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Ea de Queirs

A cidade e as serras, de Ea de Queirs

Fonte:QUEIRS, Ea de. A cidade e as serras. So Paulo : tica. (Srie Bom Livro)

Texto proveniente de:A Literutra Brasileira O seu amigo na Internet.Permitido o uso apenas para fins educacionais. Qualquer dvida entre em contato conosco pelo email [email protected]://www.aliteratura.kit.net

Texto-base digitalizado por:Marciana Maria Muniz Guedes - So Paulo/SP

Este material pode ser redistribudo livremente, desde que no seja alterado, e que as informaes acima sejam mantidas.

A cidade e as serrasEa de Queirs

ADVERTNCIA

Desde a pgina 126, at o final, as provas deste livro no foram revistas pelo autor, arrebatado pela morte antes de haver dado a esta parte da sua escrita aquela ltima demo, em que habitualmente ele punha a diligncia mais perseverante e mais admiravelmente lcida. Aquele dos seus amigos e companheiro de letras, a quem foi confiado o trabalho delicado e piedoso de tocar no manuscrito pstumo de Ea de Queirs, ao concluir o desempenho de tal misso, beija com o mais enternecido e saudoso respeito a mo, para todo o sempre imobilizada, que traou estas pginas encantadoras; e faz votos pr que a reviso de que se incumbiu no deslustre muito grosseiramente a imortal aurola com que resplandecendo na literatura portuguesa este livro, em que o esprito do grande escritor parece exalar-se da vida num terno suspiro de doura, de paz, e de puro amor terra da sua ptria. 24 de abril de 1901.

I

O meu amigo Jacinto nasceu num palcio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortia e de olival.No Alentejo, pela Estremadura, atravs das duas Beiras, densas sebes ondulando pr e vale, muros altos de boa pedra, ribeiras, estradas, delimitavam os campos desta velha famlia agrcola que j entulhava o gro e plantava cepa em tempos de el-rei d.Dinis. A sua Quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo douro, cobriam uma serra. Entre o Tua e o Tinhela, pr cinco fartas lguas, todo o torro lhe pagava foro. E cerrados pinheirais seus negrejavam desde Arga at ao mar de ncora. Mas o palcio onde Jacinto nascera, e onde sempre habitara, era em Paris, nos Campos Elsios, n.202.Seu av, aquele gordssimo e riqussimo Jacinto a quem chamavam em Lisboa o D.Galio, descendo uma tarde pela travessa da Trabuqueta, rente dum muro de quintal que uma parreira toldava, escorregou numa casca de laranja e desabou no lajedo. Da portinha da horta saa nesse momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de baeto verde e botas altas de picador, que, galhofando e com uma fora fcil, levantou o enorme Jacinto at lhe apanhou a bengala de casto de ouro que rolara para o lixo. Depois, demorando nele os olhos pestanudos e pretos:- Jacinto Galio, que andas tu aqui, a estas horas, a rebolar pelas pedras?E Jacinto, aturdido e deslumbrado, reconheceu o sr. Infante D. Miguel!Desde essa tarde amou aquele bom Infante como nunca amara, apesar de to guloso, o seu ventre, e apesar de to devoto o seu Deus! Na sala nobre da sua casa ( Pampulha) pendurou sobre os damascos o retrato do seu Salvador, enfeitado de palmitos como um retbulo e, pr baixo a bengala que as magnnimas mos reais tinham erguido do lixo. Enquanto o adorvel, desejado Infante penou no desterro de Viena, o barrigudo senhor corria, sacudido na sua sege amarela, do botequim do Z Maria em Belm botica do Plcido nos Algibebes, a gemer as saudades do anjinho, a tramar o regresso do anjinho. No dia, entre todos benedito, em que a Prola apareceu barra com o Messias, engrinaldou a Pampulha, ergueu no Caneiro um monumento de papelo e lona onde D. Miguel, tornado S. Miguel, branco, de aurola e asas de Arcanjo, furava de cima do seu corcel de Alter o Drago do Liberalismo, que se estorcia vomitando a Carta. Durante a guerra com o outro, com o pedreiro-livre mandava recoveiros a Santo Tirso, a S.Gens, levar ao Rei fiambres, caixas de doce, garrafas do seu vinho de Tarrafal, e bolsas de retrs atochadas de peas que ele ensaboava para lhes avivar o ouro. E quando soube que o sr. Miguel, com dois velhos bas amarrados sobre um macho, tomara o caminho de Sines e do final desterro Jacinto Galio correu pela casa, fechou todas as janelas como num luto, berrando furiosamente:-Tambm c no fico! Tambm c no fico!

No, no queria ficar na terra perversa de onde partia, esbulhado e escorraado, aquele Rei de Portugal que levantava na rua os Jacintos! Embarcou para Frana com a mulher, a Sr. D. Angelina Fafes (da to falada casa dos Fafes da Avel); com o filho, o Cintinho, menino amarelinho, molezinho, coberto de caroos e leicenos; com a aia e com o moleque. Nas costas da Cantbria o paquete encontrou to rijos mares que a Sr. D. Angelina, esguedelhada, de joelhos na enxerga do beliche, prometeu ao Senhor dos Passos de Alcntara uma coroa de espinhos, de ouro, com as gotas de sangue em rubis do Pegu. Em Baiona, onde arribaram, Cintinho teve ictercia. Na estrada de Orlees, numa noite agreste, o eixo da berlinda em que jornadeavam partiu, e o ndio senhor, a delicada senhora da casa da Avel, o menino, marcharam trs horas na chuva e na lama do exlio at uma aldeia, onde, depois de baterem como mendigos a portas mudas, dormiam nos bancos duma taberna. No Hotel dos Santos Padres, em Paris, sofreram os terrores dum fogo que rebentara na cavalaria, sob o quarto de D.Galio, e o digno fidalgo, rebolando pelas escadas em camisa, at ao ptio, enterrou o p nu numa lasca de vidro. Ento ergueu amargamente ao Cu o punho cabeludo, e rugiu:-Irra! demais!

Logo nessa semana, sem escolher, Jacinto Galio comprou a um prncipe polaco, que depois da tomada de Varsvia se metera frade cartuxo, aquele palacete dos Campos Elsios, n.202. E sob o pesado ouro dos seus estuques, entre as suas ramalhudas sedas se enconchou, descansando de tantas agitaes, numa vida de pachorra e de boa mesa, com alguns companheiros de emigrao (o desembargador Nuno Velho, o conde de Rabacena, outros menores), at que morreu de indigesto, duma lampreia de escabeche que mandara o seu procurador em Montemor. Os amigos pensavam que a Sr. D. Angelina Fafes voltaria ao reino. Mas a boa senhora temia a jornada, os mares, as caleas que racham. E no se queria separar do seu Confessor, nem do seu Mdico, que to bem lhe compreendiam os escrpulos e a asma.-Eu, pr mim, aqui fico no 202 (declarara ela), ainda que me faz falta a boa gua de Alcolena...

O Cintinho, esse, em crescendo, que decida.O Cintinho crescera. Era um moo mais esguio e lvido que um crio, de longos cabelos corredios, narigudo, silencioso, encafuado em roupas pretas, muito largas e bambas; de noite, sem dormir, pr causa da tosse e de sufocaes, errava em camisa com uma lamparina atravs do 202; e os criados na copa sempre lhe chamavam a Sombra. Nessa sua mudez e indeciso de sombra surdira, ao fim do luto do pap, o gosto muito vivo de tornear madeiras ao torno; depois, mais tarde, com a medida flor dos seus vinte anos, brotou nele outro sentimento, de desejo e de pasmo, pela filha do desembargador Velho, uma menina redondinha como uma rola, educada num convento de Paris, e to habilidosa que esmaltava, dourava, consertava relgios e fabricava chapus de feltro. No Outono de 1851, quando j se desfolhavam os castanheiros dos Campos Elsios, o Cintinho cuspilhou sangue. O mdico acarinhando o queixo e com uma ruga sria na testa imensa, aconselhou que o menino abalasse para o golfo Juan ou para as tpidas areias de Arcachon.Cintinho, porm, no seu aferro de sombra, no se quis arredar da Teresinha Velho, de quem se tornara, atravs de Paris, a muda, tardonha sombra. Como uma sombra, casou; deu mais algumas voltas ao torno; cuspiu um resto de sangue; e passou, como uma sombra.Trs meses e trs dias depois do seu enterro o meu Jacinto nasceu.Desde o bero, onde a av espalhava funcho e mbar para afugentar a Sorte-Ruim, Jacinto medrou com a segurana, a rijeza, a seiva rica dum pinheiro das dunas.No teve sarampo e no teve lombrigas. As letras, a Tabuada, o Latim entraram pr ele to facilmente como o sol pr uma vidraa. Entre os camaradas, nos ptios dos colgios, erguendo a sua espada de lata e lanando um brado de comando, foi logo o vencedor, o Rei que se adula, e a quem se cede a fruta das merendas. Na idade em que se l Balzac e Musset nunca atravessou os tormentos da sensibilidade; - nem crepsculos quentes o retiveram na solido duma janela, padecendo dum desejo sem forma e sem nome. Todos os seus amigos (ramos trs, contando o seu velho escudeiro preto, o Grilo) lhe conservaram sempre amizades puras e certas sem que jamais a participao do seu luxo as avivasse ou fossem desanimadas pelas evidncias do seu egosmo. Sem corao bastante forte para conceber um amor forte, e contente com esta incapacidade que o libertava, do amor s experimentou o mel esse mel que o amor reserva aos que o recolhem, maneira das abelhas, com ligeireza, mobilidade e cantando. Rijo, rico, indiferente ao Estado e ao Governo do Homens, nunca lhe conhecemos outra ambio alm de compreender bem as Idias Gerais; e a sua inteligncia, nos anos alegres de escolas e controvrsias, circulava dentro das Filosofias mais densas como enguia lustrosa na gua limpa dum tanque. O seu valor, genuno, de fino quilate, nunca foi desconhecido, nem desaparecido; e toda a opinio, ou mera faccia que lanasse, logo encontrava uma aragem de simpatia e concordncia que a erguia, a mantinha embalada e rebrilhando nas alturas. Era servido pelas coisas com docilidade e carinho; - e no recordo que jamais lhe estalasse um boto da camisa, ou que um papel maliciosamente se escondesse dos seus olhos, ou que ante a sua vivacidade e pressa uma gaveta prfida emperrasse. Quando um dia, rindo com descrido riso da Fortuna e da sua roda, comprou a um sacristo espanhol um Dcimo de Lotaria, logo a Fortuna, ligeira e ridente sobre a sua roda, correu num fulgor, para lhe trazer quatrocentas mil pesetas. E no cu as Nuvens, pejadas e lentas se avistavam Jacinto sem guarda-chuva, retinham com reverncia as suas guas at que ele passasse... Ah! O mbar e o funcho da Sr.D. Angelina tinham escorraado do seu destino, bem triunfalmente e para sempre, a Sorte-Ruim! A amorvel av (que eu conheci obesa, com barba) costumava citar um soneto natalcio do desembargador Nunes Velho contendo um verso de boa lio: Sabei, senhora que esta vida um rio....Pois um rio de Vero, manso, translcido, harmoniosamente estendido sobre uma areia macia e alva, pr entre arvoredos fragrantes e ditosas aldeias, no ofereceria quele que o descesse num barco de cedro, bem toldado e bem almofadado, com frutas e Champanhe a refrescar em gelo, um Anjo governando ao leme, outros Anjos puxando sirga, mais segurana e doura do que a Vida oferecia ao meu amigo Jacinto.Pr isso ns lhe chamvamos o Prncipe da Gr-Ventura!Jacinto e eu, Jos Fernandes, ambos nos encontramos e acamaradamos em Paris, nas Escolas do Bairro Latino para onde me mandara meu bom tio Afonso Fernandes Lorena de Noronha e Sande, quando aqueles malvados me riscaram da Universidade pr eu ter esborrachado, numa tarde de procisso, na Sofia, a cara srdida do dr. Pais Pita. Ora nesse tempo Jacinto concebera uma idia... Este Prncipe concebera a idia de que o homem s superiormente feliz quando superiormente civilizado. E pr homem civilizado o meu camarada entendia aquele que, robustecendo a sua fora pensante com todas as noes adquiridas desde Aristteles, e multiplicando a potncia corporal dos seus rgos com todos os mecanismos inventados desde Termenes, criador da roda, se torna um magnfico Ado, quase onipotente, quase onisciente, e apto portanto a recolher dentro duma sociedade, e nos limites do Progresso (tal) como ele se comportava em 1875) todos os gozos e todos os proveitos que resultam de Saber e Poder... Pelo menos assim Jacinto formulava copiosamente a sua idia, quando conversvamos de fins e destinos humanos, sorvendo bocks poeirentos, sob o toldo das cervejarias filosficas, no Boulevard Saint-Michel.Este conceito de Jacinto impressionara os nossos camaradas de cenculo, que tendo surgido para a vida intelectual, de 1866 a 1875, entre a batalha de Sadova e a batalha de Sedan e ouvindo constantemente, desde ento, aos tcnicos e aos filsofos, que fora a Espingarda-de-agulha que vencera em Sadova e fora o Mestre-de-escola quem vencera em Sedan, estavam largamente preparados a acreditar que a felicidade dos indivduos, como a das naes, se realiza pelo ilimitado desenvolvimento da Mecnica e da erudio. Um desses moos mesmo, o nosso inventivo Jorge Carlande, reduzira a teoria de Jacinto, para lhe facilitar a circulao e lhe condensar o brilho, a uma forma algbrica:

