relação com todas as outras. Uma modificação numa das partes

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de uma Gestalt ocasiona um efeito em todo o sistema, que busca um equilíbrio interno.

Através da introdução desse conceito na definição de comportamento, Koffka se contrapõe

ao behaviorismo, acreditando na possibilidade de uma psicologia capaz de compreender os

fenômenos humanos dotados de significado e valor. Koffka acredita que “talvez seja

possível encontrar um lugar para o comportamento molecular num sistema que comece e

acabe com o molar” (Koffka, 1975, pp. 39). Enquanto a perspectiva molecular nega a

totalidade reduzindo-a a partes (relações estímulo-resposta) isoladas, a perspectiva molar

afirma a totalidade comportamental, incluindo os conceitos de significado e valor, ao

mesmo tempo em que reconhece suas partes fisiológicas.

Definida a sua concepção de comportamento, Koffka parte para a construção de

uma teoria do comportamento molar. Ele aponta como particularidade do comportamento

molar o fato de que “ele ocorre num meio ambiente, ao passo que o comportamento

molecular ocorre dentro do organismo e somente é iniciado pelos fatores ambientais a que

se dá o nome de estímulos” (Koffka, 1975, pp. 39). A diferença da participação do

ambiente no comportamento molar é, portanto, que esse comportamento ocorre num

contexto externo. Isso significa que o comportamento molar se dirige a algo externo, um

objeto dentro de um contexto comportamental. No entanto, como o comportamento não

ocorre no contexto físico “em si” e sim num meio comportamental, ou seja, num contexto

externo ao organismo que constitui as possibilidades de ação desse sujeito no ambiente,

Koffka terá que definir esse objeto comportamental. O meio físico “em si” é chamado por

Koffka de meio geográfico e enquanto esse meio possui objetos físicos, o meio

comportamental – o ambiente relevante para o comportamento - é composto por objetos

comportamentais. Esse novo tipo de objeto, o comportamental, é importante para a

regulagem do comportamento, pois cada objeto possui seu significado e valor, dando

direções e possibilidades de ação. Por conter os objetos reguladores do comportamento o

meio comportamental pode ser chamado de sistema de referência do comportamento. O

conceito de meio comportamental tem importantes implicações na discussão com o

behaviorismo, principalmente em relação ao conceito de estímulos e ao método de

observação.

Koffka aponta como possível contra-argumento à sua teoria a idéia de que a

variação comportamental resulta, na verdade, da variação de estímulos sensoriais, ou seja,

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da variação de como o meio físico atinge os órgãos dos sentidos. Dessa maneira, se meios

físicos atingirem os sentidos da mesma maneira, funcionarão como estímulos iguais

resultando em respostas iguais. Para se defender desse argumento Koffka buscará

demonstrar, através da retomada de um experimento de Köhler com primatas, que

estímulos iguais podem dar origem a respostas diferentes. A experiência, realizada com

dois chimpanzés, mostra que o mesmo ambiente físico, uma jaula com uma caixa e uma

banana suspensa, fora do alcance dos animais, gera diferentes atuações. O primeiro

chimpanzé arrasta a caixa até que fique abaixo da banana e, usando-a como apoio, alcança

o alimento. O segundo, depois de frustradas tentativas de alcançar a banana, senta-se sobre

a caixa e cochila. As caixas afetavam os sentidos dos animais da mesma maneira, no

entanto, houve uma variação no meio comportamental. No meio comportamental de um

deles havia o objeto comportamental “apoio”, enquanto no meio comportamental do outro

havia um “assento”. As palavras “apoio” e “assento”, ilustram dois diferentes significados

comportamentais para um mesmo objeto sensorial.

O significado comportamental parece referir-se às potencialidades do objeto para o

comportamento, ou seja, o meio comportamental apresentaria ao sujeito suas possibilidades

de interação com o meio geográfico através do comportamento. Segundo Koffka, esta

maneira de descrever o fenômeno é a mais adequada, mas reconhece que terá de enfrentar

acusações de que sua explicação é antropomórfica, isto é, de que decorre de uma

“humanização” dos chimpanzés. Koffka responde a esse possível contra-argumento

mostrando que, na verdade, qualquer observação ocorre dentro do meio comportamental do

cientista e que não há uma observação pura do meio comportamental do animal. O último

deve ser inferido sempre, pois um rato, por exemplo, pode ter um labirinto como um meio

comportamental orientado para comida, ou para exploração e até para procurar um abrigo

seguro, sem que este tenha, necessariamente, comida ou abrigo. Assim, se o cientista

apenas registrar os dados que lhe interessam sem avaliar o possível meio comportamental,

terá compreendido apenas parcialmente o comportamento do rato. Esse argumento sobre o

labirinto tem interessantes implicações para as relações entre o meio geográfico e o

comportamental, pois como se pôde observar, independente de existir comida ou abrigo no

meio geográfico, a ação dos animais era dirigida nesse sentido, isto demonstra como o

comportamento não é diretamente dirigido pelo meio físico.

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Koffka também defende sua teoria da idéia de que as diferenças comportamentais

são resultados das diferenças geográficas (físicas) dos animais, como dotações inatas e

experiências prévias. O autor argumenta que apenas essa dimensão geográfica não é capaz

de explicar um caso específico de comportamento, pois é muito geral. Koffka, então,

defende seu modo de explicação afirmando que “essa diferença [entre os animais

geográficos] deve ser tal que faz da caixa geográfica diferentes manipulanda, para usarmos

outro termo de Tolman” (Koffka, 1975, pp. 42). Portanto, o importante para Koffka, nesse

momento, não é a diferença fisiológica entre os animais e sim suas conseqüências para o

meio comportamental.

O conceito de meio comportamental na teoria de Koffka é fundamental, pois se

constitui como a mediação entre o sujeito do comportamento e o mundo geográfico, ou

seja, uma Gestalt fisiológica em contato com uma Gestalt física gerando uma Gestalt

comportamental, me parece ser esta a organização do meio comportamental. Essa nova

totalidade incorpora também uma história individual a um ambiente com novas

possibilidades a serem descobertas.

O primeiro problema surgido devido à introdução do meio comportamental na teoria

de Koffka é a relação deste meio com o geográfico. Koffka defende que o comportamento

acarreta, através do meio comportamental, mudanças no meio geográfico. Para que essa

mudança seja possível, é preciso que haja essa possibilidade no meio geográfico. No caso

do chimpanzé, ao comer a banana esta deixou de existir no meio geográfico, portanto,

deixou também de regular o comportamento do animal através do meio comportamental. A

ação do chimpanzé modificou, portanto, a totalidade constituída pelo meio

comportamental, alterando suas partes: o meio físico e o fisiológico (saciação). No entanto,

a questão não se esgota com essa explicação, há um caso que Koffka cita superficialmente e

que, na minha opinião, deveria ser desenvolvido com mais cuidado, devido às suas

repercussões para a psicologia. O caso consiste no comportamento de um homem tomado

por delirium tremens, que pesca um peixe inexistente em sua banheira. Koffka deixa em

aberto essa questão, sem explicar de que maneira um comportamento poderia ocorrer num

meio comportamental, em parte independentemente de um meio geográfico (não havia um

peixe geográfico na banheira), como em alucinações e outros transtornos psicológicos.

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O segundo problema consiste nas relações entre meio comportamental e

consciência. Antes de abordá-lo, Koffka compara a definição de consciência como

experiência direta de Köhler (1929) com sua concepção de meio comportamental. Para ele,

o meio comportamental pode ser entendido como consciência, no entanto, a consciência

definida como experiência direta é mais ampla. Um aspecto interessante da concepção

gestáltica da consciência é sua natureza. Tanto para Köhler, quanto para Koffka, a

consciência é definida pela sua relação com os objetos. Segundo esses autores, não existe

uma consciência interior pura e sim uma consciência voltada para o mundo, no caso de

Koffka, voltada para objetos comportamentais. A posição da Teoria da Gestalt relativa à

consciência estabelece um diálogo com Edmund Husserl, pai da fenomenologia, que define

a consciência como essencialmente intencional, isto é, sempre se constitui como um modo

de ser consciência de algo. A consciência de Husserl é doadora de sentido a objetos não

necessariamente “reais”, pois é possível, por exemplo, a imaginação de objetos nunca

vistos no mundo perceptivo. Essa conseqüência da abordagem intencional da consciência é

importante para a noção de meio comportamental, pois objetos não existentes para terceiros

podem funcionar como reguladores do comportamento de uma pessoa. Esses objetos

podem ser tanto frutos da história individual quanto alucinações em casos de distúrbios.

Mas, como já foi dito, Koffka não se estendeu na discussão desse caso.

No seu constante diálogo com o behaviorismo, Koffka aponta o erro dessa escola

em tentar buscar uma psicologia geográfica, pois ignora que “todo e qualquer dado é um

dado comportamental; a realidade física não é um dado, mas um construto” (Koffka, 1975,

pp. 47). No entanto, Koffka reconhece a inadequação da noção de consciência recusada

pelos behavioristas, pois se trata de uma concepção de consciência como algo interior e

sem objetos. Para a Teoria da Gestalt, porém, não é possível construir uma psicologia sem

consciência, já que qualquer dado observado é um dado comportamental do cientista.

Qualquer teoria científica pressupõe a consciência e o comportamento do cientista; embora

para algumas ciências esse fato possa ser ignorado, para a psicologia se faz especialmente

problemático.

Sendo o ser humano, enquanto ser que se comporta, o objeto da psicologia, iniciar

uma teoria psicológica sem levar em consideração a consciência é definir um objeto de

estudo sem sua parte mais evidente. A afirmação de que a consciência do mundo provém de

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combinações de sinapses neuronais no lobo pré-frontal do cérebro é mais uma

conseqüência de um pressuposto do que uma constatação. Portanto, um ponto de partida

estritamente fisiológico é inadequado para a psicologia. Se a consciência fosse isso, e

apenas isso, meu universo não teria mais que alguns centímetros de diâmetro. O mundo

percebido, vivido, está fora de nós, à distância, os objetos em que pensamos, ou que

percebemos não se encontram dentro da caixa craniana e sim “dentro” da consciência. A

explicação fisiológica só é capaz de apontar correlatos neurofisiológicos de sentimentos,

percepções e pensamentos, creio que jamais será capaz de explicar esses fenômenos

psicológicos em si, ou seja, com seu significado.

Koffka, portanto, tem em mãos o problema mais fundamental da psicologia e, tendo

já demonstrado sua insatisfação com a atitude behaviorista, tentará ampliar o conceito de

meio comportamental para incorporar a consciência como experiência direta à sua teoria.

Esse termo “experiência direta” no lugar de consciência torna esse conceito mais preciso e

deixa mais inteligível sua relação com o meio comportamental. Como já foi dito, a relação

do organismo – o sujeito do comportamento - com o meio geográfico, é mediada pelo meio

comportamental, então, não é possível a experiência direta de um meio geográfico. Assim,

o que o sujeito experimenta diretamente? O meio comportamental e o comportamento são

as respostas. Parece-me que Koffka entende a consciência como conhecimento tanto do

meio como do comportamento, por isso afirmou a diferença entre a experiência direta e o

meio comportamental, pois o meio comportamental é a exterioridade do comportamento,

mas a consciência é também experiência direta do comportamento que se desenrola nesse

meio.

