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ECONOMIA E PENSAMENTO CRÍTICO - o esgotamento do paradigma kantiano na Economia Política - FERNANDO PEDRÃO 1995

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ECONOMIA E PENSAMENTO CRÍTICO

- o esgotamento do paradigma kantiano na Economia Política - FERNANDO PEDRÃO 1995

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Sumário Introdução 1. Razões da controvérsia atual A. Problemas da reflexão teórica. B. Questões de uma teoria do saber;. C. As razões de método. 2. Condições da formação de teoria A. Crítica e positividade na formação de teoria;a visão dialética. B. Requisitos factuais da reflexão teórica. 3. Sobrevivência e poder A. As questões principais e as imediatas; sobrevivência e poder. B. A desigualdade. C. A exclusão e os destituidos. 4. Problemas conceituais e operativos da análise A. As principais questões propostas. B. Os termos da análise. C. A reprodução do poder econômico e do político. 5. Interesses e dinamismo na economia A. Os interesses e sua representação. A questão da interpretação. C. A modernização. 6. Uma dinâmica historicamente fundada A. A dinâmica social na história. B. Horizontes espaço-temporais e entropia. C. A causação circular acumulativa. D. Acumulação restrita e acumulação secular. Referências bibliográficas

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Introdução A constituição de um pensamento critico em economia é uma necessidade histórica como parte de um movimento para reverter o encurtamento conceitual representado pelo movimento marginalista e seus filhos neoclássicos e keynesianos. Abandonadas as grandes interrogações da Economia Politica e subsituidas por um mecanicismo subalterno, desenvolveu-se um amplo e profundo processo de empobrecimento gnosiologico que se manifesta na perda da historicidade e da pluralidade dos processos sociais da economia. Torna-se imperativo ao sentido critico do pensamento moderno em seus inícios em Kant. A revolução kantiana foi um movimento de efeitos prolongados que determinou uma ruptura no modo de ver o conhecimento, estabelecendo requisitos de cientificidade que não podem ser ignorados. Além da consistência formal e da material 1 pergunta-se pelo sentido de finalidade do conhecer. O puro saber se mobiliza quando reconhece uma finalidade, assumindo-se como razão prática. A verdadeira critica kantiana é mais profunda e e significativa que a dos seus seguidores mecanicistas. Ao reconhecer que qualquer movimento positivo na consolidação e na ampliação do conhecimento todos de algum modo devemos algo a Kant. Por crítica entende-se, aqui, aquele esforço de reflexão sobre um corpo de conhecimento, para ve-lo em seus movimentos e em seus limites, portanto, em relação com seus fundamentos e seu sentido de finalidade. Coloca-se, pois, a crítica a partir do saber que ela representa. Isto significa que o pensar crítico encontra-se em condições que indicam as perguntas e respostas que podem ser obtidas com esse corpo de conhecimento; e que a renovação do conhecimento depende sempre de uma convalidação das categorias em que ele se apoia. Nisso, a questão atual da crítica no campo social não contradiz a proposta por Kant. A compreensão de crítica surge de um esforço de objetivizar os elementos cognitivos disponíveis e rever sua cientificidade. Quanto mais profunda a crítica, mais radical a conceituação. Por extensão, quanto mais radical a conceituação, mais penetrante a discussão da teoria e do método. A radicalidade da crítica está no modo como ela reconstitui o processo que considera; e não em sua própria separação da positividade do objeto de que trata. Supostamente, a perspectiva da crítica revela as contradições entre a visão da teoria e a de seu objeto, portanto, define condições específicas de inconformidade com os elementos constitutivos da teoria prevalecente. Assim, a busca de clareza de pensamento obriga a expor as inconformidades, tomando-as como parte da experiência de conhecer reflexivamente o conhecimento. Esse é o significado de necessidade 2, denunciada por Kant em seu confronto com Hume, de constrastar os

1 Ausência de contradição entre as proposições teóricas e ausência de contradição entre elas e a realidade. 2 A necessidade é uma categoria essencial na filosofia de Spinoza que articula a dupla relação do homem com outros homens e com Deus.

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mecanismos das estruturas analíticas com as categorias da análise 3. À falta de crítica, a teoria torna-se um simples aparelho lógico de raciocínio, estruturado sobre axiomas, cuja permanência deixa de ver-se como conseqüência de uma determinada postura teórica, para tomarem-se como inerentes a sua condição de corpo de conhecimento estabelecido. No entanto, no momento em que foram identificadas esses categorias foram inferidas de observações situadas no espaço-tempo do desenvolvimento da ciência, portanto, a experiências social e historicamente datadas. Não refletem outras experiências concomitantes àquelas, nem outras posteriores. Constituem um intervalo de experiência, que tem que ser historicamente situado. Noutras palavras, a ciência é produto de determinadas experiências e não absorveu o potencial de experiencias das diversas civilizações. Os preceitos de consistência lógica, de ajustar-se a interesses económicos, são próprios da civilização ocidental e não correspondem nem mesmo ao islamismo que pode ser visto como o modo religioso e politico mais próximo do mundo ocidental. O reconhecimento de um universo limitado de experiências que sustenta a formação dessa síntese indica, pelo menos como possibilidades, que outras experiências podem indicar outras inferências, outros caminhos do desenvolvimento da ciência. Assim, ao delimitar as experiências com que se conta, indiretamente, admite-se que em qualquer momento há sempre outras possibilidades de pensamento. Objetivizar o conhecimento disponível é delimita-lo; e criticar é imprescindível, para incorporar essa pluralidade, e assegurar a abertura de raciocínio com que se faz ciência. Este trabalho situa-se nessa linha. Trata a economia como uma ciência social em processo, sujeita a todos os condicionamentos que atingem as demais ciências, em seus respectivos problemas de demonstração e cientificidade, de tratar com certezas demonstradas e com certezas conjeturais. Tal como qualquer outra ciência, a economia compreende uma prática operacional e uma expressão de ideologias. O domínio operacional supõe uma maestria que só se obtém mediante um referencial teórico. O manuseio da teoria revela sua gênese e seu dinamismo, bem como revela o processo de apropriação de conhecimento, que compreende o da teoria e os da prática. Desse modo, alimenta a renovação da teoria, fazendo nexo entre a estruturação de um corpo de teoria e seus usos. Há, aí, portanto, uma questão fundamental, relativa ao sentido de finalidade da teoria econômica. Poderá ela ser uma teoria das decisões, ou deverá, necessariamente, compreender uma teoria geral da distribuição da renda? Será um raciocínio de um observador separado da vivência do processo, ou uma interpretação que se forma na perspectiva do interesse do capital em seu movimento de acumulação? É possível - ou relevante - pensar num raciocínio econômico desprovido de interesse? A fenomenologia juntou argumentos lógicos e psicológicos aos argumentos históricos já reunidos, para desqualificar essa pretensão de funcionar com uma racionalidade desprendida de

3 A Crítica da Razão Pura é um manifesto de liberdade, que vê a razão como portadora desse desprendimento do conhecimento estabelecido, para desenvolver-se de modo incondicionado.

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valores. Simplesmente submeteu os valores À questão teleológica da impossibilidade de um conhecimento desprovido de origem e de conseqüências, junta-se a do sentido de finalidade do discurso, que significa que as manifestações dos agentes econômicos - ofertando ou demandando - refletem sempre algum interesse.4 O interesse em economia está ligado à solução dos problemas de sobrevivência, com as diversas formas que eles assumem ao longo do tempo e em sociedades mais complexas, e dos problemas de acumulação de pode, ligados à superação dos problemas de sobrevivência ou ligados a transformações nos modos de vida. Por sua vez a acumulação de capital não pode ser tratada como uma mera mecânica do sistema produtivo mas reflete processos de poder que dão rumo a essa mecânica. A teoria econômica teve momentos de maior explicitação dos objetivos de poder, incorporados nas propostas de gestão do capital; e outros, muito mais frequentes, em que se sustentou numa presunção de cientificidade, que expurga a necessidade de explicar a questão social do poder. Seu papel varia, junto com a atitude de acompanhar a marcha da razão ordenadora do sistema de produção e do sistema de poder; ou da atitude transformadora, que identifica conhecimento com capacidade de intervir na realidade social e não só na natureza. Relacionar interpretação com intervenção significa reconhecer que a ação é inerente aos agentes da produção e do consumo, que eles não têm como se absterem de agir. Significa perceber que o processo econômico é um tecido de interesses, de algum modo encoberto na versão prevalecente de interpretação da gestão do capital. É um questionamento que compara propostas de explicação com outras de instrumentalização, que combina definições a nível de conceito com encaminhamentos de método. Frente às atuais diferenças de propósito na análise teórica em economia, relativos ao rigor formal e à representatividade histórica, bem como a avaliar eficiência e explicar a distribuição da renda, os movimentos da anállise estão ligados a pressupostos de teoria, no sentido mais amplo deste termo; e às condições em que se forma o pensamento teórico. Enfrenta problemas de concepção operacional, antes mesmo de chegar a instrumentos específicos, para aferir seu significado e sua eficiência. A análise econômica refere-se a relações entre pessoas e coletivos. Não pode limitar-se às relações entre os indivíduos ou entre os coletivos. Por isto, a análise do aspecto econômico da atividade social tem que observa-la em sua totalidade, assim como, combinar o plano objetivo histórico e o subjetivo psicológico, nos coletivos e nos indivíduos. Em suma, deve ocupar-se dos problemas de representação inerentes à participação dos diversos coletivos em sociedades concretas. Daí, a necessidade de uma visão em perspectiva histórica na análise institucional, compreendendo os aspectos de intencionalidade das instituições. Descobre-se um fosso entre

4 A posição de Husserl, de que todo discurso é psicológico e intencional, estabelece uma qualificação da cientificidade no campo social, que a análise econômica teria, a rigor, que contemplar, na esfera do conflito de interesses.

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Assim, representação é agora um tema essencial, soterrado na análise econômica, porque ela não pode nega-lo, mas não o enfrenta; porque tenta situar-se num plano de generalidade que dilui as experiências e as peculiaridades que vêm junto com elas. Mas, desse modo, a teoria entra em contradição, porque precisa do apoio das experiências que constituem sua ancoragem empírica; e precisa encontrar como transferi-las para o ambiente rarefeito da generalização formal dos raciocínios. Os horizontes das experiências e os âmbitos de generalização possível na análise são inseparáveis; e é nas experiências que se encontram as tensões próprias das relações entre os protagonistas da vida social, onde portanto se situam as diferentes visões de mundo e as correspondentes estratégias de ação dos grupos envolvidos no espaço-tempo das experiências. A participação dos grupos e pessoas contém diferenças de interesse, que se traduzem nas tensões no tecido de relacionamento em cada sociedade organizada. Em cada momento, as tensões têm diferentes intensidade e duração. Tensões que se manifestam durante períodos prolongados, que marcam o cotidiano - tal como aquelas resultantes do confronto entre políticas de equilíbrio e políticas de transformação social em sociedades desiguais, que tendem a condições diferenciadas de desigualdade. Os movimentos e os mecanismos que fortalecem a consolidação contrapõem-se a movimentos e mecanismos que levam a mudança. As tensões dão-se em relação com cada uma dessas tendências, bem como em relações com os resultados a que elas levam. Assim, para análises econômicas que dependem da compreensão do problema de representação, é preciso combinar a explicação do que é permanente com a do que é transitório, bem como distinguir o que aparece como cotidiano do que constitui um tecido de acontecimentos interligados. Por extensão, é preciso trabalhar a compreensão do cotidiano - aquela cara imediata do que é permanente e do que é transitório - para compara-la com a interpretação da análise instantânea, que não se confunde com o cotidiano, porque não é concreta, corresponde a situações atemporais hipotéticas. Na análise econômica, essa distinção é necessária, para evitar confusões entre as referências ao contexto atemporal e ao curto prazo. A experiência de todo um ciclo de tentativas de desenvolvimento econômico e social pós colonialista, sobre um referencial nacional, com um conjunto de frustrações e de sucessos parciais, foi comumente identificado como o fim da ideologia do desenvolvimento econômico. Mas, se essa ideologia pode ser uma projeção de interesses de certa aliança de classes, reflete, em todo caso, reestruturações de interesses, que alinharam os segmentos sociais incorporados ao processo de produção. No essencial, representava as aspirações de classes médias urbanas, pequenas e frágeis, de alcançar um crescimento econômico prolongado, acompanhado de amplos efeitos redistributivos. Mas há grande ambiguidade nessa crítica do chamado desenvolvimentismo, no que ela confundiu as contradições ideológicas desse movimento, com contradições objetivas da posição dessas classes médias nos movimentos da acumulação de capital e da distribuição da renda. Com isso, ficou a impressão de que tentar a independência econômica e ideológica foi algo utópico, historicamente inviável, ou simplesmente ingênuo. Há, portanto, uma questão, relativa ao significado de ideologia e aos seus conteúdos. O significado de ideologia como componente essencial da análise social, responsável de que ela tenha certa complexidade não positiva, foi descartado pelo pensamento oficializado em

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economia. Ao restringir o marco das transformações econômicas às sociedades nacinais constituidas, incorreu-se numa grande simplificação, que impede perceber a complexidade dos interesses envolvidos na produção. E a operação intelectual pela qual se consegue trablhar com consumidores e com produtores equivalentes uns aos outros, portanto, que permite generalizar a partir de indivíduos, que se vê como integrantes de uma coleção homogênea. Projetada na análise de experiências específicas, de países ou de regiões, essa postura levou a avaliações que não consideraram necessário examinar as condições em que as políticas econômicas foram realizadas, nem o quadro de contradições de interesses que prevaleciam em cada momento. A experiência latino-americana desse momento de industrialização terminou com o fim daquelas alternativas de acumulação prolongada de capital, baseadas na continuidade dos esforços dos governos nacionais apoiados em alianças de classe duradouras, pouco sensíveis a choques externos. Essa frustração correspondeu a um realinhamento do pensamento econômico oficial - daquele pensamento retransmitido pelas políticas governamentais - nos países periféricos mais maduros e de economias mais diversificadas, com o revigoramento das versões locais de conservadorismo, que se alinham com o pensamento oficial dos países líderes da acumulação mundial. Isto se reflete em colocações sobre método e sobre finalidades e usos da teoria, em aberta contradição com a explicação da formação contemporânea de capital. Claramente, há uma crise ideológica na teoria, entendida como atividade criadora de pontos de vista independentes, ou como desdobramento progressivo de estruturas de pensamento, com credibilidade suficiente para ser aceita como referência, para ulteriores análises. Na segunda alternativa, o trabalho teórico fica limitado a uma proposta de operacionalização metodológica, para resolver problemas que se situam no nexo entre a formulação conceitual e a operacionalização empírica. A visão crítica da análise leva a confrontar os aspectos de consistência com os de representatividade; a avaliar o significado da delimitação do alcance da teoria, levando em conta sua estruturação e as experiências que ela tem incorporadas. Mais ainda, para trabalhar na direção de uma teoria histórica e metodologicamente significativa, torna-se necessário dar um passo além da leitura dos produtos teóricos imediatamente disponíveis, e avaliar o significado dos movimentos de produção de teoria em relação com o aparecimento de problemas de distribuição da renda e de acumulação de capital. Essa avaliação se aplica aos desdobramentos da teoria econômica, naquilo em que eles alteram o potencial explicativo da análise, seja, naquilo em que o encaminhamento das indagações teóricas leva a diferentes conseqüências, em termos de capacidade para tratar questões conceituais ou questões da prática da produção e do consumo. Há, portanto, uma revisão da análise, que se remete ao desenvolvimento de sua capacidade para interpretar, seja, o ponto onde se concentram as pressões para a renovação da teoria. O debate em economia depara-se, agora, com profundas diferenças de pontos de vista, justamente pela atitude acrítica com que se atribui cientificidade à consistência formal da linguagem da análise. Há um fetchismo da formalização, que a transforma, de mediadora do pensamento em objeto de reflexão. A ciência tem que resolver um problema de articulação

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emtre a demonstração lógica e a referência empírica; e um problema subsequente, de controle da referência empírica. O absolutismo lógico, que põe a demonstração formal acima e separada do universo da prática, constitui uma negação do real, do mesmo modo como o empirismo incontrolado representa uma negação da cientificidade, por ignorar quaisquer regras de generalização. Assim, há um problema de cientificidade, no relativo à demonstração, no que toca aos temos com que ela é concebida, e ao modo como é realizada. A ciência significa uma escolha de linguagem e um uso especializado de linguagem, com a conseqüência da experiência e do dinamismo renovador da linguagem. Quando se dogmatizam os modos de demonstração, a linguagem se torna um símbolo preso a um código invariante de significado, deixando de ser um princípio ordenador. No entanto, ela tem aqui o duplo significado de precisão conceitual e de acumulação de tecnicidade, que dificulta o trabalho de identificar o núcleo conceitual da teoria. Há uma instância de dificuldade própria da linguagem, que deve ser desvendada, para que se veja se as modificações no corpo conceitual da teoria correspondem a necessidades genuínas de explicação da análise social, ou se assume uma posição subordinada frente a outras ciências, por isto limitando-se a resolver problemas instrumentais, escolhidos à sua revelia. A opção pela discussão da formação social da teoria, define posições acerca daquelas, por sua capacidade para resolver problemas; e não só por sua consistência formal. Não surpreende, pois, que a aparente expansão da teoria - no sentido poppperiano desta expresão - ocorra, justamente, no plano da formalização da análise, mesmo sendo ela desigualmente sustentada pela pesquisa indutiva e pelas referências empíricas, mas referindo-se, sempre, ao contexto cultural e aos pressupostos institucionais dos países que constituem o centro mundial da acumulação. Assim, questionar a representatividade da teoria e sua fundamentação empírica, é mostrar uma contradição de seu compromisso instrumentalista, portanto, de seu paradigma ortodoxo. Mas, por em juizo a formalização ortodoxa não é só contrapor-se aos interesses que o determinaram: é afirmar os pontos de vista formados em outras experiências, hoje emergentes ou sempre postergadas, que não são registradas pelo estabelecimento acadêmico. Assim, implica em discrepância acerca das necessidades da análise, ao entender que ela progrede pela exposição de suas contradições. Por extensão, leva a propor mudanças no horizonte das percepções manejadas pela ciência social, onde elas são necessárias para a transformação da teoria. Assim, a menos que sejam identificadas linhas alternativas de discussão, não há como aceitar passivamente a pressão ideológica da reprodução do paradigma ortodoxo. Nesse contexto, a revisão de método realimenta a capacidade para escolher temas e avaliar a capacidade da ciência para explicar e interpretar. Mas, qual discussão de método: como desdobramento de uma linha de pensamento, ou como modo de trabalhar sobre suas possibilidades de mudança? Algumas propostas de encaminhamento de um raciocínio próprio da economia, como os de John Neville Keynes e de Marshall, ou de interpretações epistemológicas, como as de André Marchal e G.G.Grangier são reveladoras, respectivamente, desses dois encaminhamentos.

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Outras abordagens, colocadas no campo de uma teoria geral da ciência, como as de Nagel e de Cassirer, procuraram resolver os problemas de cientificidade sobre bases fenomenológicas, focalizando em aspectos da racionalidade; e ligando o caráter de ciência `a positividade. Mas, de fato, ignoraram problemas de acumulação de conhecimento - portanto, relativos à possibilidade de perda de conhecimento - que se acumularam desde Kant. Paralelamente, constam algumas incursões nos problemas de racionalidade científica, destacando-se as de Bachelard e de Monod, em que o primeiro advoga uma pluralidade de abordagens para superar “obstáculos epistemológicos”; e o segundo mostra limitações racionais do raciocínio mecanicista frente ao componente aleatório da realidade. Adiante, encontram-se questionamentos do mecanicismo positivista, pelo que ele pressupõe regularidade lógica no progresso da ciência num quadro invariante de referências lógicas. Principalmente através de Popper, mais recentemente de Kuhn e Lakatos, a concepção de cientificidade ligada ao mundo da Física procura adaptar-se às transformações da ciência, tendendo a derivar observações fundamentais sobre o método, como as noções de falseamento e de paradigma, a partir da observação de uma época de alta concentração de eventos de mudança. Porém, nesses e noutros aspectos de teorização da ciência, encontram-se questões de interpretação, que levantam exigências adicionais do pensamento científico e não só dos produtos da ciência. Nesse campo, destacam-se Gadamer e Habermas, depois de Weber, na realidade enfrentando questões que este último deixou em aberto, mas remetendo esta reflexão de volta aos seus fundamentos em Hegel e Marx. Nesse quadro, configura-se uma divisão entre o principal caminho que se abre à epistemologia formada na tradição de Descartes, que coisifica o conhecimento e separa a formação de ciência da apropriação do mundo social, e a gnosiologia que abraça os saberes em suas diversas formas e em sua historicidade. O modo de fazer ciência também é o de pensar o humano em seu movimento civilizacional. Por isso, a divisão em torno do método é a mesma do sentido de finalidade da ciência, determinando o modo de enfrentar a questão da racionalidade num plano anterior ao da formalização de qualquer ciência em particular, no plano mais amplo da formação do saber, onde esetão compreendidos o plano do social e do individual, tomando os limites do conhecimento como parte do campo conhecido. Como disse Gadamer, “ ao por o limite e distinguir o fenômeno da coisa em si, manifesta na realidade esta diferença como sua própria... pois o simples fato de po-lo implica que ele já está superado. A dialética do limite é que ele só o é enquanto se supera” . Nesse ponto, a compreensão da praxis é fundamental, porque responde pelos vínculos da teoria com a realidade. Dentre as contribuições sobre como trata-la nos movimentos contemporâneos do capital, destacam-se o trabalho hermenêutico de Lucien Goldmann mapeando inter-relações entre ética e estética , onde a percepção estética é parte de uma ética contestadora do absolutismo; e o de Maurice Godelier apresentando o movimento da argumentação de Marx, revelar a contradição irracional do capital no autoritarismo ideológico e no absolutismo lógico do liberalismo, como os denominou Adorno.

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Estas linhas de reflexão mostram que a discussão de uma crítica da racionalidade ligada à formalização científica do saber, obriga a levar em conta o sentido de finalidade inerente ao conhecimento do social. Será possível uma ciência social que não se predisponha a intervir na realidade? A atividade ligada à sobrevivência é inseparável da proposta de compreensão do mundo real. A valorização da atividade comprometida com resultados, como diz Agnés Heller em seu estudo de Aristóteles, é parte de uma visão social do mundo, que fica incorporada na ciência, enquanto ela se reconhece como social. E a garantia de que o potencial de trabalho se realiza é, também, um elemento de poder. Assim, a relação entre a solução dos problemas de sobrevivência e a de formação de poder permeia esta análise, que deve chegar à concretude do cotidiano. Trata-se de uma questão inerente àquele pensamento teórico cujo objeto tem vida própria, que não pode ser exprimido por regras externamente estabelecidas pelo observador. Por isto, traduz-se numa distinção entre níveis e modalidades de pensamento, mais que entre opções de programa de trabalho. É uma das grandes pistas de análise oferecidas por Aristóteles, recolhidas por Hegel e Marx, no relativo à imanência do sentido de finalidade do conhecimento do social. Esse saber se produz em sociedade: não pode ser imaginado como uma reflexão solitária que não incorpora experiência. Há, portanto, uma distinção entre o conhecimento que se forma e processa no nível do indivíduo genérico; e o que pertence à compreensão do coletivo como tal. Trata-se de uma fenomenologia do coletivo, que inclui o universo do individual, mas onde o individual genérico é um desdobramento do conhecimento de indivíduos concretos. É um confronto em que ressôa o velho debate medieval entre nominalismo e realismo, que precede a formação da ciência como tal, bem como a reflexão sobre temas sociais. É inseparável da questão da reconstrução conceitual da relação sujeito-objeto, com um coletivo tomado como sujeito e como portador de experiência; e com uma reconstrução do objeto social. Mas, também, é um confronto que se torna inevitável, quando se incorporam qualificações dos coletivos com que se trata. Primeiro, as classes sociais, que ganham nitidez, ao aumentar sua experiência; logo, as distinções entre classes concretas que representam interesses análogos com diferentes experiências e em outras circunstâncias. O componente de subjetividade dos relacionamentos concretos revela-se como um aspecto a ser considerado no domínio da psicologia social. Com a atenção que, necessariamente, dá à pluralidade de experiências, com as correspondentes diferenças culturais, a análise social precisa rever o modo como trata os temas da subjetividade. A distinção e a ligação entre o individual e o coletivo mostra a necessidade de alternar e completar a análise dos atributos sujetivos do sujeito individual com a dimensão subjetiva das relações entre os coletivos. As condições específicas de subjetividade, bem como a intersubjetividade, limitam as possibilidades de transferir experiência, da pluralidade dos indivíduos para as relações organizadas entre grupos. Na análise do econômico, essas questões surgem, porque a manifestação econômica do social é, antes que tudo, uma expressão de interesse, como bem colocou Habermas. Frente à violência do processo de produção, o posicionamento do homem é total: inclui a formação de suas posições psicológica e cultural. A partir delas configuram-se sua percepção crítica. No

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momento em que é exercida, a crítica tem que reconhecer a pluralidade de agentes e processos; e com ela, os horizontes de comparabilidade com que trabalha. Há, aqui, portanto, uma restrição das generalizações em teoria social, que atinge a cientificidade do encaminhamento da análise e de seus resultados. A compreensão do poder qualificador da crítica é inseparável da compreensão do objeto da análise, já que o raciocínio crítico se desenvolve confrontando os conteúdos do conhecimento com seus limites, isto é, como o movimento negativo da dialética. Em seu desenvolvimento recente, ainda de modo restrito e com dificuldade, a crítica da teoria reconhece o etnocentrismo, como um traço essencial de irracionalidade, que condiciona a produção de conhecimento objetivo no campo social. O etnocentrismo é uma expressão genérica, que entretanto denota um espectro de preconceitos concretos, que atinge países e regiões, ricos e pobres. Tem revelado uma grande continuidade, igualmente irracional, alimentando-se de uma mistura de preconceitos culturais e interesses econômicos, explícitos ou não. De todos modos, é parte de mecanismos formadores de identidade, ganhando tonalidades agressivas, quando se identifica com situações de dominação. O etnocentrismo é um traço distintivo da originalidade das experiências sociais em que se misturam sobrevivências de origens tribais com a instrumentalização de interesses economicos. Esse aspecto tem que ser levado em conta, porque é ele que identifica os diversos percursos das sociedades, tornando impossível que eles se repitam. Justamente, ao reconhecer essa originalidade, torna-se necessário as situações de desigualdade a partir de experiências concretas, incluindo as diversas formas de dominação e o modo como elas formam tecidos de interesse e se refletem nas estruturas institucionais. A crítica do etnocentrismo, portanto, é um tratamento ideológico de fenômenos históricos objetivos, em que se destaca a formação dos agentes econômicos, sua organização em coletivos, o modo como os coletivos realizam a produção e o consumo. O etnocentrismo abrange uma grande escala de experiências e de conflitos que perpassam a formação de nações e também operam internamente em cada uma delas. O aspecto mais importante da crítica da Economia Política é essa revisão do significado do coletivo em geral, a percepção dos coletivos concretos e das inter-relações entre a esfera da individualidade e a dos coletivos. Tal revisão decorre, necessariamente, da compreensão da condição histórica do campo social e de suas formas de organização e de comunicação. A decodificação da linguagem, em sua formalização e seus conteudos, é uma pré condição para que se constitua um corpo teórico relevante.Mas não substitui os problemas concretos da vida social.