Suma cincia X = Suma felicidade Suma potncia

E durante dias, do Odeon Sorbona, foi louvada pela mocidade positiva a Equao Metafsica de Jacinto.Para Jacinto, porm, o seu conceito no era meramente metafsico e lanado pelo gozo elegante de exercer a razo especulativa: - mas constitua uma regra, toda de realidade e de utilidade, determinando a conduta, modalizando a vida. E j a esse tempo, em concordncia com o seu preceito ele se surtira da Pequena Enciclopdia dos Conhecimentos Universais em setenta e cinco volumes e instalara, sobre os telhados do 202, num mirante envidraado, um telescpio. Justamente com esse telescpio me tornou ele palpvel a sua idia, numa noite de Agosto, de mole e dormente calor. Nos cus remotos lampejavam relmpagos lnguidos. Pela Avenida dos Campos Elsios, os fiacres rolavam para as frescuras do Bosque, lentos, abertos, cansados, transbordando de vestidos claros.-Aqui tens tu, Z Fernandes (comeou Jacinto, encostado janela do mirante), a teoria que me governa, bem comprovada. Com estes olhos que recebemos da Madre natureza, lestos e sos, ns podemos apenas distinguir alm, atravs da Avenida, naquela loja, uma vidraa alumiada. Mais nada! Se eu porm aos meus olhos juntar os dois vidros simples dum binculo de corridas, percebo, pr trs da vidraa, presuntos, queijos, boies de gelia e caixas de ameixa seca. Concluo portanto que uma mercearia. Obtive uma noo: tenho sobre ti, que com os olhos desarmados vs s o luzir da vidraa, uma vantagem positiva. Se agora, em vez destes vidros simples, eu usasse os do meu telescpio, de composio mais cientfica, poderia avistar alm, no planeta Marte, os mares, as neves, os canais, o recorte dos golfos, toda a geografia dum astro que circula a milhares de lguas dos Campos Elsios. outra noo, e tremenda! Tens aqui pois o olho primitivo, o da Natureza, elevado pela Civilizao sua mxima potncia de viso. E desde j, pelo lado do olho portanto, eu, civilizado, sou mais feliz que o incivilizado, porque descubro realidades do Universo que ele no suspeita e de que est privado. Aplica esta prova a todos os rgos e compreenders o meu princpio. Enquanto inteligncia, e felicidade que dela se tira pela incansvel acumulao das noes, s te peo que compares Renan e o Grilo... Claro portanto que nos devemos cercar da Civilizao na mximas propores para gozar nas mximas propores a vantagem de viver. Agora concordas, Z Fernandes?

-No me parecia irrecusavelmente certo que Renan fosse mais feliz que o Grilo; nem eu percebia que vantagem espiritual ou temporal se colha em distinguir atravs do espao manchas num astro, ou atravs da Avenida dos Campos Elsios presuntos numa vidraa. Mas concordei, porque sou bom, e nunca desalojarei um esprito do conceito onde ele encontra segurana, disciplina e motivo de energia. Desabotoei o colete, e lanando um gesto para o lado do caf e das luzes:

-Vamos ento beber, nas mximas propores, brandy and soda, com gelo?

Pr uma concluso bem natural, a idia de Civilizao, para Jacinto, no se separava da imagem de Cidade, duma enorme Cidade, com todos os seus vastos rgos funcionando poderosamente. Nem este meu supercivilizado amigo compreendia que longe de armazns servidos pr trs mil caixeiros; e de Mercados onde se despejam os vergis e lezrias de trinta provncias; e de Bancos em que retine o ouro universal; e de Fbricas fumegando com nsia, inventando com nsia; e de Bibliotecas abarrotadas, a estalar, com a papelada dos sculos; e de fundas milhas de ruas, cortadas, pr baixo e pr cima, de fios de telgrafos, de fios de telefones, de canos de gases, de canos de fezes; e da fila atroante dos nibus, tramas, carroas, velocpedes, calhambeques, parelhas de luxo; e de dois milhes duma vaga humanidade, fervilhando, a ofegar, atravs da Polcia, na busca dura do po ou sob a iluso do gozo o homem do sculo XIX pudesse saborear, plenamente, a delcia de viver!Quando Jacinto, no seu quarto do 202, com as varandas abertas sobre os lilases, me desenrolava estas imagens, todo ele crescia, iluminado. Que criao augusta, a da Cidade! S pr ela, Z Fernandes, s pr ela, pode o homem soberbamente afirmar a sua alma!...- Jacinto, e a religio? Pois a religio no prova a alma?

Ele encolhia os ombros. A religio! A religio o desenvolvimento suntuoso de um instinto rudimentar, comum a todos os brutos, o terror. Um co lambendo a mo do dono, de quem lhe vem o osso ou o chicote, j constitui toscamente um devoto, o consciente devoto, prostrado em rezas ante o Deus que distribui o Cu ou o Inferno!... Mas o telefone! O fongrafo! - A tens tu, o fongrafo, Z Fernandes, me faz verdadeiramente sentir a minha superioridade de se pensante e me separa do bicho. Acredita, no h seno a Cidade, Z Fernandes, no h seno a Cidade!E depois (acrescentava) s a Cidade lhe dava a sensao, to necessria vida como o calor, da solidariedade humana. E no 202, quando considerava em redor, nas densas massas do casario de Paris, dois milhes de seres arquejando na obra da Civilizao (para manter na natureza o domnio dos Jacintos!), sentia um sossego, um conchego, s comparveis ao do peregrino, que, ao atravessar o deserto, se ergue no seu dromedrio, e avista a longa fila da caravana marchando, cheia de lumes e de armas...Eu murmurava, impresionado:-Caramba!Ao contrrio no campo, entre a inconscincia e a impassibilidade da Natureza, ele tremia com o terror da sua fragilidade e da sua solido. Estava a como perdido num mundo que lhe no fosse fraternal; nenhum silvado encolheria os espinhos para que ele passasse; se gemesse com fome nenhuma rvore, pr mais carregada, lhe estenderia o seu fruto na ponta compassiva dum ramo. Depois, em meio da Natureza, ele assistia sbita e humilhante inutilizao de todas as suas faculdades superiores. De que servia, entre plantas e bichos ser um Gnio ou ser um Santo? As searas no compreendem as Gergicas, e fora necessrio o socorro ansioso de Deus, e a inverso de todas as leis naturais, e um violento milagre para que o lobo de Agubio no devorasse S. Francisco de Assis, que lhe sorria e lhe estendia os braos e lhe chamava meu irmo lobo! Toda a intelectualidade, nos campos, se esteriliza, e s resta a bestialidade. Nesses reinos crassos do Vegetal e do animal duas nicas funes se mantm vivas, a nutritiva e a procriadora. Isolada, sem ocupao, entre focinhos e razes que no cessam de sugar e de pastar, sufocando no clido bafo da universal fecundao, a sua pobre alma toda se engelhava, se reduzia a uma migalha de alma, uma fagulhazinha espiritual a tremeluzir, como morta, sobre um naco de matria; e nessa matria dois instintos surdiam, imperiosos e pungentes, o de devorar e o de gerar. Ao cabo duma semana rural, de todo o seu ser to nobremente composto s restava um estmago e pr baixo um falo! A alma? Sumida sob a besta. E necessitava correr, reentrar na Cidade, mergulhar nas ondas lustrais da Civilizao, para largar nelas a crosta vegetativa, e ressurgir reumanizado, de novo espiritual e Jacntico!E estas requintadas metforas do meu amigo exprimiam sentimentos reais que eu testemunhei, que muito me divertiram, no nico passeio que fizemos ao campo, bem amvel e bem socivel floresta de Montmorency. delcias de entremez, Jacinto entre a Natureza! Logo que se afastava dos pavimentos de madeira, do macadame, qualquer cho que os seus ps calcassem o enchia de desconfiana e terror. Toda a relva, pr mais crestada, lhe parecia ressumar uma umidade mortal. De sob cada torro, da sombra de cada pedra, receava o assalto de lacraus, de vboras, de formas rastejantes e viscosas. No silncio do bosque sentia um lgubre despovoamento do Universo. No tolerava a familiaridade dos galhos que lhe roassem a manga ou a face. Saltar uma sebe era para ele um ato degradante que o retrogradava ao macaco inicial. Todas as flores que no tivesse j encontrado em jardins, domesticadas pr longos sculos de servido ornamental, o inquietavam como venenosas. E considerava duma melancolia funambulesca certos modos e formas do Ser inanimado, a pressa espeta e v dos regatinhos, a careca dos rochedos, todas as contores do arvoredo e o seu resmungar solene e tonto.Depois duma hora, naquele honesto bosque de Montmorency, o meu pobre amigo abafava, apavorado, experimentando j esse lento minguar e sumir de alma que o tornava como um bicho entre bichos. S desanuviou quando penetramos no lajedo e no gs de Paris e a nossa vitria quase se despedaou contra um nibus retumbante, atulhado de cidados. Mandou descer pelos Boulevards, para dissipar, na sua grossa sociabilidade, aquela materializao em que sentia a cabea pesada e vaga como a dum boi. E reclamou que eu o acompanhasse ao teatro das Variedades para sacudir, com os estribilhos da Femme Papa, o rumor importuno que lhe ficara dos melros cantando nos choupos altos. Este delicioso Jacinto fizera ento vinte e trs anos, e era um soberbo moo em quem reaparecera a fora dos velhos Jacintos rurais. S pelo nariz, afilado, como narinas quase transparentes, duma mobilidade inquieta, como se andasse fariscando perfumes, pertencia s delicadezas do sculo XIX. O cabelo ainda se conservava, ao modo das eras rudes, crespo e quase langero; e o bigode, como o dum Celta, caa em fios sedosos, que ele necessitava aparar e frisar. Todo o seu fato, as espessas gravatas de cetim escuro que uma prola prendia, as luvas de anta branca, o verniz das botas, vinham de Londres em caixotes de cedro; e usava sempre ao peito uma flor, no natural, mas composta destramente pela sua ramalheira com ptala de flores dessemelhantes, cravo, azlea, orqudea ou tulipa, fundidas na mesma haste entre uma leve folhagem de funcho.Em 1880, em Fevereiro, numa cinzenta e arrepiada manh de chuva, recebi uma carta de meu bom tio Afonso Fernandes, em que, depois de lamentaes sobre os seus setenta anos, os seus males hemorroidais, e a pesada gerncia dos seus bens que pedia homem mais novo, com pernas mais rijas me ordenava que recolhesse nossa casa de Guies, no Douro! Encostado ao mrmore partido do fogo, onde na vspera a minha Nini deixara um espartilho embrulhado no Jornal dos Debates, censurei severamente meu tio que assim cortava em boto, antes de desabrochar, a flor do meu Saber Jurdico. Depois num Ps-Escrito ele acrescentava: - O tempo aqui est lindo, o que se pode chamar de rosas, e tua santa tia muito se recomenda, que anda l pela cozinha, porque vai hoje em trinta e seis anos que casamos, temos c o abade e o Quintais a jantar, e ela quis fazer uma sopa dourada.Deitando uma acha ao lume, pensei como devia estar boa a sopa dourada da tia Vicncia. H quantos anos no a provava, nem o leito assado, nem o arroz de forno da nossa casa! Com o tempo assim to lindo, j as mimosas do nosso ptio vergariam sob os seus grandes cachos amarelos. Um pedao de cu azul, do azul de Guies, que outro no h to lustroso e macio, entrou pelo quarto, alumiou, sobre a puda tristeza do tapete, relvas, ribeirinhos, malmequeres e flores de trevo de que meus olhos andavam aguados. E, pr entre as bambinelas de sarja, passou um ar fino e forte e cheiroso de serra e de pinheiral.Assobiando o fado meigo tirei debaixo da cama a minha velha mala, e meti solicitamente entre calas e pegas um Tratado de direito civil, para aprender enfim, nos vagares da aldeia, estendido sob a faia, as leis que regem os homens. Depois, nessa tarde, anunciei a Jacinto que partia para Guies. O meu camarada recuou com um surdo gemido de espanto e piedade:-Para Guies!... Z Fernandes, que horror!E toda essa semana me lembrou solicitamente confortos de que eu me deveria prover para que pudesse conservar, nos ermos silvestres, to longe da Cidade, uma pouca de alma dentro dum pouco de corpo. Leva uma poltrona! Leva a Enciclopdia Geral! Leva caixas de aspargos!...Mas para o meu Jacinto, desde que assim me arrancavam da Cidade, eu era arbusto desarraigado que no reviver. A mgoa com que me acompanhou ao comboio conviria excelentemente ao meu funeral. E quando fechou sobre mim a portinhola, gravemente, supremamente, como se cerra uma grade de sepultura, eu quase solucei com saudades minhas.Cheguei a Guies. Ainda restavam flores nas mimosas do nosso ptio; comi com delcias a sopa dourada da tia Vicncia; de tamancos nos ps assisti ceifa dos milhos. E assim de colheitas a lavras, crestando ao sol das eiras, caando a perdiz nos matos geados, rachando a melancia fresca na poeira dos arraiais, arranchando a magustos, serandando candeia, atiando fogueiras de S.Joo, enfeitando prespios de Natal, pr ali me passaram docemente sete anos, to atarefados que nunca logrei abrir o Tratado de Direito Civil, e to singelos que apenas me recordo quando, em vsperas de S.Nicolau, o abade caiu da gua porta do Brs das Cortes. De Jacinto s recebia raramente algumas linhas, escrevinhadas pressa pr entre tumulto da Civilizao. Depois, num Setembro muito quente, ao lidar da vindima, meu bom tio Afonso Fernandes, morreu, to quietamente, Deus seja louvado pr esta graa, como se cala um passarinho ao fim do seu bem cantado e bem voado dia. Acabei pela aldeia a roupa de luto. A minha afilhada Joaninha casou na matana do porco. Andaram obras no nosso telhado. Voltei a Paris.