A introdução das categorias de significado e valor na ciência, nesse momento,

permite uma discussão sobre a natureza da consciência para Koffka. Ele colocará a

consciência pessoal como uma das formas de conhecer o comportamento, que chamará de

comportamento fenomenal, mas não deixa claro se a consciência significa o

comportamento e o meio comportamental como um ato de significação, ou se apenas trata-

se de uma particularidade de alguns comportamentos o fato de terem seu significado apenas

explicitado para um Eu consciente passivo. Na minha opinião, Koffka segue a segunda

alternativa, pois buscará encontrar a causalidade do comportamento real, do qual o

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fenomenal é parte, nas dimensões geográficas concebidas como Gestalten, que já teriam um

significado em si mesmas3.

A introdução da consciência na teoria de Koffka implica também na introdução do

Eu, pois “o meio é meio de mim e do meu comportamento nesse meio” (Koffka, 1975, pp.

51). Esse trecho ilustra a afirmação acima, de que a consciência é experiência direta do

meio e do comportamento, e adiciona à concepção de consciência a necessidade de um Eu,

um sujeito que conheça. A consciência, para Koffka, em suma, é um Eu consciente de seu

meio e de seu comportamento. Aqui, novamente a questão do parágrafo anterior se põe e se

amplia: até que ponto, de que maneira e por que o Eu é consciente de si mesmo, de seu

comportamento e de seu meio? Como Koffka muda o rumo de sua teoria optando pelo

organismo isomórfico como fundamento principal, essa questão permaneceu sem

esclarecimentos.

O que o capítulo 2 permite concluir sobre a consciência é que o Eu consciente é

modificado pelos resultados do comportamento real no meio geográfico, através do meio

comportamental. Para Koffka, a consciência só revela parte do comportamento real – o

comportamento fenomenal - que age no meio comportamental e repercute no geográfico.

Portanto, é preciso encontrar algo que possa explicar o comportamento real, algo de que o

Eu não tenha plena consciência e que permita também a fundamentação da psicologia num

único universo de discurso científico, em conjunto com as ciências naturais (especialmente

a Física).

O conceito de meio comportamental tem conseqüências negativas para a formulação

de uma psicologia como uma ciência causal fundamentada no mundo físico, como é a

intenção de Koffka. Em primeiro lugar, o autor não pretende cair no dualismo de

substâncias fazendo do meio comportamental uma substância mental, ou seja, é

problemático o lugar ontológico desse conceito. Então, Koffka precisa desenvolver sua

teoria em termos geográficos. Em segundo lugar, ele busca explicar o vínculo causal entre

meio geográfico e comportamental, no sentido de que o comportamental é determinado, em

parte, pelo geográfico. Entretanto, o meio geográfico, como era entendido na época de

Koffka, não era suficiente para explicar a dinâmica observada no meio comportamental,

3 A origem dos significados presentes na percepção humana corresponde para Koffka à estruturação proveniente da interação das condições molares do sistema nervoso com as forças decorrentes da estimulação interna e externa do organismo. Essa discussão é apresentada detalhadamente no capítulo 5 deste trabalho.

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tanto no sentido do mundo físico externo quanto no sentido da estrutura fisiológica do

organismo. Era preciso uma concepção de interação entre o organismo e o ambiente

geográficos que incorporasse os fatos evidenciados pelo meio comportamental. Este meio

mostrou que o comportamento é regulado por objetos externos que atraem e repelem o

comportamento. Koffka cita como exemplos a atração repentina que um grito de socorro

exerce sobre a organização de um meio comportamental anteriormente calmo e em

harmonia com o ambiente e o fato de o comportamento num campo de guerra estar

polarizado de um lado pelo campo inimigo e, por outro, pelo lar dos combatentes. Então,

Koffka escolhe o conceito de campo da física para fundamentar o comportamento real do

organismo.

Um campo é uma organização de propriedades de um corpo num determinado raio,

por exemplo, um campo magnético exerce diferentes atrações em relação a corpos em

diferentes distâncias. O que há de interessante neste conceito, para a teoria da Gestalt, é o

fato de que o campo se constitui como uma organização de um espaço. Não há, dentro de

um campo, espaços absolutamente vazios. Trata-se de um espaço totalmente preenchido

por forças e tensões, que influenciam cada elemento de um conjunto. Feita essa escolha,

ainda resta a necessidade de um organismo que seja capaz de gerar esse campo, agora

chamado de campo comportamental, é nesse momento que Koffka lança mão do conceito

de isomorfismo de Wertheimer. Primeiramente, é necessário entender a distinção entre

meio comportamental e campo comportamental. O meio comportamental é o campo

comportamental visto do interior pelo Eu. O campo comportamental é o campo real gerado

pela interação entre um organismo e o ambiente. Sua determinação depende do organismo

fisiológico, que, agora, é explicado como tendo a mesma estrutura do campo

comportamental. Dessa maneira Koffka apresenta um novo fundamento para a ciência

fisiológica, anteriormente fundamentada na hipótese do movimento reflexo, ou seja, a

interação pontual entre um estímulo sensorial e uma resposta motora. Segundo a hipótese

do isomorfismo, a estrutura do meio comportamental para a consciência é idêntica a

estrutura que organiza a recepção de estímulos e elaboração de respostas. Há um princípio

estruturante no sistema nervoso, que é responsável, inclusive, pela elaboração dos

chamados movimentos reflexos. Assim, Koffka desenvolve uma teoria de um organismo

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molar como condição de possibilidade do comportamento molar e que engloba, inclusive, o

comportamento molecular e seus correspondentes reflexos fisiológicos.

O conceito de isomorfismo também trouxe importantes implicações para a

neurologia. A escola da Gestalt propõe a unificação do método de investigação

fenomenológico com o estudo do sistema nervoso. Como a estrutura apresentada pela

consciência corresponderia às estruturas presentes no organismo, diversas hipóteses sobre o

funcionamento neurofisiológico podem ser elaboradas com base nos estudos sobre a

maneira como a consciência se relaciona com o mundo. Este é um bom exemplo do esforço

realizado por Koffka de unificar o universo de discurso das ciências, tornando possível o

diálogo entre a psicologia e outras ciências biológicas, sem excluir os conceitos de

significado e valor presentes na observação da experiência direta. A consciência, portanto,

adquiriu um papel metodológico na Psicologia da Gestalt.

No entanto, a escolha de Koffka do universo de discurso da física, no momento em

que concluiu que era possível o surgimento de um novo dualismo, parece ter sido

responsável pela obscuridade do papel da consciência em sua teoria. Esse mundo físico em

si, como o próprio Koffka afirma, é um pressuposto. Não há garantias que essa estrutura

que fundamenta o isomorfismo exista realmente no mundo físico. Embora reconheça a

consciência como fato, Koffka abdica de explicar sua função no comportamento, afirmando

que “é da natureza intrínseca de certos eventos que eles se revelem, que sejam

acompanhados de consciência. Por que são assim e que características especiais um

processo deve ter para ser assim, trata-se de questões que não podem ser respondidas agora

e que talvez nunca o sejam” (Koffka, 1975, pp. 73).

Pode-se concluir que no momento em que uma revisão ontológica se fazia

necessária para o desenvolvimento de uma psicologia do comportamento com um lugar

definido para a consciência, Koffka optou por uma ontologia “geográfica” – em seus

próprios termos – trocando a evidência da experiência direta por um pressuposto organismo

isomórfico. Esse é, na minha opinião, o problema mais fundamental da psicologia,

decorrente de sua separação da filosofia. A consciência não encontra um lugar definido na

maioria dos sistemas psicológicos. Cito aqui a psicanálise e a análise do comportamento. A

primeira escola partiu do pressuposto de que há um inconsciente representacional

fisiológico que é determinante na vida humana e que, dependendo das circunstâncias,

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permite ou não que algo surja – de maneira quase mágica – à consciência. A segunda parte

de observações de animais e encontrou no homem a particularidade da linguagem, ou, nos

termos da própria teoria, o operante verbal. Mas a consciência perceptiva imediata

permaneceu sem um lugar definido. É por esse motivo que surgem cada vez mais linhas

teóricas da psicologia, pois basta determinar um pressuposto que uma nova teoria se

desenrola.

A consciência apresenta-se a nós como o único dado inquestionável do universo. A

existência dos objetos aos quais se refere em si ou não é justamente o início dos problemas

fundamentais da ciência psicológica. Portanto, o primeiro estudo que deve ser feito pela

psicologia é a análise do fenômeno da consciência e a principal metodologia filosófica que

lida com esse fato é a fenomenologia, então, é imprescindível uma união entre a

fenomenologia e a psicologia, não apenas com a finalidade metodológica empregada pela

Gestalt, mas para que essa ciência encontre fundamentos seguros e um lugar tanto para o

comportamento quanto para a consciência, como o próprio Koffka defende no primeiro

capítulo dos “Princípios...”. Sobre sua afirmação de que uma psicologia do comportamento

encontraria um lugar para a consciência e para a mente pode-se dizer que encontrou

realmente um lugar para a última, que estaria dentro do organismo geográfico como uma

estruturação neurológica do mundo e do ego, que será abordada nos próximos capítulos.

Mas, sobre a consciência não é possível dizer o mesmo, pois seu lugar no sistema da

Psicologia da Gestalt de Koffka permaneceu aberto e indefinido. A crítica relativa ao

materialismo poderia então ser aplicada também à teoria psicológica deste autor4.

5. O método fenomenológico na Psicologia da Gestalt, os problemas da percepção e fundamentos para uma nova teoria.

O primeiro passo de Koffka para encontrar no campo psicofísico as causas do

comportamento será buscar suas leis de organização. É necessário, para tanto, o

conhecimento da dinâmica interna entre as forças e os objetos deste sistema psicofísico. É

possível extrair da teoria de Koffka dois papéis das forças: a segregação dos objetos e sua

interação (em termos de atração e repulsão). A primeira constatação das características

4 Essa crítica será fundamentada nos capítulos posteriores, especialmente segundo as idéias de Merleau-Ponty.

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desse campo, segundo Koffka, é sua polaridade entre o ego e o meio (Koffka 1975, pp. 78).

Tal constatação pode ser localizada na discussão sobre a experiência direta e o meio

comportamental, quando Koffka relaciona a experiência direta a um eu consciente de seu

meio e de seu comportamento dentro deste. São estes os primeiros objetos do campo (o ego

e o ambiente) e a tarefa da psicologia de Koffka, nesse momento, será a de explorar suas

propriedades, as forças que os segregam e suas interações, buscando princípios gerais de

organização. As características do ambiente, no interior do campo, serão verificadas pelas

leis de organização da percepção, investigadas através do método fenomenológico,

enquanto que a constituição do ego e sua participação no campo surgirão como necessidade

dentro de alguns eventos perceptivos e comportamentais.

O método fenomenológico utilizado por Koffka em suas investigações do meio

comportamental tem importantes implicações para a psicologia. A Psicologia da Gestalt

defende que “o experimentar e o observar5 devem andar de mãos dadas” (Koffka, 1975, pp.

84). Os métodos da Gestalt correspondem a um importante marco para as investigações

psicológicas, divididas até este momento entre os métodos puramente experimentais do

behaviorismo de Watson e o introspeccionismo elementarista de Titchener. A Gestalt,

portanto, constitui-se como o primeiro passo para a inclusão da consciência na psicologia,

embora seu papel tenha permanecido estritamente metodológico. Koffka define seu método

fenomenológico como uma “descrição da experiência direta que seja a mais ingênua e

completa possível” (Koffka, 1975 pp. 84).

