e“Sou um poeta que escreve em prosa”scritor moçambicano mia … · deixar encantar pelo mundo...

1
Luciana Leitão [email protected] PUB TERÇA 29.7.2008 14 ENTREVISTA | mia couto mia couto | ENTREVISTA 15 Desistiu de medicina para apostar no jornalismo. Mais tarde, tirou o curso de biolo- gia, sendo actualmente essa a sua ocupação profissional. Significa isso que se desilu- diu com o jornalismo? Tenho com o jornalismo uma relação episódica, mas de longa duração. Mantenho colaboração com jornais e revistas de Mo- çambique e do exterior. Afastei dessa profissão mas como algo que decorra de uma desilusão. Trata-se de entender onde temos morada e onde estamos apenas de visita. Destas áreas profissionais, qual considera ser a sua verdadeira vocação? Resisto a pensar a vocação como tendência genética, natural. É a história de cada um, o modo acidental como vamos sendo acarinhados numa certa direcção que nos faz crer que temos na- turalmente certos talentos. Para resistir a um clima de cidade pequena e família muito nuclear, apurei o gosto de inventar histó- rias e nelas ampliar o meu mun- do e a minha humanidade. Talvez seja essa uma das minhas não sei se verdadeiras mas predilectas vocações. Acha que a escrita jornalísti- ca é conciliável com a escrita literária? São territórios distintos mas nem sempre a fronteira é clara. No “Nem tudo se explica pela dificuldade, que a ausência de valores nem sempre é filha legítima das carências materiais”. ESCRITOR MOÇAMBICANO MIA COUTO ACABA DE LANÇAR NOVO LIVRO “Sou um poeta que escreve em prosa” meu caso, a passagem longa pelo jornalismo serviu-me de escola, sobretudo no exercício de depu- ração e na procura da funciona- lidade de comunicação. Aconte- ceu com muitos dos escritores moçambicanos, essa passagem pelos jornais. A necessidade de comunicar e agarrar o leitor obri- ga a uma contenção e secura que, muitas vezes, são decisivas para que o texto literário funcione. Isso é uma escola fundamental para quem vem da poesia e se mete pelos caminhos da prosa. A certa altura, porém, é preciso matar simbolicamente o mestre. O meu último período como jor- nalista profissional foi marcado pela crónica e foi entre os anos 85 e 87 que produzi um conjunto de textos que depois surgiram como livros em “Cronicando” e “O país do queixa-andar” (este último apenas publicado em Moçambique). É conhecido pela sua habi- lidade no campo da prosa, mas também fez uma breve incursão pela poesia. É um género literário que lhe é menos familiar? Eu sou sempre poeta, sou um poeta que escreve em prosa. E por vezes em verso. A poesia, para mim, não é um género literário apenas mas um modo de olhar o mundo, uma maneira de fazer com as ideias sejam cons- truídas não apenas pela racio- nalidade mas pela sensibilidade. Esse saber do coração não é mais do que literatura. Brinca com as palavras e cria outras, como se não existissem regras. Acha que é importante reinventar a língua portuguesa? Ninguém pode fazer essa recria- ção como uma missão ou um propósito. No meu caso, essa relação resulta do facto de viver como moçambicano um riquís- simo percurso de familiarização de milhões de pessoas com uma segunda língua. Esse encontro e desencontro, essa necessidade de apropriação do idioma criar resultados poéticos espantosos. Esse é o meu cadinho inspira- dor. Por outro lado, mantenho que cada um de nós não se deve resumir a uma posição de utente da língua. Somos co-produtores do idioma e não devemos abdicar do prazer de imprimir a nossa marca pessoal sobre esse corpo colectivo. Digo isto aos meus filhos, encorajo-os a que falem uma língua que tem impressão digital, que reflicta a sua alma individual, única e irrepetível. Não teme, por vezes, não ser compreendido pelos seus leitores? Não. O exercício que faço de reinvenção vocabular decorre, em geral, no limite das possibili- dades da própria língua. Um dia afirmou que é mais difícil publicar e mais fácil escrever com o decorrer dos anos. Acha que, com o pas- sar do tempo, a escrita vai amadurecendo, tornando-se possível contornar os blo- queios típicos da juventude? Sim. Perde-se