II

Era de novo fevereiro, e um fim de tarde arrepiado e cinzento, quando eu desci os Campos Elsios em demanda do 202. Adiante de mim caminhava, levemente curvado, um homem que, desde as botas rebrilhantes at s abas recurvas do chapu de onde fugiam anis dum cabelo crespo, ressumava elegncia e a familiaridade das coisas finas. Nas mos, cruzadas atrs das costas, caladas de anta branca, sustentava uma bengala grossa com casto de cristal. E s quando ele parou ao porto do 202 reconheci o nariz afilado, os fios do bigode corredios e sedosos.- Jacinto!- Z Fernandes!O abrao que nos enlaou foi to alvoroado que o meu chapu rolou na lama. E ambos murmurvamos, comovidos, entrando a grade:-H sete anos!...E, todavia, nada mudara durante esses sete anos no jardim do 202! Ainda entre as duas leas bem areadas se arredondava uma relva, mais lisa e varrida que a l dum tapete. No meio o vaso corntico esperava Abril para resplandecer com tulipas e depois Junho para transbordar de margaridas. E ao lado das escadas limiares, que uma vidraaria toldava, as duas magras Deusas de pedra, do tempo de D. Galio, sustentavam as antigas lmpadas de globos foscos, onde j silvava o gs.Mas dentro, no peristilo, logo me surpreendeu um elevador instalado pr Jacinto apesar do 202 ter somente dois andares, e ligados pr uma escadaria to doce que nunca ofendera a asma da Sr. D. Angelina! Espaoso, tapetado, ele oferecia, para aquela jornada de sete segundos, confortos numerosos, um div, uma pele de urso, um roteiro das ruas de Paris, prateleiras gradeadas com charutos e livros. Na antecmera, onde desembarcamos, encontrei a temperatura macia e tpida duma tarde de Maio, em Guies. Um criado, mais atento ao termmetro que um piloto agulha, regulava destramente a boca dourada do calorfero. E perfumadores entre palmeiras, como num terrao santo de Benares, esparziam um vapor, aromatizando e salutarmente umedecendo aquele ar delicado e superfino.Eu murmurei, nas profundidades do meu assombrado ser:-Eis a Civilizao!Jacinto empurrou uma porta, penetramos numa nave cheia de majestade e sombra, onde reconheci a Biblioteca pr tropear numa pilha monstruosa de livros novos. O meu amigo roou de leve o dedo na parede: e uma coroa de lumes eltricos, refulgindo entre os lavores do teto, alumiou as estantes monumentais, todas de bano. Nelas repousavam mais de trinta mil volumes, encadernados em branco, em escarlate, em negro, com retoques de ouro, hirtos na sua pompa e na sua autoridade como doutores num conclio.No contive a minha admirao:- Jacinto! Que depsito!Ele murmurou, num sorriso descorado:-H que ler, h que ler...Reparei ento que o meu amigo emagrecera: e que o nariz se lhe afilara mais entre duas rugas muito fundas, como as dum comediante cansado. Os anis do seu cabelo langero rareavam sobre a testa, que perdera a antiga serenidade de mrmore bem polido. No frisava agora o bigode, murcho, cado em fios pensativos. Tambm notei que corcovava.Ele erguera uma tapearia entramos no seu gabinete de trabalho, que me inquietou. Sobre a espessura dos tapetes sombrios os nossos passos perderam logo o som, e como a realidade. O damasco das paredes, os divs, as madeiras, eram verdes, dum verde profundo de folha de louro. Sedas verdes envolviam as luzes eltricas, dispersas em lmpadas to baixas que lembravam estrelas cadas pr cima das mesas, acabando de arrefecer e morrer: s uma rebrilhava, nua e clara, no alto duma estante quadrada, esguia, solitria como uma torre numa plancie, e de que o lume parecia ser o farol melanclico. Um biombo de laca verde, fresco de verde de relva, resguardava a chamin de mrmore verde, verde de mar sombrio, onde esmoreciam as brasas duma lenha aromtica. E entre aqueles verdes reluzia, pr sobre peanhas e pedestais, toda uma Mecnica suntuosa, aparelhos, lminas, rodas, tubos, engrenagens, hastes, friezas, rigidezas de metais....Mas Jacinto batia nas almofadas do div, onde se enterrara com um modo cansado que eu no lhe conhecia:-Para aqui, Z Fernandes, para aqui! necessrio reatarmos estas nossas vidas, to apartadas h sete anos!... em Guies, sete anos!-E tu, que tens feito, Jacinto?O meu amigo encolheu molemente os ombros. Vivera cumprira com serenidade todas as funes, as que pertencem matria e as que pertencem ao esprito...-E acumulaste civilizao, Jacinto! Santo Deus... Est tremendo, o 202!Ele espalhou em torno um olhar onde j no faiscava a antiga vivacidade:-Sim, h confortos... Mas falta muito! A humanidade ainda est mal apetrechada, Z Fernandes... E a vida conserva resistncias.Subitamente, a um canto, repicou a campainha do telefone. E enquanto o meu amigo, curvado sobre a placa, murmurava impaciente Est l? Est l?, examinei curiosamente, sobre a sua imensa mesa de trabalho, uma estranha e mida legio de instrumentozinhos de nquel, de ao, de cobre, de ferro, com gumes, com argolas, com tenazes, com ganchos, com dentes, expressivos todos, de utilidades misteriosas. Tomei um que tentei manejar e logo uma ponta malvola me picou um dedo. Nesse instante rompeu de outro canto um tiquetique aodado, quase ansioso. Jacinto acudiu, com a face no telefone:-V a o telgrafo!... Ao p do div. Uma tira de papel que deve estar a correr.-E, com efeito, duma redoma de vidro posta numa coluna, e contendo um aparelho esperto e diligente, escorria para o tapete como uma tnia, a longa tira de papel com caracteres impressos, que eu, homem das serras, apanhei, maravilhado. A linha, traada em azul, anunciava ao meu amigo Jacinto que a fragata russa Azoff entrara em Marselha com avaria!J ele abandonara o telefone. Desejei saber, inquieto, se o prejudicava diretamente aquela avaria da Azoff.-Da Azoff?... A avaria? A mim?... No! uma notcia.Depois, consultando um relgio monumental que, ao fundo da Biblioteca, marcava a hora de todas as capitais e o curso de todos os Planetas:-Eu preciso escrever uma carta, seis linhas... Tu esperas, no, Z Fernandes? Tens a os jornais de Paris, da noite; e os de Londres, desta manh. As ilustraes alm, naquela pasta de couro com ferragens.Mas eu preferi inventariar o gabinete, que dava minha profanidade serrana todos os gostos duma iniciao. Aos lados da cadeira de Jacinto pendiam gordos tubos acsticos, pr onde ele decerto soprava as suas ordens atravs do 202. Dos ps da mesa cordes tmidos e moles, coleando sobre o tapete, corriam para os recantos de sombra maneira de cobras assustadas. Sobre uma banquinha, e refletida no seu verniz como na gua dum poo, pousava uma Mquina de escrever; e adiante era uma imensa Mquina de calcular, com fileiras de buracos de onde espreitavam, esperando, nmeros rgidos e de ferro. Depois parei em frente da estante que me preocupava, assim solitria, maneira duma torre numa plancie, com o seu alto farol. Toda uma das suas faces estava repleta de Dicionrios; a outra de Manuais; a outra de Atlas; a ltima de Guias, e entre eles, abrindo um flio, encontrei o Guia das ruas de Samarcanda. Que macia torre de informao! Sobre prateleiras admirei aparelhos que no compreendia: - um composto de lminas de gelatina, onde desmaiavam, meio chupadas, as linhas duma carta, talvez amorosa; outro, que erguia sobre um pobre livro brochado, como para o decepar, um cutelo funesto; outro avanando a boca duma tuba toda aberta para as vozes do invisvel. Cingidos aos umbrais, liados s cimalhas, luziam arames, que fugiam atravs do teto, para o espao. Todos mergulhavam em foras universais, todos transmitiam foras universais. A Natureza convergia disciplinada ao servio do meu amigo e entrara na sua domesticidade!...Jacinto atirou uma exclamao impaciente:-, estas penas eltricas!... Que seca!Amarrotara com clera a carta comeada eu escapei, respirando, para a Biblioteca. Que majestoso armazm dos produtos do Raciocnio e da Imaginao! Ali jaziam mais de trinta mil volumes, e todos decerto essenciais a uma cultura humana. Logo entrada notei, em ouro numa lombada verde, o nome de Adam Smith. Era pois a regio dos economistas. Avancei e percorri, espantado, oito metros de Economia Poltica. Depois avistei os Filsofos e os seus comentadores, que revestiam toda uma parede, desde as escolas Pr-socrticas at s escolas Neopessimistas. Naquelas pranchas se acastelavam mais de dois mil sistemas e que todos se contradiziam. Pelas encadernaes logo se deduziam as doutrinas: Hobbes, embaixo, era pesado, de couro negro; Plato, em cima, resplandecia, numa pelica pura e alva. Para diante comeavam as Histrias Universais. Mas a uma imensa pilha de livros brochados, cheirando a tinta nova e a documentos novos, subia contra a estante, como fresca terra de aluvio tapando uma riba secular. Contornei essa colina, mergulhei na seo das Cincias Naturais, peregrinando, num assombro crescente, da Ortografia para a Paleontologia, e