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1. Razões da controvérsia atual Problemas da reflexão teorizante A máquina institucionalizada do conhecimento oficializado que se desenvolveu sob diversos nomes desde meados do século XIX – positivismo, marginalismo, mecanicismo – derivou regras de legitimidade que coibiram criticas aos seus fundamentos. A perspectiva histórica passou a ser a principal fonte de contestação desse oficialismo, entrentanto absorvendo vícios positivistas como em Braudel 5, que dificultam explorar o poder relativizador da história. Uma teoria social historicamene consciente significa um processo de trabalho teórico que explora a genética do mundo social, em que a estruturação é um momento selecionado de observação. É prudente perguntar quanto se quer, realmente, uma teoria no campo social e quem quer tal teoria. A teoria reflete sempre um modo de se apoderar de conhecimento e usá-lo como ferramenta de poder. O projeto de teoria em si carrega uma representação de interesses, que pré define o programa de trabalho da pesquisa teórica. Estabilidade ou mudança, trajetória regular ou irregular, situações genéricas ou peculiares, reconhecimento ou não da interação entre distribuição e formação de capital, são premissas que condicionam o tipo de teoria a que se chega. O que se busca de teoria determina se ela será meramente explicativa, se é interpretativa, se se encaminha a uma compreensão de totalidade ou de aspectos, por fim, quanto se sustenta em probabilidades e em relações de causalidade. Se a teoria é uma réplica interpretativa da realidade, envolve os riscos e as condições das interpretações, em suma, envolve interesses. O exame da relação entre a consistência lógica e o poder explicativo da teoria econômica leva, necessariamente, a questionar a contradição entre o objetivo de alcançar resultados universalmente válidos e a diversidade de condições em que a análise é realizada. A consistência lógica impecável, bem como a aplicabilidade universal e homogênea do trabalho científico, são objetivos que contrastam com a diversidade de contextos e condições de realização da análise e de aplicação de seus resultados. Mas, entre sacrificar o realismo da análise para garantir sua consistência lógica, e sacrificar a lógica ordenadora em favor de um empirismo incontrolado, coloca-se a necessidade de um meio termo, que é, justamente, a conjugação dos aspectos racionais e empíricos da análise. O bom senso rejeitado pelo positivismo e pelo racionalismo critico tem um papel indispensável quando a análise social se defronta com diferenças culturais significativas e precisa estabelecer um alicerce consistente para trabalhar. Esse é um questionamento plenamente justificável, porque em princípio se pode generalizar usando raciocínios formalmente consistentes, sem controle prévio dos erros que podem se introduzir em sua aplicação. E esse desconhecimento do problema de controle inicial das

5 Fernand Braudel, Os jogos das trocas, Civilização material, economia e capitalismo, tomo II, Lisboa, Cosmos, 1985,

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margens de erro é um problema que se situa no plano do significado explicativo do método, antes que no de sua operacionalidade. É nesse nível, não no da técnica de aplicação, que se encontram os problemas de quantificação: que se pode quantificar, quanto se pode quantificar, que revelam e que ocultam as quantificações6. Certezas probabilísticas e aproximativas construídas sobre certas bases de experiencia transformada em informações e certezas relativizadas pela critica das informações. Ao descrevê-lo, em princípio, se indica que o manejo da generalização deve estar sujeito a critérios de confiabilidade da teoria que sustenta a aplicação; e não a critérios de controle dos erros operacionais que se encontra no processo prático de aplicação. Assim, não se pode pretender generalizar a todo custo e de modo irrestrito, senão considerar que as generalizações a que se chega são resultados parciais de pesquisa,. alcançados sobre a base do conhecimento de que se dispõe. Assim, a generalização só pode ser um objetivo restrito, cuja amplitude deve ser estimada de acordo com suposições sobre a comparabilidade dos ambientes a que correspondem as hipóteses que os sustentam. Trata-se, portanto de uma busca controlada de generalização, como do propósito de chegar a generalizações controladas, de não perder o controle das generalizações que se faz sobre as bases do conhecimento com que se conta. Nessas condições, formular hipóteses é sempre um exercício de bom senso mas também é um esforço de trabalhar no limite do conhecimento possivel. Se as hipóteses são as perguntas que se formula no limite do conhecimento são sempre um compromisso com a possibilidade de renovação das teorias. Tais hipóteses, finalmente, constituem controles da pertinência das soluções de formalização e da quantificação, manejadas no raciocínio teórico; e não são alternativas dos conteúdos da análise. Essa, certamente, não é uma dificuldade acidental da reflexão teórica, nem algo que se administre apenas no âmbito do tratamento da lógica da análise. Pelo contrário, é um problema que decorre do atrelamento do raciocínio teórico a uma prática, portanto, a uma fonte de seu significado empírico. Reconhecer o papel do componente factual, significa optar entre enfrentar as necessidades de uma teorização da praxis; ou ficar no plano descritivo da pluralidade de experiências, portanto, ficar um passo aquém de qualquer interpretação. Descrever ou interpretar. Mapear os problemas ou explicar. O nível fático será sempre um degrau no caminho à construção de interpretações mas permanece como um plano informativo a ser sempre renovado. Daí, a necessidade de avaliar o significado explicativo dos recursos formais da análise econômica. É uma tarefa que interessa a todas as ciências humanas, que em economia foi abordada, desde diferentes posições, por Wicksell, Keynes, Morgenstern e outros, com diferenças significativas, no relativo à concepção da lógica da análise e das necessidades de formalizaçào, assim como no controle das referências empíricas.

6 Esse, de fato, é o ponto em que se colocam os problemas de magnitude e de quantidade na Ciência da Lógica de Hegel. A formulação de problemas de estatística e de operacionalidade da quantificação aparecem depois, quando já se estabeleceu o poder explicativo da análise.

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Essas qualificações decorrem da identificação do sujeito da análise: não só penso, logo existo, mas quem sou eu que penso; e dado que existo, penso e não consigo deixar de fazer alguma coisa. Há uma diferença real entre tratar com tipos ideais de consumidor e de produtor, como fez o marginalismo vienês; e tratar de produtores e de consumidores identificados por comportamentos probabilisticamente inferidos, como fez Keynes. Mais ainda, há uma diferença entre o significado da quantificação tomada como um recurso lógico de análise; e como parte de seu significado, que não se resolve no plano da demonstração. A capacidade de demonstrar é essencial à capacidade de analisar. Parte de uma reconstrução do problema por parte do sujeito da análise, que ao faze-lo, indiretamente, se auto define. A capacidade de demonstrar depende do controle de um determinado nivel de conhecimento, que se traduz num conjunto de procedimentos operacionais, cujo uso enseja a possibilidade de adaptações e modificações. Isto quer dizer que a reflexão sobre os procedimentos de análise é uma parte necessária da crítica do poder explicativo da teoria, em relação com os problemas que ela enfrenta. Que significa, por exemplo, que a análise econômica esteja preparada para tratar de problemas fidedignamente representados num plano estático; e trate, principalmente, de problemas que têm duração definida, portanto, que pertencem ao referencial de uma análise dinâmica? Que significa, também, que ela se proponha separar os universos de macro e micro análise, quando os critérios de distinção entre os dois - análises de empresas e consumidores individuais de um lado e de sistemas nacionais de produção de outro lado - encobrem imprecisão de classificação, em que os indivíduos aceitos como parte do universo “micro” podem ser mais complexos e manejar mais recursos que os do universo “macro”? A primeira linha de objeções decorre, portanto, do tipo de problemas a serem analisados. Os problemas pertencem a uma realidade social essencialmente desigual, porque a estruturação social, a formação de tecnologia, a de recursos humanos e a acumulação de capital, são sempre desiguais no espaço-tempo dos acontecimentos. A desigualdade é uma categoria da análise social por várias razões, dentre elas, porque não há exemplos de igualdade nas sociedades contemporâneas; ae porque a desigualdade tem recrudescido, inclusive nos países e regiões mais capitalizadas; e continua sendo o principal traço das sociedades periféricas, que são o principal objeto de interesse deste trabalho. A desigualdade da distribuição é uma referência insubstituível. Se ela não pode ser evitada, a análise econômica tem que tratar com ela. Mas, reconhece-la traduz-se em exigências de método, para garantir que os resultados alcançados sejam representativos da complexidade deste problema; e não a distorçam, ao selecionar aqueles aspectos que melhor se adaptam à análise quantificada. Em suma, trata-se de levar em conta o modo como a análise deve ser aplicada. Assim, por mais que a conceituação do método seja um terreno compartido com as ciências físicas, ou que a visão metodológica da teoria rebata no confronto entre idealismo e realismo, ela não pode ignorar as peculiaridades do campo social. E aqui há dois aspectos a registrar: trata-se de relações entre coletivos, em que sujeito e objeto se alternam ou se confundem; e onde as

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análises baseiam-se em acervos desiguais de informações. Em conseqüência disso, as construções de teoria apoiam-se na acumulação de observações; e sua representatividade depende da relação entre sua formalização lógica e a base de observações sobre a qual se apoiam. Na prática, significa contrastar o movimento do conhecimento teórico ao prático, com o movimento do conhecimento prático ao técnico e ao teórico, em que as ligações entre esses três níveis revelam os modos como cada um deles se forma numa determinada experiência. Por exemplo, os camponeses e marinheiros no primeiro, artesãos e capatazes no segundo, e profissionais de nível superior no terceiro. O conhecimento aprofunda-se e se modifica em cada nível, com realimentações entre os três níveis, que alteram o conjunto dos três. Há, também, um movimento de especialização, que vai da repetição das práticas à normatização de procedimentos; e à reflexão crítica de ambos. Como, pois, julgar a propriedade e a oportunidade dos procedimentos de método, sem examinar a proposta teórica de método, nem entrar em sua relação com a produção social de teoria? O modo de ver o método reflete uma situação da teoria; e sua capacidade para enfrentar os problemas próprios da época. Os paradigmas teóricos estão organicamente ligados ao contexto cultural de cada época, ao modo como interagem os processos sociais, e como interdependemm os processos e as estruturações sociais. A partir dessa percepção, forma-se uma compreensão crítica do método, que é a base para ligar a produção de teoria com a renovação da análise. Com essa percepção, coloca-se o tratamento a ser dado ao comportamento dos agentes em sua atividade na produção e no consumo. A teoria econômica ortodoxa continua trabalhando com pressupostos de comportamento que se sustentam numa racionalidade genérica, isto é, que não corresponde a sujeitos historicamente determinados. Assim, supõe uma equivalência de condições objetivas de participação na produção e no consumo, bem como de equivalência de condições de organização social. O pressuposto weberiano de racionalidade como objetivo inerente ao desenvolvimento das sociedades, corresponde ao da concepção da racionalidade generalizada de acumulação numa sociedade avançada e estabilizada. Mas, por tratar-se de comportamentos diferenciados, de grupos e de indivíduos, é necessário substituir a referência à racionalidade genérica por uma referência às condições históricas específicas em se dá a racionalidade. A premissa de racionalidade genérica é incompatível com o reconhecimento dos aspectos cultural e psicológico do processo econômico, que leva a ligar os comportamentos objetivos com condições ambiente objetivas e com motivações subjetivas. A interação do processo cultural, essencialmente coletivo, com o processo psicológico, essencialmente individual, rebate na objetivização do econômico, na forma de comportamentos contraditórios com a racionalidade do cálculo econômico, manifestando-se de modos irredutíveis às definições que podem ser extraídas desse cálculo. Além disso, esse comportamento genérico seria o de um consumidor separado de quaisquer identificações de classe e cultura, que não registra modificações de comportamento entre os lugares e os tempos em que se realiza o consumo, bem como não acusa diferenças estruturais entre o consumo coletivo familiar e o individual.

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Por isso, essa concepção de consumidor permite trabalhar com a simplificação de raciocínio de que a racionalidade do consumo está ligada à reprodução dos indivíduos, sem verificar como ela interdepende das condições de inserção da pessoa no núcleo familiar, ou em outras formas concomitantes de organização. No entanto, na sociedade contemporânea, principalmente no meio urbano, cada pessoa participa diretamente de diversos grupos de forte identidade; e perifericamente, ou indiretamente, de muitos outros. Na prática, a participação de cada pessoa numa sociedade é um composto pouco compatível com o de outras pessoas, já que a composição de cada um reflete uma solução específica do que é coletivo com o que é individual. Daí, que a estruturação social é uma dimensão fundamental na constituição da produção e na do consumo; e a consolidação de classes mostra aspectos das diferenciações e desigualdades essenciais de cada sociedade. Assim, os questionamentos sobre o sujeito coletivo suscitam questões teóricas e práticas da formação das classes, em seu âmbito e profundidade e no horizonte espaço-tempo de suas experiências. Por contraste, a estruturação de classes revela os contornos do campo ocupado por elas; e frente a ele, o campo ocupado por grupos que não se consolidam como classes, mas que interagem de modo igualmente significativo e persistente, como são os integrantes da produção primitiva e da informalidade. Destarte, no que o consumo é associado a condições concretas de renda e de acesso a meios de satisfação de necessidades, a teoria tem que ligar o comportamento dos consumidores a sua renda e a seu acesso real a possibilidades de consumo, seja, tem que incorporar a teoria do salário à renda familiar e à diversificação do mercado. As indagações sobre o sujeito coletivo estão ligadas ao problema fundamental da análise social hoje, que é o da reconstrução conceitual do objeto social. De qualquer modo, elas implicam em reconhecer a necessidade de manter a ligação entre a análise conceitual e a que se refere ao real concreto histórico. Produção e consumo estão ligados à satisfação de necessidades básicas de sobrevivência, bem como à criação de margens de poder que separam o indivíduo de alguma estrutura de subordinação; ou que lhe permitem optar por outras, em que o consumidor é um agente social concreto e não uma abstração. Daí. a essencialidade da interação entre o plano histórico e o psicológico, que leva a ver o comportamento do consumidor como a combinação das opções atuais e da trajetória das preferências e opções de um determinado elenco de consumidores concretos, em que há substituições dos participantes desse elenco, bem como mudanças de posição de certas proporções deles. Obviamente, é uma compreensão do consumo que ultrapassa o ato da compra, portanto, que leva em conta os antecedentes da troca. Nessa perspectiva, a análise se desloca da troca abstrata para relações entre produtores e consumidores concretos; e levaria em conta as substituições no elenco dos produtores e dos consumidores, e no elenco dos produtos constitutivos de suas relações. Os comportamentos estariam referenciados pelo elenco de produtos. Por exemplo, o consumo de lazer coletivo nas grandes cidades está demarcado pela disponibilidade de equipamento urbano de uso público; e o uso adequado desse equipamento se faz quando há uma população urbana familiarizada com ele. Assim, não há como discutir comportamentos

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de consumidores ao longo do tempo sem levar em conta substituições de produtos e dos modos de consumi-los. A dificuldade de explicar o significado do consumo atual está, justamente, nessa necessidade de revelar essa fundamentação histórica das opções atuais de consumo. O modo de consumir sinaliza substituições nas características e nos modos de comercializar os produtos, que afetam, indiretamente, o modo de produzir, ao condicionar as previsões de demanda. Assim, o recorte de análise que divide a sociedade em consumidores e produtores evade a complexidade da estruturação social dos agentes em sua dupla definição, como pessoas e como participantes de diversos grupos, em diferentes qualidades. Pelo contrário, o realismo da análise mostra que não há uma separação real entre a pessoa que realiza compras e o empresário e o trabalhador que produzem. A alternativa de considerar somente o ponto de vista de quem produz e o de quem consome, no momento específico em que realiza uma destas funções, significa atribuir uma unidimensionalidade ao comportamento dos agentes, ignorar a interdependência de suas motivações, que sequer descreve aquela unidimensionalidade de fato, própria da sociedade econômica. A pretensão de reconhecer funções comportamentais desligadas dos vínculos entre pessoas e grupos, portanto, da realimentação entre produzir e consumir, significa encarar o comportamento dos grupos sociais como decorrente de uma racionalidade apriorística que não resiste à crítica da pluralidade cultural, nem ao confronto com a acumulação de observações empíricas. A ligação da racionalidade com o universo das práticas é o contraponto kantiano, hoje trabalhado por outros, como Habermas e Gadamer, é uma negação interna daquela racionalidade pura. Projeta, portanto, uma dúvida da cientificidade do conhecimento obtido mediante a demonstração formal. Naturalmente, há correspondentes questionamentos da consistência dessa linha do pensamento crítico, que pretende juntar a raíz prática da razão com sua imanência prática. São questões do desenvolvimento conceitual dessa visão do tema; e relativas à ligação entre esse movimento conceitual e o mundo da realidade, ao qual pertencem as práticas. Tudo isso se reflete no modo como se valoriza o universo do empírico. Certamente, não se pode valorizar a análise empírica sem admitir que seus resultados se acumulam; e que essa acumulação de observações modifica as condições em que se realiza a análise científica. No entanto, a acumulação de experiência na análise empírica não necessariamente é igual à acumulação de resultados, dado que grande parte das pesquisas não chega aos resultados que pretende. Assim, é preciso distinguir as diferenças entre uma análise sincrônica desinteressada das substituições do consumo; e uma análise diacrônica, que as tem como fundamentais, já que só elas explicam as reações em cadeia, no tempo e no espaço, que situam os novos atos de consumo. Mas, como superar a separação entre essa análise sincrônica dos fatos de substituição de formas de consumo? No raciocínio desenvolvido pela análise econômica ortodoxa, esse isolamento está, tacitamente, justificado pela presumção de que há equivalência de disponibilidade de recursos em cada uma dessas duas situações, seja, que há condições equivalentes de escassez para as duas.

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Mas esse pressuposto envolve delicadas implicações teóricas, que não podem ser ignoradas, porque ligam a questão genérica da escassez a questões específicas de composição dos sistemas de recursos e a sua relação com a trajetória da formação de capital. Uma coisa são as condições atuais de escassez, resultante de um determinado elenco de produtos. Outra, é uma sucessão de condições de escassez de um ou de vários produtos, ao longo do tempo. A escassez atual condiciona, de fato, a futura; enquanto escassez futura condiciona as opções próprias do quadro atual. A hipótese da escassez absoluta, de um ou de vários produtos, significa a incomparabilidade entre esses dois dois planos: demonstra a falácia daquela suposição de equivalência entre situações de escassez. Ao limitar-se ao horizonte de problemas de escassez relativa, a teoria marginalista esquiva esses outros problemas, manejando o pressuposto simplificador de que os recursos são, em princípio, renováveis, já que sempre há substutibilidade entre eles.7 Mas as substituições ocorrem ao longo do tempo, em seqüências, que é como acontece o desgaste dos recursos, seja, quando a capacidade de produção tem que ser reposta; e as necessidades se reajustam, acompanhando a diversificação do sistema de produção. Com a retomada da visão de conjunto do mundo físico, a partir da perspectiva ecológica, a aplicabilidade do conceito de escassez relativa torna-se mais restrita; e as teorias baseadas nela ficam sujeitas ainda a mais restrições. Escassez relativa significa admitir que há quantidades inesgotáveis de recursos sequencialmente utilizáveis; ou que há uma perfeita substutibilidade entre todos os recursos, entre os diversos usos que se lhes dá em cada sistema de produção. Aceitar esses pressupostos implica em incorporar novos tipos de erro, daqueles que só podem ser percebidos numa análise dinâmica. Por extensão, leva a modificações nas listas de produtos e de matérias primas, portanto, atingindo os usos dos recursos. Em contraste, coloca-se o conceito de escassez absoluta. A possibilidade material de escassez absoluta, seja, de que determinados bens não podem ser repostos em tempo útil, significa que uma determinada seqüência de incidentes de esgotamento de recursos, resulta em certo perfil de crescimento do produto social, com alterações em sua composição. Por extensão, implica numa sucessão de restrições próprias do trajeto de transformação do sistema de produção. Noutras palavras, reconhecer que todos os recursos tendem a esgotar-se, portanto, que a substutibilidade entre eles não é garantida, significa reconhecer horizontes finitos de recursos. Tais horizontes de recursos, por extensão, implicam em certas trajetórias de renovação técnica e de emprego, bem como em concomitantes restrições para a realização de novos investimentos. Na medida em que os custos sociais atuais dos recursos dependem de alterações dos usos dos produtos, não há como evitar que os investimentos sejam decididos com perspectivas de escassez de recursos e não de substituição de técnicas. Por isso, a análise econômica que se organiza em relação com combinações concretas de recursos tem que levar em conta que há situações em que não há continuidade nas variações de custos; e outras, em que os sistemas de

7 No essencial, é um pressuposto equivalente ao de movimento sem atrito, ou de plena reversibilidade, próprio da mecânica newtoniana. É contraditório com o pressuposto de que a formação social – econômica e cultural – muda sem jamais voltar a suas formas anteriores.

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produção simplesmente não podem realizar certos tipos de produção. No essencial, que as futuras combinações de usos de recursos dependem das atuais. Na prática, isso significa que os sistemas de produção operam de modo inconstante em relação com o modo como se recompõe ao longo do tempo. Também significa que os problemas de escassez não se distribuem homogeneamente ao longo do tempo; e que os horizontes de recursos - em diversidade e em quantidade - variam de modo intermitente. Isto significa que as generalizações acêrca dos encadeamentos das diferentes linhas de produção ao longo do tempo estão submetidas a uma sucessão de restrições; e estas restrições funcionam como limites da amplitude das variações na progressão de usos de recursos e de inclusão e exclusão de trabalhadores. A partir desses elementos, a principal inferência cabível é que o conceito de sistema de recursos passa a refletir a interação entre as diversas transformações originadas no meio físico e as originadas no meio social, em que os aspectos técnicos das combinações de quantidade e qualidade de recursos são regulados no plano da organização social da produção. Nessa nova leitura da composição do capital entende-se que os usos de recursos dependem duplamente dos sistemas de produção - em sua forma atual e nas implicações de sua trajetória - e não podem ser apenas material para um segundo momento de análise, sem efeitos práticos imediatos. Pelo contrário, a análise dos usos de recursos deve ser colocada como um problema subordinado ao das alterações nos sistemas de recursos, portanto, como um tema a ser examinado, simultaneamente, como parte de processos físicos que incorporam as pressões aos seus mecanismos próprios de reprodução. Essa postura teórica requer uma operacionalização da noção de combinação de recursos, que por sua vez requer o prévio esclarecimento desses aspectos, seja, das interações entre os usos de recursos e os horizontes de sua reprodução. Noutras palavras, a questão da escassez deve ser colocada de modo a ligar o lado físico e o social: a estruturação social com a reprodução do sistema de recursos físicos. Assim, os problemas de escassez em cada sistema de produção devem ser colocados, simultaneamente, à escala dos sistemas de que os recursos são parte e à escala das possibilidades de transferências dos recursos de um sistema para outro. Por isto, trabalhar com o pressuposto de escassez relativa como única opção no sistema de produção; e com a continuidade das opções de produção e de consumo ao longo do tempo, enquanto surgem novos produtos e novas oportunidades, é uma tendenciosidade doutrinária insustentável. Essa abordagem contrasta com a evidência empírica de que a acumulação de capital tem-se feito mediante uma sucessão de substituições de produtos, cuja produção e cujos usos articulam usos de recursos, sem considerar quais custos de substituição. Não há como reduzir a acumulação a uma composição invariante de capitais nem ignorar que ela incorpora novas tecnologias. Tal acumulação incorre, sem dúvida, de modo aleatório e progressivo, numa sucessão de esgotamentos de diversos recursos.

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Esse pressuposto de escassez relativa também desconsidera as implicações conceituais da inevitabilidade dos nexos da atividade econômica com outros aspectos da atividade social, tais como da atividade cultural e do lazer em seu sentido mais amplo. Tradicionalmente, a economia reconheceu a precedência dos dados da população. Mas continuou ignorando os pressupostos demográficos,tanto como os de psicologia, da sociologia e da história, chegando a uma posição insustentável, sob pena de reduzir-se a economia a mero jogo formal de certezas, sem critérios de veracidade. Este isolamento, pois, identifica-se com a prática de uma análise positivizada, mas destituída de fundamntal factual, ou seja, que não tem meios para desenvolver sua própria crítica.8 A materialidade econômica da atividade social compreende o processo de trabalho e o da transformação de capital, dentro de determinados limites mínimos de restrições de povoamento. Estas restrições permanecem, mesmo quando dissimuladas pelo enriquecimento. Por isto, a compreensão atual de formas de produção e de formas de consumo, ao desembocar na questão ecológica, essencialmente, reconhece que não há acumulação econômica que não signifique um custo social em desgaste de recursos,portanto, expõe a finitude do processo. A interpretação de Marx, acerca da relação entre infra-estrutura e super-estrutura, focaliza no significado desse processo, em termos de produção de poder, deixando aberta a porta por onde passaria Gramsci, no tratamento dos conteúdos da super-estrutura. Focalizar no processo social, desde um lado ou do outro, permite perceber determinados conjuntos de fenômenos; mas os conjuntos das observações feitas de um lado e do outro, não necessariamente abrangem a totalidade do relacionamento entre o lado material e o não material do processo. Partes desse conteúdo podem ficar ocultas nos ângulos mortos de uma e outra perspectiva. Logicamente, as determinações do conjunto dessas relações têm que ser estabelecidas a partir da leitura do conjunto e não da de suas partes. O inconveniente conceitual dessa separação entre infra-estrutura e super-estrutura é que ela focaliza na diferenciação entre o que pertence à esfera direta da produção e o que pertence aos seus condicionamentos indiretos, portanto, naquelas relações de causalidade que são próprias, respectivamente, de uma e da outra. Por oposição, deixa obscuras aquelas outras relações que ligam as esferas da produção direta e da indireta. No entanto, aí estão as explicações das mudanças nos comportamentos dos agentes da produção, tanto dos detentores de capital e patrimônio como dos trabalhadores de todos os tipos. As zonas de nitidez entre esses dois campos indicam onde estão aqueles que vivem permanentemente em condições contratuais de participação estável na produção; e os que sempre estão em condições precárias. Mas as zonas de imprecisão entre esses dois campos abrangem todos aqueles que transitam entre as duas situações, eventualmente ou estacionalmente. E a variabilidade entre os dois campos muda, entre os diversos sistemas de

8 O papel do fundamento da esfera factual na determinação da validade das proposições no campo social é um pleito levantado por Habermas (1997) numa discussão do "direito como categoria da mediação social entre facticidade e validade" , que prefiro reconsiderar na esfera do acontecer histórico.