em espontaneida- de, mas ganha-se na contenção. Já não somos assaltados pela ur- gência de dizer tudo e pela obses- são de exibir beleza. Pior que não escrever um livro é escrevê-lo em demasia. Por outras palavras, a escrita vai ganhando naturalida- de, como água fluindo em rio. Onde se inspira para criar as suas histórias? A vida é infinitamente inspira- dora. Temos com a vida essa rela- ção transitória e inacabada. De repente, ela nos parece pequena e nos parece que somos chama- dos a protegê-la. No momento seguinte, ela nos diz que não a possuímos porque não somos ca- pazes de captar as suas infinitas dimensões. Alguma vez teve bloqueios na escrita? Não. Sei que é tão importante ser escritor como não ser escritor. Isto é, alterno períodos em que sei que não estou escritor. Sair da escrita para deixar que a oralidade tome posse de mim e fabrique novas maneiras de me deixar encantar pelo mundo e pelos outros. Acha que os livros servem de escape para os leitores ou são, pura e simplesmente, um acto egoísta do escritor? Para se ser altruísta, neste domínio, é preciso ser-se quase autista. Parece um contra-senso. Mas sucede do mesmo modo com a intenção de negarmos o localismo: para se ser universal é necessário escrever sobre a intimidade do nosso quintal. No fundo, apenas quando estamos absolutamente sós e enfrentamos esse estar apenas connosco é que tocamos aquilo que nos liga profundamente aos outros. Lançou a sua mais recente obra intitulada "Venenos de Deus, Remédios do Diabo". Uma vez disse que um livro não se explica e não se apre- senta. Contudo, se tivesse de descrevê-lo, como o faria? Descrever e explicar não são coisas tão afastadas assim. O que posso dizer é que o livro nasce de uma relação nova com o tempo, com o facto de me sentir tendo idade. O sentimento de que tropecei na idade só pode ser resolvido transformando-o num não-problema. O que quer dizer que devo converter esse fantas- mas em história, tornando em narrativa e ficção. Actualmente, está a decorrer a Cimeira da CPLP. Consi- dera que é um organismo importante para a divulga- ção da lusofonia? Sim, claro que sim. Principal- mente num mundo que necessita de pequenos contra-poderes, de vozes múltiplas capaz de resistir a este único pólo de vontade política. Não se pode é confundir lusofonia com uma instituição que deve criar entendimentos e concertações que estão bem para além da língua. Acho muito saudável que o Senegal, a Guiné Equatorial e alguns países latino americanos se tornem não ape- nas membros observadores mas membros de pleno direito. Acha que o trabalho da CPLP tem sido eficaz na união e defesa dos interesses lusó- fonos? Ainda não. E talvez a razão cen- tral seja que os países estão divi- didos entre pertenças geo-estra- tégicas múltiplas. Por exemplo, o Brasil poderá acreditar que a sua inserção continental lhe seja mais importante. O mesmo pode acontecer com Portugal em rela- ção à Europa e com Moçambique e Angola em relação à SADC. Muito se tem dito sobre o acordo ortográfico. Há quem o defenda com unhas e dentes e há quem o critique e se oponha veementemente. Qual é a sua posição? Tenho uma posição atípica. Não concordo mas também não faço guerra. Creio existirem assuntos mais importantes para discutir quando se debate a nossa família linguística. Nunca foi por causa da grafia diversa que os meus livros não deixaram de ser enten- didos no Brasil. A grafia brasilei- ra nunca impediu um moçambi- cano de ler Jorge Amado e todos os brasileiros. Vê vantagens para Moçam- bique? Existirão, apesar do que disse antes, vantagens para as edições escolares e material didáctico que poderá ser produzido invariavel- mente em qualquer das nossas nações. O que é para si a lusofonia? Certa vez, fiz uma intervenção a que chamei de Luso-afonia na tentativa de questionar intenções políticas de algumas bandeiras da lusofonia. É preciso distin- guir aquilo que é a realidade de intenções de discurso fácil. Nós em Moçambique estamos ainda à conquista da nossa própria lusofonia. Muitos dos 21 milhões dos moçambicanos não fala por- tuguês. Não