da Morfologia para a Cristalografia. Essa estante rematava junto duma janela rasgada sobre os Campos Elsios. Apartei as cortinas de veludo e pr trs descobri outra portentosa rima de volumes, todos de Histria Religiosa, de Exegese Religiosa, que trepavam montanhosamente at aos ltimos vidros, vedando, nas manhs mais cndidas, o ar e a luz do Senhor.Mas depois rebrilhava, em marroquins claros, a estante amvel dos Poetas. Como um repouso para o esprito esfalfado de todo aquele saber positivo, Jacinto aconchegara a um recanto, com um div e uma mesa de ,limoeiro, mais lustrosa que um fino esmalte, coberta de charutos, de cigarros do Oriente, de tabaqueiras do sculo XVIII. Sobre um cofre de madeira lisa pousava ainda, esquecido, um prato de damascos secos do Japo. Cedi seduo das almofadas; trinquei um damasco, abri um volume; e senti estranhamente, ao lado, um zumbido como de um inseto de asas harmoniosas. sorri idia que fossem abelhas, compondo o seu mel naquele macio de versos em flor. Depois percebi que o sussurro remoto e dormente vinha do cofre de mogno, de parecer to discreto. Arredei uma Gazeta de Frana; e descortinei um cordo que emergia de um orifcio, escavado no cofre, e rematava num funil de marfim. Com curiosidade, encostei o funil a esta minha confiada orelha, afeita singeleza dos rumores da serra. E logo uma Voz, muito mansa, mas muito decidida, aproveitando a minha curiosidade para me invadir e se apoderar do meu entendimento, sussurrou capciosamente:-...E assim, pela disposio dos cubos diablicos, eu chego a verificar os espaos hipermgicos!...Pulei com um berro.- Jacinto, aqui h um homem! Est aqui um homem a falar dentro duma caixa!O meu camarada, habituado aos prodgios, no se alvoroou:- o Conferenofone...Exatamente como o Teatrofone; somente aplicado s escolas e s conferncias. Muito cmodo!... Que diz o homem, Z Fernandes?Eu considerava o cofre, ainda esgazeado:-Eu sei! Cubos diablicos, espaos mgicos, toda a sorte de horrores...Senti dentro o sorriso superior de Jacinto:-Ah, o coronel Dorcas... Lies de Metafsica Positiva sobre a Quarta Dimenso... Conjecturas, uma maada! Ouve l, tu hoje jantas comigo e com uns amigos, Z Fernandes?-No, Jacinto... Estou ainda enfardelado pelo alfaiate da serra!E voltei ao gabinete mostrar ao meu camarada o jaqueto de flanela grossa, a gravata de pintinhas escarlates, com que ao Domingo, em Guies, visitava o Senhor. Mas Jacinto afirmou que esta simplicidade montesina interessaria os seus convidados, que eram dois artistas... Quem? O autor do Corao Triplo, um Psiclogo Feminista, de agudeza transcendente, Mestre muito experimentado e muito consultado em Cincias Sentimentais; e Vorcan, um pintor mtico, que interpretara etereamente, havia um ano, a simbolia rapsdica do cerco de Tria, numa vasta composio, Helena Devastadora...Eu coava a barba:-No, Jacinto, no... Eu venho de Guies, das serras; preciso entrar em toda esta civilizao, lentamente, com cautela, seno rebento. Logo na mesma tarde a eletricidade, e o Conferenofone, e os espaos hipermgicos e o feminista, e o etreo, e a simbolia devastadora, excessivo! Volto amanh.Jacinto dobrava vagarosamente a sua carta, onde metera sem rebuo (como convinha nossa fraternidade) duas violetas brancas tiradas do ramo que lhe floria o peito.-Amanh, Z Fernandes, tu vens antes de almoo, com as tuas malas dentro dum fiacre, para te instalares no 202, no teu quarto. No Hotel so embaraos, privaes. Aqui tens o telefone, o teatrofone, livros...Aceitei logo, com simplicidade. E Jacinto, embocando um tubo acstico, murmurou:-Grilo!Da parede, recoberta de damasco, que subitamente e sem rumor se fendeu, surdiu o seu velho escudeiro ( aquele moleque que viera com D.Galio), que eu me alegrei de encontrar to rijo, mais negro, reluzente e venervel na sua tesa gravata, no seu colete branco de botes de ouro. Ele tambm estimou ver de novo o si Fernandes. E, quando soube que eu ocuparia o quarto do av Jacinto, teve um claro sorriso de preto, em que envolveu o seu senhor, no contentamento de o sentir enfim reprovido duma famlia.-Grilo, dizia Jacinto, esta carta a Madame de Oriol... Escuta!Telefona para casa dos Trves que os espiritistas s esto livres no Domingo... Escuta! Eu tomo uma ducha de jantar, tpida, a 17. Frico com malva-rosa.E caindo pesadamente para cima do div, com um bocejo arrastado e vago:-Pois verdade, meu Z Fernandes, aqui estamos, como h sete anos, neste velho Paris...Mas eu no me arredava da mesa, no desejo de completar a minha iniciao:- Jacinto, para que servem todos estes instrumentozinhos? Houve j a um desavergonhado que me picou. Parecem perversos... So teis?Jacinto esboou, com languidez, um gesto que os sublimava. -Providenciais, meu filho, absolutamente providenciais, pela simplificao que do ao trabalho! Assim... e apontou. Este arrancava as penas velhas, o outro numerava rapidamente as pginas dum manuscrito; aqueloutro, alm, raspava emendas... E ainda os havia para colar estampilhas, imprimir datas, derreter lacres, cintar documentos...-Mas com efeito, acrescentou, uma seca... Com as molas, com os bicos, s vezes magoam, ferem... J me sucedeu inutilizar cartas pr as Ter sujado com dedadas de sangue. uma maada!Ento, como o meu amigo espreitara novamente o relgio monumental, no lhe quis retardar a consolao da ducha e da malva-rosa.-Bem, Jacinto, j te revi, j me contentei... Agora at amanh, com as malas.-Que diabo, Z Fernandes, espera um momento... Vamos pela sala de jantar. Talvez te tentes!E, atravs da Biblioteca, penetramos na sala de jantar que me encantou pelo seu luxo sereno e fresco. Uma madeira branca, lacada, mais lustrosa e macia que cetim, revestia as paredes, encaixilhando medalhes de damasco cor de morango, de morango muito maduro e esmagado; os aparadores, discretamente com a mesma laca nevada; e damascos amorangados estofavam tambm as cadeiras, brancas, muito amplas, feitas para a lentido de gulas delicadas, de gulas intelectuais.-Viva o meu Prncipe! Sim senhor... eis aqui um comedouro muito compreensvel e muito repousante, Jacinto!-Ento janta, homem!Mas j eu me comeava a inquietar, reparando que a cada talher correspondiam seis garfos, e todos de feitios astuciosos. E mais me impressionei quando Jacinto me desvendou que era um para as ostras, outro para o peixe, outro para as carnes, outro para os legumes, outro para as frutas, outro para o queijo. Simultaneamente, com uma sobriedade que louvaria Salomo, s dois copos, para dois vinhos: - um Bordus rosado em infusas de cristal, e Champanhe gelando dentro de baldes de prata. Todo um aparador porm vergava sob o luxo redundante, quase assustador de guas guas oxigenadas, guas carbonatadas, guas fosfatadas, guas esterilizadas, guas de sais, outras ainda, em garrafas bojudas, com tratados teraputicos impressos em rtulos.-Santssimo nome de Deus, Jacinto! Ento s ainda o mesmo tremendo bebedor de gua, hem?... Un aquatico! Como dizia o nosso poeta chileno, que andava a traduzir Klopstock.Ele derramou, pr sobre toda aquela garrafaria encapuada em metal, um olhar desconhecido:-No... pr causa das guas da Cidade, contaminadas, atulhadas de micrbios... Mas ainda no encontrei uma boa gua que me convenha, que me satisfaa... At sofro sede.Desejei ento conhecer o jantar do Psiclogo e do Simbolista traado, ao lado dos talheres, em tinta vermelha, sobre lminas de marfim. Comeava honradamente pr ostras clssicas, de Marennes. Depois aparecia uma sopa de alcachofras e ovas de carpa...- bom?Jacinto encolheu desinteressadamente os ombros:-Sim... Eu no tenho nunca apetite, j h tempo... J h anos. Do outro prato s compreendi que continha frangos e tbaras. Depois saboreariam aqueles senhores um filete de veado, macerado em Xers, com gelia de noz. E pr sobremesa simplesmente laranjas geladas com ter.-Em ter, Jacinto?O meu amigo hesitou, esboou com os dedos a ondulao dum aroma que se evola. novo... Parece que o ter desenvolve, faz aflorar a alma das frutas...Curvei a cabea ignara, murmurei nas minhas profundidades:-Eis a Civilizao!E descendo os Campos Elsios, encolhendo no palet, a cogitar neste prato simblico, considerava a rudeza e atolado atraso da minha Guies, onde desde sculos a alma das laranjas permanece ignorada e desaproveitada dentro dos gomos sumarentos, pr todos aqueles pomares que ensombram e perfumam o vale, da Roqueirinha a Sandofim! Agora porm, benedito deus, na convivncia de um to grande iniciado como Jacinto, eu compreenderia todas as finuras e todos os poderes da civilizao.E (melhor ainda para a minha ternura!) contemplaria a raridade dum homem que, concebendo uma idia da Vida, a realiza e atravs dela e pr ela recolhe a felicidade perfeita.Bem se afirmara este Jacinto, na verdade, como Prncipe da Gr-Ventura!