A primeira característica do ambiente, encontrada por tal observação, corresponde à

existência de coisas e não-coisas. Uma importante questão sobre essa distinção é posta por

Koffka: não há coisas e não-coisas absolutas, sempre com tal característica, seu papel no

meio dependerá do tipo de organização total. Por exemplo, a escuridão da noite pode ser

uma não-coisa, mas quando a escuridão está presente nas nuvens de chuva, constitui-se

como uma coisa. Portanto, é necessário investigar quais características da organização do

campo tornam algo uma coisa. Será preciso, para conhecer as forças que atuam destacando

coisas no ambiente, distinguir as características das coisas e das não-coisas.

As não-coisas são associadas por Koffka a uma neblina, com duas características

destacáveis: não têm fronteiras, nem formato e são absolutamente estáticas. Às coisas são

5 A expressão “observar” deve ser entendida como a descrição da experiência imediata.

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atribuídos os contornos bem formados, as propriedades dinâmicas e a constância. Pode-se

pensar numa pedra, com contornos perfeitamente delimitados, passível de movimentação e

com a constância de ser a mesma pedra hoje e amanhã. As propriedades dinâmicas das

coisas referem-se aquilo que as destaca na nossa experiência, “(...) uma força, algo que vai

além da mera coisa estática e que nos afeta” (Koffka, 1975, pp. 83). Como exemplos, o

autor cita o caráter assustador do trovão, o perigo na presença de uma serpente, que são

propriedades anteriores à percepção de sua cor ou outros aspectos. Assim, Koffka encontra

a força e a coisa como aspectos de um mesmo objeto do meio comportamental, apoiando

assim a sua hipótese de que o campo da Física apresenta-se como uma forma válida de

conhecer os processos da experiência.

Dada a distinção entre coisa e não-coisa, Koffka apontará a direção em que

trabalhará a relação entre estes aspectos do meio comportamental. Ele afirma que as coisas

não preenchem totalmente o meio comportamental, “existe algo entre elas e em torno

delas” (Koffka 1975, pp. 84). Portanto, para definir a presença da não-coisa na experiência

será necessário um termo amplo, pois se fosse possível uma pluralidade simultânea de não-

coisas, seria necessária a existência de contornos definidos, e como foi visto, a não-coisa

não tem fronteiras. Koffka adota então o termo “estrutura” para definir a totalidade

indefinida (a parte não-coisa) por trás e ao redor das coisas. Este termo encontra na noção

de fundo, que será trabalhada posteriormente, uma interessante analogia.

A descrição da percepção encontrou a existência de coisas e estrutura no mundo

fenomenal, Koffka, então, passará a questionar como têm origem esses processos a partir de

um mosaico de estimulação nos receptores sensoriais. Koffka desenvolve sua teoria sobre a

crítica de três explicações sobre as causas da percepção. Uma afirma que as coisas

presentes na percepção correspondem às coisas reais, a segunda afirma que as coisas são

como são devido às características da estimulação nas superfícies receptoras, enquanto que

a última, a vigente à época do surgimento da Gestalt, é uma mistura de ambas.

A questão dirigida por Koffka à concepção da estimulação proximal (o estímulo

como afeta os órgãos sensoriais) como causa da percepção refere-se à diferente natureza

das coisas percebidas em relação à superfície sensorial.

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“Quando eles [nossos olhos] focalizam um objeto, uma serpente, uma nuvem, um bebê

sorrindo, um livro, o que é que está nas retinas? Imagens desses objetos? Sim, somente

quando entendemos por imagem essa tabela que descrevemos há instantes, no caso da chapa

fotográfica; porém, em vez de partículas individuais, temos de enumerar os elementos

sensitivos da retina, os cones e os bastonetes; e, em vez da espessura da camada, a espécie e o

montante de estimulação que cada um desses receptores elementares recebe. Mas, à parte essa

diferença a causa imediata da nossa visão de qualquer objeto é um mosaico de estimulação

idêntico ao da chapa fotográfica. E isso suscita imediatamente o seguinte problema: como é

que a enorme riqueza e variedade de nosso meio comportamental visual pode ser excitada por

esse mosaico de luz, de cores e tonalidades?” (Koffka, 1975, pp. 86)

Em seguida, Koffka critica mais diretamente essa concepção do estímulo proximal

como causa, perguntando “como podem tão ricos efeitos surgir de tão pobres causas?”

(Koffka, 1975, pp. 86). Essa crítica aparecerá também na questão posta para discutir as

causas da percepção: “por que as coisas parecem o que parecem?” (Koffka, 1975, pp. 87).

Outro argumento que contribui para derrubar esta teoria corresponde à constância dos

objetos em detrimento da variação da estimulação nas superfícies dos órgãos sensoriais.

Como exemplos, Koffka cita uma cadeira retangular que permanece retangular mesmo que

a característica da estimulação na retina o seja apenas algumas vezes e o tamanho de uma

caneta, que não varia se esta estiver segura pelas mãos ou no canto da mesa (Koffka, 1975

pp. 94), embora as estimulações sejam diferentes. Por fim, Koffka cita as figuras ambíguas

para provar que mesmo que a estimulação proximal se mantenha constante a percepção da

mesma figura pode se alterar (Koffka, 1975, pp. 95).

Contra a outra concepção da percepção, apresentada por meio da resposta “as

coisas parecem o que parecem porque elas são o que são”, Koffka argumenta que se fosse

assim, a existência de uma unidade real seria a causa necessária e suficiente da unidade

comportamental. A implicação dessa afirmação é que o que aparece na percepção é o

mundo real. Se um objeto real fosse a causa necessária do comportamental, toda unidade

do meio comportamental deveria corresponder a uma unidade do geográfico e se fosse

causa suficiente, a existência de um objeto real acarretaria imediatamente um objeto

comportamental idêntico. O autor levanta diversos exemplos em que esta identidade não

ocorre, como no caso da camuflagem, em que um objeto real não é percebido; a percepção

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de um movimento quando um movimento real não ocorre; e a percepção do tamanho dos

objetos (a lua parece grande no horizonte e pequena no zênite). Logo, essas coisas reais não

poderiam causar sua percepção imediatamente, já que, enquanto percebidas são diferentes

das coisas físicas em si, ou, como denomina Koffka, reais.

No entanto, Koffka considera essas duas primeiras respostas à pergunta “por que as

coisas parecem o que parecem?” já parcialmente ultrapassadas. Parcialmente, pois a teoria

psicológica e fisiológica de sua época conta com uma mistura das duas. Essa mistura ocorre

devido aos problemas apontados na explicação através das características da estimulação

proximal, em que está implicada uma correspondência ponto a ponto entre os estímulos e

os objetos percebidos. Para englobar os casos em que esta correspondência não ocorria, era

preciso algo que interferisse na estimulação proximal. As noções de sensação e de

percepção tornam-se úteis para a ciência na explicação da experiência direta.

Segundo essa teoria, a sensação seria um campo primário, correspondente aos

efeitos das coisas nos órgãos sensoriais, enquanto que a percepção seria um campo

secundário, resultado da interação entre tal estimulação proximal e o julgamento decorrente

das experiências anteriores (Koffka, 1975, pp. 96). O campo primário, portanto,

assemelha-se à resposta “as coisas parecem o que parecem por que os estímulos proximais

são o que são”, enquanto que o secundário corresponderia à resposta “as coisas parecem o

que parecem por que elas são o que são”.

Koffka cita a explicação de Jaensch sobre um experimento de Wundt (a percepção

de movimento num fio que avança e recua) para exemplificar essa teoria. Segundo Jaensch,

“no caso do fio, o julgamento assenta apenas numa mudança na magnitude das dimensões

retinianas que acompanha a alteração da distância do fio; e, embora essa mudança seja

muito pequena para ser diretamente notada como uma mudança de magnitude, ela deve

ainda determinar o julgamento de distância” (Jaensch, 1920, apud Koffka, 1975). Essa

afirmação busca explicar por que uma mudança de amplitude na estimulação da retina deu

origem a uma percepção de movimento em vez de uma percepção de mudança no tamanho

do fio. Koffka argumenta contra a explicação afirmando que o julgamento só é necessário

devido à pressuposição de que a mudança na estimulação da retina acarretaria uma

mudança no objeto percebido. A este pressuposto, decorrente da concepção da percepção

como uma relação ponto a ponto da estimulação proximal com a percepção, dá-se o nome

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de “hipótese da constância” e ao construto do julgamento sobre a estimulação proximal

Koffka chama “teoria da interpretação”.

Há dois pontos ressaltados por Koffka na refutação dessa teoria. O primeiro refere-

se à circularidade da explicação. A hipótese de constância necessita da teoria da

interpretação para ser plausível, enquanto que a teoria da interpretação supõe a hipótese de

constância (Koffka, 1975, pp. 97). O segundo ponto corresponde ao fato de que o

julgamento que acessa a estimulação proximal não aparece na experiência direta. A

experiência nos mostra, ao invés disso, um movimento diretamente percebido, no caso do

fio, sem um advento cognitivo. Essa teoria não tem, portanto, um fundamento na

percepção, e parece ser mantida apenas para salvar uma concepção elementarista da

fisiologia.

Koffka também apresenta diversas pesquisas para apontar as incoerências da teoria

sensação-percepção. Numa delas, realizada por Götz, pintos foram treinados a bicar sempre

um grão maior dentre dois apresentados simultaneamente. Posteriormente, realizou-se um

teste mostrando que os pintos bicavam os grãos realmente maiores mesmo que eles

estivessem a uma distância maior do que os menores – o que fazia com que a imagem

retiniana correspondente aos grãos maiores fosse menor. Seria uma explicação um tanto

absurda, para Koffka, que os pintos, nos três primeiros meses de vida, julgassem maior

algo que lhes parecia menor. A explicação dada por ele é que as aves bicavam os grãos

porque eles pareciam diretamente maiores (Koffka, 1975, pp. 100).

As críticas de Koffka às teorias da percepção apresentadas até o momento se

inserem em uma reação mais ampla da Psicologia da Gestalt às teorias vigentes em sua

época. A Psicologia da Gestalt confronta toda a fisiologia mecanicista e o conceito de

estímulo sobre o qual se funda.

“Tudo o que pretendemos fazer é substituir leis de correspondência local, leis de

efeitos mecânicos, por leis de uma correspondência muito mais abrangente entre o campo da

percepção total e a estimulação total” (Koffka, 1975, pp.108).

Os teóricos da Gestalt, através dos experimentos e das descrições da percepção

denunciam a concepção de estímulo como a excitação de um ponto receptor no organismo

como implausível e defendem que a Forma da estimulação – o estímulo como um contexto

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impossível de ser analisado em partes isoláveis – é o que realmente afeta o organismo.

Abandonando a constância ponto a ponto entre estímulo e percepção, inexistente na

experiência direta, Koffka buscará constâncias percebidas, construindo sobre as mesmas

sua teoria da percepção. Portanto, ele buscará na experiência as leis de organização do

campo perceptivo.

A existência da estimulação proximal não pode, no entanto, ser descartada, bem

como não se pode negar seu papel na percepção. O que Koffka pretende é tirar-lhe o papel

de causa da percepção, integrando esses processos numa organização mais ampla, que

envolve todo o sistema psicofísico. Dado que a estimulação proximal dá-se como um

mosaico, devem existir processos que a organizam nas Formas da percepção, constituindo

os objetos segregados num campo. Os estímulos proximais, portanto, afetam um campo, e a

percepção passa a ser o resultado da modificação deste, segundo suas leis internas.