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produção ao longo do tempo, registrando as condições econômicas em que se dá a mobilidade social. Questões de uma teoria do saber

O saber é a inconsciência de ignorar Fernando Pessoa

Comecemos por pensar que o saber é o conhecimento não censurado pelas regras da civilização. A noção de saber compreende a da superação de erros. Nas páginas finais da “Fenomenologia do Espírito”, que tratam do saber absoluto, Hegel abriu o caminho para uma concepção do saber que liga o universo do histórico com o do psicológico. Com isso colocou, como tema necessário de uma teoria do saber do social a inter-relação entre o plano da objetividade dos fenômenos e o da subjetividade das reflexões. Adiante, a polaridade Marx-Weber poz em frente a subjetividade contida no movimento da objetividade histórica e da subjetividade, que em cada ponto-momento abrange as possibilidade de objetividade. Por sua vez, a polaridade Marx-Freud, com o tratamento do movimento das sociedades e da psiquê, marca uma ruptura com a visão cartesiana-newtoniana do mecanicismo; e mergulha naquela visão de Hegel do saber. O pensamento teórico que se ocupa do saber diverge, portanto, desde sua origem, do pensamento pautado pela formalização. Torna-se uma busca reiterativa do real, visível ou encoberto, na realidade social. Vê-se, portanto, como o saber é necessário à ciência social. A ancoragem na realidade é um pré-requisito da análise social. Para ela, é um dado que o mundo aí está, independentemente de que este ou aquele sujeito o percebam, ou participem dele. Quem o percebe é uma pessoa concretamente constituida e duplamente identificada por sua inserção social e por sua formação individual, porém jamais um sujeito anome, sujeito de um saber e de um discurso, mas alguém cujo saber, transformado em fazer, pode ter efeitos acumulativos sobre outros. A possibilidade de compreender uma primazia do econômico sobre outras faces do social depende, justamente, da compreensão desse fazer, de seu duplo significado, como meio de sobrevivência e de conhecimento do mundo. O plano econômico do conhecimento é, portanto, uma base relevante para colocar os temas fundamentais no eixo sobrevivência-poder, bem como, para distinguir que não há não sobrevivência que não tenha efeitos acumulativos. Sobrevivência e poder entemdem-se a partir do controle de alimentação e abrigo; e ambos significam algum tipo de controle sobre territorialidade; e alguma organização social. Estas duas referências respondem pelo sentido de finalidade das ações no plano econômico, que sustentam aquela compreensão hegeliana da economia: uma ciência de carências.

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Assim, a revisão das inter-relações entre o plano econômico e o político do poder revela os aspectos culturais do processo econômico, seja, mostra o caráter acumulativo dos relacionamentos entre os agentes da produção, o modo como suas relações se reproduzem no plano da produção e no de sua institucionalidade. O essencial é que essas relações são, sempre, parte do funcionamento de determinados sistemas concretos; e que sua repetição em cada um deles reverte em sua estrutura institucional, com seu correspondente significado político. E em cada sistema, em cada momento, as ações têm uma institucionalidade que está ligada ao seu referencial psicológico. A visão de totalidade da atividade social tem, portanto, que refletir aquelas referências necessárias para perceber suas dimensões histórica e psicológica; e as ligações entre elas. A totalidade histórica em Marx abrange as diversas dimensões da formação social. Mas, para isto, é preciso expor os dogmas do conhecimento científico, contidos na formalização da análise econômica ortodoxa, seja, rever a conceituação de saber. Isso significa colocar a questão do conhecimento além do problema epistemológico da constituição do pensamento científico; e revelar o significado ontológico do conhecimento do social, no qual contam o envolvimento do sujeito com a realidade que estuda, e o reconhecimento de que este conhecimento é uma expressão societária, que reverte no modo de participação na realidade a que corresponde. Quer dizer, que no campo do social todo problema de conhecimento de um fundamento gnoseológico. Desse modo chega-se a dois níveis de discussão de uma teoria do saber, que a ligam ao seu sentido de finalidade. Aquele nível em que se substitui a posiçào do sujeito frente ao objeto por aquela outra de imersão do sujeito no objeto; e aquele outro em que se discute o significado ontológico da praxis, na relação entre o conhecimento teórico e o técnico. E em ambos casos, há uma questão que não pode ser ignorada. Como já mostrou Aristóteles, não há como desenvolver um conhecimento técnico que não tenha relação com uma teoria; e o signficado teórico da técnica está ligado à questão mais ampla de sentido de finalidade e da intencionalidade do conhecimento. As maiores diferenças entre os questionamentos sobre o saber decorrem dessa diversidade de origens: da perspectiva histórica, que relaciona a cognoscibilidade com a percepção do objeto em sua integralidade, que reconhece a intencionalidade das manifestações do objeto de análise em sua condição de sujeito; e da perspectiva formal, que coloca a sustentação do conhecimento em demonstrações formais, indiferentes à circunstância histórica dos fenômenos. A busca de um saber sustentado na reflexão do social denota o esforço de uma teoria do social que reconheça, explicitamente, a identidade da relação sujeito-objeto, portanto, que se desenvolva de modo independente daquelas outras ciências em que essa identidade não é necessária ou não é possível. Essa é uma peculiaridade do saber do social, onde a realidade é o relacionamento do sujeito com o objeto, onde o objeto é potencialmente sujeito, onde a demonstração não pode ficar restrita ao campo formal. Em outras palavras, o saber do social requer mais rigor que o que não lhe atinge; e ao mesmo tempo, em que revela a pluralidade de

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condições em que o saber se forma, indica um nível mais genérico de discussão do processo do saber, construido sobre essa pluralidade. A pluralidade dos problemas de consistência, que se encontra todas as ciências, não elimina a questão teleológica da relação entre os modos de formação do saber e os de sua formalização. Impõe-se, portanto, um esclarecimento sobre o manejo da relação sujeito-objeto no plano metodológico da ciência social. Finalmente, a consistência surge do controle sobre o processo de formação do saber e não da descrição de situações de saber. Uma vez que se reconhecem os conteúdos psicológicos do sujeito e do objeto, em que o sujeito tem que reconstruir conceitualmente o objeto, infere-se que o saber se forma numa relação móvel, entre sujeito e objeto que é própria do meio social em que eles atual e não pertence ao contexto atemporal da demonstração. Por isso, colocam-se, lado a lado, os problemas de consistência conceitual e de consistência de demonstração, vendo-se a formação dos conceitos e a da demonstração, como interagem e interdependem. Esses problemas reaparecem, quando se examina a intencionalidade incorporada da análise, em especial, no relativo à análise comportamental. Por exemplo, a formação da análise comportamental, a partir de comportamentos de indíviduos, em vez de desempenho de grupos, pressupõe uma concepção de individualidade, que transfere para o âmbito microscópico certas concepções de individualidade e de cidadania, que não exprimem a realidade das sociedades contemporâneas. Assim, em quaisquer comparações com outras ciências não diretamente condicionadas pelo social - mesmo nas ciências humanas - supõe-se um prévio reconhecimento das peculiaridades de cada uma delas, especialmente no relativo à identificação do sujeito e do objeto do conhecimento. Mas, a sociologia e a psicologia enfrentam problemas inicialmente opostos neste particular, já que a primeira trata de um conhecimento do sujeito, e a segunda do conhecimento do objeto. Nenhuma, no entanto, prescinde da imersão do sujeito no objeto. Daí, a necessidade de questionar aquela postura de teoria do saber, que estabelece princípios genéricos de cientificidade, independentes da experiência de cada tipo de conhecimento, na formação da organização metodológica e institucional da ciência. De resto, essa postura foi, em tempo, denunciada por Habermas, como reveladora do condicionamento causado pela progressão de interesses que se acumulam na formação da ciência. Ao entender que o saber provém da pluralidade de experiências, que antecede os problemas de legitimação do conhecimento - vê-se que não há, realmente, porque excluir o significado da pluralidade. De fato, a delimitação do saber reconhecido pela legitimação da ciência, é um controle social, que serve para marcar os conteúdos culturais incorporados nas instituições, e para descartar ou restringir, a esfera de participação de formas de saber, protegendo as formas já oficializadas, tal como acentece com a medicina de bases não positivistas. Há uma ligação tênua porém resistente, entre a legitimação científica e o controle dos mecanismos de oficialização, que se manifesta em padrões de saber, bem como em controle dos meios de comunicação que

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legitimam saber. Mas onde estaria o controle da legitimação? Como se poderia medir, restringir ou contrapor o poder que ela representa? Independentemente das colocações que estabelecem os termos atuais do estudo da teoria da ciência, essa análise da perspectiva científica do conhecimento deve chegar a aspectos mais específicos da inter-relação entre teoria e método no campo das ciências da sociedade, como passo prévio para compreender quaisquer transformações por que elas passem, seja nos movimentos de expansão, de renovação ou nos de bloqueio do conhecimento que eles comandam. Todos os esforços de renovação das ciências humanas se defrontam, sempre, com um material historicamente imposto, nunca com um material escolhido por conveniência da análise. O significado mais profundo de crise do conhecimento vem daí, de tratar de temas inevitáveis e inadiáveis, que levam a reflexões no campo das ciências humanas, que atingem o núcleo metodológico do saber científico, situando-se acima da expressão técnica das ciências, indicando as referências históricas e psicológicas com que se colocam as questões técnicas de produção e de consumo. Em Economia, isso se traduz numa opção de programa de trabalho, já que a depender dos objetivos atribuidos à análise econômica, ela deverá resolver problemas de eficiência na produção e no consumo; ou ocupar-se das necessidades sociais, seja, de problemas pertinentes ao eixo produção-distribuição. Noutras palavras, deverá adotar o programa de trabalho proposto por Lionel Robbins, ou reconhecer a problemática proposta por Ricardo. Obviamente, são questões que transcendem o escopo técnico da economia; e atingem diferentes compreensões do substrato ético da análise social. Negar a influência de alguma ética no modo de analisar uma economia significa, em última análise, escolher uma ética que não se expõe; e circunscreve-la ao tratamento de problemas já formalizados, ou subre cuja formalização não há dúvidas. A atitude da análise ortodoxa tem sido de receber as regras de formalização da matemática e da estatística; e de limitar-se a interpretar o problema de opção contido em cada um deles, sem questiona-lo. Em última instância, toma o processo de trabalho sem questionar suas interdependências sociais e técnicas; e delimita os problemas teóricos ao âmbito dos problemas de operacionalidade da análise. A preocupaçào com o tema do sentido de finalidade, ou com o reconhecimento de que a lógica do objeto em economia pode diferir da lógica do objeto em matemática, implica em questionar o significado explicativo da formalização e a própria operacionalização. Há, portanto, um problema específico a considerar, entre a compreensão do processo econômico e a daqueles temas que se reconhece como econômicos, cuja análise leva a resultados diferentes dos esperados em outras ciências sociais. Tal identificação foi percebida, primeiro, no processo social da produção, antes que trabalhada pelo lado do consumo. Dizia Hegel, que “o trabalho do indivíduo para satisfazer suas necessidades é tanto uma satisfação das necessidades dos outros como de suas próprias; e só alcança a satisfação das necessidades dos outros, como suas próprias necessidades pelo trabalho dos outros”9 . A noção marxiana de trabalho 9 G.W.F.Hegel, Fenomenologia del espíritu, FCE, Mexico, 1976.

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socialmente necessário supõe uma relação entre a quantidade de trabalho necessária para reproduzir a capacidade de produção da sociedade, e a quantidade de trabalho necessária que reverte aos trabalhadores em seu conjunto. Isto quer dizer que o trabalho abstrato é a ligação entre a contribuição atual que os trabalhadores fazem para que a sociedade aproveite seus recursos atuais, e o significado criador do trabalho, pelo que ele induz a criação de nova capacidade de produção. A relação entre os trabalhadores concretos e o trabalho abstrato é dupla, porque compreende o engajamento dos trabalhadores atuais na produção; e indica como a sociedade civil se engaja na economia, tacitamente estabelecendo condições ambiente para os trabalhadores concretos. Observa-se que em cada ponto e momento na história o trabalho abstrato representa um espectro de formas de produzir com a determinação de usos de tempo, que já foram claramente identificados por Marx. Até aí, essas colocações não significam compromisso algum de trabalhar com a inter-relação entre produção e distribuição. Tampouco significam que se deixa de levar em conta o engajamento de pessoas e de grupos sociais na produção, com as condições de vida dos trabalhadores e de mobilidade dos diferentes grupos formados em torno da produção e do consumo. Os modos como os grupos sociais participam da produção e do consumo correspondem, necessariamente, a certas pautas de distribuição da renda real que compreendem disponibilidade de renda monetária e acesso a formas concretas de consumo. A resposta mais óbvia, é que os problemas a tratar são os que não podem ser evitados nem adiados; e que a postura de método terá que ser avaliada por sua capacidade para representar os problemas e mostrar como eles atingem a sociedade. Noutras palavras, reconhecer problemas é um movimento cognitivo e de método, que deve ser consciente e explícito. Assim,. a revisão da relação teoria-método torna necessária uma recuperação da questão científica de método. É preciso enfrentar problemas de objetividade e generalização de conhecimento, bem como de situar cada problema no conjunto de que ele é parte, na produção e no consumo. Não tem sentido tentar desmembrar problemas para resolve-los, porque o movimento da análise deve ser o inverso, de trabalhar com a relação entre cada problema e o contexto do sistema de produção de que ele é parte. Essa é uma forte razão para reconsiderar o poder explicativo da dialética no campo social. A visão dos temas sociais em termos de sua formação - gênese e estrutura - capta essa questão. Acompanhar o inter-relacionamento entre forma e conteúdo, em vez de trabalhar sobre a separação entre os dois,10 leva a um modo de tratar os sujeitos historicamente determinados, portadores de experiências e subjetividade, ligando suas ações com sua intencionalidade e com as condições concretas em que vivem. Há, portanto, uma questão central, relativa à identificação do sujeito e do objeto da teoria social. Nesse sentido, é essencial a presença do sujeito coletivo e dos objetos coletivos de análise, diferente dos pseudo-coletivos a que se chega pelo artificío de supor que uma pluralidade de 10 A relação forma-conteúdo está realmente em Aristóteles – Metafísica – como de interação.

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indivíduos é o mesmo que um coletivo. Está clara, a necessidade de distinguir entre eu e tu e nós! A identificação do sujeito coletivo equivale à reconstrução do objeto social de análise, seja que se identifica o sujeito coletivo pela consciência de sua inserção no mundo real, ou mediante a participação do homem nas práticas de sobrevivência. O sujeito coletivo é o nexo entre experiências anteriores e atuais. Daí, a importância de trabalhar com nexos temporais genuinamente históricos entre passado e futuro. As razões de método Ao reconhecer a necessidade de tratar a questão da desigualdade, a teoria social se defronta com um problema de método. Abrir questão sobre a pluralidade do objeto da análise equivale a abir questão sobre a pluralidade do sujeito que analisa, bem como reconhecer a importância da posição do observador para suas observações. Quem analisa é alguem identificado com o ponto de vista do capitalista ou do trabalhador, do modernizado ou do arcaizado, do urbano ou do rural, das sociedades beneficiárias das transformações ou das que são relegadas por esses movimentos? Qual o significado da análise social que omite esses temas, quanto pode ela aspirar a uma cientificidade que a imunize das tendenciosidades injetadas pelos interesses na reflexão? A realização de uma tarefa como essa depende do prévio tratamento dos seusaspectos de método, que estào ligados aos de racionalidade. Concretamente, há um problema relativo a juizos de valor não explicitados pela análise econômica, que afetam sua estruturação lógica, cujo abandono faz com que essa análise não registre as circunstâncias materiais em que se realiza. Finalmente, essa atitude acerca dos juizos de valor leva a resultados supostamente científicos, mas não trata objetivamente os valores do meio social analisado. A questão de valores está ligada à continuidade da acumulaçào, portanto, ao nexo entre as defesas de interesses e o movimento objetivo do capital. Assim, a menos que o raciocínio econômico propriamente dito - que vincula necessidades e satisfações - controle a progressão dos riscos com que trabalha, é preciso supor que a separação entre as propostas de método e o reconhecimento dos conteúdos é uma limitação do aprofundamento no conhecimento dos problemas que se enfrenta. Trabalhar em temas tais como a perpetuação da tendência à desigualdade, ou como as inter-relações entre a reprodução do poder no plano econômico e no político, torna necessário penetrasr nesses problemas de método, principalmente, para tratar da conjugação dos componentes históricos com os psicológicos. Significa trabalhar com a justaposição dos mecanismos de poder que correspondem à formação da individualidade, com os que estabelecem a posição dos indivíduos nas coletividades. A teoria tem se situado na perspectiva do capital, que a leva a focalizar em aspectos da operacionalidade do capital constituido na órbita das empresas, desdenhando de considerar a gestão de capitalistas individuais no mercado financeiro, ou a ignorar a perspectiva da

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qualificação do trabalho. A influência da escolha de perspectiva estende-se à dos problemas a serem analisados e à do método a ser usado. Em outro desdobramento, o foco na operacionalidade leva a buscar respostas certas, independentemente de sua veracidade. A conseqüência imediata dessa atitude é separar os problemas dos processos de que eles são parte, com o que, segmentar os campos de estudo e análise. Significa, também, que se torna indiferente colocar os problemas em contextos atemporais ou em contextos espaço-temporalmente determinados. Daí, a maior facilidade operacional da análise instantânea favorece a análise estática e a prevalência de pressupostos mecanicistas. No entanto, há uma contradição em pretender resolver os problemas de compatibilidade entre o que é plausível e o que é verossímil na análise social num universo atemporal, que por sua natureza nega o que há de essencial no social. Exceto por situações em que o tempo é irrelevante, não há como aceitar que a certeza da análise estática seja verossímil. A dificuldade aí, é que os critérios de verossimilhança não são parte do universo atemporal; que, em conseqüência disso, qualquer juízo sobre a relação entre certeza e verdade não é consistente. Mais ainda, tanto como os critérios de certeza dependem da consistência da análise, não pode haver inconsistência entre o critério de seleção e ordenamento de hipóteses e os procedimentos de verificação. Volta-se, portanto, à diferença entre a consistência formal e a material, tomando-a como uma característica da representação usada na análise, isto é, do tipo de análise estática, não dos fenômenos representados nela. Por sua vez, a colocação de problemas de transformação social, seja, de dinâmica, desligados da referência da análise instantânea, torna necessária uma revisão de categorias, que se reflete no modo de organizar a análise. Percebem-se, assim, os inconvenientes da generalização incontrolada dos resultados alcançados, e os resultantes da acumulação de distorções na escolha dos problemas a serem analisados. A generalização irrestrita é própria das ciências da natureza nas quais se destacam a lei da gravidade de Newton, a teoria da relatividade de Einstein, a teoria da incerteza de Heisenberg e a teoria das estruturas dissipativas de Prigogine. A historicidade do campo social impõe limites às generalizações vendo-se como a teoria da divisão do trabalho formulada por Adam Smith passou por qualificações decisivas como as de Marx de vê-la como uma teoria do controle do trabalho e a ser colocada no plano internacional.A busca de uma generalização irrestrita dos resultados da análise, leva a impor critérios de certeza antes que de veracidade, seja, em parte a diferença entre a teleologia implícita na análise marginalista e a explícita dos históricos. Por extensão, impede que se discuta a veracidade dos resultados, já que os problemas explicativos da análise se reduzem aos problemas lógicos da demonstração. Essas limitações das condições em que se realizam as demonstrações tem muito a ver com a compreensão das categorias de forma e conteúdo, que na epistemologia ortodoxa estão separadas. A percepção da relação forma-conteúdo, como de dois termos separados, impede que se vejam as transformações de um e do outro, de como o conteúdo conduz a alterações de linguagem, afetando a comunicabilidade. Focalizar na separação desses dois termos, em vez de ressaltar seus nexos, significa presumir que a escolha dos problemas e dos métodos são

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mutuamente indiferentes. Mas é uma presunção insustentável, quando se pretende que os resultados da análise sejam aplicáveis, isto é, que suas certezas tenham alguma ligação com a verdade.

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2. Condições sociais da formação de teoria “ A filosofia tenta pensar o incondicionado além da positividade, indo além da existência das ciências que prestaram juramento sobre objetos separados, e que cindem a coisa e o método entre si ... “ Theodor Adorno Separação e unidade entre teoria e método A formação de um corpo teórico depende da relação entre teoria e método cuja condução em si revela opções de teoria do conhecimento, seja ela entendida como abrangendo todos os saberes historicamente formados – gnosiologia – ou tratando dos saberes reconhecidos como científicos, isto é, como a epistemologia oficializada. A opção de trabalhar no plano da gnosiologia implica em um compromisso com a realidade do ser social em sua completude que é a linha de pensamento representada por Nicolas Hartmann e Georg Lukács, representando diferentes rebatimentos da obra de G.W.F. Hegel. Nessa visão o processo de conhecer é uma capacidade do ser social, pelo que, em todo caso, está referenciado pela história. A proposta de trabalhar método como um campo de conhecimento separado de teoria é uma característica dos Tempos Modernos quando esse foi um modo de marcar a secularização da ciência mediante a construção um conhecimento separado da teologia. Na prática, essa busca de um método anterior às ciências ficou na disjuntiva de se manter como um ato da filosofia ou de se manter como um método das ciências da natureza que se apresenta como válido para todas formas de conhecimento. Repetidamente, volta à baila a questão relativa à representatividade do método, isto é, como se apresenta a relação entre a identificação do objeto de estudo e o encaminhamento de método. A adesão da teoria económica ao positivismo resultou em que ela reduziu os problemas de método aos aspectos operativos, tacitamente considerando como desnecessários os questionamentos do sentido de finalidade do método. É o que se vê em autores como Marc Balugh (1988) e Joan Robinson (1965) que classificam a teoria económica como uma caixa de ferramentas. Como no campo social o objeto de estudo é o próprio corpo vivo da sociedade, enfrentam-se desafios maiores que os das ciências da natureza, primeiro por não se poder omitir o fator memoria no conhecimento que é socialmente internalizado e segundo por ter que reconhecer que a relação entre o pesquisador e o pesquisado é sempre dual e envelve a reflelxividade desse relacionamento. Assim, a separação entre sujeito e objeto, que foi essencial na construção da filosofia do Iluminismo, revela-se artificial. Esta é a força da escolha da dialética como método para trabalhar o campo social. É o caminho de método que reconhece a circularidade da relação entre sujeito e objeto. O desenvolvimento do aparelho de análise corresponde ao desenvolvimento da complexidade do mundo social. O transitório e o positivo na teoria social

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A constituição de uma perspectiva crítica da formação de um pensamento científico no campo social, identifica-se com o reconhecimento da necessidade de uma independência de critério da reflexão teórica, frente às referências da formalização da análise. Por extensão, identifica-se, também, com a ligação desta independência de critério com a objetivização de conhecimento em que ela se reflete. Assim, sabemos, a razão pura kantiana é uma afirmação de liberdade. Pensar criticamente será colocar-se além dos limites do conhecimento estruturado e da forma da análise utilizada. Por extensão, significa submeter a exame a cientificidade dessa análise. Por isso, para a visão crítica da ciência a noção de limites refere-se a algo que é parte do desafio atual do esforço de saber, mas que está, sempre, para ser superado. Como conseqüência desse ponto de vista, o movimento da crítica consiste em enfrentar limites, seja, de demarca-los, supera-los e eventualmente, de visualizar outras possíveis situações de análise. O essencial nesse processo intelectual é ter claro que todas as formas de análise são pontos incidentais no desdobramento do raciocínio científico, devendo, portanto, ser consideradas como limites potencialmente superáveis.A razão deve ser livre nos temas e nas formas de pensar. A partir daí, trata-se de ver o universo social como um ambiente em transformação, onde se superam limites formais; e onde mudança e estabilidade se alternam e complementam. Uma teoria social crítica deve ocupar-se das tensões decorrentes dos movimentos de estabilização e de mudança, tal como elas se manifestam em condições históricas concretas de relações entre grupos organizados, de modo mais ou menos contínuo, ou de modo mais ou menos regular, afetando sua institucionalidade e sua capacidade para criar e alterar instituições. Não se trata de coletividades estruturadas que não mudam, que podem ser tomadas como estáticas, nem de processos de mudança que se realizam sem âncoras institucionais e sem gerar efeitos institucionalizantes. Pelo contrário, trata-se de trabalhar com a formação histórica dos coletivos que se tornam portadores de cultura e que, nessa condição, constituem-se em sujeitos das experiências das sociedades.1112 A pluralidade de versões - as convergências e as divergências - na formação do conceito de crítica, leva a destacar as contribuições do grupo de Frankfurt nesse campo, como um ponto de inflexão na visão contemporânea desse assunto. Horkheimer estabelece o estatuto de uma ciência social crítica, que se forma sobre diferenças. Diferenças que se manifestam nas relações que têm lugar no interior de cada sociedade e entre sociedades. O desenvolvimento dado por Adorno a essa questão,13 focaliza no imperativo da realidade. É a realidade que dá sentido às idéias fundamentais. Aí, a crítica é o movimento da razão sobre si própria, enquanto ela se compenetra de sua própria formação. Será, portanto, a interação da razão com sua situação histórica, que contrasta com aquele empirismo que não transcende das inferências indutivas para a construção de proposições mais amplas, que sustentem raciocínios dedutivos. Tal como 11 Em seu A constituição da sociedade, Anthony Giddens trabalha com a situação espaço-temporal da sócio-psicologia, focalizando nos processos formativos da individualidade, desde a infância. Modus in rebus é uma abordagem que se coloca em perspectiva análoga à de Hegel na Fenomenologia do espírito. Pergunta-se, entretanto, porque essa explicação não reconhece a ambiência histórica da individualidade? 7 Theodor Adorno, La dialectica negativa, Taurus, Madrid, 1978

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já se encontra em Aristóteles, a indução é um movimento subordinado no desenvolvimento do raciocínio lógico e não substitui nem supera a abrangência da lógica dedutiva. Surge daí um questionamento de método, que interessa à teoria econômica constituida, com seu conteúdo marginalista e com seu correspondente problema de demonstração.Que se entende aí como fundamento empírico? Referências a situações aleatoriamente escolhidas,ou referências históricas a situações pertinentes àquelas que se analisa? Que garante essa pertinência, senão a historicidade do objeto? A qualidade de pertinência da análise, reivindicada por Myrdal (1968) só pode ser julgada pela visão critica da realidade. mediane uma distinção entre quais temas não se pode deixar de tratar, quais podem ser adiados e quais outros podem ser ignorados. A combinação de procedimentos dedutivos e indutivos, bem como dos aspectos racionais e dos empíricos da análise, implica na necessidade de controle do encaminhamento da análise, para torna-la significativa para controlar erros e interpretar problemas. Simplesmente, significa que no campo social a análise tem, necessariamente, que tratar de experiências, mas que, como disse Kant, tem que estabelecer as referências com que trata as experiências. Assim, a perspectiva crítica valoriza o contacto do sujeito com o objeto, como o mecanismo que leva à formação do sujeito, como portador de experiência e como depositário de conhecimento tradicional. Nesse sentido, o conhecimento crítico traduz-se numa perspectiva de conhecimento em que a formação do saber é um movimento no qual a compreensão do objeto leva a correspondente auto-compreensão do sujeito, tendo como resultados colaterais, a percepção das condições necessárias do conhecimento e os limites em que ele se encontra. Daí, ser necessário estabelecer exigências acerca do tipo de demonstração do raciocínio e de sua pertinência. O pré-requisito de independência de critério significa a valorização da razão como um atributo do cognoscente, que se manifesta como uma racionalidade no contexto social em que ele vive. Segundo Kant, é onde está sua independência de critério. É, portanto, uma razão no mundo, jamais uma qualidade abstrata, igual para todos os sujeitos em quaisquer circunstâncias. Noutras palavras, é uma racionalidade. O conhecimento tem que ser tomado em seu processo formativo e com sua positividade atual, que contém sua historicidade (Habermas,1968).