III

No 202, todas as manhs, s nove horas, depois do meu chocolate e ainda em chinelas, penetrava no quarto de Jacinto. Encontrava o meu amigo banhado, barbeado, friccionado, envolto num roupo branco de plo de cabra do Tibete, diante da sua mesa de toilette, toda de cristal (pr causa dos micrbios) e atulhada com esses utenslios de tartaruga, marfim, prata, ao e madreprola que o homem do sculo XIX necessita para no desfear o conjunto sunturio da Civilizao e manter nela o seu Tipo. As escovas sobretudo renovavam, cada dia, o meu regalo e o meu espanto porque as havia largas como a roda macia dum carro sabino; estreitas e mais recurvas que o alfanje dum mouro; cncavas, em forma de telha alde; pontiagudas, em feitio de folha de hera; rijas que nem cerdas de javali; macias que nem penugem de rola! De todas, fielmente, como amo que no desdenha nenhum servo, se utilizava o meu Jacinto. E assim, em face ao espelho emoldurado de folhedos de prata, permanecia este Prncipe passando plos sobre o seu plo durante catorze minutos.No entanto o Grilo e outro escudeiro, pr trs dos biombos de Quioto, de sedas lavradas, manobravam, com percia e vigor, os aparelhos dp lavatrio que era apenas um resumo das mquinas monumentais da Sala de banho, a mais estremada maravilha do 202. Nestes mrmores simplificados existiam unicamente dois jatos graduados desde zero at cem; as duas duchas, fina e grossa, para a cabea; e ainda botes discretos, que, roados, desencadeavam esguichos, cascatas cantantes, ou um leve orvalho estival. Desse recanto temeroso, onde delgados tubos mantinham em disciplina e servido tantas guas ferventes, tantas guas violentas, saa enfim o meu Jacinto enxugando as mos a uma toalha de felpo, a uma toalha de linho, a outra de corda entranada para restabelecer a circulao, a outra de seda frouxa para repolir a pele. Depois deste rito derradeiro que lhe arrancava ora um suspiro, ora um bocejo, Jacinto, estendido num div, folheava uma agenda, onde se arrolavam, inscritas pelo Grilo ou pr ele, as ocupaes do seu dia, to numerosas pr vezes que cobriam duas laudas.Todas elas se prendiam sua sociabilidade, sua civilizao muito complexa, ou a interesses que o meu Prncipe, nesses sete anos, criara para viver em mais consciente comunho com todas as funes da Cidade (Jacinto com efeito era presidente do Clube da Espada e Alvo; comanditrio do jornal O Boulevard; diretor da Companhia dos Telefones de Constantinopla; scio dos Bazares Unidos da Arte Espiritualista; membro do Comit de Iniciao das Religies Esotricas, etc. ). Nenhuma destas ocupaes parecia porm aprazvel ao meu amigo porque, apesar da mansido e harmonia dos seus modos, freqentemente arremessava para o tapete numa rebelio de homem livre aquela agenda que o escravizava. E numa dessas manhs (de vento e neve), apanhando eu o livro opressivo, encadernado em pelica, de um carinhoso tom de rosa murcha descobr que o meu Jacinto devia depois do almoo fazer uma visita na rua da Universidade, outra no Parque Monceau, outra entre os arvoredos remotos da Muette; assistir pr fidelidade a uma votao no clube; acompanhar Madame de Oriol a uma exposio de leques; escolher um presente de noivado para a sobrinha dos Trves; comparecer no funeral do velho conde de Malville; presidir um tribunal de honra numa questo de roubalheira, entre cavalheiros, ao ecart... E ainda se acavalavam outras indicaes, escrevinhadas pr Jacinto a lpis: - Carroceiro Five-oclock dos Efrains A pequena das Variedades Levar a nota ao jornal... Considerei o meu Prncipe. Estirado no div, de olhos miserrimamente cerrados, bocejava, num bocejo imenso e mudo.Mas os afazeres de Jacinto comeavam logo no 202, cedo, depois do banho. Desde as oito horas a campainha do telefone repicava pr ele, com impacincia, quase com clera, como pr um escravo tardio. E mal enxugado, dentro do seu roupo de plo de cabra do Tibete ou de grossos pijamas de pelcia cor de ouro velho, constantemente saa ao corredor a cochichar com sujeitos to apressados, que conservavam na mo o guarda-chuva pingando sobre o tapete. Um desses, sempre presente (e que pertencia decerto aos Telefones de Constantinopla), era temeroso todo ele chupado, tisnado, com maus dentes, sobraando uma enorme pasta sebenta, e dardejando, de entre a alta gola duma pelia puda, como da abertura dum covil, dois olhinhos torvose de rapina. Sem cessar, inexoravelmente, um escudeiro aparecia, com bilhetes numa salva... depois eram fornecedores de Indstria e de Arte; negociantes de cavalos, rubicundos e de palet branco; inventores com grossos rolos de papel; alfarrabistas trazendo na algibeira uma edio nica, quase inverossmil, de Ulrich Zell ou do Lapidanus. Jacinto circulava estonteado pelo 202, rabiscando a carteira, repicando o telefone, desatando nervosamente pacotes, sacudindo ao passar algum emboscado que surdia das sombras da antecmara, estendia como um trabuco o seu memorial ou o seu castigo!Ao meio-dia, um tant argentino e melanclico ressoava, chamando ao almoo. Com o Fgaro ou as Novidades abertas sobre o prato, eu esperava sempre meia hora pelo meu Prncipe, que entrava numa rajada, consultando o relgio, exalando com a face moda o seu queixume eterno:-Que maada! E depois uma noite abominvel, enrodilhada em sonhos... Tomei sulfonal, chamei o Grilo para me esfregar com terebintina... Uma seca!Espalhava pela mesa um olhar j farto. Nenhum prato, pr mais engenhoso, o seduzia; - e, como atravs do seu tumulto matinal fumava incontveis cigarrilhas que o ressequiam, comeava pr se encharcar com um imenso copo de gua oxigenada, ou carbonatada, ou gasosa, misturada dum conhaque raro, muito caro, horrendamente adocicado, de moscatel de Siracusa. Depois, pressa, sem gosto, com a ponta incerta do garfo, picava aqui e alm uma lasca de fiambre, uma febra de lagosta; - e reclamava impacientemente o caf, um caf de Moca, mandado cada ms pr um feitor do Dedjah, fervido turca, muito espesso, que ele remexia com um pau de canela!-E tu, Z Fernandes, que vais tu fazer?-Eu?Recostado na cadeira, com delcias, os dedos metidos nas cavas do colete:-Vou vadiar, regaladamente, como um co natural!O meu solcito amigo, remexendo o caf com o pau da canela, rebuscava atravs da numerosa Civilizao da cidade uma ocupao que me encantasse. Mas apenas sugeria uma Exposio, ou uma Conferncia, ou monumentos, ou passeios, logo encolhia os ombros desconsolado:-Pr fim nem vale a pena, uma seca!Acendia outra das cigarrilhas russas, onde rebrilhava o seu nome, impresso a ouro na mortalha. Torcendo, numa pressa nervosa, os fios do bigode, ainda escutava, porta da Biblioteca, o seu procurador, o ndio e majestoso Laporte. E enfim, seguido dum criado, que sobraava um mao tremendo de jornais para lhe abastecer o cup, o Prncipe-Ventura mergulhava na Cidade.Quando o dia social de Jacinto se apresentava mais desafogado, e o cu de Maro nos concedia caridosamente um pouco de azul aguado, saamos depois do almoo, a p, atravs de Paris. Estes lentos e errantes passeios eram outrora, na nossa idade de Estudantes, um gozo muito querido de Jacinto porque neles mais intensamente e mais minuciosamente saboreava a Cidade. Agora porm, apesar da minha companhia, s lhe davam uma impacincia e uma fadiga que desoladamente destoava do antigo, iluminado xtase. Com espanto (mesmo com dor, porque sou bom, e sempre me entristece o desmoronar duma crena) descobri eu, na primeira tarde em que descemos aos Boulevards, que o denso formigueiro humano sobre o asfalto, e a torrente sombria dos trens sobre o macadame, afligiam meu amigo pela brutalidade da sua pressa, do seu egosmo, e do seu estridor. Encostado e como refugiado no meu brao, este Jacinto novo comeou a lamentar que as ruas, na nossa Civilizao, no fossem caladas de guta-percha! E a guta-percha claramente representava, para meu amigo, a substncia discreta que amortece o choque e a rudeza das coisas! Oh maravilha! Jacinto querendo borracha, a borracha isoladora, entre a sua sensibilidade e as funes da Cidade! Depois nem me permitiu pasmar diante daquelas dourejadas e espelhadas lojas que ele outrora considerava como os !preciosos museus do sculo XIX...-No vale a pena, Z Fernandes. H uma imensa pobreza e secura de inveno! Sempre os mesmos flores Lus XV, sempre as mesmas pelcias... No vale a pena!Eu arregalava os olhos para este transformado Jacinto. E sobretudo me impressionava o seu horror pela Multido pr certos efeitos da Multido, s para ele sensveis, e a que chamava os sulcos.-Tu no sentes, Z Fernandes. Vens das serras... Pois constituem o rijo inconveniente das Cidades, estes sulcos! um perfume muito agudo e petulante que uma mulher larga ao passar, e se instala no olfato, e estraga para todo o dia o ar respirvel. um dito que se surpreende num grupo, que revela um mundo de velhacaria, ou de pedantismo, ou de estupidez, e que nos fica colado alma, como um salpico, lembrando a imensidade da lama a atravessar. Ou ento, meu filho, uma figura intolervel pela pretenso, ou pelo mau gosto, ou pela impertinncia, ou pela relice, ou pela dureza, e de que se no pode sacudir mais a viso repulsiva... Um pavor, estes sulcos, Z Fernandes! De resto, que diabo, so as pequeninas misrias duma Civilizao deliciosa!Tudo isto era especioso, talvez pueril - mas para mim revelava, naquele chamejante devoto da Cidade, o arrefecimento da devoo. Nessa mesma tarde, se bem recordo, sob uma luz macia e fina, penetramos nos centros de Paris, nas ruas longas, nas milhas de casario, todo calia parda, eriado de chamins de lata negra, com as janelas sempre fechadas, as cortininhas sempre corridas, abafando, escondendo a vida. S tijolo, s ferro, s argamassa, s estuque; linhas hirtas, ngulos speros; tudo seco; tudo rgido. E dos chos aos telhados, pr toda a fachada, tapando as varandas, comendo os muros, Tabuletas, Tabuletas...-, este Paris, Jacinto, este teu Paris! Que enorme, que grosseiro bazar! E, mais para sondar o meu Prncipe do que pr persuaso, insisti na felicidade e tristeza destes prdios, duros armazns, cujos andares so prateleiras onde se apinha humanidade! E uma humanidade impiedosamente catalogada e arrumada! A mais vistosa e de luxo nas prateleiras baixas, bem envernizadas. A reles e de trabalho nos altos, nos desvios, sobre pranchas de pinho nu, entre o p e a traa...Jacinto murmurou, com a face arrepiada:- feio, muito feio!E acudiu logo, sacudindo no ar a luva de anta:-Mas que maravilhoso organismo, Z Fernandes! Que solidez! Que produo!Onde Jacinto me parecia mais renegado era na sua antiga e quase religiosa afeio pelo Bosque de Bolonha. Quando moo, ele construra sobre o bosque teorias complicadas e considerveis. E sustentava, com olhos rutilantes de fantico, que no Bosque a Cidade cada tarde ia retemperar salutarmente a sua fora, recebendo, pela presena de suas Duquesas, das suas Cortess, dos seus Polticos, dos seus Financeiros, dos seus Generais, dos seus Acadmicos, dos seus Artistas, dos seus Clubistas, dos seus Judeus, a certeza consoladora de que todo o seu pessoal se mantinha em nmero, em vitalidade, em funo, e que nenhum elemento da sua grandeza desaparecera ou deperecera! Ir aos bois constitua ento para o meu Prncipe um ato de conscincia. E voltava sempre confirmando com orgulho que a Cidade possua todos os seus astros, garantindo a eternidade da sua luz!Agora, porm, era sem fervor, arrastadamente, que ele me elevava ao Bosque, onde eu, aproveitando a clemncia de Abril, tentava enganar a minha saudade de arvoredos. Enquanto subamos, ao trote nobre das suas guas lustrosas, a Avenida dos Campos Elsios e a do Bosque, rejuvenescidas pelas relvas tenras e fresco verdejar dos rebentos, Jacinto, soprando o fumo da cigarrilha pelas vidraas abertas do cup, permanecia o bom camarada, de veia amvel, com quem era doce filosofar atravs de Paris. Mas logo que passvamos as grades douradas do Bosque, e penetrvamos na Avenida das Accias, e enfivamos na lenta fila dos trens de luxo de praa, sob o silncio decoroso, apenas cortado pelo tilintar dos freios e pelas rodas vagarosas esmagando a areia o meu Prncipe emudecia, molemente engelhado no fundo das almofadas, de onde s despegava a face para escancarar bocejos de fartura. Pelo antigo hbito de verificar a presena confortadora do pessoal, dos astros, ainda, pr vezes, apontava para algum cup ou vitria rodando com rodar rangente noutra arrastada fila e murmurava um nome. E assim fui conhecendo a encaracolada barba hebraica do banqueiro Efraim; e o longo nariz patrcio de Madame de Trves abrigando um sorriso perene; e as bochechas flcidas do poeta neoplatnico Dornan, sempre espapado no fundo de fiacres; e os longos bands pr-rafaelitas e negros de Madame Verghane; e o monculo defumado do diretor do Boulevard, e o bigodinho vencedor do duque Marizac, reinando de cima do seu feton de guerra; e ainda outros