Segundo a teoria de Koffka, a organização é um processo que necessita de forças

que o ponham em movimento, mas, ao mesmo tempo, depende das propriedades do meio

em que ocorre (Koffka, 1975, pp. 109). Portanto, como ocorre com um campo conforme a

Física, uma mesma força poderá produzir diferentes resultados de acordo com o meio em

que o processo acontece. Pensando no meio como o contexto e a força como uma alteração

no contexto, o que está em jogo é a relação entre o todo e as partes, ou seja, a modificação

nas partes depende das leis de organização do todo (o contexto). O meio será definido por

Koffka como as condições dos processos psicofísicos iniciados pelas forças produzidas

pelas estimulações extra e intra-orgânicas. Essa condição é nomeada como estrutura por

Koffka e sua natureza é restritiva e isolante, pois favorece algumas interdependências,

segrega processos em determinadas partes do sistema e determina a direção que as forças

irão tomar (Koffka, 1975, pp. 111). Pode-se entender o sistema psicofísico de Koffka,

portanto, como um sistema de redistribuição de forças.

A organização resultante das interações entre as forças e a estrutura do sistema

nervoso segue um princípio geral chamado Lei da Prägnanz. Esse princípio, apresentado

inicialmente por Wertheimer, postula que “a organização psicológica será sempre tão ‘boa’

quanto as condições reinantes permitirem. Nesta definição, o termo ‘boa’ é indefinido.

Abrange propriedades tais como a regularidade, a simetria, a simplicidade, e outras que

iremos encontrar no decurso de nosso trabalho” (Koffka, 1975, pp. 121). Nota-se que as

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leis da percepção que os gestaltistas buscam são leis de equilíbrio dinâmico, que

constituem uma Forma privilegiada em que as forças estejam em equilíbrio. Tal equilíbrio

pode ser entendido como a busca da organização mais simples possível. Sobre esse ponto,

Koffka concebe duas formas de simplicidade, a mínima e a máxima. A simplicidade

mínima é buscada quando o organismo está numa postura passiva, com pouca energia a sua

disposição e com poucas forças externas agindo sobre ele, nesse caso a percepção terá

características de uniformidade. No caso da organização segundo a simplicidade máxima,

há uma grande quantidade de energia a disposição do organismo, tanto resultante das forças

provenientes da estimulação externa quanto dos subsistemas interiores, como o ego

(Koffka, 1975, pp.182); as formas da percepção corresponderão, nesse caso, aos objetos

comportamentais em sua boa articulação.

Sendo as forças resultado da heterogeneidade da estimulação, uma implicação

interessante dessas idéias é que a estimulação mais simples capaz de afetar os órgãos

sensoriais seria homogênea, enquanto para as teorias anteriores a estimulação mais simples

corresponderia a um ponto. Koffka cita a percepção de um ponto já como um fator de

organização mais articulado, que exige forças do sistema do ego. Um único ponto numa

folha branca é dificilmente percebido, sendo necessário um grande esforço de atenção do

ego para notá-lo. A articulação do campo, portanto, não depende de leis mecânicas

absolutas e sim de leis dinâmicas envolvendo a estrutura do sistema nervoso (incluindo o

ego, enquanto subsistema do sistema nervoso), as características totais de estimulação (grau

de heterogeneidade) e as forças dos sistemas internos. Não há no sistema nervoso, portanto,

caminhos prescritos aos estímulos – como na teoria do estímulo-resposta. Essa concepção

permitiu também a participação do Ego na organização da percepção, pois se trata de um

dos subsistemas do campo psicofísico.

Uma das boas organizações da percepção corresponde à articulação figura-fundo.

Nesta, um fundo se mostra atrás e ao redor da figura, fazendo com que a linha que limita a

configuração seja unidimensional, isto é, pertença à figura e não ao fundo. Nesses casos, a

figura maior sobre a qual a menor está localizada resiste à ruptura e aparece na percepção

como contínua (Koffka, 1975, pp. 192). As características dessas figuras que determinam

tal articulação são exaustivamente expostas por Koffka no capítulo V dos Princípios de

Psicologia da Gestalt (1975), no entanto, não é o objetivo desse trabalho apresentá-las. O

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que importa no conceito de organização figura-fundo, é sua analogia com a relação entre

coisas e estrutura na percepção. Koffka afirma sobre essa organização que “quanto às suas

características, a figura depende do fundo sobre o qual aparece. O fundo serve como uma

estrutura ou moldura em que a figura está enquadrada ou suspensa e, por conseguinte,

determina a figura” (Koffka, 1975, pp. 194). O fundo, dependendo de sua direção, pode

mudar a configuração percebida6. Existe, portanto, uma diferença funcional entre o fundo e

a figura, ou seja, o fundo é a condição sobre a qual a figura adquire uma forma. A estrutura,

a não-coisa ao redor das coisas, é o contexto sobre o qual aparecem os objetos segregados

da percepção, e sua direção determina como serão organizados os objetos. É importante

ressaltar a relatividade do papel do fundo e de figura. Em figuras ambíguas, o fundo e a

figura podem se alterar, no entanto, haverá sempre um fundo determinado para uma figura.

Koffka utiliza o termo estrutura em dois momentos. No primeiro momento, a

estrutura corresponde à parte não-coisa ao redor das coisas na percepção, com as

características de ser estática, com fronteiras indefinidas. No segundo, a estrutura designa

as condições do sistema nervoso, isolantes e restritivas, buscando uma estabilidade para a

distribuição das forças internas e externas. Pode-se supor que Koffka propõe a estrutura

como condição funcional das coisas ou processos, que ao mesmo tempo em que serve de

meio para sua ocorrência faz com que adquiram sua forma, limitando-os. Acompanhando o

raciocínio baseado no isomorfismo, poderia se dizer que a estrutura presente na percepção

corresponde às condições neurofisiológicas aparecendo para a consciência, pois

predominam na percepção com maior homogeneidade de estimulação – ou seja, com a

diminuição das forças externas da percepção. A experiência de uma estimulação

homogênea (a forma mais simples de estimulação) corresponderia, para Koffka, à

percepção de uma névoa ao redor do sujeito, ou seja, a percepção da estrutura (Koffka,

1975, pp. 123). No entanto, Koffka não cita, nem parece ser possível, uma percepção da

figura sem um fundo. As implicações dessas idéias parecem ser que a estrutura é um meio

(necessário) de ocorrência de eventos, que existe antes dos mesmos, mas que se altera com

sua presença.

Essa distinção funcional entre figura e fundo ajuda a compreender a noção de

Forma da Psicologia da Gestalt. A estrutura existindo anteriormente às forças que incidem

6 Conforme a Figura 1

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sobre ela parece constituir uma totalidade, uma Gestalt. Com a alteração de uma de suas

partes (as superfícies receptoras, ou outros subsistemas como o ego), essa totalidade será

modificada em toda sua extensão, de acordo com seus princípios limitantes e restritivos.

Nota-se, portanto, um novo modelo de causalidade, pois existem condições que são

necessárias, dadas pela estrutura em que ocorrem os eventos, mas não são suficientes para

o surgimento desses eventos, que dependem de alterações nas partes desta estrutura. Dessa

maneira há uma relação interna entre o que ocorre nas partes de uma estrutura e as

modificações totais decorrentes, já que, no caso da teoria da Gestalt, o resultado das forças

que afetam as extremidades deste sistema será dado de acordo com a forma que as mesmas

adquirem no interior da estrutura. No entanto, esse modelo aplicado ao sistema nervoso,

sobre o pressuposto de que os processos conscientes da percepção lhe são idênticos não

explica como algo se torna consciente, e nem seria necessária a existência da consciência,

já que corresponde apenas a particularidade de alguns processos dentro de um campo mais

amplo (o sistema psicofísico). Tal particularidade, Koffka abdica explicitamente de

analisar.

No contexto do desenvolvimento da Psicologia da Gestalt, buscar as causas da

percepção corresponde à busca da relação entre o meio geográfico e o meio

comportamental, ou seja, a questão refere-se a como, a partir da existência dos objetos

geográficos, surgem os comportamentais. Aceitando de antemão essa dicotomia

geográfico-comportamental, Koffka não leva até as últimas conseqüências a pergunta que

dirige à causalidade da estimulação proximal. Ele assume, ao buscar a causa da percepção,

uma postura orientada pelo realismo e pela fisiologia como unidade explicativa. Para

Koffka, é “perfeitamente claro que o campo ambiental deve sua existência, antes de

qualquer coisa, à influência exercida sobre os nossos órgãos sensoriais” (Koffka, 1975, pp

85). Seu questionamento é restrito a uma concepção de fisiologia e sua proposta será

explicar, através de um organismo regido por fenômenos de campo (organização,

articulação) a existência das coisas como existem na percepção. No entanto, na Teoria da

Gestalt, a diferença qualitativa entre os fenômenos da experiência direta e sua causa

permanece, agora em relação a um organismo em que os processos se organizam de acordo

com leis de equilíbrio e a percepção. O argumento de Koffka, quando aponta a

impossibilidade da percepção ter origem em causas “tão pobres” como a estimulação

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proximal, volta-se contra ele, pois a percepção continua muito mais rica que qualquer

campo neurológico. A explicação da Gestalt, mesmo que proponha a igualdade estrutural

entre organismo e experiência direta, é insuficiente. Mesmo que existam processos

concomitantes com a experiência, a atribuição de causa aos mesmos é arbitrária e a

descrição da percepção (o “efeito”) não dá subsídios para a hipótese da existência de um

mundo Físico “Real” diferente do percebido. A questão mais profunda, não trabalhada por

Koffka, refere-se justamente à possibilidade de se encontrar uma causa última para a

percepção.

É interessante notar como o papel estritamente metodológico que adquiriu a

consciência na Psicologia da Gestalt pode ser entendido pelo uso do método

fenomenológico sem o alcance que teve nas teorias fenomenológicas. O questionamento da

fenomenologia é radical, seu alcance vai até a possibilidade de se conhecer, aos

fundamentos e crenças da ciência. A fenomenologia busca no mundo vivido o fundamento

do conhecimento e da ciência em geral. Esse movimento não é realizado por Koffka, pois

seu raciocínio mantém as crenças fundamentais dos cientistas de sua época: a experiência é

resultado da estimulação no corpo, a alma é causada pelo corpo. Koffka busca no mundo

vivido as leis que servirão de causa para que as coisas sejam como são, mas que não estão

originalmente na relação do ser com o mundo (percepção na fenomenologia) e sim no

organismo. As coisas não são as coisas mesmas (como diria a fenomenologia), são cópias

no organismo das coisas exteriores.

Conceber as coisas da percepção como as coisas de fato, no entanto, pode ter

problemas, e estes foram apontados por Koffka. As críticas desse autor, porém, mostram

que ele não utilizou nem a descrição da percepção, como já foi dito, nem a noção de Gestalt

radicalmente. As críticas de Merleau-Ponty à Escola da Gestalt referem-se justamente a

superficialidade com que esses teóricos utilizaram seu método fenomenológico e o pequeno

alcance que deram à noção de Forma. Mesmo tendo desenvolvido tal conceito, a Gestalt

mantém a exterioridade entre percepção e organismo, entre consciência e corpo, pois

mantém a concepção de que a consciência e o comportamento têm sua causa no interior do

organismo. O movimento realizado por Koffka, portanto, corresponde à substituição de

uma causa molecular (o organismo como soma de reflexos predeterminados) por uma

causa molar (o organismo dinâmico semelhante a um campo Físico, cujas estruturas

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correspondem funcionalmente às da percepção). Entretanto, o que a analogia de Forma

entre percepção e processos neurofisiológicos acrescenta à questão corpo-consciência a não

ser um paralelismo entre experiência e corpo psicofísico, que poderia ser comparado à

dualidade de oposição entre a substância pensante e a substância extensa de Descartes?