O saber segue, portanto, trajetos específicos de experiência, identificados em tempo e espaço, que são os percursos da experiência de sociedades específicas. Tais percursos, entretanto, denotam as condições concretas da formação do pensar racional em sociedade, onde a reflexão teórica é parte de um processo ancorado em contextos culturalmente definidos. Por isso, no campo social, o modo crítico de pensar trasuz-se numa crítica da aplicabilidade da análise lógico-analítica, cujos objetivos de certeza não estão ligados a critérios de verdade. Verossimilhança e veracidade, são parâmetros genuínos da análise; e não meras extensões de critérios de certeza. A veracidade está ligada ao estatudo de autonomia do objeto, enquanto a certeza transcorre unicamente no campo do sujeito. As referências de certeza podem ser estabelecidas sem relação com a consistência material dos resultados. Daí, que a preocupação com a aplicabilidade dos resultados se traduz em exigências de método no campo social, que

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obrigam a levar em conta as condições da formação do sujeito pensante, de sua psicologia e de sua inserção social. Por extensão, significa tomar a análise teórica como parte de um processo de formação de saber, cuja identificação cultural não pode ser negada, sob pena de criar falsas expectativas da confiabilidade de seus resultados. Assim, uma exigência essencial de método, compreendendo seu significado escatológico e operacional, é a reconstrução conceitual do objeto da análise. É o objeto que dá sentido ao esforço cognitivo, bem como que estabelece os requisitos a serem preenchidos pelo esforço de apreensão e cognição. O jogo de individualidade e coletividade na constituição desse objeto, sua densidade histórica, determinam o estatuto da ciência social, pelo que ela precisa saber, pelo modo como constroi seu saber e pelo modo como ele se afirma; e se distingue de outras modalides de saber. No âmbito desses objetos, é preciso reconhecer os componentes culturais e psicológicos, envolvidos nas práticas e na capacidade atual de organização. Mais ainda, a recuperação dos conteúdos psicológicos e culturais é parte do quadro objetivo de relacionamentos em que se realiza a estruturação social, tendo portanto o efeito inverso, de pôr limites objetivos à relativização histórica do perfil dos agentes, com seus comportamentos e sua ancoragem institucional. A incorporação dos conteúdos psicológicos e culturais põe em relevo a originalidade das experiências, a intencionalidade dos comportamentos, as mudanças de posição das pessoas entre os diversos papéis que desempenham na sociedade, a pluralidade de composição de grupos. Por extensão, leva a considerar a formação de classes, com seus limites e junto com o componente de desordem social, bem como as situações de inestruturação, reconhecendo que a acumulação de capital é concomitante com alterações no mercado de trabalho, ligadas com modificações no quadro de qualificação do trabalho. O reconhecimento desses condicionantes leva a examinar a funcionalidade dos objetos sociais na estruturação econômica das sociedades, o que significa examinar as condições de trabalho. Contra o desmembramento imediato do homem, causado por sua inserção na produção industrializada (Marcuse,1967), observa-se que é o mesmo personagem que trabalha, consome, disfruta lazer e opina, portanto, que se faz portador de uma determinada consciência, independentemente que os compradores de seu trabalho o vejam de modo unidimensional. No ambiente social em que se realiza a produção industrializada, são os elementos estruturantes externos à organização da produção, que levam à reconstrução do critério pessoal de identidade do homem. A crescente clareza com que se vêm as desigualdades de condições de participação na produção e no consumo, reforça esse aspecto de unidade da consciência individual com uma posição em determinados coletivos.

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A visão dialética da questão

“... o antiteticamente desenvolvido, não o constitui a estrutura do ser- em si, mas a sociedade antagonística” Theodor Adorno

A insatisfação com a análise econômica dos aspectos de permanência e mudança das estruturas sociais e das formas tecnológicas, que caracteriza os países periféricos maduros, deve-se, em boa parte, às dificuldades encontradas para captar as relações de causalidade que resultam no sub-desenvolvimento, bem como em desemprego e inflação. A análise econômica aperfeiçoou uma linguagem baseada no manejo de sucessões de hipóteses e em demonstrações formais, cujo núcleo de inferências só em parte é verificável empiricamente. Nela, os questionamentos da confiança na comparabilidade têm um papel secundário, porque a proposta de confiabilidade da análise depende, justamente, da generalização que ela suporta. Com isso, cavou-se um fosso na relação com as premissas das análises de tipo histórico, para as quais a comparabilidade é essencial. A revisão histórica da questão oferece as alternativas principais de refazer o trajeto da dialética, desde a arte da polêmica até a rejeição do absolutismo lógico. É uma perspectiva que se contrapõe à tentativa de extrair um núcleo operacional do corpo especulativo da dialética, que levou ao chamado realismo crítico. Trata-se, na verdade, de separar a dialética de seu significado ontológico, reduzindo-a a um simples jogo formal de contradições, indiferenciável da epistemologia ortodoxa. Mas a revisão dos elementos essenciais da dialética, isto é, daquele conjunto de conteúdo e forma que a identificam como um campo de interesse, aponta ao sentido de finalidade proposto por Hegel, que une aquela arte da polêmica com a análise de categorias, para chegar a uma teoria do objeto. Assim compreendida, a dialética é, antes que tudo, um modo de pensar. Mas, como situa-la diante dos problemas da sociedade de hoje? Como usar as limitações da teoria para refletir as transformações sociais? Como tratar a questão da objetividade na análise social? A necessidade de trabalhar com a realidade mostra que é insuficiente reconstituir os passos seguidos pela reflexão teórica ou pela discussão do método. Trata-se, de fato, de uma controvérsia sobre a operacionalidade da análise social, em que se distinguem duas posições principais: a cartesiana, de dividir os problemas em suas mínimas partes para resolve-los, supondo poder, sempre, reintegra-los ao nível de seus resultados; e a de tratar cada problema como uma totalidade, e procurar as relações de causalidade que os originaram e trouxeram até sua forma atual. A primeira leva a delimitar cada problema por seus dados próprios atuais, enquanto a segunda leva a considerar os nexos externos de cada problema, isto é, como sua forma atual está ligada às relaçòes de causalidade que determinaram seu aparecimento. A abordagem dialética pressupõe uma reflexão sobre a formação de conhecimento e sobre as estruturas que ele engendra. Vê a forma atual da teoria como a representação do momento atual do processo de formação de conhecimento, jamais como uma caixa de ferramentas sem

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memória. Relaciona a instrumentalidade atual ao sistema de relações em que esses instrumentos são usados. Por isso, cabe distinguir, com Sartre, a dialética crítica da dogmática, entendendo que a primeira se identifica com movimentos progressivos e regressivos de análise. No campo social, essa perspectiva leva a colocar os movimentos progressivos e regressivos no objeto, onde o perfil atual de qualificação está ligado a uma fundamentação cultural. Noutras palavras, significa tomar a especificidade desses movimentos nas formações sociais concretas, para de volta chegar às relações de causalidade queacontecem no plano econômico. Mas, para trabalhar com essas mediações, é preciso esclarecer a fundamentação da subjetividade e da objetividade da análise, seja, revisar as referências a sujeito e objeto. São, portanto, alusões à relação sujeito-objeto, considerada como uma referência representativa do mecanismo de relacionamento de um sujeito socialmente determinado - o homem de carne e osso de que falava Unamuno, membro de uma sociedade concreta - com um objeto igualmenre determinado, refletindo a realidade social. É o sujeito coletivo, tomado como representativo daquela condição social concreta em que se coloca o homem real. Destarte, o sujeito coletivo representa sempre interesses e a intencionalidade de seus valores. Impõe-se, portanto, uma reflexão sobre a relação sujeito-objeto e sobre o sujeito coletivo, com os aspectos positivos e negativos do conhecimento de que ele é portador. A . A relação sujeito-objeto e o sujeito coletivo. A relação sujeito-objeto e o sujeito coletivo são as únicas possibilidades de registro da ação em sociedade. A própria idéia de sujeito é daquele que vê; e ver é uma condição independente das ações que o indivíduo empreende, mas é inerente às situações em que ele se encontra. O sujeito é o ponto de partida necessário no plano histórico e psicológico, convergindo na identificação do sujeito como ente, portador de experiência. A compreensão histórica do sujeito permite vê-lo como integrante de uma diversidade de grupos, enquanto a compreensão psicológica o mostra apenas como observador, justamente, porque não trabalha com a participação dos indivíduos em coletivos. A análise dialética trata do dinamismo que se dá nos nexos entre sujeito e objeto, acompanhando o duplo processo de identificação e a capacidade cognitiva do sujeito social concreto. O sujeito é modificado pelo conhecimento do objeto, ao tempo em que atinge seus objetos no contexto da vida social. O dinamismo da relação sujeito-objeto, entretanto, está constituido de ações específicas em tempo e espaço, em que o processo de conhecimento surge como uma categoria do social. É fundamental, que o conhecimento do social está ligado a práticas, que ao mesmo tempo atingem a situação do conhecimento e a da reprodução social. Essas questões não podem ser ignoradas na teoria social, em que o sujeito não existe sem seu objeto; e onde a realidade do objeto é o inquestionável. Mais ainda, não se pode ignorar que o sujeito incorpora determinações mediante suas relações com seus objetos; e que os sujeitos são, sempre, parte de coletivos mesmo quando são individuais. E assim como a individualidade se afirma por contraste e por imersão - uma classe contrasta com a outra - a consciência de classe se forma por participação concreta, que é o modo como o individual ganha sua identidade num contexto de formações sociais. Assim, os comportamentos que acontecem nos campos da produção e do consumo são, ao mesmo tempo, interdependentes e diferentes uns dos outros. E

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o consumo é o campo onde a racionalidade do cotidiano está mais claramente afetada por elementos culturais, que não são absorvidos pela universalização das formas de produção. Impõe-se, pois, rever o papel do consumo na identificaçào dos sujeitos econômicos. Há alguns aspectos importantes a esclarecer, sobre a especificidade do consumo individual e do coletivo, e do modo como os dois se complementam. A expansão do capital se traduz em diversificação e aumento do consumo total, enquanto o comportamento de consumir assume determinados perfís, relacionados com a renda pessoal. Também, a realização do consumo depende dos modoscomo as pessoas e as famílias estão integradas em formas concretas de organização nos lugares onde vivem e de modo como vivem. Há uma organização social e técnica do consumo, em que as individualidades e as coletividades se contrapõem e complementam. A polaridade individual-coletivo é uma referência inevitável dos agentes nas sociedades em que participam, onde os aspectos diretos e indiretos de classe marcam suas respectivas posições. Daí, que na análise econômica o sujeito genérico tem que ser substituído por indivíduos e grupos concretos. No plano individual, por pessoas que são produtores e consumidores, que são trabalhadores ou capitalistas, ou as duas coisas, que são membros de famílias. No plano coletivo, é necessária uma especificação por grupos representativos de interesses. A análise do consumidor, bem como a do produtor genérico, oculta esse processo, responsável da inserção em sociedades concretas, assim como impede que se reconheçam os sinais que indicam como e quanto a consciência dos agentes sociais explica seu comportamento; e de quais modos seu comportamento resulta dessa consistência histórica. A reconstruçào da relação sujeito-objeto é, como apontou Ernst Bloch, a reconstrução do trânsito ao real; e tem conseqüências decisivas sobre as concepções estática e dinâmica no campo social, que leva a colocar complexos problemas de periodização e de comparações entre períiodos. É uma questão lógica: períodos só podem ser demarcados com períodos , mesmo se os períodos demarcatórios são muito pequenos. A demarcaçào com datas é um artifício, que substitui os períoidos demarcatórios por limites, que por definição não podem demarcar nada. Isso se aplica, por exemplo, à separação entre feudalismo e capitalismo, ou entre formas patriarcais de organização da produção e formas contratuais de produção. Há uma diferença fundamental, entre pretender separa-las e querer identificar os períodos de transição entre a nitidez de uma forma e da outra. Que é mais revelador, o momento em que prevalece a separação, ou a explicação do processo que conduz a mudança? Além disso, como distinguir a mudança, senão por contraste com os períodos em que ela é menos intensa, ou quando não é visível em sinais externos da atividade social? No plano do social, a relação sujeito-objeto é o âmbitode uma linha móvel de tensão, que permite reconhecer a densidade histórica de cada sistema de produção. As conseqüências disto na teoriado conhecimento são claras. Em economia, é uma questão fundamental, dada a respeitabilidade que se costuma atribuir à análise eticamente neutra, mas que é operacionalizada como a maximização de um interesse individual ideal. Noutras palavras, a não determinação do sujeito é um modo de determina-lo às avessas, porque o pressuposto do sujeito indeterminado em economia significa a aceitação do egoísmo como única referência de valor. Isto deixa a

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análise econômica fora de todas aquelas considerações que constroem uma interpretação do social através das mudanças que acontecem no plano dos interesses. A inevitabilidade da discussão do coletivo já está claramente colocada na “Fenomenologia do Espírito” de Hegel, quando alí se diz que “o trabalho do indivíduo para satisfazer suas necessidades é tanto uma satisfação das necessidades dos outros como das suas mesmo; e só alcança a satisfação de suas próprias necessidades pelo trabalho dos outros. Assim como o indivíduo leva a cabo seu trabalho, inconscientemente realiza, por sua vez, o trabalho universal como um objeto consciente: o todo converte-se em obra sua como totalidade”14 . A conscientização explícita do coletivo mostra a ligação entre a reflexão da pessoa sobre si própria e a vida em sociedade, ou ainda, mostra que a reflexão do sujeito se realiza em sociedade, portanto, que a teoria do conhecimento tem que ser uma teoria do social, que compreenda as práticas societárias e sua institucionalidade. Há, pois, uma contradição de objetivos entre a perspectiva crítica do conhecimento e aquela outra epistemologia, que se coloca acima de qualquer ciência. A teoria social que se formaliza como explicação de relações, assume a identidade que decorre de ocupar-se de questões insubstituíveis, concentrando-se numa reflexão da qual não se pode separar, a da formação do sujeito, como antecipou o próprio Hegel. Esse aspecto foi destacado por Marcuse(1967), ao concentrar sua atençào na confluência do domínio das práticas com o das representações. O sujeito social se afirma pelas práticas que comanda, e pela capacidade que tem de faze-las parte do mundo objetivo da produção. O aspecto que nos toca mais perto desse contexto, é que daí sai uma crítica à pretensão da teoria econômica, de trabalhar com representações de comportamentos que não estào fundados no universo de práticas das sociedades concretas com que se trata. Como manejar os problemas de verossimilhança de comportamentos genéricos? E como estabelecer a veracidade das interpretações, a não ser em relação com as práticas? Os aspectos positivos e negativos do conhecimento. É uma velha história, que para a dialética o conhecimento consiste no que se pode afirmar e no que se pode negar. Claramente, negar aqui é asseverar a negação, não é omiti-la. É formular negações específicas, que dão vida aos limites do conhecimento. E o caráter dinâmico do conhecimento revela-se, justamente, em que as possibilidades de negar são parte do mesmo processo de relacionamento com a realidade, que leva a formular afirmações. Assim, em cada circunstância, é impossível não negar, já que toda afirmação que reconhece as condições em que é realizada implica numa referência a limites e a contradições. A perspectiva de processo leva a ver que tudo que se afirma ou nega se refere ao que é e ao que vem a ser, isto é, tem uma relação com o modo como se produz a forma atual das coisas; e se refere aos processos que fazem com que elas sejam deste modo e não de outro. Quer dizer, que o pensar dialetico está associado a uma compreensão do conhecimento, pela qual ele não pode depender apenas de demonstrações relativas à forma atual das coisas, mas deve apoiar-se em demonstrações de processos que fazem com que elas sejam como são. Assim, as afirmações e as negações que correspondem a um único momento do processo do conhecimento não são suficientes para exprimir o essencial da formação do sujeito como integrante de uma sociedade. 14 G.W.F.Hegel, Fenomenologia do espírito

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Aí está a primeira expressão de um argumento, que ao ser explorado, adiante, resulta numa crítica da análise social estática, e por extensão, numa crítica àquela perspectiva de análise econômica que se formaliza a partir de uma perspectiva de análise estática: a perspectiva de uma análise para a qual a dinâmica é, sempre, uma situação especial. Por isso, para a análise ortodoxa, o caminho do desenvolvimento da análise é o de introduzir dispositivos que incorporem movimento ao quadro estático, seja, ao contrário da realidade, uma análise que pretende partir da estática para chegar à dinâmica. Isso tem implicações decisivas para a própria dinâmica, que pode se tornar uma simples análise serial, perder seus elementos estruturais em favor da percepção do movimento. Ainda, pode tornar-se um simples jogo de demonstrações formais, não necessariamente articuladas umas com as outras, separada daquela temporalidade do que é histórico. A análise passa, portanto, a enfrentar problemas pré-científicos, gnoseológicos, relativos à compreensào e ao manejo do tempo. O reconhecimento do tempo materialmente transcorrido, bem como de que a análise trata com conjuntos de fenômenos de diferentes durações, leva a uma rejeição categórica do trajeto metodológico que contrapõe a estática à dinâmica, destacando a necessidade de conjugar essas duas perspectivas na construção de uma compreensão mais realista dos acontecimentos e de sua inserção. A resposta a essa dicotomia é a conjugação das perspectivas diacrônica e sincrônica em torno de conjuntos de fenômenos temporal e espacialmente situados. A dificuldade da análise econômica para conjugar os cortes sincrônico e diacrônico faz, por exemplo, com que os problemas de periodização sejam tratados com critérios inadequados para explicar fenômenos necessariamente temporais. Por isso, entender que as afirmações têm sempre dois lados, é parte essencial da doutrina aristotélica, no que ela diz que o conhecimento abrange forma e conteúdo; e que sua subseqüente tradução aos termos de estrutura e gênese na vertente hegeliano-marxiana. Isso é, em essência, o que se tem que transpor de Heráclito para a dialética moderna, de uma racionalidade anterior à materialização do sujeito como ente social a uma racionalidade socialmente construída, atribuida a pessoas incorporadas a sistemas de relações historicamente concretas. Mas a formulação de Spinoza - aparentemente a primeira ponte entre o antigo e o moderno nesse aspecto - foi uma modificação do conceito de Heráclito, que se manifesta no plano do poder ser: um tornar-se genericamente concebido, sem raíz em contextos sociais concretos. Os desenvolvimentos dados por Hegel e por Marx nesse campo, trouxeram novidades, que não foram integralmente digeridas pela análise social. O tratamento de Hegel vincula a relação entre afirmaçào e negação ao processo formativo do sujeito, que é um processo que está na raíz do que transcorre em sociedade. A leitura de Marx condiciona essa mesma relação à identificação do sujeito coletivo, seja, incorpora o interesse coletivo na anállise. Surgem, portanto, as classes, que são as portadoras da consciência desse coletivo fundamental; e representam a materialização de interesses.

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A análise do tema tomou outros rumos, porque Hegel e Marx levantaram um problema psicológico, inerente à internalização de consciência pelas pessoas. Nenhum dos dois retirou o substrato cultural do sujeito. Mas colocaram condições necessárias para recuperar os traços representativos de sua formação cultural. Sua análise de classes -explícita ou não - deixa espaço para essa ligação entre o plano individual e o coletivo; e se não tentaram resolve-la mediante a análise da família, deixaram clara a necessidade de trabalhar sobre a formação de classes em associações de interesses, que em si mesmas são processos culturais. A revelaçào da raíz coletiva do sujeito individual, bem como sua localização em sociedades concretas, levantam a questão da pluralidade essencial do social. É um aspecto da realidade, que obrigaa reconhecer a pluralidade de pontos de vista na constituição de cada sociedade, bem como os limites da percepção nesse contexto. Assim, o conhecimento do social se forma desde posições que se constroem e destroem, que têm um lado positivo e outro negativo. A percepção do lado negativo do conhecimento é essencial no questionamento da validade do conhecimento positivo na ciência social, já que implica na necessidade de considerar os dados mediatos da realidade, de trabalhar nas mediações inerentes à formação de conhecimento. Isso tem complexas implicações operacionais de método. Significa, que ao tomar cada informação com seu limite de fidedignidade, se descarta a veracidade daquelas observações que separam os fenômenos de suas raízes em sociedades concretas. Na disputa de método com o positivismo, Adorno focalizou, justamente, na incapacidade do positivismo de abrir-se à renovação da totalização, que se obtém da ampliação do horizonte de experiências, bem como ao desejo de mudar, ficando com “os restos carentes de sentido ... da liquidação do idealismo”15 . Lembrando, ainda, que o lado negativo do conhecimento compreende o desenvolvimento de uma capacidade de negar, tem-se nele a capacidade para acentuar os contrastes com aquela totalidade dominante, portanto, para desloca-la. A interação teoria-praxis. O universo das práticas é essencial a toda teoria do conhecimento que se volta a sua própria gênese, quer dizer, que trabalha com as transformações de seu objeto. Para a dialética, a praxis é o domínio da formação de experiência que alimenta a reflexão teórica. Na versão de Hegel, isso acontece pela formação de consciência, que é ativada pelo movimento de identificação do sujeito com o objeto, no plano do relacionamento que cabe na individualidade e no que só cabe em coletivos. Na modalidade de Marx, isso acontece porque a consciência se forma como resultado de condições objetivas de participação em sociedade. Para ambos, a relação teoria-praxis se dá em condições de movimento: o relacionamento entre a teoria e a praxis compreende uma circularidade entre a repetição de práticas, a normatização de técnicas e a reflexão teórica, em que a repetição das práticas decorre de uma relação com o ambiente físico e social; e resulta numa aplicabilidade num dado meio social. A normatização representa uma certa margem de liberação das restrições do meio; e a reflexão teórica contém uma compreensão crítica das anteriores; e reage sobre elas, propiciando deslocamentos nas práticas e em sua institucionalidade.

15 Theodor Adorno, Dialética negativa

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Nessa renovacão do modo polêmico de pensar, há uma retomada da tradição aristotélica, no que ele distingue o conhecimento especulativo do finalístico; e no que liga este último à universalidade da experiência. Para expressa-la, Hegel focalizou nos aspectos genéticos da experiência de cada povo, colocando aí a matriz de sua capacidade para refletir sobre sua experiência como coletividade, em sua relação com outras coletividades. O que ele denominou de “idéia”de cada povo consiste em sua capacidade para interpretar suas próprias negações, até sínteses que abranjam os três níveis mencionados de experiência - prática, técnica e teórica - que lhe dão uma determinada posição em cada período de sua formação. A visão de Marx teve outras conseqüências analíticas, já que ao partir de processos que acontecem em sociedades historicamente determinadas, assinalou a função da síntese, mas não a trabalhou com ingrediente da negação. Marx colocou o eixo do movimento dialético nas sociedades concretas e não no plano da formação da subjetividade, atribuindo assim uma circularidade à relação realidade-consciência- realidade, em que a consciência progride no contexto de relações comandadas pelo processo de produção. A atividade econômica é tomada em seu sentido mais amplo, como representativa da praxis. É a demiurga dos processos ideológicos, tanto como das ideologias. Onde, entretanto, colocar aqueles processos de formação de consciência que se realizam fora dos processos produtivos de mercado? Onde pôr a gratuidade do trabalho religioso, ideológico em geral, onde pôr o aspecto lúdico do trabalho? A focalização na praxis incorpora esses processos em princípio não subordinados, que entretanto estão na formação ideológica da produção. A ênfase na praxis tornou-se essencial no discurso da dialética desde Marx, porque é o único modo de constituir uma teoria do valor que incorpore a contradição do movimento do sujeito individual sobre si próprio, no que este movimento se faz pela participação das pessoas na produção e no consumo. No que o conhecimento dos problemas sociais leva a admitir a possibilidade de identificação do sujeito com o objeto de sua reflexão, essa possibilidade não pode mais ser excluída. Por isto, é preciso trabalhar com as referências da praxis, onde está o nexo entre a formação de consciência e a explicitação de interesses. A praxis revela os interesses que os agentes manifestam em seu cotidiano. Por isto, é o ponto de apoio por excelência de qualquer análise que pretenda ser realista. Mas não esgota as possibilidades de reflexão, já que é preciso maneja-la criticamente, para percebe-la como nível de pensamento, como pretende Hartmann, em sua tentativa de reconstruçào da “fábrica do mundo real” 16. A qualificação da racionalidade. Presume-se, nas ciências humanas, que o processo civilizatório, e não só a modernização, significa uma progressiva prevalência da racionalidade no comportamento das pessoas e dos grupos sociais. Nas pessoas, isto se dá mediante os mecanismos de repressão injetados pelo meio social na formação da personalidade; e no de grupos sociais, pela compreensão de que os meios de identificação e de defesa de interesses, tais como a religião e a política, operam num contexto de confronto e de produção social de poder. Em Freud, a construção social de poder se transfere ao indivíduo como repressão e canalização da energia da líbido. Em Weber, a sociedade tende a uma racionalidade generalizada, que a forma superior de relacionamento. Em Schumpeter, o indivíduo se apropria racionalmente das 16 Nicolai Hartmann, Ontologia

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possibilidades que lhe oferece o meio onde vive. Marx, ao responder à necessidade, exposta por Hegel, de passar do individual para o coletivo, trouxe um condicionamento social do individual, em que a racionalidade está historicamente situada. No entanto, Kant já tinha estabelecido uma avenida de análise da razão, em que a crítica da razão é uma postura de apropriação de suas determinações, que leva, de volta, às raízes do puro pensar, mas que não pode ficar imobilizada nesse nível de indagação, posto que contém o impulso que leva a considerar “não somente a possibilidade, senão a necessidade da lei moral como lei prática suprema dos entes racionais a que se lhes atribui liberdade da causalidade de sua vontade”17 O fundamental aí, é que a racionalidade não existe fora da sociedade. Por mais que o desenvolvimento da razão avance na direção da interioridade do sujeito, é um movimento que denota sua condição de ente reflexivo, e que o desloca àquela outra situação, em que ele só se realiza mediante o desdobramento de sua relação com o mundo real. A crítica da razão, portanto, é um movimento que identifica suas possibilidades, que projeta a noção de limite na objetivização da racionalidade. Desse modo, a razão torna o mundo cientificamente inteligivel. Mas como realiza essa operação? A dialética hegeliana procura reconstruir o processo formativo da razão, mediante a reconstrução da formação de consciência, desde a formação da racionalidade na subjetividade do ente, até sua identificação como ente social, que é um processo que se traduz numa progressiva identificação de valores, portanto, um processo que liga o plano ético ao cultural. A circunstância é essencial, porque se identifica com a sobrevivência; e porque é inseparável da explicação psicológica dos comportamentos. Por isso, é preciso revelar as ligações do imediato com o duradouro. Aí está o papel da totalidade, que articula o que tem tempo com o que não tem. Daí que, penetrar nas contradições da explicação idealista da formação da razão, não significa abandonar a conotação de totalidade que está implícita na visão dialética. Nem significa abandonar a referência fundamental à fonte econômnica dos comportamentos. A noção de totalidade surge, justamente, de perceber a progressão de inter-relações inerente ao social. O desenvolvimento desse processo em Hegel é essencial, porque esse pensador vê a dialética como a lei da formação da subjetividade do objeto, que é obviamente essencial no campo social. Parafraseando Kant, Hegel diz que não há uma razão que não seja ética, seja, que não se vive sem uma ética. Daí a inverossimilhança de conceituar a vida social sem suas complexidades; e a impossibilidade de decompo-las em um conjunto de comportamentos. Por isso, há uma divisão de águas entre o modo dialético de pensar e o que conduz a formalização do método lógico-analítico. A dialética implica numa exigência de determinação do sujeito, que é incompatível com a persistência de sujeitos indeterminados; e com pressupostos comportamentais que não procedem de um sujeito concreto. Para a dialética, a razão tem um significado ontológico, ligado à determinação do sujeito. Em seu tratamento da razão, a dialética hegeliana pressupõe que há uma raíz histórico-cultural da razão, que jamais se 17 Emmanuel Kant, Crítica da razão pura.