sorrisos imveis, e barbichas Renascena, e plpebras amortecidas, e olhos farejantes, e peles empoadas de arroz, que eram todas ilustres e da intimidade do meu Prncipe. Mas, do topo da Avenida das Accias, recomevamos a descer, em passo sopeado, esmagando lentamente a areia; na fila vagarosa que subia, calhambeque atrs de landau, vitria atrs de fiacre, fatalmente revamos o binculo sombrio do homem do Boulevard, e os bands furiosamente negros de Madame Verghane, e o ventre espapado do neoplatnico, e a barba talmdica, e todas aquelas figuras, duma imobilidade de cera, superconhecidas do meu camarada, recruzadas cada tarde atravs de revividos anos, sempre com os mesmos sorrisos, sob o mesmo p de arroz, na mesma imobilidade de cera; ento Jacinto no se continha, gritava ao cocheiro:-Para casa, depressa!E era pela Avenida do bosque, pelos Campos Elsios, uma fuga ardente das guas a quem a lentido sopeada, num roer de freios, entre outras guas tambm delas superconhecidas, lanava numa exasperao comparvel de Jacinto. Para o sondar eu denegria o Bosque:-J no to divertido, perdeu o brilho!...Ele acudia, timidamente:-No, agradvel, no h nada mais agradvel; mas...E acusava a friagem das tardes ou o despotismo dos seus afazeres. Recolhamos ento ao 202, onde, com efeito, em breve embrulhado no seu roupo branco, diante da mesa de cristal, entre a legio das escovas, com toda a eletricidade refulgindo, o meu Prncipe se comeava a adornar para o servio social da noite.E foi justamente numa dessas noites (um Sbado) que ns passamos, naquele quarto to civilizado e protegido, pr um desses brutos e revoltos terrores como s os produz a ferocidade dos Elementos. J tarde, pressa (jantvamos com Marizac no clube para o acompanhar depois ao Lobengrin na pera) Jacinto arrochava o n da gravata branca quando no lavatrio, ou porque se rompesse o tubo, ou se dessoldasse a torneira, o jato de gua a ferver rebentou furiosamente, fumegando e silvando. Uma nvoa densa de vapor quente abafou as luzes e, perdidos nela, sentamos, pr entre os grilos do escudeiro e do Grilo, o jorro devastador batendo os muros, esparrinhando uma chuva que escaldava. Sob os ps o tapete ensopado era uma lama ardente. E como se todas as foras da natureza, submetidas ao servio de Jacinto, se agitassem, animadas pr aquela rebelio da gua ouvimos roncos surdos no interior das paredes, e pelos fios dos lumes eltricos sulcam fascas ameaadoras! Eu fugira para o corredor, onde se alargava a nvoa grossa. Pr todo o 202 ia um tumulto de desastre. Diante do porto, atradas pela fumarada que se escapava das janelas, estacionava polcia, uma multido. E na escada esbarrei com um reprter, de chapu para a nuca, a carteira aberta, gritando sofregamente se havia mortos?Domada a gua, clareada a bruma, vim encontrar Jacinto no meio do quarto, em ceroulas, lvido:- Z Fernandes, esta nossa indstria!... Que impotncia, que impotncia! Pela Segunda vez, este desastre! E agora, aparelhos perfeitos, um processo novo...-E eu encharcado pr esse processo novo! E sem outra casaca!Em redor, as nobres sedas bordadas, os brocatis Lus XIII, cobertos de manchas negras, fumegavam. O meu prncipe, enfiado, enxugava uma fotografia de Madame de Oriol, de ombros decotados, que o jorro bruto maculara de empolas. E eu, com rancor, pensava que na minha Guies a gua aquecia em seguras panelas e subia ao meu lavatrio, pela mo forte da Catarina, em seguras infusas! No jantamos com o duque de Marizac, no Clube. E, na pera, nem saboreei Lohengrin e a sua branca alma e o seu branco cisne e as suas brancas armas entalado, aperreado, cortado nos sovacos pela casaca que Jacinto me emprestara e que rescendia estonteadoramente a flores de Nessari.No Domingo, muito cedo, o Grilo, que na vspera escaldara as mos e as trazia embrulhadas em seda, penetrou no meu quarto, descerrou as cortinas, e beira do leito, com o seu radiante sorriso de preto:-Vem no Fgaro!Desdobrou triunfalmente o jornal. Eram, nos Ecos, doze linhas, onde as nossas guas rugiam e espadanavam, com tanta magnificncia e tanta publicidade, que tambm sorri, deleitado.E toda a manh, o telefone, si Fernandes! Exclamava o Grilo, rebrilhando em bano. A quererem saber, a quererem saber... Est l? Est escaldado? Paris aflito, si Fernandes!O telefone, com efeito, repicava, insacivel. E quando desci para o almoo, a toalha desaparecia sob uma camada de telegramas, que o meu Prncipe fendia com a faca, enrugado, rosnando contra a maada. S desanuviou, ao ler um desses papis azuis, que atirou para cima do meu prato, com o mesmo sorriso agradado com que de manh sorramos, o Grilo e eu:- do Gro-Duque Casimiro... Rato amvel! Coitado!Saboreei, atravs dos ovos, o telegrama de S. Alteza. O qu! o meu Jacinto inundado! Muito chique, nos Campos Elsios! No volto ao 202 sem bia de salvao! Compassivo abrao! Casimiro... Murmurei tambm com deferncia: - Amvel! Coitado! Depois, revolvendo lentamente o monto de telegramas que se alastrava at ao meu copo::- Jacinto! Quem esta Diana que incessantemente te escreve, te telefona, te telegrafa, te...?-Diana... Diana de Lorge. uma cocotte. uma grande cocotte!-Tua?-Minha, minha... No! tenho um bocado.E como eu lamentava que o meu Prncipe, senhor to rico e de to fino orgulho, pr economia duma gamela prpria chafurdasse com outros numa gamela pblica Jacinto levantou os ombros, com um camaro espetado no garfo:-Tu vens das serras... Uma cidade como Paris, Z Fernandes, precisa ter cortess de grande pompa e grande fausto. Ora para montar em Paris, nesta tremenda carestia de Paris, uma cocotte com os seus vestidos, os seus diamantes, os seus cavalos, os seus lacaios, os seus camarotes, as suas festas, o seu palacete, a sua publicidade, a sua insolncia, necessrio que se agremiem umas poucas de fortunas, se forme um sindicato! Somos uns sete, no Clube. Eu pago um bocado... Mas meramente pr Civismo, para dotar a Cidade com uma cocotte monumental. De resto no chafurdo. Pobre Diana!... dos ombros para baixo nem sei se tem a pele cor de neve ou cor de limo.Arregalei um olho divertido:-Dos ombros para baixo?... E para cima?-! para cima tem p de arroz!... Mas uma seca! Sempre bilhetes, sempre telefones, sempre telegramas. E trs mil francos pr ms, alm das flores... Uma maada!E as duas rugas do meu Prncipe, aos lados do seu afilado nariz, curvado sobre a salada, eram como dois vales muito tristes, ao entardecer.Acabamos o almoo, quando um escudeiro, muito discretamente, num murmrio, anunciou Madame de Oriol, Jacinto pousou com tranqilidade o charuto; eu quase me engasguei, num sorvo alvoroado de caf. Entre os reposteiros de damasco cor de morango ela apareceu, toda de negro, dum negro liso e austero de Semana Santa, lanando com o regalo um lindo gesto para nos sossegar. E imediatamente, numa volubilidade docemente chalrada:- um momento, nem se levantem! Passei, ia para a Madalena, no me contive, quis ver os estragos... Uma inundao em Paris, nos Campos Elsios! No h seno este Jacinto. E vem no Fgaro! O que eu estava assustada, quando telefonei! Imaginem! gua a ferver como no Vesvio... Mas duma novidade! E os estofos perdidos, naturalmente, os tapetes... Estou morrendo pr admirar as runas!Jacinto, que no me pareceu comovido, nem agradecido com aquele interesse, retomara risonhamente o charuto:-Est tudo seco, minha querida senhora, tudo seco! A beleza foi ontem, quando a gua fumegava e rugia! Ora que pena no Ter ao menos cado uma parede!Mas ela insistia. Nem todos os dias se gozavam em Paris os destroos duma inundao. O Fgaro contara... E era uma aventura deliciosa, uma casa escaldada nos Campos Elsios!Toda a sua pessoa, desde as plumazinhas que frisavam no chapu at ponta reluzente das botinas de verniz, se agitava, vibrava, como um ramo tenro sob o bolio do pssaro a chalrar. S o sorriso, pr trs do vu espesso, conservava um brilho imvel. E j no ar se espalhara um aroma, uma doura, emanada de toda a sua mobilidade e de toda a sua graa.Jacinto no entanto cedera, alegremente; e pelo corredor Madame de Oriol ainda louvava o Fgaro amvel, e confessava quanto tremera... Eu voltei ao meu caf, felicitando mentalmente o Prncipe da Gr-Ventura pr aquela perfeita flor de Civilizao que lhe perfumava a vida. Pensei ento na apurada harmonia em que se movia essa flor. E corri vivamente antecmara, verificar diante do espelho o meu penteado e o n da minha gravata. Depois recolhi sala de jantar, e junto da janela, folheando languidamente a Revista do Sculo XIX. Tomei uma atitude de elegncia e de alta cultura Quase imediatamente eles reapareceram; e Madame de Oriol, que, sempre sorrindo, se proclamava espoliada, nada encontrara que recordasse as guas furiosas, roou pela mesa, onde Jacinto procurava, para lhe oferecer, tangerinas de Malta, ou castanhas geladas, ou um biscoito molhado em vinho de Tokai.Ela recusava com as mos guardadas no regalo. No era alta, nem forte mas cada prega do vestido, ou curva da capa, caa e ondulava harmoniosamente como perfeies recobrindo perfeies. Sob o vu cerrado, apenas percebi a brancura da face empoada, e a escurido dos olhos largos. E com aquelas sedas e veludos negros, e um pouco do cabelo louro, dum louro quente, torcido fortemente sobre as peles negras que lhe orlavam o pescoo , toda ela derramava uma sensao de macio e de fino. Eu teimosamente a considerava como uma flor de Civilizao: - e pensava no secular trabalho e na cultura superior que necessitara o terreno onde ela to delicadamente brotara, j desabrochada, em pleno perfume, mais graciosa pr ser flor de esforo e de estufa, e trazendo nas suas ptalas um no sei qu de desbotado e de antemurcho.No entanto, com a sua volubilidade de pssaro, chalrando para mim, chalrando para Jacinto, ela mostrava o seu lindo espanto pr aquele monto de telegramas sobre a toalha.-Tudo esta manh, pr causa da inundao!... Ah, Jacinto hoje o homem, o nico homem de Paris! Muitas mulheres nesses telegramas?Languidamente, com o charuto a fumegar, o meu Prncipe empurrou para a sua amiga o telegrama do Gro-Duque. Ento Madame de Oriol teve um ah! muito grave e muito sentido. Releu profundamente o papel de S.A . que os seus dedos acariciavam com uma reverncia gulosa. E sempre grave, sempre sria:- brilhante!! certamente! naquele desastre tudo se passara com muito brilho, num tom muito Parisiense. E a deliciosa criatura no se podia demorar, porque fizera marcar um lugar na igreja da Madalena para o sermo!Jacinto exclamou com inocncia:-Sermo?... j a estao dos sermes?Madame de Oriol teve um movimento de carinhoso escndalo e dor. O qu! pois nem na austera casa dos Trves dera pela entrada da Quaresma? De resto no se admirava Jacinto era um turco! E, imediatamente celebrou o pregador, um frade dominicano, o Pre Granon! ! duma eloqncia! No derradeiro sermo pregara sobre o amor, a fragilidade dos amores mundanos! E tivera coisas duma inspirao, duma brutalidade! Depois que gesto, um gesto terrvel que esmagava, em que se lhe arregaava toda a manga, mostrando o brao nu, um brao soberbo, muito branco, muito forte!O seu sorriso permanecia claro sob o olhar que negrejara dentro do vu negro. E Jacinto, rindo:-Um bom brao de diretor espiritual, hem? Para vergar, espancar almas...Ela acudiu:-No! infelizmente o Pre Granon confessa!E de repente reconsiderou aceitava um biscoito, um clice de Tokai. Era necessrio um cordial para afrontar as emoes do Pre Granon! Ambos nos precipitramos, um arrebatando a garrafa, outro oferecendo o prato de bombons. Franziu o vu para os olhos, chupou pressa um bolo que ensopara no Tokai. E como Jacinto, reparando casualmente no chapu que ela trazia, se curvara com curiosidade, impressionado, Madame Oriol apagou o sorriso, toda sria ante uma coisa sria:-Elegante, no verdade?... uma criao inteiramente nova de Madame Vial. Muito respeitoso, e muito sugestivo, agora na Quaresma. O seu olhar, que me envolvera, tambm me convidava a admirar. Aproximei o meu focinho de homem das serras para contemplar essa criao suprema do luxo de Quaresma. E era maravilhoso! Sobre o veludo, na sombra das plumas frisadas, aninhada entre rendas, fixada pr um prego, pousava delicadamente, feita de azeviche, uma Coroa de Espinhos!Ambos nos extasiamos. E Madame de Oriol, num movimento e num sorriso que derramou mais aroma e mais claridade, abalou para a Madalena.O meu Prncipe arrastou pelo tapete alguns passos pensativos e moles. E bruscamente, levantando os ombros com uma determinao imensa, como se deslocasse um mundo:- Z Fernandes, vamos passar este Domingo nalguma coisa simples e natural...-Em qu?Jacinto circungirou os olhares muito abertos, como se, atravs da Vida Universal, procurasse ansiosamente uma coisa natural e simples. Depois, descansando sobre mim os mesmos largos olhos que voltavam de muito longe, cansados e com pouca esperana:-Vamos ao Jardim das Plantas, ver a girafa!