são lusófonos, nesse sentido. Se a identidade linguís- tica é o factor dominante nesta família, esta gente fica excluída. Entre 1972 e 1975 lutou pela independência nacional en- quanto membro da Frente de Libertação de Moçambique. Combateu também durante a guerra civil. Entretanto, desvinculou-se do partido e afastou-se da política. Desilu- diu-se com a FRELIMO? Desiludir não é o termo. Não existe ressentimento. O percurso meu e da organização em que mi- litei tiveram as suas divergências. Mas continuo simpatizante. Não faço parte do clube dos amargu- rados, dos que invocam traição e, muitas vezes, se servem dessa invocação como cobertura da sua desconduta actual. Acha que a FRELIMO de Samora Machel é a mesma dos dias de hoje? Nem podia ser. Samora Machel hoje seria outro, com outro discurso. Seria trágico que o discurso dele se mantivesse imu- tável. Mas os princípios morais que se instalaram no período de Samora eram realmente notáveis Quando Samora Machel cantava, António Emílio Leite Couto (ou, como é mais conhecido, Mia Couto) entusiasmava-se. Es- ses dias passaram e hoje a FRELIMO – o partido que governa Moçambique – é outra. Em entrevista ao Hoje Macau, respon- deu, por e-mail, a todas as perguntas, e descreveu um percurso marcado pela guerra, a política e a escrita. e deveriam manter-se como uma referência para toda a sociedade. O facto dos dirigentes políticos, no período de Samora, se conce- berem como servidores da nação e não olharem os cargos como trampolim para riqueza pessoal, este tipo de conduta faz imen- sa falta nos dias de hoje. Não havia corrupção, naquele tempo. Reformulando, a que havia era publicamente denunciada e penalizada. O rumo que o país tomou não é o caminho que Mia tinha pensado quando, um dia, aderiu à FRELIMO? Não é. Mas também o rumo do mundo não é. Fomos aprendendo a redesenhar os sonhos. Triste é que muitos aprenderam a deixar de sonhar, a deixar de ousar uma outra utopia. Uma coisa é enten- der as dinâmicas das mudanças. Outra é ser domesticado pela realidade. Depois da guerra colonial e da guerra civil, Moçambique está finalmente a chegar a um período de estabilidade? Sem dúvida. E isso é uma conquista de que tenho muito orgulho. Os meus compatriotas conseguiram um feito histórico que foi a construção da Paz, a consolidação de uma cultura de paz e diálogo. Não quer isto dizer que os núcleos que geraram há trinta anos a guerra civil não estejam ainda presentes. Mas existem mecanismos outros para sublimar essa violência e canali- zar a vontade de os superar. Viveu sempre em Moçam- bique, mesmo durante os períodos de guerra. De que forma estes conflitos afecta- ram a sua vida? A guerra é uma doença de que nunca nos conseguimos curar. Durante anos escutávamos os “A passagem longa pelo jornalismo serviu-me de escola, sobretudo no exercício de depuração e na procura da funcionalidade de comunicação”. “Não se pode é confundir lusofonia com uma instituição que deve criar entendimentos e concertações que estão bem para além da língua”. tiros, as notícias de mortos de familiares e amigos e lidávamos com a absoluta ausência de futu- ro. Contudo, foram nesses dias de desespero e de fome que teste- munhei os mais nobres actos de solidariedade. De manhã, quando saíamos para a rua a única coisa em que todos pensávamos era no que poderíamos trazer para casa, para comer. Não havia nada nas lojas. Eu tinha dois filhos e vivia, como todos os outros, obcecado pela necessidade de trazer qual- quer coisa. As pessoas formavam bichas à porta das lojas sem saber exactamente o que havia chegado. Passávamos e alinháva- mos na bicha perguntando: o que há, hoje? E respondiam: parece que chegou galinha. Como não podíamos ficar toda manhã na bicha deixávamos uma cesta a marcar o nosso lugar. Regressá- vamos à tarde e lá estava, respei- tado, o nosso lugar. Lições como esta demonstram que nem tudo se explica pela dificuldade, que a ausência de valores nem sempre é filha legítima das carências materiais. “Nunca foi por causa da grafia diversa que os meus livros não deixaram de ser entendidos no Brasil.”