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esgota no âmbito das proposições, que situa a racionalidade nas condições concretas em que têm lugar os comportamentos. Assim, a maximização de lucros ou de vantagens de consumo, só é universalmente previsível naquelas sociedades em que o tempo é sempre escasso, onde há sempre alternativas para uso do tempo. Sociedades onde, além de preferências individuais, há outras opções de que fazer com o tempo. Como as sociedades de hoje tampouco eliminaram suas diversidades culturais, e suas transformações compreendem subsituições no tecido das classes e das instituições, quaisquer observações sobre racionalidade, que a identificam com comportamentos de classe, têm que ser revistas com uma perspectiva capaz de dar conta da gênese dos processos a que ela corresponde, e do modo como eles se traduzem em estruturas atuais. É essa compreensão das situações concretas que permite entender como se desdobram os confrontos de interesse entre classes e no interior das classes. Por isso, a dialética enfrenta os problemas de método determinados pela progressividade do social, que leva a mover-se entre contextos sociais de diferente complexidade e internamente desiguais. É o que se deduz da análise da composição orgânica do capital, que não está limitado pelo uso e controle de uso de tecnologia, senão que influi nas decisões sobre a produção e a difusão de tecnologia. A composição do capital determina uma inércia de decisões sobre o consumo, atrelada ao modo como ele pode ser realizado. Assim, os movimentos na composição do capital correspondem a alterações na composição do consumo, que são tanto ou mais importantes que as modificações nas quantidades consumidas. Se não, como encarar as diferenças entre a racionalidade atribuida aos grupos que conhecem as possibilidades de diversificação do consumo e os grupos de baixa renda, que estão limitados a um panorama monótono e invariante de consumo? Como tratar a racionalidade daqueles que, por falta de perspectiva de incremento de renda, preferem trabalhar menos, ou renunciam a procurar ocupação? A emergência dos interesses dos países e regiões periféricos à acumulação de capital ensejou maior atenção à dimensão antropológica do social, bem como revelou o etnocentrismo encoberto na racionalidade científica. A compreensão dos problemas de marginalização, pobreza e exclusão social em seu sentido mais amplo, mostra a necessidade de rever todo o relativo à pluralização de comportamentos; e aos conseqüentes deslocamentos de posição dos grupos sociais, em concomitância com as transformações de cada sociedade em seu conjunto. Torna-se mais claro como são essenciais as substituições dos comportamentos nas transformações das sociedades, especialmente daquelas mais claramente fraturadas, onde não há continuidade entre o âmbito das relações de classe e outros âmbitos onde prevalecem outros interesses. O conceito de totalidade O conceito de totalidade ocupa um lugar central na visão histórica da ciência social, já que dele depende o próprio conceito de teoria, como de um conjunto de proposições interdependentes, que tem um desenvolvimento próprio de conjunto, diferente do

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de qualquer uma delas por separado. Em sua formação, passou por vicissitudes, conseqüentes da diferença entre a totaliade objetiva dos fenômenos analisados e a das interpretações; e entre o tratamento da objetividade em uma e da subjetividade em na outra. Diferente da generalidade, que é indeterminada, e da globalidade, que ignora a diversidade dos componentes, a totalidade tem, subsumida, a formação dos componentes e consiste na composição de elementos diferentes. Assim, o conceito de totalidade é necessário em qualquer análise que leve em conta a pluralidade e a identidade dos agentes. Em vez do consumidor genérico, ou do consumo global, trata-se de grupos de consumidores, integrantes de uma estrutura de classes que se formou historicamente e que carrega uma identidade em formação. Tais consumidores têm uma história de consumo que espelha sua renda, suas preferências culturais e sua mobilidade. Por exemplo, o consumo de serviços de educação, em que as despesas com educação estão ligadas às perspectivas de participação no mercado de trabalho. O manejo do conceito de totalidade indica diferenças de concepção de teoria, entre os que a entendem como um conjunto de proposições e os que a vêm como uma progressão de proposições interdependentes. A primeira dessas versões pressupõe um esforço progressivamente acumulado, uma sedimentação. A segunda, implicitamente, admite como equivalentes contribuições doutrinárias concomitantes, sem entrar no mérito de como elas afetam o estado atual do conhecimento. Enquanto se vê teoria como um conjunto de proposições interdependentes, ela é uma totalização atual. Constitui uma experiência e uma formalização. Implica em que as proposições teóricas - os teoremas - só podem ser plenamente compreendidos, quando tomados como componentes de um conjunto. Seu significado é dado por sua posiçào naquele conjunto. O uso do conceito de totalidade implica, portanto, na rejeição da compreensão de que a teoria é uma coleção de teoremas, não necessariamente interdependentes, que podem ser substituidos sem que mude o significado do conjunto. Implica, portanto, na rejeição daquela perspectiva de teoria, que reúne um conjunto de teoremas sobre relações comportamentais genéricas, ou naquela que pretende estabelecer relações comportamentais no plano de globalizações. Tal observação, logicamente, atinge a análise marginalista e a keynesiana. O manejo da categoria de totalidade e a percepção de totalização - e por oposição, de dispersão - tornou-se mais difícil, à medida que se penetrou nas diferenças entre os aspectos tecnológicos e nos ideológicos dos processos econômicos, ou que se distinguiram as sobreposições de interesses na atividade econômica, que levam a uma pluralidade de comportamentos dos agentes da produçào e do consumo. Estado, produtores, consumidores, participam, de diversos modos, de circuitos de decisão, em que suas respectivas representações são limitadas ou penetradas pelos demais agentes.

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Requisitos factuais da reflexão teórica Há, hoje, razões para desconforto em relação com o tratamento dado ao componente empírico nas disciplinas sociais. Se os temas são históricos, se constituem o meio vivo o que se reconhece como empírico é o tratamento do lado concreto da realidade. Tal sentimento pode ser atribuido à superação de estruturas teóricas fechadas, coincidente com o descobrimento dos diversos aspectos da subjetividade. Mas é uma sensação ligada a problemas anteriores da ciência como tal, tais como aqueles indicados pela ambigüidade na relação entre as pretensões de aplicablidade e as de universalidade. A ciência social não consegue desfazer-se do compromisso perturbador de tratar com a realidade. Mas precisa definir a realidade. Se é um mundo fático constituído de eventos atómicos isolados como definiu o Wittgesntein da primeria fase, ou se são processos entrelaçados. A ciênbcia social se divide entre trata-la como coleções de fenômenos ou como processos mais ou menos encadeados com consequências decisivas entre descrever a realidade atual ou explicar como ela se produz. Relações de proximidade ou relações de causalidade. A primeira versão permite encontrar fenômenos isolados, cujo estudo pode ser feito como de "estudos de caso". A segunda versão vê os fenômenos em sua inserção no processo das sociedades. A psicanálise tornou ainda mais perturbador o tratamento da realidade, ao decompor o objeto de análise - a pessoa - na visão humanista, o indivíduo na visão analítica ou o sujeito na filosofia - e considerar que o mundo só se dá pelo aspecto interno do comprometimento do sujeito com seu objeto. A decomposição do sujeito, a diluição da pessoa, significam um desmontamento dos compromissos formados no processo civilizatório, portanto, uma redução das relações de trabalho, de consumo, de lazer, a sua forma imediata, que é, justamente, aquele terreno onde o egoísmo não pode ser contrastado com interesses não individuais. Assim, tanto pela fundamentação coletiva do individuo como pela complexidade do individual, revelam-se limitações do conceito positivo de totalidade. A totalidade tal como vista desde dentro do centro mundial de acumulação de capital, com a constatação de que o centro contém uma pluralidade de interesses e contradições, que se ampliam e aprofundam. Do lado das periferias, porque a pluralidade de situações reais é inseparável da histórica; e porque a pluralidade de interesses tampouco pode ser desligada da pluralidade de percepções da realidade. Isso não significa, no entanto, que a reflexão teórica prescinda de uma totalização da visão de mundo, senão que ela se constrói sobre a relação interna - psicológica - e a externa - histórica - representada, esta última, pela formação social. A compreensão da complexidade da totalidade então é parte do encaminhamento de uma racionalidade dotada do sentido do que é atual. A conceituação de totalidade, com toda sua complexidade, é parte de uma compreensão da racionalidade, com os significados que não se pode descartar. No campo social, a totalidade reflete a ligação do universo das vivências ao do transcurso dos fatos, portanto, a necessidade de um tratamento do componente empírico adequado para dar conta das dimensões da subjetividade das experiências e das interpretações

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do social, sem cair no caos dos fatos desprovidos de antecedentes nem de consequentes. A percepção genética da realidade indica que há percursos possíveis de fenômenos, ligados por relações necessárias e relações casuais, que são parte dos horizontes temporais e espaciais que podem ser percebidos em cada momento. A necessidadede reconstruir teoricamente a ligação do plano histórico com o psicológico, leva a avaliar o significado do componente empírico, como de ponte entre o registro dos fenômenos e sua interpretação. Com quais critérios se escolhem os objetos do componente empírico já que essa escolha concretiza a relação de identidade do sujeito com o objeto. Trata-se, de fato, de reconhecer e distinguir os nexos próprios da realidade e os da interpretação, ou de distinguir onde a interpretação introduz elementos ideais que substituem arbitrariamente os dados da realidade. A opção de método pela dialética é um posicionamento pelo real em transformação, tacitamente impugna as teorias de situações invariantes e em que os participantes não mudam em seu protagonismo.

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3. Sobrevivência e poder As questões principais e as imediatas Ao admitir que a reflexão teórica no campo social tem como finalidade última resolver problemas da realidade, que por isso deve satisfazer requisitos de relevância, torna-se necessário enfrentar uma questão fundamental: que se quer saber? De certo modo, escolher as perguntas é mais importante que chegar a respostas, já que as possibilidades de resposta estão contidas na colocação das perguntas e que as respostas são, em princípio, provisórias. É preciso decidir quais perguntas demarcam a disciplina em que se trabalha, para adiante estabelecer quais respostas sejam relevantes. Em economia esta premissa é necessária, porque esta disciplina trata com a materialidade da vida social, onde prevalecem os interesses sobre outros móveis dos comportamentos; e onde coexistem interesses convergentes e contraditórios, organizados em relações de poder. Aqui a escolha de perguntas e o modo de perguntar revelam estratégias de defesa de interesses e de reconhecer ou ignorar os interesses de outros. Além disso, a escolha de perguntas e o modo de perguntar determinam a abrangência e a profundidade da análise. Na versão clássica ou na dos marginalistas, o campo da Economia Política corresponde a um projeto de conhecimento que pressupõe uma escolha de conteúdo, que não pode ser reduzido a uma análise meramente formal; que está ligado à explicação das condições materiais de vida, em seus aspectos mais vísiveis e imediatos e no relativo às condições sociais e técnicas da produção econômica e da mobilidade social. As principais divergências, que distinguem essas correntes, referem-se à posição da análise econômica frente às questões relativas à reprodução do capital, ou sua relação com os interesses envolvidos no processo do capital. A partir daí, questiona-se a procedência da produção ou do consumo no processo de produção, no sentido mais amplo do termo; e o papel específico da distribuição. Nesse plano, distingue-se se o consumo social é tratado somente a partir de fatos imediatos de consumo, ou se é tratado através da análise dos problemas de mediação do consumo pela distribuição e de mecanismos de organização de consumo coletivo. Por extensão, questiona-se a distribuição, como tema essencial da reflexão econômica, pelo que ela reflete os mecanismos sociais que interagem na continuidade do crescimento do produto social. Nesse plano, com essas qualificações, colocam-se os problemas de desigualdade e de equidade da sociedade econômica, tal como se manifestam no acesso a consumo e na participação na produção, seja mediante trabalho ou mediante a propriedade. Assim, expurgar da análise econômica o tema do valor, como fizeram os marginalistas e fazem os neoclássicos, significa desconsiderar a mediação da distribuição, deixar a produção e o consumo como fatos independentes uns dos outros, que só podem ser percebidos como eventos isolados. O tema do valor será, de todos modos, a referencia de construção de uma economia em que os problemas de produtividade e os de desigualdade estarão unificados em um mesmo sistema de produção.

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O tema do valor foi expurgado da análise econômica pela corrente marginalista, em nome daquela objetividade que se identifica com a formação de trabalho científico. Os preços seriam manifestações objetivas de decisões que representam valor; o mercado seria o campo formado por essas decisões. Mas, na realidade não há como julgar de antemão que os mercados funcionem de modo satisfatório à reprodução dos capitais, nem há como ignorar que a centralização de capital retroage no mercado, na forma de controles oligopolísticos e monopolísticos. A crítica de Rowthorn a Sraffa aponta nessa direção. A objetividade dos comportamentos está apenas no modo como as decisões se manifestam. Mas as posições de que elas emanam estão pré-determinadas pela posição dos agentes no sistema de produção, com seus respectivos valores e horizontes de conhecimento e poder; e não pela realização de cada um de seus atos em particular. Noutras palavras, trata-se da relação entre as manifestações objetvas de comportamentos e as condições históricas em que elas se dão. Monopólio, oligopólio, são situações que condicionam, direta ou indiretamente, a formação de todos os preços; e que fazem com que a formação de cada preço contribua para consolidar ou para deslocar o processo de formação de preços. Reduzir a análise ao âmbito da determinação de cada preço por separado, é isolar uma parte da questão. Mais ainda, esse expurgo da discussão do valor, em si é uma manifestação de interesse, que pressupõe que os preços refletem cabalmente os interesses, já que estáo incorporados nas manifestações de oferta e demanda. Esse é um ponto controverso deste raciocínio, já que pressupõe que os interesses, materializados em necessidades, podem sempre manifestar-se na demanda; e que a oferta resulta de um conhecimento da demanda, em seus aspectos imediatos e nas possibilidades de resposta ao que é ofertado; e, finalmente, que as manifestações de oferta e demanda levam a ajustes de algum tipo, que se traduzem em preços. Porém jamais se supoz que essas condições realmente se dessem. As necessidades estão longe de manifestarem-se integralmente como demanda, seja porque uma parte da população não dispõe dos meios materiais para tanto, ou porque não tem os conhecimentos necessários para dispor adequadamente dos recursos que comanda. Não se pode, pois, pretender que o tema do valor em economia seja tratado apenas como uma questão de método. Mas isso significa desconhecer os componentes culturais de que estão carregados os comportamentos dos diversos agentes em cada sociedade, que condicionam suas progressões de demandas e de compras, bem como regula o modo como o exercicio do consumo está ligado ao da participação na produção. De que modo, por exemplo, o clima frio leva uma sociedade a certa demanda de vestuário e alimentos, diferente da de outra que vive em clima quente; e como o consumo de determinados alimentos resulta de um processo de convencimento, que inclui tradição e preconceitos, além de concepções estéticas cuja estabilização e cujas alterações têm pouca relação com sobrevivência ou com poder? Ao registrar o contraste entre o movimento homogeneizador do capital e a pluralidade de experiências neste domínio, a teoria do desenvolvimento mosta que as referências originais de valor da análise econômica ortodoxa não se sustentam diante da coleção específica de experiências de que se tem registro desde a expansão do capital industrial no fim do século

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passado. Muito do que foi apresentado como fundamento científico aparece agora como um exercicio estéril, que prejudica a confiabilidade da análise. Por isso, parece menos inteligente insistir na adaptação daquele referencial de ciência, que simplesmente examinar a relação entre as referências fundamentais desta disciplina e as que derivam do cotidiano, entre as opções de valor e as experiências sobre as quais de fazem essas opções. A renovação da economia deve sair da observação da realidade. As transformações da economia mundial ocorridas desde a expansão do capitalismo europeu na segunda metade do século XIX, mostram que ela avançou sobre renovadas e maiores desigualdades entre países, regiões, grupos e pessoas, com desiguais condições de mobilidade social e espacial, com o agravamento de desigualdades, de movimentos de inclusão e de exclusão do acesso ao sistema de produção e de consumo, em paralelo a uma tendência generalizada à concentração do poder econômico. A explicação desse quadro requer novos esclarecimentos no plano conceitual e nova capacidade de análise aplicada. Se os aspectos financeiros atraíram mais a atenção - já que se tornou necessária uma explicação do financiamento da produção e não só das empresas - tornou-se evidente que a taxa de crescimento do produto social dependeu de determinada estruturação técnica da produção; e que esta ficou mais visível nos sistemas de infra-estrutura: energia, transportes e comunicações. Essa explicação, portanto, está ligada à circunstância histórica. Os sistemas de produção passaram por períodos mais ou menos longos de expansão contínua, ou por rupturas mais ou menos importantes, segundo puderam absorver a substituição de fontes de energia; e criar sistemas de transportes e comunicações que viabilizassem a valorizaçào de capital. É fundamental, por exemplo, que o capital formado na tecnologia do uso de carvão teve acesso a participar da valorização que se fez com as termoelétricas e com as hidroelétricas. Inversamenrte, é também fundamental, que os movimentos de desvalorização que cercaram a substituição da navegação a vela pela de vapor, bem como acompanharam a desativação do transporte a tração animal pelo de motorres a combustão interna, não tiveram a mesma continuidade. Assim, é preciso levar em conta que a continuidade do movimento de valorização não pode ser confundida com a continuidade dos capitalistas individuais; e que esta tem sido meramente incidental, que não há mecanismo algum, das relações de produção e de troca, que autorize supor que os mesmos capitalistas terão sempre primazia na conversão do capital entre diferentes atividades. 18 A substituição de capitalistas é parte da dinâmica de um sistema no qual a substituição de técnicas corresponde a diferentes capacidades de adaptação ao ambiente técnico e cultural dessa atualizacao. Isso significa penetrar nas especificidades e nas interdependências dos sistemas de produção e consumo, bem como examinar o significado de um e outro na formação de uma ideologia do progresso, com seus componentes de universalidade e de especificidade. Separar as esferas da

18 A rotatividade dos capitalistas-proprietários na produção agro-mercantil escravista no Brasil confirma o argumento de que a não continuidade tem sido um traço estrutural da produção capitalista desde suas formas iniciais, quando dependeu claramente do controle de patrimônio físico, especialmente de terra.

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produção e do consumo, bem como supor que o consumo está incluído na produção, são simplificações conceituais inadequadas para tratar com a radicalidade das transformações, da produção e do consumo, causadas pela expansão do sistema de produção. Pelo contrário, reconhecer o que há de específico no consumo é o modo de registrar as modificações no consumo individual e no coletivo, bem como de distinguir os âmbitos de consumo coletivo na constituição do consumo em seu conjunto. A distinção entre produção e consumo é essencial, quando se trabalha com condições históricas concretas. Para ocupar-se das condições de vida das populações, a análise econômica tem que registrar as relações concretas de causalidade que comandam o problema de eficiência. Que distribuir, entre quem, para que? Ao tratar abertamente da questão do valor, ao admitir que a cientificidade no campo social depende do não ocultamento do referencial de valores, chega-se aos interesses que conduzem a distribuição da renda e a busca de eficiência. Ver as relações econômicas como uma multiplicidade de trocas, tal como faz a análise marginalista, significa decompor esses processos em fatos isolados, supor que a troca representa as interações entre esses circuitos específicos de produção, de consumo e de distribuição. Mas, cada troca se realiza em determinadas condições de produção, de distribuição e de consumo, que são próprias de um determinado momento da experiência do sistema de produção. Assim, o universo atual das trocas não revela os horizontes de previsibilidade e incerteza na produção e no consumo, senão deve ser visto como conseqüência de situações anteriores. O contraste do imediato com o permanente permite focalizar na diferença entre as interpretações, que procuram revelar relações de causalidade inerentes às transformações e às estruturações da produção e do consumo; e as que se limitam a registrar manifestações tópicas de interesse, sem questionar seu significado. Tais manifestações são as trocas. No entanto, não há troca que não represente relações entre processos, que não tenha efeitos na produção e no consumo. Contrastam com os processos, porque estes sempre envolvem tempo. Por isto, contrastar o imediato com o permanente, significa tratar cokm o material que é trazido para o exercício da racionalidade em economia, ressaltar as condições históricas e psicológicas da racionalidade, ve-la em sua relação com o desenvolvimento do cognoscente. Mas, distinguir racionalidade como atributo e como princípio de comportamento, implica em superar certa postura acrítica de epistemologia, que trata esse campo do conhecimento como uma ciência normativa, independente das condições em que se formam os conteúdos das ciências. Implica, também, num questionamento de cientificidade, já que a consistência científica da epistemologia dependeria unicamente de consistência lógica, que ela não se envolveria com as contradições entre a demonstração lógica e a empírica de cada ciência, seja, não teria o estatuto de uma teoria do saber. Por isso, reconhecer a intencionalidade do pensamento teórico, seja, admitir que a relação cognoscente-conhecido está afetada pela intencionalidade da ação cognitiva, significa que a razão está impregnada dos elementos históricos e culturais que determinam aquela intencionalidade, por conseguinte, que ela registra um movimento de apreensão, de inclusão e exclusão do conhecimento, e não é um momento genérico, desprendido dos compromissos dados pela inclusão numa determinada experiência social.

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Assim, os desafios agora colocados pelas diversas manifestações da desigualdade e pelos movimentos de centralização do capital e de exclusão de trabalhadores, se traduzem em exigências para a análise social, que obrigam a preservar seu caráter crítico. Não se trata de reproduzir os movimentos da razão na elaboração de propostas e de soluções de método, nem é suficiente revelar as diferenças entre os produtos da análise lógico-analítica e os das análises de corte histórico. Trata-se de reconstituir a relação entre forma e conteúdo, para chegar a avaliações da veracidade e da pertinência desta análise. Nesse sentido, o programa de trabalho de Kant sentou as bases da auto-dentificação de uma reflexão desprendida do eixo revelação-dogma, que liga o conhecimento do pensar ao das possibilidades de interpretação. A razão aí é a objetivização da capacidade de um saber auto-dirigido. Por isso, aparece separada dos condicionamentos de sua formação. Ao expor os eixos histórico e psicológico de sua gênese, ao revelar o componente coletivo de sua formação, A distinção entre esses dois planos é fundamental. O psicológico é inseparável do inconsciente irracional; enquanto o histórico é inseparável de manifestações de comportamento não racional. Estas, identificam-se com movimentos de massa e com determinações culturais, que aparentemente são indiferentes ou contraditórias com as estratégias de sobrevivência e de poder. A reflexão crítica no campo social depende do reconhecimento desse movimento, que atribui à razão a responsabilidade de explicitar contradições. Segundo Kant a razão é uma faculdade de independência. Refletir criticamente no campo social significa enfrentar as dificuldades decorrentes do confronto da formação histórica e da psicológica, isto é, as dificuldades da identificação do cognoscente e do conhecido. Como a critica é o caminho para uma alternativa frente a uma construção de dominação, trata-se realmente de um exercício da razão que produz liberdade. É uma postura que leva a questionar a legitimidade daquele pensamento teórico em economia que identificou formalização com racionalidade; e simplificação com objetividade; e tomou, como opostas, historicidade e ideologização. Os ideais nacionais da análise foram separados de quaisquer compromissos com a necessidade de refletir a gênese histórica e a psicológica do racional. Isso significa restringir-se ao plano ontogenético: ver a maturação da pessoa sem a transmissão de códigos criados no processo civilizatório, seja, negar as marcas que a civilização impõe nos coletivos. Mas essa interação entre o movimento do individual e o do coletivo mostra que as possibilidades de objetividade dos indivíduos ficam comprometidas, ao serem eles separados daqueles elementos que os habilitam a fazer comparações fora de seu espaço-tempo pessoal, impedidos portanto, de fazer comparaçòes inter-culturais. Assim, como aceitar os resultados da análise formal sem admitir uma igualdade a priori entre consistência formal e material? Como conciliar essa aceitação com o reconhecimento de que os resultados das análises refletem, sempre, comportamentos de diferentes agentes da produção e do consumo? Por acaso as

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manifestações dos agentes não refletem seus valores e ideologias? A cientificidade da análise e sua intencionalidade têm que ser levadas em conta. Em nome da individualidade ou de coletividades, de interesses de pessoas ou de grupos, o lado econômico das relações reflete um princípio fundamental de força nas atividades sociais, justamente, como aparece a inter-relação entre potência e ato em Aristóteles: no plano da realização do trabalho, como produtividade; no do uso de recursos, como eficiência no sistema de produção; e no dos sistemas de produção, como manifestação da capacidade das sociedades para tratar com o confronto de acumulação e distribuição. E como a sobrevivência é um problema permanente, como o controle da sobrevivência é a primeira manifestação de poder, esses dois aspectos do uso da capacidade de trabalho são essenciais em qualquer circunstância; e as transformações das sociedades sempre afetam as condições de sobrevivência dos diversos grupos, assim cokmo atingem a produção social de poder. Trata-se, em todo caso, de uma questão de uso de força, de eficiência no uso de força, seja, de economia de força. A noção de economia de força está latente na doutrina clássica da acumulação, no que ela vê diferenças entre as atividades de produção, que fazem com que algumas reintegrem capacidade de produzir mais que outras; e que algumas possam incorporar produtos novos ao sistema de produção. É a diferença entre agricultura e mineração de um lado e indústriade outro lado. Mas é uma questão que jamais ficou explícita no desenvolvimento da doutrina marxista da exploração, nem na doutrina marginalista da otimização. A economia no uso de força de trabalho reflete certa racionalidade dos capitalistas no domínio técnico da produção e na exclusão de preconceitos e de razões de poder pessoal extra resultados econômicos. Supõe, outrossim, que as pessoas sejam efetivamente empregadas, e que sua força de trabalho seja aplicada de acordo com suas qualificações. No entanto, a economia de força não se realiza homogeneamente com toda a força de trabalho. Na prática, só se pode pensar em economia de força de trabalho quando se compara o emprego de trabalhadores entre alternativas de emprego; e não apenas entre estarem empregados ou não. Por isso, na medida em que a modernização resulta em deslocamentos nos padrões de ocupação; e em substituições entre ocupações, independentemente da qualificação das pessoas, há perdas sociais irreparáveis, que se acumulam entre gerações. Igualmente, na extensão e na profundidade em que cada sociedade incorpora os impulsos de transformação nos níveis de conhecimento, cria as condições para que a força de trabalho seja plenamente aproveitada. A economia no uso de capital se verifica entre diferentes usos, pelos efeitos indiretos de cada um deles nos demais; e não só por medidas de eficiência em um mesmo uso. As comparações geralmente são incertas, porque a expressão financeira das comparações - tal como a análise da taxa interna de retorno - baseia-se na exclusão da originalidade das diversas alternativas de aplicação, seja, em supor que seus resultados financeiros são idôneos para refletir as opções do capital. Em síntese, ficam excluídas todas as situações em que os produtos finais não foram substituíveis uns pelos outros. Por isso, é um pressuposto inaceitável, porque deixa fora todas as questões relativas a recursos não renováveis.