O problema da resposta “as coisas parecem o que parecem por que são o que são”

só existe se sua análise for realizada à luz da oposição aparência-realidade, existente na

obra de Koffka como consciência-campo fisiológico. No entanto, a maior contribuição que

a Psicologia da Gestalt fez à ciência foi o próprio conceito de Forma, segundo o qual as

coisas são definidas em sua relação com o todo de que participam. A partir desse conceito,

não há um evento que causa outro e sim uma relação que deve ser compreendida, ou seja, a

função de uma parte numa totalidade. Certamente a lua não aparece do mesmo tamanho em

diferentes percepções, mas qual o tamanho real da lua, como é a lua em si mesma,

isoladamente? O próprio Koffka assume que todo dado é um dado comportamental e que a

realidade física é um construto. Poderia se concluir, então, que a lua física, em si mesma, é

uma teoria, enquanto que a lua que nos aparece é a própria lua em diferentes perspectivas

(dependentes do tipo de todo em que está localizada). A questão da percepção através de

perspectivas é profundamente trabalhada por Merleau-Ponty no capítulo 4 da obra

Estrutura do Comportamento (1972).

6. O Ego no campo psicofísico e seu papel no comportamento

Com o desenvolvimento dos conceitos de ordem e significado, a Psicologia da

Gestalt é capaz de incluir no seu sistema teórico a noção de ego, negligenciada por muitas

abordagens teóricas. No capítulo 2 da obra “Princípios da Psicologia da Gestalt” (1975)

Koffka atribui a origem da ordem e do significado do comportamento ao campo

comportamental, que é a totalidade constituída por organismo e ambiente. Nesse mesmo

capítulo esse autor também desenvolve as primeiras noções de consciência e ego na

psicologia da Gestalt. Já no capítulo 8 da mesma obra, Koffka irá expandir o papel do ego

atribuindo-lhe um certo controle do comportamento, idéia impossível no sistema teórico

behaviorista de Watson, alvo principal das críticas da Psicologia da Gestalt. Outro teórico

da Gestalt, Wolfgang Köhler, no seu livro “Psicologia da Gestalt” (1930), trabalhou com o

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problema da percepção das coisas fora do corpo, em que provavelmente ocorrem as

operações que originam a percepção.

Antes de desenvolver o conceito de ego é importante lembrar que o campo

psicofísico é uma Gestalt, portanto é um todo com um princípio interno de organização. O

ambiente e o organismo que se comporta são partes dessa totalidade com funções

determinadas. No capítulo 8 dos “Princípios...” Koffka apresenta o princípio geral de

Humphrey, segundo o qual “(...) o organismo se comporta como um intricado sistema de

processos materiais, tendendo ativamente a manter um padrão completo sob condições em

constante mudança” (Humphrey apud Koffka, 1975). Esse princípio não só ajuda Koffka a

desenvolver sua teoria do comportamento molar, como nos ajuda a entender o que é um

sistema. Pode-se dizer o que constitui a atividade de um sistema é a dinâmica entre

desequilíbrio e equilíbrio, sendo o último restabelecido segundo o princípio interno de

organização do sistema que, por sua vez, deve permanecer constante. No entanto, esse

equilíbrio não é a volta a um estado imutável e sim o desenvolvimento do organismo, ou

seja, a cada desequilíbrio sucede um novo equilíbrio. Esse conceito também abre a

possibilidade da concepção da identidade espaço-temporal do organismo. O organismo,

segundo esse principio, é a unidade espaço-temporal da Forma - o princípio de organização

de todo o sistema. Entretanto, a questão sobre como o organismo se constitui como uma

unidade permanece em aberto. Já que cada equilíbrio é um novo equilíbrio, o que

permanece nessa dinâmica que permite dizer que o organismo é o mesmo? Koffka, por fim

afirma que esse princípio, embora possa colocar sua teoria no caminho certo, é insuficiente

para a compreensão do comportamento, pois não engloba o conceito de significado, apenas

o de ordem (Koffka, 1975, pp 321).

A categoria do significado é essencial à teoria de Koffka, pois possibilita a

concepção de objetos comportamentais, diferentes dos geográficos. Os objetos com um

valor comportamental são decorrentes do campo gerado pela presença do organismo no

ambiente, é justamente por isso que a teoria de Humphrey é insuficiente, ela trata apenas da

ação sobre o organismo e não da ação do organismo sobre o ambiente, que necessita dos

objetos comportamentais. O significado desse tipo de objeto é justamente apontar para as

possibilidades de interação deste com os outros objetos do campo, dentre este o ego e os

outros objetos ambientais.

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Iniciando o caminho para inserir o “eu” no campo comportamental, Koffka explica

a função da ação do organismo – o comportamento – nesse sistema. Essa função pode ser

sintetizada como o papel de restabeler o equilíbrio do campo. O desequilíbrio gera tensões

no sistema, que agirá no sentido de cessar a desarmonia. Assim, Koffka, ao contrário dos

behavioristas, aborda os chamados “reflexos” como um sistema integrado, buscando uma

boa organização. Enquanto a teoria fisiológica de estímulo-resposta apresenta as ações

como acidentais e mecânicas, Koffka busca uma fisiologia em que se encaixe o

comportamento como um evento organizado e dirigido para uma meta (Koffka, 1975, pp

322). Os movimentos oculares, segundo Koffka, estão de acordo com essa idéia, pois

demonstram a integração entre o sistema motor e o sensorial, em que o motor busca uma

forma de organizar o campo perceptivo, e exemplificam como o aparelho é estimulado

como um todo e não pontualmente. O exemplo mais marcante é o de um campo luminoso

homogêneo em que surge um ponto negro, que imediatamente acarreta o movimento de

fixação. Para Koffka é essa não-homogeneidade do estímulo que leva à ação – no caso, a

fixação – fazendo com que esse ponto que gera a tensão seja levado para o centro da retina.

Pode-se perceber claramente nessa situação a interação de forças sensoriais (não-

homogeneidade) e motoras (movimento de fixação) interagindo para a boa organização do

campo perceptivo (a meta da fixação). Esse é um dos casos citados por Koffka da aplicação

do princípio de Humphrey e da noção de campo à ação do organismo.

Existem, no entanto, dois tipos de organização, a silenciosa e a não-silenciosa. Na

organização silenciosa, seu resultado é apresentado à consciência como percepção

organizada, com objetos fixados, movimentos, etc, mas o eu não percebe o movimento

ocular, apenas os objetos da percepção. Na organização não-silenciosa, o órgão perceptivo

torna-se parte do ego comportamental, explicitando a tensão originada no campo à

consciência.

“(...) acontece que sentimos nossos olhos pregados num certo objeto, que não podemos

desviá-los e que, quando, com uma grande força de vontade, conseguimos olhar para outro

lugar, descobrimos um compulsão quase irresistível para voltar de novo os olhos para aquele

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objeto fascinante. Nesse caso, a força7 que controla nossa fixação é revelada na experiência e

o aspecto motor do nosso ato de visão deixou de ser “silencioso”. Mas, em tais casos, os

olhos não são simples órgãos receptores indiferentes que trabalham para nós sem nos darem

conta de seu trabalho, nesses casos, os olhos são partes definitivas de nosso Ego e não só os

olhos, mas todo o nosso Ego é impelido na direção do objeto atraente” (Koffka, 1975, pp.

329, 330).

Koffka reafirma, com estas palavras, a possibilidade da aceitação da subjetividade

na Psicologia da Gestalt. Ele reconhece a existência de uma gama de tensões e forças que

se revelam a um sujeito que pode tomar parte na dinâmica do campo comportamental. O

ego surge na experiência direta atraído por um objeto e reconhecendo-se como um corpo

que se apercebe – percebe-se percebendo. Surge, portanto, o problema sobre a relação entre

o Ego e corpo. A solução apontada pela teoria da Gestalt é a concepção de ambos como

subsistemas de um campo maior, como será explicado posteriormente, que se encontram,

mas se ultrapassam. O Ego é mais do que o corpo, pois o próprio Koffka afirma que outros

elementos podem fazer parte do sistema do Ego, como o país de origem, os filhos ou até

um partido político (Koffka, 1975, pp 332), portanto, elementos da história da pessoa; o

corpo também transcende ao Ego, pois nele ocorrem processos automáticos sem a

participação de um “eu”, como o funcionamento dos órgãos e os reflexos. O corpo e o Ego,

quando aparecem integrados à consciência, aparecem com um significado comportamental,

são o ego e o corpo fenomenal. Embora a Gestalt não aprofunde o conceito de corpo

vivido, ou fenomenal, esse será o grande tema e uma das peças fundamentais da teoria

fenomenológica de Merleau-Ponty.

É importante retomar algumas idéias de Koffka sobre o “eu” até o capítulo 8. Ele

concebe o ego como um sujeito que tem acesso ao comportamento e ao meio

comportamental. O comportamento que aparece à consciência do eu é chamado por Koffka

7 Pode-se observar nesse momento a utilização, por Koffka, de termos como “atração”, “força”, “tensão”, que são derivados da física e exemplificam uma crítica à tentativa do elementarismo europeu – o associacionismo -, em que se baseava a psicologia nas suas origens com Titchener. Tal escola tentava imitar as ciências naturais, especialmente a física. Entretanto, a própria física estava enfrentando uma mudança de paradigmas, ou seja, estava mudando para uma visão de fenômenos como eventos de campo, em vez de concebê-los como forças isoladas num espaço vazio. É o caso do campo eletromagnético e gravitacional. Não cabe a esse texto abordar toda essa discussão, mas pode-se concluir que a Psicologia da Gestalt, em sua época, se aproximava mais da física e das ciências naturais do que psicologias como o behaviorismo e a escola da introspecção de Titchener.

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de comportamento fenomenal, e é a concepção do sujeito de suas próprias ações. O meio

comportamental é a consciência do lugar onde ocorre o comportamento, e para onde se

dirige, isto é, sua meta (Koffka, 1975, pp.). Para a Gestalt, entretanto, esse comportamento

fenomenal não é o comportamento real, é apenas uma parte deste. O comportamento real é

aquele que ocorre dentro de um campo mais amplo, não necessariamente acessível à

consciência, chamado de campo comportamental. O eu, portanto, foi apresentado até o

momento como um espectador do próprio comportamento, e será colocado, através do

capítulo 8, como agente comportamental.

Koffka apresenta o ego como um objeto do campo comportamental, onde já estão

situados na teoria da Gestalt o organismo e o ambiente. O organismo, o ambiente e o ego,

portanto, poderiam ser concebidos como subsistemas de um sistema maior, cujo equilíbrio

deve ser alcançado. A harmonia do sistema maior, o campo comportamental, pressupõe a

harmonia de todos os subsistemas. O primeiro passo para abordar esse objeto, o ego, é

explicar as forças que o delimitam. Para Koffka, o ego tem fronteiras, pois é um objeto, e

pode-se dizer que, por fazer parte de um sistema, está necessariamente interagindo sempre

com os outros objetos desse campo. Essas fronteiras, embora sejam variáveis no decorrer

de diferentes situações, para cada uma destas o ego tem uma fronteira bem determinada,

como por exemplo, no caso de num determinado momento, uma pessoa poder sentir-se

ofendida por algo que não a ofenderia em outra situação; para cada situação, porém, há um

conjunto definido de coisas que a ofenderia.