Transcript of e“Sou um poeta que escreve em prosa”scritor moçambicano mia … · deixar encantar pelo mundo...

Page 1: e“Sou um poeta que escreve em prosa”scritor moçambicano mia … · deixar encantar pelo mundo e pelos outros. Acha que os livros servem de escape para os leitores ou são, pura

Luciana Leitã[email protected]

pub

terça 29.7.200814 entrevista | mia couto mia couto | entrevista 15

Desistiu de medicina para apostar no jornalismo. Mais tarde, tirou o curso de biolo-gia, sendo actualmente essa a sua ocupação profissional. Significa isso que se desilu-diu com o jornalismo?Tenho com o jornalismo uma relação episódica, mas de longa duração. Mantenho colaboração com jornais e revistas de Mo-çambique e do exterior. Afastei dessa profissão mas como algo que decorra de uma desilusão. Trata-se de entender onde temos morada e onde estamos apenas de visita. Destas áreas profissionais, qual considera ser a sua verdadeira vocação?Resisto a pensar a vocação como tendência genética, natural. É a história de cada um, o modo acidental como vamos sendo acarinhados numa certa direcção que nos faz crer que temos na-turalmente certos talentos. Para resistir a um clima de cidade pequena e família muito nuclear, apurei o gosto de inventar histó-rias e nelas ampliar o meu mun-do e a minha humanidade. Talvez seja essa uma das minhas não sei se verdadeiras mas predilectas vocações.

Acha que a escrita jornalísti-ca é conciliável com a escrita literária?São territórios distintos mas nem sempre a fronteira é clara. No

“Nem tudo se explica

pela dificuldade, que

a ausência de valores

nem sempre é filha

legítima das carências

materiais”.

escritor moçambicano mia couto acaba de lançar novo livro

“Sou um poeta que escreve em prosa”

meu caso, a passagem longa pelo jornalismo serviu-me de escola, sobretudo no exercício de depu-ração e na procura da funciona-lidade de comunicação. Aconte-ceu com muitos dos escritores moçambicanos, essa passagem pelos jornais. A necessidade de comunicar e agarrar o leitor obri-ga a uma contenção e secura que, muitas vezes, são decisivas para que o texto literário funcione. Isso é uma escola fundamental para quem vem da poesia e se mete pelos caminhos da prosa. A certa altura, porém, é preciso matar simbolicamente o mestre. O meu último período como jor-nalista profissional foi marcado pela crónica e foi entre os anos 85 e 87 que produzi um conjunto de textos que depois surgiram como livros em “Cronicando” e “O país do queixa-andar” (este último apenas publicado em Moçambique). É conhecido pela sua habi-lidade no campo da prosa, mas também fez uma breve incursão pela poesia. É um género literário que lhe é menos familiar? Eu sou sempre poeta, sou um poeta que escreve em prosa. E por vezes em verso. A poesia, para mim, não é um género literário apenas mas um modo de olhar o mundo, uma maneira de fazer com as ideias sejam cons-truídas não apenas pela racio-nalidade mas pela sensibilidade. Esse saber do coração não é mais do que literatura. Brinca com as palavras e cria outras, como se não existissem regras. Acha que é importante reinventar a língua portuguesa?Ninguém pode fazer essa recria-ção como uma missão ou um propósito. No meu caso, essa relação resulta do facto de viver como moçambicano um riquís-simo percurso de familiarização de milhões de pessoas com uma segunda língua. Esse encontro e desencontro, essa necessidade de apropriação do idioma criar resultados poéticos espantosos. Esse é o meu cadinho inspira-