IV Nessa fecunda semana, uma noite, recolhamos ambos da pera, quando Jacinto, bocejando, me anunciou uma festa no 202.-Uma festa?...-Pr causa da Gro-duque, coitado, que me vai mandar um peixe delicioso e muito raro que se pesca na Dalmcia. Eu queria um almoo curto. O Gro-duque reclamou uma ceia. um brbaro, besuntado com literatura do sculo XVIII, que ainda acredita em ceias, em Paris! Reno no Domingo trs ou quatro mulheres, e uns dez homens bem tpicos, para o divertir. Tambm aproveitas. Folheias Paris num resumo... Mas uma maada amarga!Sem interesse pela sua festa, Jacinto no se afadigou em a compor com relevo ou brilho. Encomendou apenas uma orquestra de Tziganes (os Tziganes, as suas jalecas escarlates, a melancolia spera da Czardas ainda nesses tempos remotos emocionavam Paris); e mandou, na Biblioteca, ligar o Teatrofone com a pera, com a Comdia Francesa, com a Alcazar e com os Bufos, prevendo todos os gostos desde o trgico at ao pcaro. Depois no Domingo, ao entardecer, ambos visitamos a mesa da ceia que resplandecia com as velhas baixelas de D.Galio. E a faustosa profuso de orqudeas, em longas silvas pr sobre a toalha bordada a seda, enroladas aos fruteiros de Saxe, transbordando de cristais lavrados e filigranados de ouro, espalhava uma to fina sensao de luxo e gosto, que eu que eu murmurei: - Caramba, bendito seja o dinheiro! Pela primeira vez, tambm, admirei a copa e a sua instalao abundante e minuciosa sobretudo os dois ascensores que rolavam das profundidades da cozinha, um para os peixes e carmes aquecido pr tubos de gua fervente, o outro para as saladas e gelados revestido de placas frigorficas. , este 202!s nove horas, porm, descendo eu ao gabinete de Jacinto para escrever a minha boa tia Vicncia, enquanto ele ficara no toucador com o manicuro que lhe polia as unhas, passamos nesse delicioso palcio, florido e em gala, pr bem corriqueiro susto! Todos os lumes eltricos, subitamente, em todo o 202, se apagaram! Na minha imensa desconfiana daquelas foras universais, pulei logo para a porta, tropeando nas trevas, ganindo um Aqui-del-rei! que tresandava a Guies, Jacinto em cima berrava, com o manicuro agarrado aos pijamas. E de novo, como serva ralassa que recolhe arrastando as chinelas, a luz ressurgiu com lentido. Mas o meu Prncipe, que descera, enfiado, mandou buscar um engenheiro Companhia Central da eletricidade domstica. Pr precauo outro criado correu mercearia comprar pacotes de velas. E o Grilo desenterrava j dos armrios os candelabros abandonados, os pesados castiais arcaicos dos tempos incientficos de D. Galio: era uma reserva de veteranos fortes, para o caso pavoroso em que mais tarde, ceia, falhassem perfidamente as foras bisonhas da Civilizao. O Eletricista, que acudira esbaforido, afianou porm que a Eletricidade se conservaria fiel, sem outro amuo. Eu, cautelosamente, soneguei na algibeira dois cotos de estearina.A Eletricidade permaneceu fiel, sem amuos. E quando desci do meu quarto, tarde (porque perdera o colete de baile e s depois duma busca furiosa e praguejada o encontrei cado pr trs da cama!), todo o 202 refulgia e os Tziganes, na antecmara, sacudindo as guedelhas, atiravam as arcadas duma valsa to arrastadora que, pelas paredes, os imensos Personagens da tapearias, Pramo, Nestor, o engenhoso Ulisses, arfavam, buliam com os ps venerandos!Timidamente, sem rumor, puxando os punhos, penetrei no gabinete de Jacinto. E fui logo acolhido pelo sorriso da condessa de Trves, que acompanhada pelo ilustre historiador Danjon (da Academia Francesa), percorria maravilhada os Aparelhos, os Instrumentos, toda a suntuosa Mecnica do meu supercivilizado Prncipe. Nunca ela me parecera mais majestosa do que naquelas sedas cor de aafro, com rendas cruzadas no peito Maria Antonieta, o cabelo crespo e ruivo levantado em rolo sobre a testa dominadora, e o curvo nariz patrcio, abrigando o sorriso sempre luzidio, sempre corrente, como um arco abriga o correr e o luzir dum regato. Direita como num slio, a longa luneta de tartaruga acercada dos olhos midos e turvamente azulados, ela escutava diante do Grafofone, depois diante do Microfone, como melodias superiores, os comentrios que o meu Jacinto ia atabalhoando com uma amabilidade penosa. E ante cada roda, cada mola, eram pasmos, louvores finamente torneados, em que atribua a Jacinto, com astuta candura, todas aquelas invenes do Saber! Os utenslios misteriosos que atulhavam a mesa de bano foram para ela uma iniciao que a enlevou. , o numerador de pginas! , o colador de estampilhas!A carcia demorada dos seus dedos secos aquecia os metais. E suplicava os endereos dos fabricantes para se prover de todas aquelas utilidades adorveis! Como a vida, assim apetrechada, se tornava escorregadia e fcil! Mas era necessrio o talento, o gosto de Jacinto, para escolher, para criar! E no s ao meu amigo (que o recebia com resignao) ela ofertava o fino mel. Afagando com o cabo de luneta o Telgrafo, achou a possibilidade de recordar a eloqncia do Historiador. Mesmo para mim (de quem ignorava o nome) arranjou junto do Fotgrafo, e acerca de vozes de amigos que doce colecionar uma lisonjazinha redondinha e lustrosa, que eu chupei como um rebuado celeste. Boa casaleira que vai atirando o gro aos frangos famintos, a cada passo, maternalmente, ela nutria uma vaidade. Sfrego de outro rebuado, acompanhei a sua cauda sussurrante e cor de aafro. Ela parara diante da Mquina de contar, de que Jacinto J lhe fornecera pacientemente uma explicao sapiente. E de novo roou os buracos de onde espreitam os nmeros negros, e com o seu enlevado sorriso murmurou: - Prodigiosa, esta prensa eltrica!...Jacinto acudiu:-No! No! Esta ...Mas ela sorria, seguia... Madame de Trves no compreendeu nenhum aparelho do meu Prncipe! Madame de Trves no atendera a nenhuma dissertao do meu Prncipe! Naquele gabinete de suntuosa Mecnica ela somente se ocupara em exercer, com proveito e com perfeio, a Arte de Agradar. Toda ela era uma sublime falsidade. No escondi a Danjon a admirao que me penetrava.O facundo Acadmico revirou os olhos bugalhudos:-! e um gosto, uma inteligncia, uma seduo!... E depois como se janta bem em casa dela! Que caf!... Mulher superior, meu caro senhor, verdadeiramente superior!Deslizei para a biblioteca. Logo entrada da erudita nave, junto da estante dos Padres da Igreja onde alguns cavalheiros conversavam, parei a saudar o diretor do Boulevard e o Psiclogo-feminista, o autor do Corao Triple, com quem na vspera me familiarizara ao almoo, no 202. O seu acolhimento foi paternal; e como se necessitasse a minha presena, reteve na sua mo ilustre, rutilante de anis, com fora e com gula, a minha grossa palma serrana. Todos aqueles senhores, com efeito, celebravam o seu Romance, a Couraa, lanado nessa semana entre gritinhos de gozo e um quente rumor de saias alvoroadas. Um sobretudo, com uma vasta cabea arranjada Van-Dick e que parecia postia, proclamava, alado na ponta das botas, que nunca penetrara to fundamente, na velha alma humana, a ponta da Psicologia Experimental! Todos concordavam, se apertavam contra o Psiclogo, o tratavam pr mestre. Eu mesmo, que nem sequer entrevira a capa amarela da Couraa, mas para quem ele voltava os olhos pedinches e famintos de mais mel, murmurei com um leve assobio: - uma delcia!E o psiclogo, reluzindo, com o lbio mido, entalado num alto colarinho onde se enroscava uma gravata 1830, confessava modestamente que dissecara todas aquelas almas da Couraa com algum cuidado, sobre documentos, sobre pedaos de vida ainda quentes, ainda a sangrar... E foi ento que Marizac, o duque de Marizac, notou, com um sorriso mais afiado que um lampejo de navalha, e sem tirar as mos dos bolsos:-No entanto, meu caro, nesse livro to profundamente estudado h um erro bem estranho, bem curioso!...O Psiclogo, vivamente, atirara a cabea para trs:-Um erro?, sim, um erro! E bem inesperado num mestre to experiente!...Era atribuir esplndida amorosa da Couraa, uma duquesa, e do gosto mais puro um colete de cetim preto! Esse colete, assim preto, de cetim, aparecia na bela pgina de anlise e paixo em que ela se despia no quarto de Rui de Alize. E Marizac, sempre com as mos nos bolsos, mais grave, apelava para aqueles senhores. Pois era verossmil, numa mulher como duquesa, esttica, pr-rafaeltica, que se vestia no Doucet, no Pasquim, nos costureiros intelectuais, um colete de cetim preto?O Psiclogo emudecera, colhido, trespassado! Marizac era uma to suprema autoridade sobre a roupa ntima das duquesas, que tarde, em quartos de rapazes, pr impulsos idealistas e anseios de alma dolorida se pem em colete e saia branca!... De resto o diretor do Boulevard condenara logo sem piedade, com uma experincia firme, aquele colete, s possvel nalguma mercearia atrasada que ainda procurasse efeitos de carne ndia sobre cetim negro. E eu, para que me no julgassem alheio s coisas dos adultrios ducais e do luxo, acudi, metendo os dedos pelo cabelo:-Realmente, preto, s se estivesse de luto pesado, pelo pai!O pobre mestre da Couraa sucumbira. Era a sua glria de Doutor em Elegncias Femininas desmantelada e Paris supondo que ele nunca vira uma duquesa desatacar o colete na sua alcova de Psiclogo! Ento, passando o leno sobre os lbios que a angstia ressequira, confessou o erro, e contritamente o atribuiu a uma improvisao tumultuosa:-Foi um tom falso, um tom perfeitamente falso que me escapou!... Com efeito! absurdo, um colete preto!... Mesmo pr harmonia com o estado da alma da duquesa devia ser lils, talvez cor de resed muito desmaiada, com um frouxo de rendas antigas de Malines... prodigioso como me escapou . Pois tenho o meu caderno de entrevistas bem anotadas, bem documentadas!...Na sua amargura, terminou pr suplicar a Marizac que espalhasse pr toda a parte, no Clube, nas salas, a sua confisso. Fora um engano de artista, que trabalha na febre, vasculhando as almas, perdido nas profundidades negras das almas! No reparara no colete, confundira os tons... Gritou, com os braos estendidos para o diretor do Boulevard:-Estou pronto a fazer uma retificao, numa interview, meu caro mestre! Mande um dos seus redatores... Amanh, s dez horas! Fazemos uma interview, fixamos a cor. Evidentemente lils... Mande um de seus homens, meu caro mestre! tambm uma ocasio para eu confessar, bem alto, os servios que o Boulevard em feito s cincias psicolgicas e feministas!Assim ele suplicava, encostado estante, s lombadas dos Santos Padres. E eu abalei, vendo ao fundo da Biblioteca Jacinto que se debatia e se recusava entre dois homens.Eram os dois homens de Madame de Trves o marido, conde de Trves, descendente dos reis de Cndia, e o amante, o terrvel banqueiro judeu, David Efraim. E to enfronhadamente assaltavam o meu Prncipe que nem me reconheceram, ambos num aperto de mo mole e vago me trataram pr caro conde! Num relance, rebuscando charutos sobre a mesa de limoeiro, compreendi que se tramava a Companhia das Esmeraldas da Birmnia, medonha empresa em que cintilavam milhes, e para que os dois confederados de bolsa e de alcova, desde o comeo do ano, pediam o nome, a infncia, o dinheiro de Jacinto. Ele resistira, no enfado dos negcios, desconfiado daquelas esmeraldas soterradas num vale da sia. E agora o conde de Trves, um homem esgrouviado, de face rechupada, eriada de barba rala, sob uma fronte rotunda e amarela como um melo, assegurava ao meu pobre Prncipe que no Prospecto j preparado, demonstrando a grandeza do negcio, perpassava um fulgor das Mil e uma noites. Mas sobretudo aquela escavao de esmeraldas convidava todo o esprito culto pela sua ao civilizadora. Era uma corrente de idias ocidentais, invadindo, educando a Birmnia. Ele aceitara a direo pr patriotismo...