Nesse ponto de sua argumentação, Koffka explicita seu contato com as idéias de

Köhler. No capítulo 7 de sua obra “Psicologia da Gestalt” (1930), Köhler desenvolve uma

interessante argumentação utilizando a idéia de ego e de isomorfismo para solucionar o

problema apresentado pela experiência direta. Esse problema é fundamental para a filosofia

e para a psicologia, pois corresponde ao fato de o mundo ser percebido externamente,

tratando-se de uma questão ontológica. As coisas, na experiência, aparecem como fora do

corpo. Como poderiam estar longe do sistema nervoso que permite percebê-las, seriam

ilusões, seriam originadas pelo espírito? Segundo Köhler, o corpo é percebido em todos os

momentos da percepção como separado dos outros objetos, portanto, tem uma unidade por

estar sempre presente e uma exterioridade relativa ao mundo por ser percebido como objeto

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segregado dos outros. Imaginando essa situação no cérebro, considerando o isomorfismo, o

corpo e os objetos estão realmente distantes, pois há um processo correspondente ao corpo

e o outro aos objetos. O corpo percebe-se como eu, pois é o que se mantêm no decorrer das

experiências. Köhler também afirma, segundo Koffka, que o ego está localizado entre o “à

frente” e o “atrás”, servindo como orientação para a organização do espaço comportamental

(Koffka, 1975, pp 333). Esse espaço ultrapassa aquele espaço que está no campo visual,

pois “o espaço comportamental não me defronta, mas me envolve” (Koffka, 1975). Esse

último argumento soma-se ao do capitulo 7 do “Psicologia da Gestalt” (1930), pois as

partes do corpo que aparecem na percepção estão exatamente no centro dessa organização

espacial, portanto, o ego e o corpo são correspondentes.

Continuando o desenvolvimento do conceito de ego, Koffka utiliza um exemplo de

um campo comportamental inicialmente sem ego. Ele conta a história de um alpinista que

sofreu um acidente e aos poucos foi voltando a consciência. Nesse processo, seu meio

comportamental foi se organizando, primeiramente pelo surgimento de elementos externos,

como a névoa, sons indefinidos, para posteriormente surgir como um sonho de alguém e

por último como o pensamento “eu estou sonhando”, em que aparece o ego

comportamental. (Koffka, 1975. pp 335). Para Koffka o ego, como qualquer outro objeto,

precisa das forças originadas pela heterogeneidade do campo para surgir. Pode-se concluir

por argumentos de Koffka como o de que crianças não têm um ego bem constituído, além

da história do alpinista, que ele concebe o ego como uma parte do campo que surge aos

poucos, desenvolvendo-se de acordo com os acontecimentos, ou seja, com a

heterogeneidade do campo comportamental. Essa idéia tem importantes conseqüências para

a psicologia, pois pode ser a base de uma psicologia do desenvolvimento, que acompanha

todas as fases da vida humana. Como seria organizado o ego de uma criança, ainda pouco

definido, como seria o ego de uma pessoa idosa, por estar mais perto da morte? Essas são

perguntas que investigações desses elementos da Gestalt poderiam trabalhar.

Tendo defendido o ego como um subsistema do campo comportamental, resultante

de uma não-homogeneidade deste e localizando-o em relação ao espaço, Koffka procurará

relacionar o ego com o tempo, pois, segundo ele, “o problema do Ego não pode ser

adequadamente tratado tão-só nas três dimensões de espaço (...) se o tempo não for levado

em consideração, estaremos perdendo alguns dos principais aspectos do problema...”

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(Koffka, 1975, pp 339). A concepção de um ego temporal é importante para estabelecer

uma teoria da personalidade e do desenvolvimento na psicologia, pois a temporalidade do

ego indica uma unidade mutável, mas que mantém sua identidade. O ego, para Koffka,

nunca está em pleno equilíbrio, “está sempre indo algures e, portanto, a estabilidade do Ego

deve sempre ser vista em relação com a direção em que está se movendo” (Koffka, 1975,

pp 343). Pode-se dizer que a temporalidade é a característica do ego de estar sempre ligado

a um passado e aberto a um futuro. Essa visão é compatível com o princípio de Humphrey,

segundo o qual, como já foi citado, a unidade é dada por uma identidade de forma espaço-

temporal.

A teoria de campo da Gestalt tem importantes conseqüências para a concepção do

controle do comportamento, do papel do ego e da consciência. O comportamento é sempre

uma reorganização do campo, não necessariamente acompanhado de consciência ou da

ação de um ego. O ego, sendo um subsistema de algo mais amplo, não inclui também uma

consciência necessária, ele é mais do que a consciência. A consciência é um estado

momentâneo, enquanto o ego persiste como um objeto do campo, organizando-se

temporalmente. Koffka não aborda em nenhum momento o possível motivo da existência

da consciência, que não parece se constituir como um subsistema, e sim como algo que

algumas vezes acompanha a ação, outras não. A noção de ego é utilizada por Koffka para

explicar o comportamento voluntário, e para incluir um subsistema em que são encaixadas

algumas experiências. Essas experiências não têm um caráter egóico em si, mas dependem

da situação de estruturação do campo. Koffka afirma que não há coisas em si subjetivas,

alguns eventos do campo podem estar impregnados de emoções e significados à parte do

ego. É o caso de uma paisagem triste, a tristeza certamente, não está localizada na paisagem

geográfica, mas está no ambiente comportamental, não no ego comportamental. Dessa

maneira ele critica o conceito de projeção, em que o ego projeta suas emoções no mundo,

não há provas, para ele, de que as emoções sejam, por natureza, subjetivas, isso não

passaria de uma suposição (Koffka, 1975, pp 336).

Para relacionar o ego e a ação, Koffka apresenta a noção de executivo, que pode ser

definido como todas as ações que aliviam as tensões do campo. Antes de abordar esse

conceito, é importante ressaltar que nem sempre é a ação que alivia as tensões, como no

caso da organização do campo sensorial, e que a ação não é necessariamente um

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movimento motor concreto (Koffka, 1975, pp 353, 354). O executivo pode ou não estar

controlado pelo ego, Koffka cita três casos.

“(...) a acomodação, a redação de uma carta e a fuga a um perigo. No primeiro, a tensão

está inteiramente limitada ao campo sensorial; é aliviada por um movimento que é iniciado

e regulado por essa tensão no campo, e nada tem a ver com o Ego. No segundo caso, a

tensão reside inteiramente no sistema do Ego; o alívio é iniciado por essa tensão, a

execução real da ação que ele acarreta pode ser regulada pelo campo, minha caneta, o

papel, um apoio etc. No último caso, a tensão origina-se entre o Ego e o objeto no campo,

digamos, uma serpente. Essa tensão desencadeia o movimento, o qual será também mais ou

menos dirigido por outras forças do campo” (Koffka, 1975, pp 355).

No primeiro caso a ação e o ego não têm nenhuma relação, no segundo, o ego é a causa

principal, já no terceiro, a tensão é entre o ego e um objeto do ambiente, que se alivia com

a remoção deste objeto. Sobre o último caso é realizada uma discussão extensa no capítulo

8, mas que não constitui o objetivo deste trabalho. Através do exemplo da emissão de uma

carta, Koffka apresenta sua definição do papel da intenção. Para ele, se há a intenção de

emitir uma carta, há um sistema do ego em tensão e ao surgir uma caixa de correio, essa

tensão faz com que o ego adquira o controle do executivo, realizando a emissão da carta.

Assim, a caixa de correio adquire seu significado através de uma intenção que podia até

mesmo estar fora da consciência, até o surgimento da caixa. Outro caso interessante da

participação do ego é a atenção. Esta pode ser voluntária ou involuntária. Quando é

voluntária a força é originada no ego, enquanto que no segundo caso a força vem do objeto

(Koffka, 1975, pp 369).

Como conclusão, pode-se dizer que essa teoria é capaz de explicar também como as

ações podem transformar a identidade de uma pessoa. Como o campo é um sistema

integrado, mudanças que ocorrem nele para aliviar as tensões podem afetar o sistema do

ego. Para Koffka, esse sistema possui uma camada superficial, facilmente atingida e uma

camada nuclear, o “eu”, que é mais estável e difícil de ser afetada. No caso de ser afetado,

esse núcleo pode transformar toda a vida do indivíduo. Pode-se perceber que a teoria da

Gestalt foi capaz de transformar a psicologia numa ciência mais humana, em que a própria

pessoa tem um papel na determinação de seu comportamento, embora não o controle total.

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É possível também conceber a escolha, pois são diversas as possibilidades de ação para

aliviar as tensões, afinal, o ego é um sistema aberto ao futuro, e como parece que Koffka o

entende como princípio das ações voluntárias, ele poderá escolher a qual futuro irá dirigir-

se. Essas idéias da Psicologia da Gestalt para a ciência psicológica são inovadoras, pois

escolas psicológicas, como o behaviorismo metodológico, buscavam uma ciência à parte da

vida humana, que excluía o ego, a ordem e o significado do comportamento, sem nenhuma

evidência concreta de sua inexistência.

7. O desenvolvimento do conceito de Estrutura em Merleau-Ponty a partir das críticas à Gestalt

Os teóricos da Gestalt realizaram um interessante movimento no desenvolvimento

de suas idéias. Ao mesmo tempo em que buscavam aliar a ciência à vida humana,

mostrando como as teorias científicas se fundavam sobre a experiência direta, construíam

os pilares da Psicologia da Forma sobre um construto exterior à consciência humana, um

novo tipo de organismo, cujos processos eram isomórficos à percepção e ao

comportamento como aparecia no meio comportamental.

Nos capítulos anteriores o objetivo foi apresentar como Koffka chega num novo

modelo de ciência, numa nova maneira de pensar os acontecimentos. A categoria “Gestalt”

permitiu aos teóricos da Psicologia da Forma incorporar em suas idéias os conceitos de

quantidade, significado e ordem, até então restritos às suas ciências específicas -

respectivamente, Física, Biologia e Psicologias Compreensivas e outras Ciências Sociais.

Dessa maneira, a Psicologia da Gestalt abriu um campo de diálogo entre as diferentes áreas

do conhecimento, mostrando que a Forma existe na Física, na Biologia e na Psicologia. A

proposta desses teóricos resume-se segundo a noção de que as coisas não se relacionam de

forma linear e exterior, e sim numa relação interna, seguindo um princípio de organização;

uma relação de parte ao todo. Se as coisas existem em relação, cada uma é uma parte de

algo anterior às mesmas, algo que lhes confere um sentido e um papel, ou seja, uma função

na Gestalt que compõem. Abandonava-se assim, um modelo de causalidade parcial –

utilizado principalmente pelo behaviorismo watsoniano e pelo estruturalismo de Titchener

-, que buscava a divisão da experiência e do comportamento em unidades absolutas, para

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que depois pudesse se compreender como se uniam, formando o todo de que eram

originalmente partes. No entanto, como também se procurou apontar nos capítulos

anteriores, a consciência para a qual essas Gestalten – ou estruturas – apareciam,

permaneceu sem um papel nessa Psicologia e nessas Formas. Outro ponto interessante que

pode ser apontado é o que os teóricos da Gestalt, diante das estruturas da consciência,

aplicaram a Gestalt Física, como princípio explicativo, à Biologia e à Psicologia, como se

os organismos vivos e a consciência humana não fossem em nada diferentes dos campos de

forças da Física. Certamente foi uma tentativa de unificar as ciências e não apenas abrir um

diálogo entre elas8. A restrição à Forma Física pôde ser notada, por exemplo, quando

Koffka recusou o materialismo e o vitalismo mostrando que a Forma estava presente

também na Física, mas sem se questionar se as Formas da Física e da Biologia eram

correspondentes, e conseqüentemente se estas eram iguais às Formas na Psicologia. Assim,

Koffka utiliza a Forma da Física nas explicações sobre a percepção, pois foi apontando sua

existência que comprovou a objetividade da ordem nas ciências.