dor. Por outro lado, mantenho que cada um de nós não se deve resumir a uma posição de utente da língua. Somos co-produtores do idioma e não devemos abdicar do prazer de imprimir a nossa marca pessoal sobre esse corpo colectivo. Digo isto aos meus filhos, encorajo-os a que falem uma língua que tem impressão digital, que reflicta a sua alma individual, única e irrepetível. Não teme, por vezes, não ser compreendido pelos seus leitores? Não. O exercício que faço de reinvenção vocabular decorre, em geral, no limite das possibili-dades da própria língua. Um dia afirmou que é mais difícil publicar e mais fácil escrever com o decorrer dos anos. Acha que, com o pas-sar do tempo, a escrita vai amadurecendo, tornando-se possível contornar os blo-queios típicos da juventude?Sim. Perde-se em espontaneida-de, mas ganha-se na contenção. Já não somos assaltados pela ur-gência de dizer tudo e pela obses-são de exibir beleza. Pior que não escrever um livro é escrevê-lo em demasia. Por outras palavras, a escrita vai ganhando naturalida-de, como água fluindo em rio. Onde se inspira para criar as suas histórias?A vida é infinitamente inspira-dora. Temos com a vida essa rela-ção transitória e inacabada. De repente, ela nos parece pequena e nos parece que somos chama-dos a protegê-la. No momento seguinte, ela nos diz que não a possuímos porque não somos ca-pazes de captar as suas infinitas dimensões. Alguma vez teve bloqueios na escrita?Não. Sei que é tão importante ser escritor como não ser escritor. Isto é, alterno períodos em que sei que não estou escritor. Sair da escrita para deixar que a oralidade tome posse de mim e fabrique novas maneiras de me deixar encantar pelo mundo e pelos outros.Acha que os livros servem de escape para os leitores ou são, pura e simplesmente, um acto egoísta do escritor?Para se ser altruísta, neste domínio, é preciso ser-se quase autista. Parece um contra-senso. Mas sucede do mesmo modo

com a intenção de negarmos o localismo: para se ser universal é necessário escrever sobre a intimidade do nosso quintal. No fundo, apenas quando estamos absolutamente sós e enfrentamos esse estar apenas connosco é que tocamos aquilo que nos liga profundamente aos outros. Lançou a sua mais recente obra intitulada "Venenos de Deus, Remédios do Diabo". Uma vez disse que um livro não se explica e não se apre-senta. Contudo, se tivesse de descrevê-lo, como o faria? Descrever e explicar não são coisas tão afastadas assim. O que posso dizer é que o livro nasce de uma relação nova com o tempo, com o facto de me sentir tendo idade. O sentimento de que tropecei na idade só pode ser resolvido transformando-o num não-problema. O que quer dizer que devo converter esse fantas-mas em história, tornando em narrativa e ficção. Actualmente, está a decorrer a Cimeira da CPLP. Consi-dera que é um organismo importante para a divulga-ção da lusofonia?Sim, claro que sim. Principal-mente num mundo que necessita de pequenos contra-poderes, de vozes múltiplas capaz de resistir a este único pólo de vontade

política. Não se pode é confundir lusofonia com uma instituição que deve criar entendimentos e concertações que estão bem para além da língua. Acho muito saudável que o Senegal, a Guiné Equatorial e alguns países latino americanos se tornem não ape-nas membros observadores mas membros de pleno direito. Acha que o trabalho da CPLP tem sido eficaz na união e defesa dos interesses lusó-fonos?Ainda não. E talvez a razão cen-tral seja que os países estão divi-didos entre pertenças geo-estra-tégicas múltiplas. Por exemplo, o Brasil poderá acreditar que a sua inserção continental lhe seja mais importante. O mesmo pode acontecer com Portugal em rela-ção à Europa e com Moçambique e Angola em relação à SADC. Muito se tem dito sobre o acordo ortográfico. Há quem o defenda com unhas e dentes e há quem o critique e se oponha veementemente. Qual é a sua posição?Tenho uma posição atípica. Não concordo mas também não faço guerra. Creio existirem assuntos mais importantes para discutir quando se debate a nossa família linguística. Nunca foi por causa da grafia diversa que os meus livros não deixaram de ser enten-didos no Brasil. A grafia brasilei-ra nunca impediu um moçambi-cano de ler Jorge Amado e todos os brasileiros.Vê vantagens para Moçam-bique? Existirão, apesar do que disse antes, vantagens para as edições escolares e material didáctico que poderá ser produzido invariavel-mente em qualquer das nossas nações.O que é para si a lusofonia?Certa vez, fiz uma intervenção