-De resto um negcio de jias, de arte, de progresso, que deve ser feito, num mundo superior entre amigos...E do outro lado o terrvel Efraim, passando a mo curta e grossa sobre a sua bela barba, mais frisada e negra que a dum Rei Assirio, afianava o triunfo da empresa pelas grossas foras que nela entravam, os Nagayers, os Bolsans, os Saccart...Jacinto franzia o nariz, enervado:-Mas, ao menos, esto feitos os estudos? J se provou que h esmeraldas?Tanta ingenuidade exasperou Efraim:-Esmeraldas! Est claro que h esmeraldas!... H sempre esmeraldas desde que haja acionistas!E eu admirava a grandeza daquela mxima quando apareceu, esbaforido, desdobrando o leno muito perfumado, um dos familiares do 202, Todelle (Antonio de Todelle), moo j calvo, de infinitas prendas, que conduzia Cotillons, imitava cantores de Caf-Concerto, temperava saladas raras, conhecia todos os enredos de Paris.-J veio?... J c est o Gro-Duque?-No, S. Alteza ainda no chegara. E Madame de Todelle?-No pde... No sof... Esfolou uma perna.-!-Quase nada... Caiu do velocpede!Jacinto, logo interessado:-Ah! Madame de Todelle anda j de velocpede?-Aprende. Nem tem velocpede!... Agora, na quaresma, que se aplicou mais, no velocpede do padre Ernesto, do cura de S. Jos! Mas ontem, no Bosque, zs, terra!... Perna esfolada. Aqui.E na sua prpria coxa, com a unha, vivamente, desenhou o esfolo. Efraim, brutal e srio, murmurou: - Diabo! no melhor stio! Mas Todelle nem o escutara, correndo para o diretor do Boulevard, que se avanava, lento e barrigudo, com o seu monculo negro semelhante a um pacho. Ambos se colaram contra uma estante, num cochichar profundo.Jacinto e eu entramos ento no bilhar, forrado de velhos couros de Crdova, onde se fumava. Ao canto dum div, o grande Dornan, o poeta neoplatnico e mstico, o Mestre sutil de todos os ritmos, espapado nas almofadas, com um dos ps sob a coxa gorda, como um Deus ndio, dos botes do colete desabotoados, a papeira cada sobre o largo decote do colarinho, mamava majestosamente um imenso charuto. Ao p dele, tambm sentado, um velho que eu nunca encontrara no 202, esbelto, de cabelos brancos em anis passados pr trs das orelhas, a face coberta de p de arroz, um bigodinho muito negro e arrebitado, findara certamente alguma histria de bom e grosso sal porque diante do div, de p, Jovan, o supremo Crtico de Teatro, ria com a calva escarlate de gozo, e um moo muito ruivo (descendente de Coligny), de perfil de periquito, sacudia os braos curtos como asas, e gania: delicioso! divino! S o poeta idealista permanecera impassvel, na sua majestade obesa. Mas, quando nos acercamos, esse Mestre do ritmo perfeito, depois de soprar uma farta fumarada e me saudar com um pesado mover das plpebras, comeou numa voz de rico e sonoro metal:-H melhor, h infinitamente melhor... Todos aqui conhecem Madame Noredal. Madame Noredal tem umas imensas ndegas...Desgraadamente para o meu regalo, Todelle invadiu o bilhar, reclamando Jacinto com alarido. Eram as senhoras que desejavam ouvir no fongrafo uma ria da Patti! O meu amigo sacudiu logo os ombros, numa surda irritao:-ria da Patti...Eu sei l! Todos esses rolos esto em confuso. Alm disso o Fongrafo trabalha mal. Nem trabalha! Tenho trs. Nenhuma trabalha!-Bem! exclamou alegremente Todelle. Canto eu a Pauvre fille... mais de ceia! Oh, la pauv, pauv, pauv...Travou do meu brao, e arrastou a minha timidez serrana para o salo cor-de-rosa murcha, onde, como Deusas num crculo escolhido do Olimpo, resplandeciam Madame de Oriol, Madame Verghane, a princesa de Carman, e uma outra loura, com grandes brilhantes nas grandes farripas, e de ombros to nus, e braos to nus, e peitos to nus, que o seu vestido branco com bordados de ouro plido parecia uma camisa a escorregar. Impressionado, ainda retive Todelle, rugi baixinho: - Quem ? Mas j o festivo homem correra para Madame de Oriol, com quem riam, numa familiaridade superior e fcil, Marizac (o duque de Marizac) e um moo de barba cor de milho e mais leve que uma penugem, que se balouava gracilmente sobre os ps, como uma espiga ao vento. E eu, encalhado contra o piano, esfregava lentamente as mos amassando o meu embarao, quando Madame Verghane se ergueu do sof onde conversava com um velho (que tinha a Gr-Cruz de Santo Andr), e avanou, deslizou no tapete, pequena e ndia, na sua copiosa cauda veludo verde-negro. To fina era a cinta, entre os encontros fecundos e a vastido do peito, todo nu e cor de ncar, que eu receava que ela partisse pelo meio, no seu lento ondular. Os seus famosos bands negros, dum negro furioso, inteiramente lhe tapavam as orelhas; e, no grande aro de ouro que os circundava, reluzia uma estrela de brilhantes, como na fronte dos anjos de Boticelli. Conhecendo sem dvida a minha autoridade no 202, ela despediu sobre mim ao passar, com raio benfico, um sorriso que lhe liquescia mais os olhos lquidos, e murmurou:-O Go-Duque vem, com certeza/- com certeza, minha senhora, para o peixe!-Para o peixe?...Mas justamente, na antecmara, rompeu, em rufos e arcadas triunfais, a marcha de Rakoczy. Era ele! Na Biblioteca, o nosso retumbante mordomo anunciava:-S. Alteza o Gro-Duque Casimiro!Madame de Verghane, com um curto suspiro de emoo, alteou o peito, como para lhe expor melhor a magnificncia ebrnea. E o homem do Boulevard, o velho da Gr-Cruz, Efraim, quase me empurraram, investindo para a porta, na imensa sofreguido de Pessoa Real.Precedido pr Jacinto, o Gro-duque surgiu. Era um possante homem, de barba em bico, j grisalha, um pouco calvo. Durante um momento hesitou, com um balano lento sobre os s pequeninos, calados de sapatos rasos, quase sumidos sob as pantalonas muito largas. Depois, pesado e risonho, veio apertar a mo s senhoras que mergulhavam nos veludos e sedas, em mesuras de Corte. E imediatamente, batendo com carinhosa jovialidade no ombro de Jacinto:-E o peixe?... Preparado pela receita que mandei, hem?Um murmrio de Jacinto tranqilizou S. Alteza.-Ainda bem, ainda bem! exclamou ele, no seu vozeiro de comando. Que eu no jantei, absolutamente no jantei! que se est jantando deploravelmente em casa do Jos. Mas pr que se vai jantar ainda ao Jos? Sempre que chego a Paris, pergunto: Onde que se janta agora? em casa do Jos!... Qual! no se janta! Hoje, pr exemplo, galinholas... Uma peste! No tem, no tem a noo da galinhola!Os seus olhos azulados, dum azul sujo, rebrilhavam, alargados pela indignao:-Paris est perdendo todas as suas superioridades. J se no janta, em Paris!Ento, em redor, aqueles senhores concordaram, desolados. O conde de Trves defendeu o Bignon, onde se conservavam nobres tradies. E o diretor do Boulevard, que se empurrava todo para S. alteza, atribua a decadncia da cozinha, em Frana, Repblica, ao gosto democrtico e torpe pelo barato.-No Paillard, todavia... comeou o Efraim.-No Paillard! gritou logo o Gro-Duque. Mas os Borgonhas so to maus! Os Borgonhas so to maus!...Deixara pender os braos, os ombros, descorooado. Depois, com o seu lento andar balanado como o dum velho piloto, atirando um pouco para trs as lapelas da casaca, foi saudar Madame de Oriol, que toda ela faiscou, no sorriso, nos olhos, nas jias, em cada prega das suas sedas cor de salmo. Mas apenas a clara e macia criatura, batendo o leque como uma asa alegre, comeara a chalrar, S.Alteza reparou no aparelho de Teatrofone, pousado sobre uma mesa entre flores, e chamou Jacinto:-Em comunicao com o Alcazar?... O Teatrofone? -Certamente, meu senhor.Excelente! Muito chique! Ele ficara com pena de no ouvir a Gilberte numa canoneta nova, as Casquettes. Onze e meia! Era justamente a essa hora que ela cantava, no ltimo ato da Revista Eltrica... colou s orelhas os dois receptores do Teatrofone, e quedou embebido, com uma ruga sria na testa dura. De repente num comando forte:- ela! Chuta! Venham ouvir!... ela! Venham todos! Princesa de Carman, para aqui! Todos! ela! Chuta!...Ento, como Jacinto instalara prodigamente dois Teatrofones, cada um provido de doze fios, as senhoras, todos aqueles cavalheiros, se apressaram a acercar submissamente um receptor do ouvido, e a permanecer imveis para saborear Les Casquettes. E no salo cor-de-rosa murcha, na nave da Biblioteca, onde se espalhara um silncio augusto, s eu fiquei desligado do Teatrofone, com as mos nas algibeiras e ocioso.No relgio monumental, que marcava a hora de todas as Capitais e o movimento de todos os Planetas, o ponteiro rendilhado adormeceu. Sobre a mudez e a imobilidade pensativa daqueles dorsos, daqueles decotes, a Eletricidade refulgia com uma tristeza de sol regelado. E de cada orelha atenta, que a mo tapava, pendia um fio negro, como uma tripa. Dornan, esboroado sobre a mesa, cerrara as plpebras, numa meditao de monge obeso. O historiador dos Duques de Anjou, com o receptor na ponta delicada dos dedos, erguendo o nariz agudo e triste, gravemente cumpria um dever palaciano. Madame de Oriol sorria, toda lnguida, como se o fio lhe murmurasse douras. Para desentorpecer arrisquei um passo tmido. Mas caiu logo sobre mim um chut severo do Gro-Duque! Recuei para entre as cortinas da janela, a abrigar a minha ociosidade. O Psiclogo da Couraa, distante da mesa, com o seu comprido fio esticado, mordia o beio, num esforo de penetrao. A beatitude de S. Alteza, enterrado numa vasta poltrona, era perfeita. Ao lado o colo de Madame Verghane arfava como uma onda de leite. E o m