Merleau-Ponty desenvolve suas idéias sobre essas questões deixadas pela Psicologia

da Gestalt e busca radicalizar o conceito de Estrutura na compreensão da percepção e do

comportamento, bem como apresentar o que considerou como falhas desses teóricos. A

obra A Estrutura do Comportamento (1975) constitui-se como esse movimento das idéias

merleau-pontianas: a crítica da Gestalt e a proposta de se começar pela descrição da

percepção e do que ela nos tem a dizer sobre as coisas, pensando nesse fenômeno como

algo original, fundamental, e não como um efeito exterior de um sistema físico

particularmente complexo.

Os questionamentos dirigidos à Teoria da Gestalt na obra de Merleau-Ponty

inserem-se numa crítica mais geral, referente ao realismo presente na psicologia e nas

ciências naturais. O pensamento realista distingue a aparência da realidade, buscando a

causa dos fatos num mundo real exterior à experiência direta. O principal problema dessa

concepção é que somente a aparência é acessível diretamente e a realidade permanece

sempre um construto teórico. Essa questão foi apontada por Koffka, e é interessante notar

como ele, mesmo tendo contemplado que o meio no qual nos comportamos (o meio

8 Ver capítulo 2 para uma discussão mais detalhada sobre a concepção da Psicologia como ciência de integração

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comportamental) é diferente do meio físico (o meio geográfico) e assumido que a realidade

física não é um dado e sim um construto, opta pelo universo de discurso da Física. Essa

escolha parece ter se apoiado na fé nas realizações da ciência Física, no seu status de

objetividade, na tentativa de escapar do dualismo - pois Koffka afirmou que o lugar

ontológico do meio comportamental era problemático9-, bem como no sonho de construir

uma ciência integrada, que permitisse a generalização dos termos da Física à Biologia e à

Psicologia. Com os mesmos termos, essas ciências se tornariam integradas.

No entanto, como Merleau-Ponty afirma, a conseqüência dessa escolha foi que

“assim o conhecimento continua definido, segundo os esquemas mais simples, como uma

imitação das coisas, a consciência permanece uma parte do ser” (Merleau-Ponty, 1975, pp.

171). A construção de uma teoria do isomorfismo se fez necessária por essa opção da

Gestalt, portanto, a imitação das coisas a que se refere Merleau-Ponty corresponde às

cópias dos objetos físicos no interior do sistema nervoso, segundo suas leis de organização.

Os objetos e processos copiados que se revelam, são a parte do organismo chamada de

consciência. Esse organismo isomórfico, juntamente com os objetos físicos, constitui a

realidade da Gestalt, o lugar das causas, enquanto o meio comportamental permaneceu na

dimensão das aparências.

O realismo adotado pela Teoria da Gestalt esteve presente o tempo todo como

pressuposto, fazendo com que Koffka tivesse que adequar ao mesmo as descrições que lhe

permitiam compreender a experiência direta. Como foi visto, ele apresenta ao mesmo

tempo o meio da experiência direta, decorrente da descrição da percepção e o meio

geográfico, aceito como verdadeiro de antemão. Devido a essa distinção entre os meios

geográfico e comportamental, o último foi concebido como mediador entre o primeiro e o

organismo. Então, a Forma Física (a noção de campo) foi utilizada para se transferir o meio

comportamental para dentro do organismo, incorporando fenômenos inconscientes e

tornando-o algo do universo geográfico. Assim, Koffka foge de fato do espiritualismo, mas

ao aproximar-se do materialismo, herda seus problemas.

Pode-se concluir que a Gestalt substitui o universo de partículas independentes por

um universo físico constituído de Formas e campos de força. A consciência permanece

nada mais do que uma manifestação misteriosa decorrente desse universo exterior, não

9 Ver Koffka, 1975, pp. 58.

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testemunhado pela mesma. A experiência direta, a partir daí, torna-se uma evidência que

não passa de um efeito de uma teoria, um ponto de partida para a ciência que não encontra

um lugar em suas explicações. A mente e a vida tornam-se também uma Forma Física.

Merleau-Ponty discorda dessa concepção mostrando que a Forma Física já é uma

forma da consciência, e, o mais importante, não é a única. Ao contrário de Koffka, ele

defende que as Gestalten na Física, Biologia e Psicologia são qualitativamente diferentes.

Para Merleau-Ponty, “na medida em que uma filosofia da estrutura mantém o caráter

original das três ordens e admite que quantidade, ordem e significação, presentes em todo o

universo das formas, são, todavia, caracteres ‘dominantes’ respectivamente na matéria, na

vida e no espírito, é ainda por uma diferença estrutural que se deve considerar sua

distinção” (Merleau-Ponty, 1975, pp. 168). Por diferença estrutural, deve-se entender que a

estrutura do espírito não é redutível à da vida e da matéria.

Enquanto Koffka acredita que futuramente será possível a quantificação na

Psicologia (a elaboração de leis), pode-se entender que Merleau-Ponty defende que, dado o

domínio da significação na estrutura do espírito - ou estrutura humana - e a diferença

qualitativa decorrente, enquanto uma estrutura permanecer humana é apenas pela

compreensão (apreensão do significado) que será inteligível.

A conseqüência ontológica da noção de Forma, ao invés da concepção de um

Universo Físico molar (de Gestalten Físicas), corresponde ao abandono desse mundo real e

à concepção de que os eventos se definem nas relações. Uma implicação desse universo, o

Universo das Formas defendido por Merleau-Ponty, corresponde ao fato de que átomos e

campos de forças, embora estejam presentes, não determinam os rumos da cultura humana,

são condições necessárias, mas não são suficientes para as ações dos homens. Numa

estrutura da vida, a matéria tem um sentido novo e ambas se tornam partes da estrutura

espiritual, enquanto participam da existência humana.

A estrutura para Merleau-Ponty não é, portanto, uma unidade formada por

condições do meio e forças buscando um equilíbrio – uma coisa real -, é uma “idéia, uma

significação comum a um conjunto de fatos moleculares, que todos eles exprimem, mas

que nenhum deles contém inteiramente” (Merleau-Ponty, 1975, pp. 179). Tomada neste

sentido, a estrutura física passa a ser também uma estrutura humana, é a matéria no seu

aspecto humano. O campo, as forças, a energia, não são coisas do mundo, são idéias

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comuns aos fatos físicos, que nos permitem reuni-los, dar-lhes um sentido. Da mesma

maneira, a vida passa a ser a vida para uma consciência, a vida percebida. As ciências

naturais, portanto, por serem parte da experiência humana – tanto os cientistas como os

objetos -, não revelam um mundo exterior, absoluto e verdadeiro, uma realidade para suas

aparências. O que essas ciências revelam, na verdade, são teorias, as quais reúnem sob um

mesmo sentido um conjunto de fatos.

Koffka, no entanto, aceita que essa realidade física é um construto, mas quando

descreve o comportamento real, mostra que acredita na necessidade de sua pressuposição,

afirmando que “devemos pressupor a existência do comportamento real, tal como devemos

admitir a existência de mesas, livros, casas e animais reais” (Koffka, 1975 pp. 50).

Entendendo como coisas reais aquelas das quais os processos isomórficos são cópias

formais, tal afirmação ilustra a outra crítica de Merleau-Ponty, de que “é, então, ao

universo das coisas percebidas que a Gestalttheorie toma emprestado sua noção de Forma,

e ela não se encontra na Física senão na medida em que a Física nos devolve às coisas

percebidas, como àquilo que a ciência tem por função definir e determinar” (Merleau-

Ponty, 1975, pp. 180). Portanto, embora não se possa negar a existência do comportamento,

de mesas, livros, casa e animais, sua existência como coisas de um mundo real exterior à

experiência pode de fato ser negada. Isso, longe de significar que as coisas só existem na

experiência, o que levaria a um solipsismo, significa que as coisas da percepção são as

próprias coisas, enquanto participam da estrutura humana.

Pode-se concluir que a Teoria da Gestalt não só tomou de empréstimo a noção de

Forma das coisas percebidas, mas o fez de maneira restrita, ficando presa à noção de Forma

Física. Por isso, Merleau-Ponty defende que o entendimento das estruturas não se realiza

pela Física, mas pela descrição da percepção, o lugar em que aparecem originalmente.

Segundo ele, é necessário “retornar à noção de Forma, buscar em que sentido Formas

podem ser ditas existir no mundo físico e no corpo vivo, pedir à própria forma a solução da

antinomia da qual ela é ocasião” (Merleau-Ponty, 1975, pp. 172). Essa antinomia

corresponde à questão, apresentada pela própria Gestalt, entre vitalismo e materialismo,

ampliada por Merleau-Ponty ao espiritualismo, que a Teoria da Forma falha em solucionar,

pois privilegia um dos lados antagônicos reduzindo as Formas vitais e simbólicas

(humanas) às físicas.

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Na busca do sentido em que as Formas existem, através da descrição da percepção,

Merleau-Ponty encontrará particularidades das Formas vitais e espirituais que

desqualificam sua redução às Formas físicas. O que há de comum nessas Formas, lhes

conferindo tal identidade, corresponde à sua individualidade. Para Merleau-Ponty a Forma

é um indivíduo, pois corresponde a uma unidade cuja lei interna de organização determina

as modificações em sua estrutura devidas às influências externas. Há, portanto um princípio

de descontinuidade na noção de Forma, pois esta redefine as influências do meio em que se

insere. Essa característica aparece já na Forma Física, pois “a Forma Física é um equilíbrio

obtido com relação a certas condições exteriores dadas, quer se trate, como na repartição

das cargas elétricas sobre um condutor, de condições elas próprias dinâmicas, ou, como no

caso de uma gota de óleo colocada no meio de uma massa de água, de condições

topográficas” (Merleau-Ponty, 1975, pp. 181). A individualidade desse tipo de Forma,

portanto, realiza-se apenas pela busca de um equilíbrio em relação ao meio, o repouso,

modificando sua própria forma ou estrutura dinâmica (redistribuição de forças). É notável a

correspondência entre essa definição de Merleau-Ponty e as explicações de Koffka acerca

das estruturas nervosas e sua função na percepção. Entretanto, as Formas Vital e Humana

serão diferentes no sentido de realizar cada vez mais a individualidade, tomada no sentido

de autonomia em relação ao meio. Merleau-Ponty procurará mostra que, em vez de

respeitar uma lógica simples de “equilíbrio-desequilíbrio”, de padrões instintivos, o ser

humano faz emergir novas Formas.

Segundo a visão merleaupontiana, a Forma Vital busca o equilíbrio “não com

relação a condições presentes e reais, mas com relação a condições somente virtuais que o

próprio sistema leva à existência (...), executa um trabalho fora de seus próprios limites e

constitui para si um meio próprio” (Merleau-Ponty, 1975, pp. 181). Tal Forma constitui-se

como um segundo passo de autonomia em relação ao meio, pois passa a modificá-lo para

seu desenvolvimento. Pode-se pensar em muitos exemplos dessa nova característica, tais

como a construção de abrigos por animais, no armazenamento de alimentos para

hibernação, a complexa organização das formigas e abelhas. Esses comportamentos

animais não poderiam ser explicados por um equilíbrio interno ao organismo, pois não se

constituem como a conservação de uma ordem estabelecida, a volta a um repouso inicial.

As condições virtuais a que o autor se refere remetem à noção de que a presença de um ser

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vivo transforma a função do ambiente. Uma caverna em si mesma não é um abrigo, a não

ser em relação a vida de um animal, a presença de um indivíduo unicelular transforma em

alimento algumas partículas do ambiente que em si mesmas não têm este sentido.