a que chamei de Luso-afonia na tentativa de questionar intenções políticas de algumas bandeiras da lusofonia. É preciso distin-guir aquilo que é a realidade de intenções de discurso fácil. Nós em Moçambique estamos ainda à conquista da nossa própria lusofonia. Muitos dos 21 milhões dos moçambicanos não fala por-tuguês. Não são lusófonos, nesse sentido. Se a identidade linguís-tica é o factor dominante nesta família, esta gente fica excluída. Entre 1972 e 1975 lutou pela independência nacional en-quanto membro da Frente de Libertação de Moçambique. Combateu também durante a guerra civil. Entretanto, desvinculou-se do partido e afastou-se da política. Desilu-diu-se com a FRELIMO?Desiludir não é o termo. Não existe ressentimento. O percurso meu e da organização em que mi-litei tiveram as suas divergências. Mas continuo simpatizante. Não faço parte do clube dos amargu-rados, dos que invocam traição e, muitas vezes, se servem dessa invocação como cobertura da sua desconduta actual. Acha que a FRELIMO de Samora Machel é a mesma dos dias de hoje?Nem podia ser. Samora Machel hoje seria outro, com outro discurso. Seria trágico que o discurso dele se mantivesse imu-tável. Mas os princípios morais que se instalaram no período de Samora eram realmente notáveis

Quando Samora Machel cantava, António Emílio Leite Couto (ou, como é mais conhecido, Mia Couto) entusiasmava-se. Es-ses dias passaram e hoje a FRELIMO – o partido que governa Moçambique – é outra. Em entrevista ao Hoje Macau, respon-deu, por e-mail, a todas as perguntas, e descreveu um percurso marcado pela guerra, a política e a escrita.

e deveriam manter-se como uma referência para toda a sociedade. O facto dos dirigentes políticos, no período de Samora, se conce-berem como servidores da nação e não olharem os cargos como trampolim para riqueza pessoal, este tipo de conduta faz imen-sa falta nos dias de hoje. Não havia corrupção, naquele tempo. Reformulando, a que havia era publicamente denunciada e penalizada. O rumo que o país tomou não é o caminho que Mia tinha pensado quando, um dia, aderiu à FRELIMO?Não é. Mas também o rumo do mundo não é. Fomos aprendendo a redesenhar os sonhos. Triste é que muitos aprenderam a deixar de sonhar, a deixar de ousar uma outra utopia. Uma coisa é enten-der as dinâmicas das mudanças. Outra é ser domesticado pela realidade. Depois da guerra colonial e da guerra civil, Moçambique está finalmente a chegar a um período de estabilidade?Sem dúvida. E isso é uma

conquista de que tenho muito orgulho. Os meus compatriotas conseguiram um feito histórico que foi a construção da Paz, a consolidação de uma cultura de paz e diálogo. Não quer isto dizer que os núcleos que geraram há trinta anos a guerra civil não estejam ainda presentes. Mas existem mecanismos outros para sublimar essa violência e canali-zar a vontade de os superar. Viveu sempre em Moçam-bique, mesmo durante os períodos de guerra. De que forma estes conflitos afecta-ram a sua vida?A guerra é uma doença de que nunca nos conseguimos curar. Durante anos escutávamos os

“A passagem longa pelo jornalismo

serviu-me de escola, sobretudo no

exercício de depuração e na procura da

funcionalidade de comunicação”.

“Não se pode é

confundir lusofonia

com uma instituição

que deve criar

entendimentos e

concertações que

estão bem para além da

língua”.

tiros, as notícias de mortos de familiares e amigos e lidávamos com a absoluta ausência de futu-ro. Contudo, foram nesses dias de desespero e de fome que teste-munhei os mais nobres actos de solidariedade. De manhã, quando saíamos para a rua a única coisa em que todos pensávamos era no que poderíamos trazer para casa, para comer. Não havia nada nas lojas. Eu tinha dois filhos e vivia, como todos os outros, obcecado pela necessidade de trazer qual-quer coisa. As pessoas formavam bichas à porta das lojas sem saber exactamente o que havia chegado. Passávamos e alinháva-mos na bicha perguntando: o que há, hoje? E respondiam: parece que chegou galinha. Como não podíamos ficar toda manhã na bicha deixávamos uma cesta a marcar o nosso lugar. Regressá-vamos à tarde e lá estava, respei-tado, o nosso lugar. Lições como esta demonstram que nem tudo se explica pela dificuldade, que a ausência de valores nem sempre é filha legítima das carências materiais.

“Nunca foi por causa

da grafia diversa

que os meus livros

não deixaram de ser

entendidos no Brasil.”