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Essas peculiaridades do uso do capital são um antecedente obrigatório da análise da distribuição, naquilo em que ela tem que se apoiar em antecedentes objetivos da distribuição. Ela tem que admitir que cada situação atual de distribuição contém elementos que se transferem a situações seguintes; entendendo que a distribuição se realiza entre números variáveis de participantes com quantidades variáveis de capital. Há, portanto, elementos objetivos do funcionamento dos sistemas nacionais de produção, que transcendem as possibilidades da análise fundada em referências subjetivas; e que obrigam a rever os termos em que se interpreta a racionalidade das intervenções guiadas por interesse. Especialmente, as estruturas de poder estão, decisivamente, marcadas pela referência nacional, aí compreendidas as peculiaridades de regiões e cidades. Ao guiar a gestão da economia de força no uso do capital e do trabalho, ao manifestar os interesses incorporados no processo social, a razão se converte num instrumento de poder. Mas perde sua capacidade de representar as condições prevalecentes de realidade, quando abandona seu poder inquisitivo e se torna uma simples racionalidade técnica. Esse é o campo explorado por Habermas, quando procura mostrar como a razão genérica se materializa em níveis e modos de racionalidade, condicionados, portanto, restritos em determinados horizontes de possibilidades de raciocínio. Distinguir a praxis da técnica é um passo necessário, para reconhecer a possível criatividade com que a razão pode ser mobilizada para resolver a contradição central, entre a acumulação de capital e a qualificação do trabalho. Com a escolha desse eixo de referência - racionalidade e criatividade - Celso Furtado antecipou uma discussão sobre o sentido praxeológico da racionalidade, que de fato ficou inconclusa (5). Mas, como situar a prosperidade, a modernização, as modificações nas condições não materiais de vida, ou simplesmente, as modificações na cadeia sem fim da substituição de algumas formas de trabalho por outras? Na crítica da racionalidade econômica, confunde-se a crítica da racionalidade do capitalismo com a da materialidade da civilização ocidental. Qual o sentido de finalidade da contínua substituição de formas de trabalho e de consumo? Revisando esforços, como o de André Gorz, de crítica da razão econômica, não é dificil perceber que se está diante de novas formas da questão lançada por Adam Smith, acerca do sentido de finalidade da economia, que repete, de modo mais limitado, a distinção de Aristóteles, entre o conhecimento finalístico e o especulativo. As maiores dificuldades apresentadas pela explicação desses problemas, decorrem da dicotomização de disciplinas e da consequente fragmentação de método e modos de abordagem, que eliminam a possibilidade de um tratamento de problemas específicos em relação com uma visão de totalidade dos processos e das estruturas sociais. Ao trabalhar com o conceito de totalidade, criam-se pré-condições teóricas para avaliar o significado da progressão de problemas que aparecem em cada sociedade, acompanhando a industrialização. Assim, distinguem-se os movimentos de diferentes durações, vendo-se que, especificamente, os de longa duração - como aqueles próprios da relação entre os recursos materiais e o sistema de produção - têm certas peculiaridades, que impedem traduzi-los aos termos da análise instantânea.

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Ao trabalhar com a dimensão do cotidiano, em que esses grandes movimentos aparecem incorporados nas práticas dos grupos participantes do processo de produção; e em que se combina o precário com o duradouro, chega-se a outra revisão do conceito de tempo em economia, em que se colocam os problemas de comparabilidade das análises inter-temporais. Consequentemente, aí estão colocados os problemas relativos à concomitância de fenômenos de curta e de longa duração, bem como da consistência de anállises cuja duração é considerada como um aspecto independente dos temas que se analisa. Nesses dois planos encontram-se complicados problemas relativos às diferenças de duração dos fenômenos. Em qualquer momento, há uma inércia incorporada na capacidade instalada de produção, no que ela hoje reflete um processo de desgaste em curso, que é concomitante aos períodos de produção, na agricultura, na indústria e nos demais setores da produção, o que significa que certas quantidades de produção estão “encomendadas”, que poderão atingir o mercado em certos prazos. Assim, a composição atual da capacidade de produção e da produção, são parte de determinadas seqüências de períodos. Essa compreensão da perspectiva de tempo leva à busca de categorias de análise representativas da formação do atual tecido de relacionamentos; e depois, à busca de explicações dos movimentos concomitantes de mudança e de consolidação, que coexistem em cada momento, em cada sistema de produção. A capacidade da economia para oferecer contribuições a essa análise, dependerá de sua habilidade para ligar a formação dos sistemas de produção à das sociedades; e para chegar à análise de fenômenos de organização e de produção, que transcendem as sociedades nacionais, tais como a internacionalização do capital e do trabalho, que se percebem, justamente, por contraste com as ligações dos sistemas de produção com a territorialidade. Como nexo entre esses dois planos, a teoria tem que captar os comportamentos dos agentes, no que eles participam, simultaneamente, de um ou mais desses planos de relações. Por isso, o raciocínio econômico está sempre diante da alternativa de arriscar-se a tratar com a complexidade das valorações incorporadaas na produção e no consumo, ou de auto-limitar-se ao plano da formalização da análise. As declarações de objetivo - os Clássicos e Hegel de um lado e os marginalistas de outro lado - expõem essa divisão de águas. Os primeiros vêm uma economia que estuda um sistema de necessidades objetivas, que pesquisa as leis da distribuição da renda nele envolvidas, que são inseparáveis do mecanismo de crescimento do produto e da diversificação da produção. Os segundos pretendem que esta ciência se ocupa da distribuição de quantidades de recursos escassos entre alternativas de usos, para cheghar a ótimos de eficiência no aproveitamento de recursos disponíveis. Ficam por resolver os problemas de análise das situações em que se trata de escassez absoluta, em que não se aplicam o pressuposto da escassez relativa do marginalismo. Isso significa a necessidade de uma teoria das decisões, em que se reconhece a necessidade de tratar com decisões de diferentes agentes da produção e do consumo, frente a conjuntos não determinados de recursos.

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A postura marginalista pressupõe que os sistemas de produção estão completamente formados, sendo portanto válida a presunção de que as alternativas são conhecidas de todos os agentes; ou que o não conhecimento delas não modifica as pré-condições das decisões. É uma postura que, por exemplo, confronta com a doutrina de classes de Weber, para quem esse tipo de conhecimento diferencia o capitalista do proprietário, admitindo diferenças de nível de informação entre capitalistas, como parte essencial do processo de acumulação. A opção marginalista, de cingir-se exclusivamente à troca, de separa-la do substrato institucional, reduz o escopo das valorações a suas manifestações imediatas, finalmente, àquela visão da análise econômica como de uma caixa de ferramentas. É uma postura que exclui a consideração de um aspecto essencial do capitalismo, que é a tendência inexorável à diversificação das necessidades, e à diferenciação entre necessidades individuais e coletivas. Por sua vez, a concepção hegeliana relaciona a formulação do pensamento econômico com a identificação de necessidades das coletividades, para uma sobrevivência como coletivo, em relação com condições concretas de distribuição da renda. No essencial, reconhece que há formas de consumo que só podem ser reconhecidas a nível dos coletivos, tanto na produção como no consumo. Destaca-se aí, que a reflexão sobre as necessidades pode levar a uma instrumentalização, cujo significado está externamente determinado objetivos sociais de uso do potencial produtivo da sociedade, portanto, que pode reverter a um programa de pesquisa aplicada a problemas da realidade social, enquanto a análise da assignação de recursos cria uma instrumentalização pela qual se auto-limita em relação com o questionamento social. Além disso, a perspectiva hegeliana permite chegar ao desenho de um sistema de análise de assignação de recursos, partindo do oposto da escassez relativa, que é de considerar os custos sociais da indisponibilidade de determinados bens ou serviços, antes de ve-los como mercadorias, admitindo que essa indisponibilidades compreende a ausência de produção para consumo dos produtores. No essencial, significa reconhecer que todos os recursos podem ser esgotados; e que alguns deles são insubstituíveis: que sua falta provoca prejuízos irreparáveis, que não estão contemplados no sistema gradualista da análise da utilidade marginal. Exemplos tradicionais, como a falta de sal, ou como o esgotamento dos solos, podem constituir a base para um desenvolvimento teórico, em cujo bojo estariam a negação do pressuposto de que todas mercadorias são comparáveis mediante seus preços; bem como a suposição de que os sistemas de produçào dependem de uma determinada composição de recursos físicos, cujos componentes insubstituíveis condicionam os preços dos demais. O poder explicativo de uma análise desse tipo está, em princípio, indicado no encaminhamento do raciocínio de Ricardo, no que poderia ser desenvolvido como uma análise negativa dos custos sociais de cada economia nacional, em suas relações internacionais, no que ela é constrangida a participar mediante a produção de produtos que não coincidem com suas especificidades de recursos, ou com suas vantagens de custos. A relação entre o produto social atual e o potencial - ao estilo da proposta de Paul Baran, (1956) - indicaria uma diferença entre a composição atual da produção e outras possíveis combinações, que sejam menos lesivas

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à preservação dos recursos, ou em todo caso, que reflitam diferenças na relação entre a progressão do produto social e a reprodução dos recursos e do capital. Mais ainda, as possibilidades dessa linha de análise terão que ser examinadas como uma das possibilidades de explicação da exclusão social, aqui materializada em exclusão de trabalhadores., que se reconhece como um aspecto de um problema mais amplo de tendência do sistema a excluir parte de seus integrantes. Mas a exploração dessa linha de análise requer maior clareza no tratamento da questão da exclusão. Trata-se de um movimento geral da produção capitalistica - alcançando países com diferentes estruturas institucionais e regimes políticos, que tem se acentuado de modo notório. A exclusão se caracteriza como uma tendência de não usar plenamente uma parte da qualificaçào dos trabalhadores atuais, ao tempo em que afastar por completo uma parte dos trabalhadores e, por extensão, restringir a entrada de novos trabalhadores. Implica, portanto, em certas modalidades de reajuste dos usos do capital, junto com a incorporação de novas composições de capital propiciadas pelo controle da renovaçào tecnológica. Assim, em suas formas atuais, a exclusão de trabalhadores aparece como um conjunto de resultados da combinação das tendências gerais da tecnologia - que refletem os interesses incorporados na renovação de técnicas - com as estratégias individuais das empresas. Mas, em seus desdobramentos específicos em tempo e espaço, a exclusão está ligada a movimentos mais amplos da reprodução social, no que ela é operacionalizada em circuitos de relacionamento na produção. As oportunidades para que as pessoas participem da produção estão, de fato, reguladas por seu acesso a esses circuitos de relacionamento. E tal acesso é progressivo e regressivo. Começa com a engrenagem de participação no sistema educativo, estende-se pelos diversos mecanismos de reciclagem e pelos de controle social das oportunidades de emprego e renda. A sistemática da exclusão resulta em que uma parte da população tem emprego e renda garantidos, além dos explicáveis por sua qualificação; que outra parte garante qualificações elevadas e remuneração correspondente; e que outra parte não consegue qualificação nem renda. Tal quadro corresponde a um panorama de desigualdade, no relativo à reprodução social, com as correspondentes conseqüências no relativo aos grupos de menor renda e aos de renda incerta. Nesse contexto, a possibilidade de escolher entre empregos significa uma margem de liberdade traduzível em auto-controle da força de trabalho, comparável à liberdade do capitalista para escolher entre aplicações do capital, que na prática significam o procedimento pelo qual se comparam possíveis progressões de decisões ao longo de um dado período, onde esse período é um horizonte de valorização, que funciona para os capitalistas e para os trabalhadores. Nessa perspectiva, as margens de liberdade de uns e outros, para investir e para obter salários, são parte de progressões de decisões em determinados períodos, onde cada período demarca um horizonte de valorização, respectivamente, para capitalistas e para trabalhadores. Considerar uma decisão de uso de recursos como um fato isolado dessas progressões significa separá-la da cadeia específica que explica sua racionalidade. Inversamente, considera-la como

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parte de determinados horizontes de valorização, equivale a admitir que sua racionalidade é própria dos percursos históricos específicos, das transformações de cada sistema de produção. Entender, ainda, que cada sistema de produção se desenvolve com determinados horizontes de valorização, significa reconhecer o componente cultural do processo e a fundamentação histórica da racionalidade. Torna-se, portanto, necessário reconhecer a ligação entre as condições de valorização do capital em cada sociedade nacional e as condições de racionalidade em que essa sociedade se desenvolve. As condições ideológicas de ordem que aparentemente prevalecem em sociedades europeias estabilizadas como a suíça resultam de um processo formativo de uma racionalidade aceita por todos que encobre condições de exploração que são tacitamente consideradas como necessárias e não são questionadas. Por isso, frente à necessidade de explicar os processos de marginalização e exclusão, põe-se em pauta uma crise da análise econômica, naquilo em que os instrumentos disponíveis se revelam inadequados para refletir com clareza os problemas inevitáveis e inadiáveis que comprometem as soluções dos problemas que se consegue explicar; e em que não há instrumentos adequados para traduzir os resultados alcançados em outras ciências; bem como, há dificuldades inegáveis para determinar com precisão as insuficiências dos instrumentos. Sobrevivência e poder O conjunto das questões relativas ao controle da sobrevivência e à produção social de poder é uma referência necessária das ciências humanas interessadas na temática da periferia. A movimentação de grupos conjuga-se com a de indivíduos, revelando o tecido dos interesses coletivos com os individuais, em sua afirmação pessoal; e à materialidade desses interesses, que registra a relação entre as satisfações de impulsos atuais em relação com necessidades definidas, assim cokmo as pressões resultantes da comparação das necessidades atuais com as perspectivas de satisfação. Assim, a análise social deve ligar as progressões de necessidades à de meios de satisfação. Nelas, tem que distinguir quais são necessidades individuais e quais coletivas; e como interagem o individual e o coletivo, tanto como interagem impulsos individuais e tensões sociais. A impossibilidade de ignorar a inter-relação entre o plano do individual e o do coletivo exige que se trabalhe sobre a conexão entre o material histórico e o psicológico; e que se registre a presença de um na formação do outro. Isso significa penetrar nos modos como os componentes individuais e os coletivos interagem nas diferentes formações sociais E como esses movimentos se prolongam no tempo, a seguir, trata-se de considerar como esses dois polos se manifestam na outra polaridade, entre práticas e instituições. Práticas e instituições devem, aqui, ser vistas em suas interdependências. As primeiras como o referencial que situa as práticas nos processos de produção e de consumo, como respostas que são dadas às questões de sobrevivência e poder. Assim, as sociedades aparecem como um tecido institucional, em que algumas instituições são necessárias para a continuidade da acumulação de capital e de poder. Nesse quadro, a principal referência é sempre o Estado, pelo que ele representa como acumulação de poder e como capacidade atual de regular e daí,

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pelo modo como intervém nas relações entre empresas e entre empresas e trabalhadores. Mas o Estado interage em sistemas de instituições, com variados graus de solidez, que se manejam em progressões de alianças e confrontos, em ambientes sociais desigualmente conflitivos. A análise econômica se coloca nesse quadro de referências. Esse dinamismo do quadro institucional projeta-se nos sistemas de produção, dando-se que a crescente heterogeneidade dos sistemas de produção é um dado essencial da realidade atual. Não há como pensar em sistemas de produção e de consumo que não se expandem ou retraem; e que não mudam, qualitativamente, ao faze-lo. As possibilidades dos indivíduos, de interagir em sociedade são, além disso, qualificadas pelas diferenças de expectativas que podem ter em suas respectivas sociedades. Assim, é preciso trabalhar com a originalidade das experiências reunidas na formação de cada Estado nacional; e em suas conseqüências na definição dos interesses dos agentes econômicos, que faz com que a formação do poder econômico e do político dependam dos deslocamentos nesse jogo de interesses. Paralelamente, estão as diferenças de acesso ao sistema de produção e ao consumo, por parte das pessoas, cuja mobilidade, no espaço econômico e no territorial, reflete sua renda e seu nível de informação. Por exemplo, quando um trabalhador nordestino migra para o sul do país, transfere-se de estruturas predominantemente oligárquicas para outras onde prevalecem oligopólios, onde as condições de engajamento de assalariadose e de pequenos produtores, significam diferentes condições de mobilidade individual e de associação. Por trás das grandes linhas da estruturação política e econômmica do país, está uma pluralidade de processos locais de organização, em que as regras de inclusão e os horizontes de ascensão das pessoas e dos grupos, se diferenciam cada vez mais. E essas diferenças podem ser apreciadas mediante informações de emprego, que indicam renda e acesso a conhecimento técnico; e informações de consumo, que refletem as condições de moradia, alimentação, educação, saúde e acesso a informação. Mas essas formas de consumo e de emprego se diferenciam de vários modos. A urbanização cataliza as alternativas de produçãoe de consumo. Os movimentos demográficos têm mais pessoas passando de cidades pequenas para cidades grandes que do campo para a cidade. No essencial, consiste de transferência de ambientes de produção e consumo menos complexos para outros mais complexos, com o alargamento das oportunidades de trabalho e das possibilidades de consumo. As principais diferenças entre uns e outros, são de velocidade de transmissão e de seleção de informações. Assim, os problemas de sobrevivência mudam, ao longo da concentração de capital e da modernização, diminuindo o número dos que sobrevivem da produção primitiva e aumentando o número dos desempregados, sub-empregados e o número total dos que ficam em condições de pobreza crítica. Mudam, também, as condições em que sobrevivem os grupos de rendas médias, que só encontram ocupação nos setores de menor renovação tecnológica, ou naqueles setores em que ela se faz sem quebra dos controles institucionais da produção. Por exemplo, a expansão industrial nos setores de alta tecnologia depende, cada vez mais, do uso de trabalho especializado, e de uma continuidade da especialização, que está fora do alcance das

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classes médias. Delineia-se, portanto, uma contradição entre entre as necessidades de especialização, a concentração dos meios de qualificação e a distribuição da renda. Esse quadro de problemas de sobrevivência tem um traço invariante, que é a perpetuação da desigualdade, com o componente de pobreza extrema e diversas formas de manifestação de pobreza aguda, que em seu conjunto desenham o perfil da exclusão. A desigualdade A desigualdade permeia a temática social de modo tão abrangente, que se torna necessário reavalia-la. É um traço essencial da realidade social, que se manifesta no plano econômico, principalmente através da distribuição da renda. Mas a renda social é uma categoria que deve ser revista, contrastando a visão da renda, entendida como os proventos totais de capitalistas e trabalhadores num período de trabalho concluido, com a de renda entendida como um encadeamento de resultados demarcados num período. A análise econômica da distribuição tem que escolher entre uma mera informação de situações específicas de desigualdade e uma interpretação da formação e da reprodução da desigualdade em diversos momentos e condições de acumulação. A proposta de análise de Ricardo, que coloca a distribuição no contexto da análise da formação do valor, estabeleceu uma avenida de análise, que permite ligar a desigualdade de renda com as condições de realização do trabalho; e por aí, com toda a explicação da diferenciação no acesso a renda. Os traços genéricos da análise de Ricardo ganharam consistência com a incorporação do conceito de formação social, que permitiu à análise marxista penetrar nas ramificações da distribuição da renda com os dados da formação da renda em cada sistema de produção. Mas, ao colocar essas questões no quadro das desigualdades que se acumulam entre países e regiões, são necessárias algumas observações sobre a ligação entre o funcionamento dos sistemas de produção e suas bases nos sistemas de recursos; e sobre os efeitos acumulativos da qualificação dos recursos humanos. As duas relações básicas - entre o sistema de produção e o de recursos naturais e entre o sistema de produção e o cultural e institucional - são, também, essenciais, para que se compreenda o funcionamento da economia. A questão parte das peculiaridades do sistema de recursos naturais. A desigualdade dos sistemas de recursos físicos é um dado inicial, que tem duas implicações principais: o modo como os recursos físicos estão distribuidos no espaço e os efeitos de suas transformações na vida econômica. A disponibilidade de recursos é um dado que antecede o povoamento, portanto, que está na base da formação dos sistemas de produção. Mas os recursos físicos têm seus próprios movimentos, seja, a atividade da terra em seus diversos modos e formas; e as alterações neles induzidas pelo homem. Como esses movimentos, em seu conjunto, condicionam qualquer atividade social, a teoria social tem que reconhecer a base de recursos como um antecedente. Ao mesmo tempo, tem que admitir que a disponibilidade de recursos está sujeita a situações de escassês absoluta, que se define como a impossbilidade de substituição entre

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recursos, e o esgotamento total de alguns recursos. Isso leva a enfatizar o significado de irreversibilidade das transformações causadas pela produção e pelo consumo. A noção de escassez absoluta resulta da compreensão da finitude dos sistemas de recursos do planeta e à percepção de que a questão ecológica nada mais é que o resultado das modificações que acontecem na relação entre a quantidade e a qualidade dos recursos. Isso significa uma colocação contrária àquela que sustenta a teoria marginalista, que supõe possível analisar quaisquer problmas econômicos com a premissa de escassez relativa. A observação histórica sobre o significado transformador da expansão dos sistemas de produção, mostra que a sociedade modificou, decisivamente, os modos como a sociedade interfere no ambiente, mediante sucessivos impulsos de renovação tecnológica, que levam a mudanças de orientação no modo de utilizar o conhecimento especulativo e a pequisa científica, para aplicação em economia. E esses movimentos são irreversíveis, no que representam um desgaste de recursos, e mostram como o cotidiano da economia leva à realização de obras que não podem ser desfeitas nem deslocadas - tais como represas e canais - e têm efeitos acumulativos nos custos de produção e nas opções de consumo. Assim, identificam-se restrições do sistema de recursos físicos que são criadas pelo sistema de produção. Mas não são restrições inertes, senão que interagem com as transformações da produção, mudando, progressivamente, junto com as alterações da capacidade instalada de produção e com os modos de usa-la. Assim, essas restrições se modificam, junto com as alterações do quadro geral de desigualdade com que opera cada sistema concreto de produção e como se realiza o consumo. A desigualdade é produzida pela diferença entre o valor incorporado pelos diversos grupos de trabalhadores e a renda que eles recebem, levando-se em conta o poder que essa renda representa, e o acesso que dá às diversas formas de consumo. Assim, a reprodução da desigualdade não resulta somente da posse dos meios de produção, mas compreende todos seus desdobramentos nas ideologias e nas instituições, que de volta, condicionam o acesso ao consumo, à formação de capital ou à qualificação. Trata-se, portanto, de ver a desigualdade como um aspecto do processo social. O funcionamento das sociedades no plano econômico compreende processos que aprofundam e ampliam as desigualdades, bem como modificam o perfil geral de desigualdade em cada momento. Há uma desigualdade essencial em cada sistema de produção - nacional ou regional - e entre os sistemas de produção, que se reproduz desigualmente em tempo e espaço, resultando numa progressão de horizontes desiguais de possbilidades de produção e de consumo. No que ela compreende a desigualdade das dotações de recursos, é o ponto de partida das análises ambientais. A análise social desenvolve-se a partir desse dado, levando em conta as diferenças de escala e de duração com que se realizam a produção e o consumo.