O trabalho que o organismo executa, fora de seus limites, pode ser entendido como

a ação concreta, mas também como a modificação do sentido funcional do meio, que

orienta seu comportamento. Nota-se, nesse momento, a influência do conceito de meio

comportamental nessa discussão sobre a Forma Vital. A presença dessas idéias na teoria de

Koffka torna mais curiosa a generalização da Forma Física na fundamentação do

comportamento. O comportamento animal não parece ser compreensível através das leis

dinâmicas da Física, pois uma conduta animal subentende um meio vital, diferente do

universo da Física. Não há, na atuação de um organismo, comportamentos como estados

privilegiados absolutos segundo as forças que lhe afetam, a conduta será a mais simples em

relação à tarefa na qual todo o organismo está engajado e suas formas de atividades

fundamentais (Merleau-Ponty, 1975, pp. 183). O que é privilegiado, portanto, não é um

estado e sim um tipo de ação relativa a um meio vital. Para Merleau-Ponty, “a reação

depende, menos das propriedades materiais dos estímulos, que de sua significação vital”

(Merleau-ponty, 1975, pp. 196).

Existe, portanto, uma nova idéia expressa pelo contexto da vida, a sobrevivência.

Merleau-Ponty defende que a ação vital é “aquela pela qual o organismo se mantêm na

existência” (Merleau-Ponty, 1975, pp. 198). Seria essa a idéia, a estrutura, por trás de todas

as ações dos seres vivos, com exceção do homem.

Partindo da descrição da Forma Vital, Merleau-Ponty questiona a validade da

causalidade mecânica, ou seja, a concepção do organismo como uma máquina que reage a

estímulos físicos. O estímulo nessa concepção é a causa necessária e suficiente da resposta,

é uma unidade que precede uma outra unidade, a resposta, numa relação de dependência

em sentido único – a resposta depende do estímulo (Merleau-Ponty, 1975, pp. 196).

Quando o autor mostra a dependência original do estímulo em relação a uma estrutura vital,

ele busca, como alternativa ao realismo e ao mecanicismo, intrinsecamente ligados, a noção

de dialética.

O pensamento dialético tem como objetivo superar os problemas da explicação

realista, como a oposição entre realidade e aparência, seja ela mecanicista nos moldes do

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behaviorismo de John Watson, seja dinâmica nos moldes da Teoria da Gestalt. Enquanto as

explicações buscam descobrir a causa real dos eventos observados, o foco da dialética

corresponde à compreensão do sentido imanente de uma relação. É então que a noção de

estrutura se faz presente, pois a compreensão desse sentido é a compreensão da idéia

expressa nas partes observadas. Assim como o fundo determina a configuração de uma

figura, a estrutura determinará a função de cada uma de suas partes. O efeito de um evento

no ambiente de um organismo, portanto, dependerá da maneira como este participará como

parte de sua estrutura. Sendo a última uma unidade espaço-temporal, a história desse

organismo também será fundamental para a compreensão de seu comportamento. Quando

um organismo entra em contato com um estímulo, os resultados dessa interação não serão

determinados apenas pelas condições presentes (o organismo real, fisiológico e o estímulo

físico), há o peso de uma história e de condutas em andamento, e é no interior desse fluxo

que o estímulo aparece com um sentido. O estímulo, então, deixa de ser uma causa

produtora e passa a ser concebido como uma ocasião, ou seja, algo que aponta para o

organismo a possibilidade de uma conduta.

A questão deixada em aberto, sobre a unidade do organismo, na apresentação das

idéias de Humphrey por Koffka10, pode agora ser trabalhada segundo a noção merleau-

pontiana de estrutura. Entendendo-se a estrutura como uma idéia expressa pelas partes, mas

não presente totalmente em cada uma delas, pode-se concluir que a Forma se constitui

como uma unidade espaço-temporal devido a essa relação entre as partes na realização de

uma idéia comum. Isso leva Merleau-Ponty a redefinir a noção de organismo. O

“organismo real” das ciências naturais se constitui como um conjunto de reações físico-

químicas, influenciadas pela ação dos estímulos nos receptores, esse conceito, entretanto,

não corresponde ao organismo percebido, cujas ações se dirigem a objetos no seu meio. As

ciências naturais, por sua vez, negam aquilo que aparece para a percepção como sentido,

pois o pressuposto realista é aplicado também à percepção. O sentido de um organismo, ou

corpo vivo, é entendido como uma projeção de elementos subjetivos no mesmo. No

entanto, Merleau-Ponty argumenta que “toda teoria da projeção, seja ela empirista ou

intelectualista, supõe o que desejaria explicar, pois não poderíamos projetar nossos

10 Ver página 34.

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sentimentos no comportamento visível de um animal, se alguma coisa nesse próprio

comportamento não nos sugerisse a inferência” (Merleau-Ponty, 1975, pp. 192).

A Forma Humana, Simbólica ou Espiritual, por sua vez, supera tanto a dinâmica

tensão/equilíbrio da física, como as estruturas específicas de conduta das espécies animais

na manutenção da existência, a dialética situação vital/instinto. O homem constrói para si

uma segunda natureza, econômica, social e cultural. Os objetos físicos tornam-se objetos de

uso, objetos culturais, que constituem “o meio próprio do homem e fazem emergir novos

ciclos de comportamento” (Merleau-Ponty, 1975, pp. 198). A dialética humana constitui-

se, portanto, como uma terceira dialética: situação percebida/trabalho. O trabalho humano

transforma a natureza física e a vida. O homem é capaz de criar suas próprias casas, com

diferentes materiais, utilizar as leis da física para construir instrumentos como carros,

armas, aparelhos eletrônicos, instrumentos musicais, bem como de desenvolver tratamentos

para doenças, vacinas, cirurgias de correção, transplantes, utilizando o que sabe sobre a

vida a seu favor. Coisas como instrumentos musicais e armas são encontrados em qualquer

cultura humana, apoiando a tese de que a transformação da natureza é realmente algo

próprio do homem.

A estrutura concebida segundo o conceito de dialética permite a concepção de que o

meio aparece ao indivíduo conforme suas potencialidades. Enquanto o meio na física age

transformando o corpo físico, na estrutura vital, nos animais, o meio é recortado pelos

instintos, ou seja, os estímulos físicos que não correspondem a um conjunto concreto de

ações não aparecem no seu campo sensorial. No caso do ser humano, os objetos da

percepção aparecem perspectivamente, cada um de seus lados percebidos apontando para

uma mesma coisa além de sua presença, um fundo de indeterminação, uma estrutura. Trata-

se de um ser presente apontando para uma ausência, uma possibilidade, mostrando que é no

campo do possível que se desenrola o comportamento humano. Outra característica da

percepção humana é a presença de um outro (um outro eu), percebido também como uma

pessoa consciente. Dessa forma, o ser humano percebe a possibilidade da consciência de

outras perspectivas daquilo que ele percebe – o que o outro percebe. Aquilo que pode ser,

não é necessariamente, pode ser outra coisa, pode ser mudado. A ação humana, segundo

Merleau-Ponty, é capaz de negar estruturas, criando novas. Tal particularidade relativa às

estruturas parece justificar a percepção perspectiva das mesmas, juntamente com a

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percepção do outro, se esta estiver relacionada às capacidades do indivíduo que participa da

Forma.

Merleau-Ponty parece defender que é só no contexto simbólico que a estrutura

aparece ao sujeito. Enquanto os corpos físicos e os animais realizam uma estrutura sem

sabê-la, os homens são capazes de conhecer aquilo que suas ações e os objetos de seu meio

expressam, bem como de criar novas funções para os objetos da natureza, negando as

estruturas originais prescritas aos mesmos pela Forma Física e Vital. A linguagem se

constitui como exemplo de uma nova estrutura criada pela cultura humana.

Como as Formas anteriores à Humana são, antes de qualquer coisa, objetos da

percepção, Merleau-Ponty procurará como fundamento de suas reflexões a descrição da

percepção, ou seja, da consciência imediata. Nota-se, portanto, o movimento oposto ao de

Koffka, que faz do comportamento real o objeto primordial de seu estudo, o que o levou a

necessidade de um organismo real, de um mundo real. É preciso, como já foi dito,

perguntar à própria Forma, ou seja, à percepção das estruturas, sobre a antinomia da qual é

ocasião.

Conclusão

As idéias de Merleau-Ponty mostram a fragilidade dos fundamentos realistas da

Teoria da Gestalt e de todas as outras teorias construídas sobre esses alicerces. A mais

ingênua descrição da percepção contraria uma série de crenças profundamente arraigadas

como realidade nessas teorias.

Os questionamentos da Psicologia da Gestalt foram de extrema importância para a

ciência psicológica e abriram o diálogo com a filosofia, através de sua retomada por

Merleau-Ponty. É possível apontar que a noção de Estrutura aproximou explicitamente a

psicologia da filosofia, bem como que o estudo da percepção mostrou-se como uma

interessante área de confluência dessas duas áreas do conhecimento, travando um debate

extremamente produtivo para ambas.

Nota-se, por exemplo, uma progressão na superação de problemas fundamentais na

passagem das idéias de Koffka para as de Merleau-Ponty. Enquanto o primeiro supera o

elementarismo presente nas idéias de Titchner e Watson, Merleau-Ponty supera o realismo

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presente tanto nas últimas como na Gestalt. Outro ponto interessante consiste na relação

implícita entre psicologia e filosofia mostrada por esses pressupostos presentes nas teorias

psicológicas – o elementarismo e o realismo. É extremamente importante que a filosofia

aproxime-se explicitamente da psicologia e venha a questioná-la sobre seus fundamentos, é

esta a maior importância de Merleau-Ponty para a ciência psicológica.

O fenômeno da experiência direta, como se procurou mostrar, é o ponto de partida

tanto da psicologia de Koffka como da filosofia de Merleau-Ponty e as críticas levantadas

pela sua descrição foram compartilhadas por eles até o ponto em que o primeiro escolhe o

universo de discurso da Física, tornando a experiência direta uma parte do organismo

isomórfico. Foi o momento da perda da potencialidade da noção de Forma na construção de

uma nova ontologia. Merleau-Ponty busca recuperar esse caráter revolucionário da Gestalt,

tomando a percepção, não como um efeito de processos orgânicos, mas como uma

totalidade que envolve o próprio indivíduo e o próprio meio como partes de uma idéia que

os ultrapassa. A consciência, então, passa a ser a forma como o mundo aparece ao sujeito,

segundo suas potencialidade. O corpo para a consciência deixa de ser sua causa e passa a

ser o peso imanente de uma história, de uma temporalidade.

O corpo para Merleau-Ponty não é apenas um conjunto de reações físico-químicas,

da mesma maneira que a consciência não é um sujeito puro, uma idéia pura. O corpo e a

consciência constituem uma Estrutura com o mundo. A Estrutura, para Merleau-Ponty, não

é nem idéia, nem coisa, é uma idéia encarnada, uma existência. Assim, através a concepção

de existência como uma dialética entre coisa e idéia, a oposição entre subjetivismo e

objetivismo é superada.

Pensando-se no movimento, realizado pelas reflexões merleau-pontianas, de

radicalização do conceito de Estrutura, redefinição de corpo e consciência e, por último,

mesmo que pouco desenvolvido no presente estudo, de temporalidade, pode-se concluir

que o presente trabalho foi capaz de abrir um horizonte de questões para ajudar na leitura

das idéias de Merleau-Ponty.

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