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Assim, é essa discussão da desigualdade que permite situar os sistemas de produção no mundo físico, bem como recohecer os dados do mundo físico como elementos integrantes da sustentação do mundo social. Também, é essa desigualdade incial que permite visualizar a continuidade ou não continuidade da produção. A discussão da desigualdade implica num considerável problema teórico, relativo ao modo de tratar as interações imediatas entre produção e distribuição da renda, ou as inter-relações que se desdobram no tempo entre reprodução social e acumulação. Na prática, significa acompanhar a diversidade de formas e situações de distribuição, no que ela se traduz em usos de recursos físicos e em qualificação de recursos humanos. A exclusão e os excluídos Ao considerar a realidade histórica dos países latino-americanos é preciso distinguir entre exclusão e não inclusão. Por exclusão entende-se a saída induzida ou forçada de pessoas do sistema produtivo. No entanto as sociedades coloniais tiveram sistemas produtivos implantados para atender objetivos de mercado na Europa e organizados em torno de poucos produtos de exportação, ocupando apenas os números de trabalhadores necessários para essa finalidade. Desenvolveram-se situações pelas quais uma parte significativa da população jamais entrou a participar do sistema produtivo. A exclusão é um movimento que se estende, em diferentes formas, por todo o sistema econômico, envolvendo as condições de acesso a produção e consumo. Por exclusão se entende a obstrução de grupos e de pessoas a oportunidades de emprego e renda, com suas conseqüências em termos de qualificação e de mobilidade de trabalhadores. O movimento geral de exclusão contrapõe-se e complementa-se com um movimento de inclusão seletiva, que indica vantagens diferenciadas de acesso a oportunidades de trabalho, que permitem uma progressão de aumento de renda. Há, portanto, aspectos imediatos e mediatos, aparente e não visíveis, de inclusão e exclusão, que alimentam os movimentos de desigualdade próprios do quadro de distribuição. Por isso, a escala de remunerações dos empregos não revela o significado de cada emprego como indicativo de participação nos circuitos de relacionamento da produção e do consumo. Trabalhando com um horizonte de longo prazo, em que se combinam fenômenos de diferentes durações, há um problema de continuidade e de descontinuidade dos processos sociais que se combinam dentro desse horizonte, que responde pela continuidade ou pela descontinuidade dos movimentos de inclusão e de exclusão. A participação na produção envolve hoje o domínio de sinais da vida urbana em suas diversas manifestações, tanto nas técnicas de produção como nos sistemas de incorporação dos diversos grupos sociais ao consumo coletivo urbano. Esse conhecimento da vida urbana significa uma capacidade para decodificar os modos como operam os sistemas de infra-estrutura dos serviços públicos, os perfís de participação das empresas e dos demais órgãos representativos de interesses públicos. Assim, aprofundam-se as diferenças entre aqueles que ganham acesso aos

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mecanismos de adaptação e aqueles outros cujo horizonte de informações não se expande, portanto, torna-se relativamente menor no universo urbano em expansão. Ao longo do tempo, essas diferenças se traduzem em segmentação do mercado de trabalho. Na compreensão atual da acumulação, e de sua correspondência com sistemas de seleção de grupos e pessoas, a exclusão afeta o funcionamento do sistema de produção em suas escalas local e internacional, com seus efeitos negativos distribuidos segundo a desigualdade compreende segmentações do mercado de trabalho, e segundo o sistema educativo é mais ou menos aberto ao acesso da maioria. O modo como as estruturas de poder contemporâneas processam a modernização , e por extensão, o modo como se forma a cultura tecnológica, leva àquela coisificação da relação entre capital e trabalho exposta por Marx, que termina na unidimensionalidade do trabalhador acusada por Marcuse. Paralelamente, como parte do mesmo movimento, leva a separar a eficiência atual de suas causas, por extensão, a tratar a questão da eficiência como uma relação ex post e não como uma indicação da capacidade e das possibilidades, do capital e do trabalho para agirem conjuntamente. Nas sociedades mais ricas, exclusão pode significar separação das oportunidades de participar na composição da taxa de crescimento. Mas nas sociedades menos ricas, mais desiguais, ou simplesmente periféricas, exclusão significa exposição a fome, insalubridade; e a participar ou não dos grupos que têm acesso às mudanças na pauta de informações socialmente úteis, que são aquelas que lhes podem servir para aumentar sua renda e sua mobilidade na sociedade. Na prática, vê-se que a exclusão aí corresponde à monopolização dos meios de produção, portanto, ao controle da renovação tecnológica e da qualificação do trabalho. Nos países latino-americanos, a continuidade do poder tem sido alcançada mediante o desdobramento das oligarquias rurais em elites urbanas, mediante uma serie de acordos que passam pelo controle do Estado e do financiamento público. A modernização do capital tem sido alcançada mediante a ligação da gestão de interesses comerciais e rurais com os industriais. Quase não há empresas bem sucedidas em acompanhar o processo de acumulação, que não tenham irradiado seus interesses em diferentes campos de produção, nem tenham operado com margens importantes de favores públicos, diretos ou indiretos. Mais ainda, os confrontos de poder e os interesses fundiários refletem uma alternância de situações entre aquelas pressões consequentes da hegemonia dos interesses industriais, para a renovação do controle sobre as terras. As pressões para preservar a estrutura fundiária, bem como para suas eventuais alterações.

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4. Referências conceituais e problemas operacionais As principais questões propostas A tese básica que se desenvolve nesta seção é que os problemas operativos que se encontra são proporcionais aos encaminhamentos conceituais que se colocam. Os problemas de operacionalização que pertencem às análises inter-industriais surgem da presunção de uma análise de equilíbrio geral que, por sua vez, resulta de certas ideias sobre as empresas bem como de que haja relações entre empresas que sejam puramente económicas, separadas de relações com o Estado. São ideias sobre a subordinação dos trabalhadores a condições de contratação manejadas por certas empresas que reduzem os operários a meros executores de instruções, desprovidos de percepções e de iniciativas próprias. Não poderia haver fordismo sem a presunção de relações unilaterais de trabalho. Foi mérito de Marx perceber que a teoria da sociedade deve acompanhar as transformações de seu objeto, mas que para isso depende de uma unidade interna de método, que lhe permita captar os processos de transformação e não apenas os fatos da mudança. Quais são os processos essenciais da transformação da sociedade moderna? Como alteram a vida das pessoas? O desenvolvimento das forças produtivas de que fala Marx é uma expansão do sistema de produção, que se faz a expensas de desgaste dos sistemas de recursos naturais e de destruição de recursos humanos, subutilizados ou impedidos de trabalhar e mediante o processo de exploração dos trabalhadores. A questão central é o custo social e ambiental da expansão do sistema de produção;e contido nele, o custo social do consumo. Diante desse problema, a economia enfrenta, simultaneamente, um humanismo e como uma técnica e como uma combinação dos dois. No que representa os pontos de vista do capital explorador a teoria económica personifica um humanismo negativo. Se é uma teoria que se põe diante dos problemas fundamentais de modo independente, ou se é uma teoria meramente instrumental, subalterna aos interesses hegemônicos.Ignorar qualquer desses aspectos significa apenas que ele se resolve de modo negativo, por omissão ou pelo estratagema de desqualificar um problema para evitar que ele influencie a análise. Em qualquer dessas três dimensões, é uma disciplina que se ocupa de formas de atividade historicamente construídas, quer dizer, que se ocupa de

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situações que foram produzidas pela repetição das atividades socialmente organizadas. Trabalhar com as interações de interesses na produção e no consumo significa situar-se no tempo histórico de eventos reais, portanto, transcender o ato de trocar, de comprar e vender. A noção de economia é inseparável da de troca. Mas o universo do econômico não se inicia nem se esgota com a troca, senão que se estende ao ambiente das trocas e às conseqüências das trocas.19 Se a atividade econômica significa um relacionamento que contrasta usos com troca, é porque a troca se configura como o oposto do uso e o amplia. Mas, tanto a troca como o uso não podem existir sem o antecedente da produção. Por sua vez, esta não se repete de um período de produção ao seguinte sem que a sociedade que a realiza passe por um processo de distribuição. O projeto de Economia Política do século XVIII de que fala Habermas (1987), mesmo com o ordenamento temático feito por Schumpeter 99 (1894), ficou inconcluso, porque não completou o percurso temático subjacente na relação entre produção e consumo, simplesmente porque não esgotou as implicações dos nexos entre produção-distribuição-produção, que em última análise pressupõe uma progressão de períodos de produção. Há uma limitação na visão de Habermas, que apresenta esse projeto oitocentista como primordialmente ético, separando-o da objetividade de interesses que ele mesmo já indicara. Mas há, também, um problema com o tratamento de Schumpeter, que substitui os coletivos constitutivos do Quadro Econômico dos Fisiocratas por um fluxo circular baseado na racionalidade individual, que ele também antes já mostrara. Ambos autores, por diferentes razões, enveredaram por caminhos de operacionalidade metodológica contraditórios com suas respectivas interpretações do fluxo do pensamento. Mas Schumpeter introduz um viés de subjetivismo que viria a representar sua opção por uma teoria económica dos capitalistas tal como aparece em seu Business cycles. A crítica de Marx entra aí em dois planos, essenciais à interpretação da sociedade mutante: no que demonstra que o trânsito produção-produção passa por uma

19 O trabalho de Braudel sobre o mundo das trocas faz um pouco desse papel de mostrar a historicidade por trás do imediatismo das trocas.Trabalhando sobre o Brasil(Pedrão, 1999), nós também encontramos esse movimento de corrente alternada, entre a expansão da esfera das trocas e o elenco específico de trocas que são realizadas.

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distribuição que jamais é neutra, senão que é parte do processo de acumulação; e naquele outro, em que demonstra que a distribuição está incorporada a um processo de confronto de interesses, materializado nas relações de classe. Mas hoje, ao reconhecer que a sociedade econômica está constituida de tecidos sociais desiguais, com comportamentos desiguais, é inevitável rever os aspectos de conflito e complementaridade. Conflito de interesses, identificado com a formação de classes e associação de interesses semelhantes, inclusive entre diferentes sociedades. Esse problema se renova, tanto como os interesses mudam de forma, durante a trajetoria de cada sociedade. A análise econômica trata, sempre, com sociedades concretas, historicamente determinadas, onde há grupos e pessoas, coletivos específicos e individualidades, bem como diversos modos de intermediação entre as atividades dos diversos grupos e pessoas. Para a análise social, é essencial levar em conta que há coletivos que sempre estão na base da formação de todas as sociedades; e outros que são eventuais. Também, que há coletivos estáveis e outros transitórios, portanto, que têm diferente capacidade de influir nos processos de transformação social. Daí, ser essencial o aspecto cultural da análise. Família, Estado, empresa, são referências constantes em toda essa análise, mesmo reconhecendo-se as diferenças constantes em cada um deles. A família, especialmente, por seu papel na formação da individualidade, assim como mediadora na relação entre a esfera do público e a do privado. Torna-se necessária uma revisão cuidadosa da conceituação de família, especialmente em sociedades em que a esfera patrimonial está profundamente enraízada na estruturação do interesse público. Essa referência implícita à abordadem de Weber justifica-se, principalmente, quando se trarta de sociedades em que as diferenças que se estabelecem no plano dos indivíduos e das individualidades são essenciais na formação dos coletivos. Mas há um distanciamento das idéias de Weber, quando se considera que isolar indivíduo e coletivos torna-se um contrasentido, ou uma falta de acuidade da observação, porque implica na separação do dinamismo das pulsões individuais do dinamismo das tensões sociais; e em parte, porque impede que se perceba que as fronteiras da formação de classes nessas sociedades - tais como a informalidade, ou a inexistência de uma única classe média - são instâncias em que se destaca com mais nitidez a questão da individualidade.

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Mas, como diz Adorno(1967), o que há são relações. São relações que põem os indivíduos e os grupos no contexto da formação de classes, bem como no dos que ficam fora de classes organizadas. Indivíduos e grupos têm interesses, participam de diferentes modos da formação das classes. Seus interesses estão objetivizados em suas ações, por extensão, no modo como percebem e analisam as ações. Assim, a escolha dos temas está sempre ligada à percepção das tensões sociais, com que funcionam os sistemas de produção e os de consumo; e como ambos absorvem as contradições de interesses que se revelam nas classes e entre elas. Por isso, está ligada ao que se vê como inevitável e inadiável, seja, ao que é parte de uma ncessidade dos agentes, para sua reprodução e não apenas como uma opção incidental. Daí, que as prioridades manifestadas pela escolha de temas revelam algo do sentido de inevitabilidade da continuidade do processo e dos bloqueios que ele enfrenta, tanto de causas fortuitas como estruturais, na composição do conjunto de relações de causalidade que levam à formação de ciclos e à noção de crise do capitalismo. A crise descreve a urgência com que as contradições levam ao bloqueio de determinados processos, ou a mudanças de rumo no percurso seguido por cada sociedade. Por isso, a noção de crise tem que ser qualificada, para ser usada com eficácia na análise de processos sociais específicos, como os de modernização ou de industrialização, já que as rupturas que podem ocorrer no plano cultural, ou no dos sistemas de produção têm diferentes significados; e que o possível encadeamento dos efeitos das rupturas dos sistemas gera conseqüências no processo de cada sociedade, num país ou numa região. Em períodos de grande concentração de acontecimentos importantes, como no da Revolução Francesa ou no da bolchevique, em 1930, em 1968, esses aspectos podem ser apreciados simultaneamente. Mas em processos mais prolongados, como os das crises das economias periféricas desigualmente industrializadas, com seus movimentos bruscos de formação de capital e de desindustrialização, torna-se mais difícil encontrar uma concentração de contradições que mostre os nexos causais do processo. Torna-se, então, necessário trabalhar com a complexidade do processo crítico, em seus desdobramentos em tempo e espaço e não apenas com o fato da crise. Mas, à parte essas qualificações, qual a justificativa para focalizar a atenção nas crises do capitalismo, para identificar as questões mais urgentes dos países periféricos? Crise conjuntural, ou do padrão de acumulação? Transitória, ou

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reveladora de um impasse nas relações de poderr? Não será que a versão corrente de crise - entendida como movimento brusco - restringe a colocação de obstruções crônicas do desenvolvimento econômico e social; e que se refere às transformações do núcleo central do sistema de produção e não a todo ele? Certamente, há um problema da análise das rigidezes das sociedades econômicas, que consiste em mapear as tensões que se acumulam em cada um deles, que se aprofundam ou encontram saída em mudanças de diversos tipos e modos. Focalizar a atenção na expansão do capital e em suas restrições, ou na continuidade ou descontinuidade dos impulsos de formação das sociedades econômicas, também significa destacar a crescente diferenciação entre as posições das diversas economias nacionais, também signfica destacar a crescente diferenciação entre as posições das diversas economias nacionais, que a todas luzes é essencial na distinção entre países centrais e periféricos. À luz do movimento mundial de acumulação de capital e da concentração mundial de poder, não há como raciocinar em termos de equivalência entre nações nem entre classes. Assim, a escolha dos temas reflete o significado atribuido à crise, tal como ela é vivenciada por países que estão determinadas conjunturas incomparáveis entre si. A posição dos países desigualmente industrializados é reveladora nesse aspecto. São aqueles países periféricos que realizaram os movimentos básicos da industrialização e da urbanização, que modernizaram um segmento signficativo de sua capacidade para prestar serviços, mas que estão presos na circularidade das contradições da modernização desigual, da centralização do capital, da incapacidade para proteger seu próprio excedente dos efeitos negativos da centralidade do poder. Nesses países, a formação de novas elites industriais fez-se como um desdobramento da estrutura de poder das oligarquias, não em substituição delas. Pelo contrário, a análise do processo econômico-político das últimas décadas mostra que as oligarquias se revigoraram mediante uma participação constante nas novas estruturas industriais; e que mantiveram interesses na industrialização e no controle da modernização rural. Essas observações se aplicam à maioria dos países latino-americanos e com mais força, aos que mais se industrializaram. Trata-se, portanto, de rever o que há de essencial de crise na definição das condições de participação desses países periféricos maduros na economia mundial. A crise torna-se endógena ao quadro de alternativas de cada economia nacional, no que cada uma delas passa a ser governada pela prioridade da estabilidade financeira, sem que o manejo da

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questão de financiamento passe pela dos mecanismos monetários do financiamento do governo. Isso leva a reconsiderar o significado de crise. Serão crise somente aquelas concentrações de tensões que desembocam em rupturas, ou também aquelas tensões imobilizadoras dos sistemas? Rupturas e tendências críticas não serão parte do mesmo? Crise, na versão ricardiana, em que a tendência é inerente ao modo de funcionamento do sistema de produção; ou crise na versão marxiana, em que a tendência à ruptura é parte do movimento de acumulação? Ou uma simples coincidência de incidentes, tal como na visão marginalista? A teoria não pode ignorar o significado dessas diferenças de abordagem, nem ignorar como elas se refletem nos desdobramentos de análise, ao longo do tempo e levando em conta as peculiaridades dos sistemas de produção eventualmente analisados. Os termos da análise: interesses privados e públicos As questões levantadas nos parágrafos anteriores levam a discutir a identidade dos agentes; e avaliar sua participação no processo de produção e em sua análise. Estado e empresa formaram-se de modo concomitante. Na América Latina, sua história mostra rupturas fundamentais, entre o período pré-colombiano, o colonial e o da independência política. Mas sempre com a passagem de formas organizacionais de um período para o seguinte, desde técnicas e formas de produção, até formas institucionais e estruturas de poder. O caciquismo indígena foi incorporado pelo autoritarismo ibérico, resultando em diversas formas de organização política, onde entretanto se manteve o eixo de equilíbrio entre a pressão concentradora do poder central e a pressão dispersora dos poderes regionais e locais. A Igreja e o Exército foram, quase sempre, as principais referências da pressão unificadora dos projetos nacionais, nas manifestações de interesse do capital. Utilizaram, simultaneamente, o nível da articulação política da produção, que concentra a relação com o capital financeiro e o nível das articulações locais de poder, que detém o nexo imediato com o controle da terra. Na ligação entre esses dois planos, os interesses privados elegeram os integrantes do sistema de poder e dirigiram o capital diretamente integrado na produção. Essa combinação de funções foi fundamental na formação de oligarquias capazes de incorporar modernização tecnológica; e na de relações entre as grandes casas comerciais e o poder nacional central. Há farta documentação, que mostra que

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esse fenômeno não se generalizou em toda a América Latina, mas que se repetiu em todos os países de médio e grande porte; e que emm todos eles identificou-se com a modernização econômica. Nesse quadro, a empresa, herdada da organização do capital mercantil renascentista - ibérico e holandês, internacional e judaico - ressurgiu da convergência de necessidades da reprodução do poder alinhado ao redor dos governos naconais com as necessidades de penetração de interesses mercantís. Com ela, os interesses ligados à produção diferenciam-se dos interesses patrimoniais identificados com as oligarquias. Se a reprodução de poder jamais dependeu só de interesses mercantís, onde houve uma ligação mais intensa e explícita da produção com a captação de recursos, a formação da empresa atraiu os interesses já incorporados no sistema de poder político, operando com critérios de poder que não podem ser traduzidos aos de eficiência econômica. Nesse contexto torna-se praticamente impossível aplicar aqui os preceitos de racionalidade e concorrência que sustentaram a análise das empresas na economia ortodoxa formada na Europa. Assim, é preciso distinguir os elementos que põem a formação da empresa no plano da produção e das trocas; e aqueles outros que levaram à transformação das empresas, para que elas se adaptassem aos ideais de poder dos capitalistas. Isto ficou claro nas associações das empresas com projetos de poder político; e quando elas se transformam em sede de um pensamento social e passam a influir nas relações políticas formalizadas e nas não formalizadas. Isso já está incorporado na cultura das empresas. Toda vez que se olha além da operacionalidade da empresa, ela surge como um produto da experiência, que muda ao longo do tempo, ao refletir modificações entre seus aspectos ideológicos e os tecnológicos; e sua capacidade de representar interesses também muda, segundo as necessidades de seu cotidiano. A renovação das empresas não é somente um problema de aprendizagem nem que cada empresa usa a renovação técnica como modo de se manter. Renovação no quadro das empresas significa igualmente substituição entre empresas com aparecimento de empresas novas e liquidação de outras existentes. O fundamental, portanto, é a combinação da capacidade operacional com a legitimidade institucional da empresa. Em sua configuração atual, a empresa é posterior à estrutura política e administrativa do Estado, bem como a sua função

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de substituto das estruturas paternalistas do poder. Mas quando elas amadurecem vêm a relação com o Estado como o principal meio de conseguir contratos que é o mesmo que garantir demanda para seus produtos. O Estado nacional latino-americano surgiu como contraponto de trajetórias coloniais, cujas contradições criavam espaço para uma instância de poder alternativa à presença declinante das metrópoles européias. Não foi por acaso que os principais movimentos de independência começaram depois de 1760, data que demarca a decadência das metrópoles ibéricas. Assim, os Estados nacionais formados no século XIX responderam aos interesses localmente dominantes, que se contrapunham aos das metrópoles. De diversos modos, nos diferentes países, o Estado nacional latino-americano surgiu representando combinações de interesses mercantís e rurais. Nesse contexto, as empresas se desenvolveram como interesses favorecidos pelos novos Estados nacionais, como modo de viabilizar lucro para esses blocos nacionais de poder. Desde então, os subsídios ao capital seriam uma conseqüência natural dessa visão monopolística, herdada dos “empórios” coloniais. A mineração especialmente é um campo de atividade em que predominaram vantagens derivadas de articulações dos interesses privados com os governos. Em outros campos, como em produtos agrícolas para exportação acumularam-se vantagens de empresas que contaram com o apoio dos governos para exercerem funções de monopólio. No essencial, a pluralidade de formas de empresa encobre uma maior uniformidade de princípios operacionais que os contidos na pluralidade de formas do Estado. Paralelamente a sua variedade de formas operacionais, a empresa é um centro de decisões financeiras, técnicas e administrativas, que funciona com a racionalidade possível en seu horizonte institucional e de mercado, para reproduzir um capital que procura ampliar. Daí, a necessidade de distinguir empresa de unidade de produção, seja fábrica, estabelecimento agro-pecuário ou escritório de serviços. Nos últimos decênios, as empresas tenderam a maior flexibilidade de processos de produção e maior distanciamento entre a definição dos interesses de empresa e as restrições operacionais das unidades de produção. Por sua vez, o Estado passa por modificações decisivas, em que o aumento de seu comprometimento com o interesse privado se reflete em seu apoio à articulação de grandes grupos econômicos; e em maior concentração da capacidade de decisão em tecnologia e em controle dos sistemas de comercialização. Esse desenvolvimento do aspecto

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operacional do Estado, portanto, é uma projeção da socialização de interesses privados e de sua conseqüente incorporação no contexto do Estado enquanto governo; e os desenvolvimentos da empresa são alcançados mediante o uso do sistema político e do administrativo incorporados ao governo. Isso significa que a noção de empresa representada pelo conceito de firma, utilizada pela análise marginalista, é completamente inadequada para refletir as condições históricas em que se trata do interesse privado organizado. De fato, a análise baseada nesse conceito refere-se mais - e de modo impreciso - às unidades de produção, como se elas fossem uma aproximação ao funcionamento de empresas reais; e não como a insuficiência conceitual que realmente é. Para garantir o realismo da análise, é preciso distinguir a eficiência do capital na produçào, que corresponde às unidades de produção; e a eficiência das estratégias financeiras, que se refere às decisões das empresas, dando-se que esta última compreende a capacidade das diversas empresas para articularem-se com o Estado e com capitalistas individuais, como parte de seu financiamento. Estão aí, portanto, dois âmbitos de reflexão, que devem ser trabalhados de modo convergente, na direção de uma explicação do processo de produção de poder, a partir das interdependêndias entre as relações sociais e as relações técnicas de produção; e de sua correspondência com o controle político da produção e do consumo. A análise de Habermas, das mudanças na composição estrutural dos interesses incorporados na esfera pública reconstroi a produçào de poder na moldura institucional do Estado, através da renovação da forma do Estado, traduzindo-se numa incursão nos problemas de uma teoria da formação do patrimônio no capitalismo de hoje, um tema que ficou mais ou menos posto de lado, comparado com o da eficiência do capital. Observa-se que a formação de patrimônio, tal como o controle de terras improdutivas, a posse de edifícios históricos e de obras de arte, pode fazer-se mediante mecanismos essencialmente políticos, como um movimento que se desprende do de formação de capital, mas que não se confunde com ele. A rigor, a formação de patrimônio é um oposto da formação de capital, que prossegue apenas como resultado de ativos efetivamente incorporados na produção. Mas essa é uma distinção relativa aos aspectos operacionais, que não penetra no significado do processo de pluralização dos interesses que se formam, consolidam ou substituem na esfera privada. Assim, leva a distinguir um movimento linear da

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esfera privada para a pública, sem refletir a circularidade entre esses dois âmbitos, sem explicar os modos como a mediação de interesses no interior do Estado reverte na formação das empresas. Mas, separar as análises da empresa e do Estado significa presumir que o conteúdo de um e da outra podem mudar sem interagir, que a empresa tem a exclusividade da representação do interesse privado; e que o Estado se resolve exclusivamente no governo, sem hiatos entre o processamento da esfera pública e da privada. A observação desse problema no plano histórico é reveladora. Na formação das relações entre os Estados latino-americanos, bem como das associações de interesses entre empresas empreiteiras e bancos; e entre bancos e empresas agro-pecuárias e agro-industriais, observa-se que já não são as preferências em contratos públicos que viabilizam a capitalização e a modernização dessas empresas; e que as decisões sobre esses contratos se originam na representação de interesses privados no próprio governo, seja mediante a eleição de membros do legislativo, através de influência na escolha de membros do executivo, de tráfico de influência, ou de quaisquer outras formas de corrupção, que possibilitam uma ampla variedade de intervenções das empresas no governo, mesmo na operacionalidade formal do Estado, no plano político. Isso se reflete na capacidade das empresas para utilizar seu patrimônio efetivamente como capital, assim como, para incorporarem os efeitos da infra-estrutura para incrementar a eficiência de seu próprio capital. Assim, se revela o significado prático daqueles componentes da análise weberiana - posse do patrimônio, competência e oportunidade para usa-lo - com os componentes de acesso ao capital controlado pelo Estado. Como a infra-estrutura está distribuida segundo padrões territorialmente desiguais, e o acesso a ela é socialmente desigual, há sempre uma diferença entre aquilo que se denomina de eficiência aparente do capital, que é aquela inferida dos retornos do capital de cada empresa; e a eficiência real, que é a obtida do uso total de capital pela empresa, próprio e de outros, público e privado. Esses usos de capital compreendem sua estratégia de aplicações, na produção e no mercado de capitais, portanto sua estrategia em relação cokm reposição de estoques e com seus indicadores de liquidez. O uso de capital próprio para obter resultados nessas diversas modalidades traduz-se num coeficiente que relaciona recursos próprios com recursos totais; e que se compara com outro coeficiente que compara a rentabilidade dos recursos próprios com a rentabilidade do capital total obtido. A

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capacidade das empresas para mobilizar capital é um aspecto de seu desempenho, que não pode ser confundido com seu desempenho a nível de unidade de produção, mas que se torna essencial na determinação de sua participação em mercado. O conceito de externalidade não reflete essa visão geral de desempenho, porque além da generalidade dos usos de capital em cada empresa, trata-se aqui de uma proporcionalidade entre o capital que se incorpora às empresas e o que passa por elas, simplesmente como instrumento para atividades especulativas que não afetam a produção. Indica-se, além disso, que há uma diferença substancial, entre a racionalidde dos usos de capital na perspectiva de uma empresa específica e dos usos de capital nos sistemas de infra-estrutura, onde os indicadores de eficiência real do capital podem diferir por completo dos das empresas. No entanto, não se pode deixar de considerar os efeitos, em cada empresa, da eficiência nos usos de capital nos sistemas de infra-estrutura, no modo como eles impactam em cada momento e em como se acumulam ao longo do tempo. A interação entre os capitais integrados diretamente nas empresas e os que estão organizados nos grandes sistemas de infra-estrutura – mesmo quando estejam privatizados – é um componente orgânico do sistema produtivo que tem um desempenho diferente do de empresas. Com essas referências, a questão da valorização do capital no âmbito da empresa transcende o de sua operacionalidade, compreendendo o horizonte de suas relações com o governo e com as demais empresas. Leva em conta, também outras representações dos interesses privados como a de capitalistas individuais e de organizações estamentais, que controlam capital e influem em mercado. A aceleração da modernização econômica mostra a necessidade de novas interpretações dessas inter-relações entre Estado e empresa, seja para preencher lacunas de informação básica sobre seu funcionamento, seja para responder aos questionamentos que agora surgem sobre a especificidade dos processos de capitalização e diversificação dessas economias; e sua participação no atual contexto de transformação da economia mundial. Essa análise exige muito da teoria social, em particular da teoria econômica, porque torna necessário um conhecimento atualizado da relação entre as formas de representação do interesse privado e os modos como se organiza a capacidade operativa do Estado, em sua qualidade de governo. Não basta mais um

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conhecimento atual da empresa porque a revolução das comunicações abriu portas para a participação independente de capitalistas individuais e porque aumenta a massa de capital sem proprietários visíveis. A expressão empresa denomina realidades culturais e organizacionais variadas, que procedem de diferentes trajetos históricos, que de um lado determinam seu manejo de ideologias e sua capacidade para penetrar na estrutura administrativa e política do Estado; e de outro lasdo, determinam sua capacidade para captar e reter técnicas de produção e de comunicação. Reduzir as empresas aos seus aspectos técnicos e organizacionais significa ignorar o contexto politico de sua luta pelo poder, que se projeta em comportamentos ideológicos e em preconceitos que dão conta do lado irracional de seu comportamento. As empresas tendem ao conservadorismo como parte de sua luta por seus interesses mas também como parte do mecanismo ideológico que autoriza a exploração. Coisificar as relações de trabalho e demitir pessoas em função de metas de resultados arbitrariamente definidas são partes de um agir social em desfavor das maiorias que precisa ser sempre justificado. O fundamento ideológico desse comportamento de um humanismo contraditório ou negativo não é dado pela lógica das relações económicas senão pelo fundamento politico da economia. Assim, a justificativa ética do lucro é semelhante à do poder expansivo que, adiante, sustentará a colonização. Nesses confins do poder económico e do politico é praticamente impossível e inútil separar a origem das empresas modernas daquela do Estado moderno imperialista. Tanto como o Estado representa conjugações de interesses privados, para intermediar na formação de um bloco de poder que controla a modernização, ele responde pela gestão do equilíbrio interno do poder, conduzindo um determinado padrão de desigualdade. Assim, o típico Estado dos países periféricos desigualmente industrializados, manifesta-se, alternativamentre, como uma entidade passiva, enquanto apenas retransmite a ideologia sustentadora do balanço de poder; e como entidade ativa, genuinamente diferente da esfera de poder que pode ser articulada pelas empresas, quando gere politicamente o processo econômico.

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5. Interesses e dinamismo na economia Os interesses e sua representação Na sociedade econômica de hoje, há uma questão fundamental na relação entre a objetividade da composição do capital, que impõe certos perfis de decisão na seqûëncia das aplicações de capital; e os interesses organizados na sociedade, que resultam do modo de participação na sociedade em seu sentido mais amplo, que carrega a formação sócio-cultural dos grupos envolvidos no processo de produção. Em sua objetividade o sistema tecno-produtivo representa a subjetividade própria do sistema sócio-produtivo. Os movimentos conjugados de expansão e diversificação do sistema de produção resultam na formação de interesses, que buscam modos de representação, de modo direto no processo de produção e de modo indireto, nas instituições políticas e culturais que regulam as práticas econômicas. Inversamente, são os fracassos dos grupos de interesse em fazer prevalecer Historicamente, os coletivos que participam da produção e do consumo, formam-se a partir de situações de propriedade e controle de patrimônio em geral e de formas específicas de capital, que resultam de transformações anteriores que conduzem a formação e a destruição de valor. São transformações que se dão no âmbito de formas específicas de produção, que prosseguem ou que são superadas, ao longo da renovação tecnológica e da reorganização da produção. Há uma correspondência entre o modo como se organizam nas esferas nacionais e o modo como participam de esferas internacionalizadas. Trata-se, portanto, de interesses construídos durante a formação do sistema de produção, que participam nas diversas combinações de atividade. Mas, no relativo aos seus modos atuais de participação, eles têm, sempre, uma capacidade operacional e uma representação, com que afetam a produção e o consumo. Seu modo de interferir na produção e no consumo reflete o conhecimento, geral e especializado, que têm incorporado. No plano específico da produção, isso significa passar à avaliação do potencial representado por esse conhecimento e à capacidade de uso, representada pelos trabalhadores concretos que estão em condições de usa-los. A análise da participação dos interesses na produção deve, portanto, levar em conta o ambiente social e tecnológico em que eles se concretizam , frente aos problemas específicos inerentes ao sistema de produção e as formas de consumo. Isso significa que a racionalidade com que os diversos participantes do processo se conduzem não é uma racionalidade generalizada, atribuível a um determinado nível de civilização, senão que as racionalidades possíveis na circunstância em que cada um deles se encontra, sobre a base cultural com que interage em sociedade. O questionamento da racionalidade, especialmente o feito por Habermas e Gadamer, leva a distinguir dois aspectos essenciais para quem trata da fundamentação racional

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do conhecimento no campo social, que são os de que uma racionalidade que transcenda o nível da técnica, tem que manejar problemas de comunicabilidade, que alcançam o plano das posições dos agentes em sociedade e dos relacionamentos entre eles. Trata-se, portanto, de revisar a operacionalidade da noção de racionalidade com que se trabalha. A visão crítica do conhecimento está ligada à de uma racionalidade inerente ao comportamento em sociedade, que se pressupõe identificada com o processo civilizatório, no plano do individual e dos coletivos. A posição crítica, tacitamente, implica em duvidar daquela presunção weberiana, de que a sociedade moderna caminha, toda ela, para uma crescente racionalidade, com tudo que isto significa, como superação de conflitos e como eliminação de condutas emocionais. Implica em rever a capacidade da ciência para dar soluções epistemmicamente consistentes, capazes de ultrapassar a formatação lógica imediata e examinar os fundamentos teleológicos do discurso científico. Tal como proposta por Kant, a crítica é um exercício não ingênuo - que não se detem nas aparências - da razão, que leva a trabalhar com uma identificação do sujeito, que antecede sua atividade atual, que a torna possível. A critica é o exercício da maturidade intelectual capaz de questionar sistematicamente as certezas acumuladas pela ciência.

Na proposta de Hegel, a crítica exige a fundamentação do atual em suas raízes genéticas, portanto, considera que o sujeito da análise é sempre produto de um processo anterior. E porque trata com o tempo dos acontecimentos, e o da consciência, trata com relações de causalidade que ligam o plano histórico dos acontecimentos ao plano psicológico do desenvolvimento do sujeito. A compreensão de crítica leva ao programa de trabalho da crítica. A ligação da conceituação de crítica com o reconhecimento da pluralidade do social, e além disto, sua ligação cokm a categoria de desigualdade, significa a colocação de um instância a mais na interpretação da realidade, que é a de ligar a anállise da teoria do social à da formação da realidade social. Assim, ao questionar as limitações da teoria econômica para tratar com a ligação do plano histórico com o psicológico, levantam-se questões que interessam à teoria social em seu conjunto, quando se questiona a aplicabilidade e a relevância para explicar questões da atualidade. Desigualdade e incerteza são as questões mais centrais de todas. A Economia Política tem que situar a desigualdade nas condições concretas em que ela ocorre. Assim, levar em conta as diversas faces da desigualdade, entre classes, grupos, pessoas; implica em registrar como ela se reproduz ou muda de forma, como acontece nos centros que conduzem a acumulação de capital e nos que são conduzidos por ela. Destarte, centro e periferia são duas referências necessárias dessa desigualdade fundamental, que continua ao longo do tempo, incorporando a originalidade das diversas experiências sociais e refletindo o que há de essencial no processo do capital. Inversamente, trabalhar com pressupostos de igualdade, como os de concorrência perfeita, pode ser um exercício enriquecedor, para revelar os contrastes entre as diversas situações de desigualdade. Mas dificulta compreender seus deslocamentos, nos planos histórico e

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psicológico; e os efeitos das interações entre os dois. Por isto, na interpretação de fenômenos históricos, é mais realista considerar a igualdade como um objetivo utópico que como um dado da realidade. Por razões práticas, se não pela consistência da análise, a desigualdade deve ser reconhecida como uma categoria do social, no ponto-momento atual. A análise social tem que trabalhar com esse dado, que entretanto deve desdobrar, para chegar às condições específicas em que se dão, a sucessão de situações que conduzem a espacialidade e a temporalidade dos processos, e as alterações dos modos de funcionamento das sociedades condutoras de mudança. Essa explicação de formas específicas de pluralidade - compreendendo situações irreversíveis e contradições de interesses - levam a apoiar a análise social em referências da estruturação socia, ao tempo em que considerar os limites dessas categorias como elementos explicativos. Nessas condições situam-se as análises de classes e de diferenciação, respectivamente, do lado do capital e do trabalho. Sobre sua concretude, colocam-se as valorações postas pelos interesses que intervêm na formação de capital e de poder. Explicitar interesses, significa identificar as posições representadas pelos coletivos próprios das sociedades que se analisa. Mas, como faze-lo, sem por frente a frente as relações diretas capital-trabalho e as mediadas pelo Estado? Nesses dois planos colocam-se as pulsões dos interesses dos agentes e as tensões entre elas. Trata-se com participantes que não podem optar por deixar de participar, isto é, protagonistas, não atores. Cada um deles tem sua própria história de vida e carrega conteúdos transferidos de outros que os antecederam. Assim, o aspecto experiência revela-se essencial. As possibilidades de inserção de novos indivíduos em coletivos variam, segundo eles conseguem recuperar experiência, ou são parte da memória que se forma no âmbito de coletivos altamente estáfveis, tais como família, igreja, forças armadas ou outros que interagem no conjunto de cada sociedade. A partir daí, a internalização da condição de periferia leva a trabalhar com sociedades que, por definição, não são um contínuo de relações entre equivalentes, mas contêm fraturas, cuja superação é incerta e não parece imediata. Nisso, por razões históricas, a relação com o exterior tem sido essencial. A diferença entre os que têm relação direta com o exterior e o que não a têm, tem sido uma tônica da periferia do movimento de acumulação mercantil ou em todo caso, antecessor da industrialização. Essa diferença é própria de situações concretas, em que as posições dos agentes e das instituições, constituem o referencial positivo da análise. Conquista ou perda de posição, criação de novos espaços de poder político e econômico, são resultados de práticas do cotidiano. Assim, a leitura dos movimentos de formação do Estado e das empresas, bem como da emergência de formas paralelas de poder, não governamental, mostra que se trata de processos interdependentes, que se projetam na formação de classes e na representação dos interesses de classe.

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Como a formação dos meios de representação de interesses no âmbito público está ligada à formação de poder, e como esta sempre está ligada à organização dos interesses privados, há sempre uma inter-relação entre as transformações das empresas e as das demais instituições privadas. Há um problema relativo à capacidade das empresas para representar os interesses privados. Quais interesses são representados pelos diferentes tipos de empresas? Para os países periféricos, a questão se complica, porque a capacidade das empresas para representar os interesses privados varia; e não necessariamente supera outras formas de representação, que à primeira vista parecem contraditórias com a racionalidade do interesse privado. A renovação de interesses familiares e a prioridade ao poder político comparado com o lucro, fazem com que a acumulação de capital seja inseparável da formação de patrimônio, inclusive em formas de patrimônio de difícil conversão a formas operacionais de capital. Por isso, não há como estabelecer uma doutrina de poder governamental, que também não explique a formação de poder no âmbito privado; e não trate das inter-relações entre a esfera pública e a privada. A esfera dos interesses públicos se expande, pela inércia da acumulação de infraestrutura; e pelas pressões sociais para compensação de desigualdades. A dos interesses privados muda de forma, junto com os efeitos da acumulação no sistema de produção. A relação entre as mudanças do público e do privado é móvel: revela uma progressão entre a renovação de técnicas e a institucionalização, entre a qualificação dos recursos humanos e a renovação de técnicas. Nesse movimento, ampliam-se as possibilidades de que os diversos representantes do interesse privado e os do interesse público valham-se de meios indiretos, seja, que as mediações nas relações entre eles aumentem de complexidade; e uns e outros, o público e o privado, agem duplamente, como participantes e como mediadores. As estratégoias de grupo, de capitalistas e de trabalhadores, refletem essa duplicidade. Enquanto alguns capitalistas reproduzem seu capital mediante contratos com o governo, e favorecem a expansão das despesas públicas, outros realizam essa mesma operação mediante uma expansão das trocas; e pressionam por vantagens tributárias, ou defendem uma retração da despesa pública em investimentos e em despesas correntes. A pluralidade de condições em que se realiza hoje a transformação do eixo de interesses mercantís-agrícolas em mercantís-industriais, bem como a eficiência com que os interesses mercantís manejaram sua aliança com as oligarquias, traduziram-se em capacidade para administrar o controle do Estado, para criar um projeto nacional de poder político, ou para conduzir os sucessivos movimentos de modernização. A passagem do eixo de poder mercantil-oligárquico para o atual eixo oligopólio-oligarquia, demandou complexas operações políticas, em que as formas de controle do Estado compreenderam modificações nas posições relativas dos poderes executivo, legislativo e judiciário; e em que o controle formal do Estado foi modificado, mediante alterações das práticas de governo. Nos países latino-americanos, que alcançaram uma industrialização significativa, o poder executivo foi, invariavelmente, depositário dos interesses dos segmentos

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líderes da acumulação de capital, mesmo quando os maiores interesses desses grupos continuavam no sistema mercantil-agrícola. Outrossim, a centralização do poder político tem sido uma garantia de que a industrialização não contrarie os interesses maiores das oligarquias, que estas, portanto, não se tornem obstáculo aos interesses agro-mercantís em suas aplicações industriais. Movimentos dessa amplitude restringem o poder explicativo de análises unidisciplinares, que só percebem alguns aspectos desse fenômeno. Por isso, não tem sentido raciocinar em termos de setores de produção, como se eles refletissem adequadamente os interesses daqueles cuja acumulação se faz sobre o controle da indústria ou do terciário, e, indiretamente, sobre margens de controle da terra. A acuidade da análise depende de que ela reflita essa realidade, que não examine funções por separado de processos. Depende, também, que ela não suponha que as posições dos agentes determinam funções invariantes. Noutras palavras, não há fundamento histórico que sustente classificações como as propostas por Talcott Parsons, em sua explicação da economia como sistema social, que toma, como postulados, observações sobre a organização estrutural das relações de produção. No entanto, esse aspecto da análise econômica resulta em encaminhamentos de tipo funcionalista, como resultado de certos maneirismos de análise, tais como de confundir empresa com fábrica e trabalhador com operário, que implicam em admitir que todos os pretendentes a trabalhador são, sempre, membros de um exército de reserva de trabalhadores. Desse modo, atribui-se à indústria certos traços de comportamento, que são incompatíveis com os interesses incorporados nas empresas. Assim, o tipo de resultados alcançados pela análise econômica é afetado pelo tipo de informações disponíeis, e pela orientação seguida na seleção delas. Isso resulta na primazia da análise instantânea e da estática comparativa, no estilo que se desenvolveu desde Marshall, que trabalha com situações em que as funções dos agentes são reconhecidas a partir de seu comportamento atual; e em que os padrões comportamentais são inferidos de uma coleção invariante de situações atuais. Ao qualificar as participações dos agentes em situações específicas de manifestação de interesse, tacitamente, colocam-se restrições de tipo histórico para as teorias da produção e do consumo. Progressivamente, os agentes revelam padrões de comportamento, que são próprios das situações em que eles se encontram; e que são alterados pela acumulação dos efeitos das relações de grupo. Ao injetar na análise as qualificações decorrentes da desigualdade, a explicação dos comportamentos dos agentes tem que estender-se a elementos que ficaram rotulados como de sociologia política, mas que sempre foram parte da proposta de trabalho da Economia Política. O fundamental é que o ponto de partida da análise varia, segundo a questão do valor é vista como representativa do esforço de trabalho que se realiza em cada sociedade, e das valorações de que ele está acompanhado, dado o modo como é percebido pelos membros da sociedade. Por exemplo, as sociedades pré-industriais têm em pouca conta as profissões técnicas, apesar de dependerem desses profissionais. Mas a teoria econômica foi elaborada, principalmente, a partir

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das percepções de sociedades em processo de industrialização e das plenamente industrializadas; e trabalha com coletivos, reconhece valor ao trabalho tecnificado. As premissas sobre o comportamento individual são centrais na análise econômica ortodoxa. Mas como ela não reconhece comportamentos não racionais, depende de uma conceituação de indivíduo exclusivamente derivada de indivíduos apenas racionais, o que na prática é uma utopia. Por isso, o plano do universal é significativo, enquanto leva a conseqüências sociais, seja, quando sai do plano da utopia. Assim, a produção e o consumo realizados individualmente por empresas, famílias ou pessoas, tem sempre um duplo significado. Aquele inicialmente dado por sua condição de consumidor ou de produtor; e aquele outro, dado pelas coletividades de que faz parte. Daí que, focalizar na perspectiva da formação de valor significa ver as relações em mercado - as transações e os preços - como manifestações do funcionamento de sistemas sociais de produção, portanto, como manifestações do funcionamento de sistemas sociais de produção, seja, como representações de valor. Assim, ao tomar o mercado como uma realidade objetiva, portanto, tomar as transações e os preços como a essência do econômico, desloca-se o referencial da análise, e retiram-se os valores do eixo da formação dos preços. Essa operação, que foi realizada pelo marginalismo, para suprir a instrumentalidade e a objetividade requeridas pela dimensão prática da economia, de fato, separou a análise econômica da matriz da análise da estruturação social, que supostamente deve distinguir diferenças de condições de organização, desde as mais genéricas às mais específicas, compreendendo classes, estamentos e grupos locais; e deve distinguir aqueles que comandam a renovação de tecnologia, aqueles que apenas podem acompanha-la, e aqueles outros que se atrasam progressivamente em relação com ela. Assim, apenas por ignorar as conseqüências inerentes à progressão da estruturação social, o marginalismo pôde desenvolver uma análise indutiva, que supõe que os agentes econômicos, em diferentes situações, reagem de modo semelhante no relativo a comparações de preços e de quantidades, apesar de que essas reações estejam ligadas a diferentes valores. Daí, uma teoria de comportamentos em economia não pode, realisticamente, ser separada de uma teoria da ação social; e não há como chegar a uma teoria realística do consumidor e do produtor, sem admitir que essas duas posições comportamentais são, essencialmente, coletivas, mesmo quando iniciados por indivíduos que interagem de modo progressivo, modificando a composição do capital e a dos recursos humanos, traduzindo-se em circuitos de relacionamento, que fazem as continuidades e descontinuidades dos circuitos de relações. Focalizar na problemática do interesse, como fez Habermas, antes de chegar à teoria da ação social abstrata, significa trabalhar com uma lógica ligada a estruturas psicológicas, considerar as condições da racionalidade. Por isto, encontra-se aqui a dubiedade da Economia Política no tratamento da questão do valor; e sua consequente dificulade de articular os vários elementos conceituais que vigoram nessa área, seja, de articular a produção social de valor e as valorações com que se exprimem os agentes em suas diversas relações, bem como os nexos entre o campo dos temas do valor e as questões concretas de sobrevivência e poder.

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As condições da racionalidade são as do cotidiano em que vivem as pessoas e os grupos em sociedades concretas. Não há, realmente, como operacionalizar o uso da razão, sem trata-la como uma racionalidade, com tudo que há de material nisso. Quando a análise social se separa dessa circunstância, ela se torna um exercício formal de idealismo. A temática do valor é inseparável da análise social atual, pelas mesmas razões que levaram Marx a focalizar no substrato ideológico da teoria, a partir de processos do coletivo econômico, que descrevem, simultaneamente, o condicionamento dos agentes e o dos sistemas de produção. E que levaram Weber a procurar o discurso da subjetividade neutra a partir de elementos da inserção individual em coletivos historicamente formados. Para o primeiro, a ingerência da ideologia no comportamento dos agentes é essencial, porque ela se forma como reflexo da desigualdade na relação entre eles. Para o segundo, a racionalidade do indivíduo é fundamental, porque é ela que estabelece sua posição nas classes e nas fraturas das sociedades. Mas a questão do valor transcendeu a esfera da explicação, do contexto da ciência social, para chegar ao da explicação do comportamento dos agentes em sociedades que se destacam pela profundidade de suas fraturas internas. As divisões de classe, igualmente, denotam diferenças e confrontos, dominação, entre raças e religiões, e no comando das relações inter-raciais, mediante mecanismos tais como o controle da terra e do acesso a emprego. A questão da interpretação Como o material da análise econômica é histórico, a análise deve ser progressiva, porque, como diz Gadamer, a interpretação denota uma situação específica entre o sujeito e o acontecimento, seja, descreve um relacionamento, que é, necessariamente, concreto. É parte do contexto de relação sujeito-objeto a ser conhecido, como também diz Hartmann, em sua análise da reconstrução do mundo real. Assim, a críticaatual da teoria que tem enfrentar uma questão básica de relevância da análise, que abrange seus métodos e seus resultados. A teoria econômica propõe-se criar uma estrutura de pensamento, capaz de identificar princípios fundamentais do funcionamento da sociedade; e instrumentos adequados para acompanhar o comportamento dos agentes, no modo como eles se relacionam. Mas isso aprofundou a diferença entre a compreensão do interesse individual e a do coletivo, considerando-se que o individual é mais representativo do tecido de relações que os interesses dos coletivos. Há, aí, uma questão inevitável, acerca da consistência histórica e psicológica do indivíduo - sujeito de pensamento, pessoa enquanto não reduzido à unidimensionalidade da condição de trabalhador na produção - que se estende ao significado da individualidade. Concretamente, a identidade do indivíduo é mais nítidfa nas sociedades capitalistas que nas tecnocráticas; mais na sociedade urbana de classes que nas sociedades rurais e tribalísticas. Mais nítida nos grupos de renda em que a sobrevivência depende, explicitamente, da solidariedade da família. Seja que se tome o interesse individual como pertencente a um indivíduo historicamente concreto, a outro cuja identidade apenas se delineia, que se fique com o lado positivo ou com o processual da

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individualidade, é preciso trabalhar com o contraste da identidade atual de cada indivíduo com o interesse coletivo atual. Essa contraposição é necessária, porque o próprio conceito de indivíduo está carregado de conotações dadas pela sociedade à qual as pessoas pertencem. Assim, a representatividade do indivíduo é algo que ficou de lado na exposição do empirismo, mas que tem que ser reconsiderado, porque dela depende a legitimidade da análise social que se apoia no eixo indivíduo-coletivo. Distinguir entre o indivíduo abstrato, que pode ser portador de uma concepção ideal de egoísmo - supostamente o atributo de egoísmo precederia a identificação do sujeito histórico concreto - e o indivíduo concreto, que é parte da realidade, significa torna-lo objeto esujeito de uma experiência cultural; e estabelecer uma perspectiva antropológica do empirismo. Destarte, independentemente de quaisquer críticas que provenham do lado da análise da formação das sociedades, é preciso explicitar as contradiçòes que estão incorporadas no conceito de indivíduo. De que modo esse conceito capta as diferenças de condições que advêm das diferenças de acesso a consumo e a cidadania? De que modo capta as diferenças que se acumulam como resultado da segmentação dos circuitos de acesso a informações e a educação em seu sentido mais amplo? Uma crítica dessa índole pode resultar numa estratégia de análise orientada no sentido inverso ao de Habermas (1987), procurando identificar a incorporação de conotações ao conceito de indivíduo e de interesse individual, tanto como verificando quanto a pessoa é valorizada na sociedade capitalista de hoje; e não repetindo o mesmo erro, de supor que o interesse público se desprende do privado. Supostamente, o interesse individual representa algo concreto - um produto de uma trajetória de experiências realizadas no plano individual - que permite falar de uma qualidade categorial do comportamento capitalista, que é o egoísmo. Em contrapartida, a imagem do interesse social seria vaga e contraditória, quando submetida à crítica de uma teoria de classes razoavelmente consistente. Daí, o próprio contraste do interesse individual com um interesse social, seja, um coletivo, já dependeria da possibilidade de que se identifique um interesse coletivo igualmente representativo de uma realidade social tanto como de uma individual. A teoria marginalista é uma teoria do interesse individual, que está sustentada no pressuposto de um comportamento individual que não depende do condicionamento do indivíduo pelo grupo a que pertence, o que tacitamente significa que os indivíduos são parte de uma situação anterior ao coletivo organizado, seja, parte de um caos. A mão invisível do mercado genérico seria, nesse caso, a lógica do caos. Não haveria diferenças entre os interesses de indivíduos genuínos, de famílias, de grupos estáveis, nem diferenças entre eles e os interesses de grandes coletivos, como os proprietários de terras ou os trabalhadores. Mas essa separação entre a perspectiva individual e sua origem coletiva é uma simplificação epistemologicamente insustentável, já que ao distinguir entre o contexto social da produção industrializada e o da não industrializada, tacitamente, se reconhecem diferenças de comportamento entre elas e entre sociedades em diferentes graus de industrialização. A

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pluralidade de comportamentos revela-se essencial, bem como a da possibilidade de comportamentos cambiantes. Tecnicamente, essa questão se coloca como uma distinção entre ações que desembocam em resultados institucionais visíveis, e outras que não os têm. Como a industrialização significa mudanças significativas, irreversíveis, em relação com as formas personalistas de comando da produção pré-industrial, admite-se que há diferenças entre os modos de funcionamento daqueles sistemas de produção que evoluem mediante a sobreposição de elementos, que progressivamente altera o regime de funcionamento de cada sistema concreto de produção industrializada, sobre outros de produção pré-industrial, bem como superando formas da própria produção industrializada. Tal movimento se traduz na criação de padrões originais de produção - as combinações próprias de cada regime de produção - com a consequente determinação de papéis para os protagonistas desses processo. Consequentemente, a temática proposta pela corrente marginalista consiste em exercícios cujos resultados são logicamente consistentes, e podem ser verossímeis, mas não necessariamente estão ligados a critérios de veracidade. A verdade do sentido comum está ligada àquele que pode percebe-la, isto é, tem conotações psicológicas. A verdade na análise está associada à capacidade de compreensão. Há uma construção de conhecimento, subjacente no processo que conduz a busca de consistência formal. Mas a busca de respostas verdadeiras - ou pelo menos, verossímeis - obriga a substituir as respostas apenas consistentes por respostas verazes. O reconhecimento do condicionamento histórico do quadro psicológico atual é um passo fundamental na revisão da relação entre consistência e veracidade, porque é na dimensão histórica que estão o substrato cultural, a acumulação de experiências, inclusive de sua representação psicológica. Como disse Dilthey, a colocação de problemas corresponde a um presente e não a um algo indeterminado no tempo. . É no domínio do psicológico que se formam as valorações desde as quais se julga a veracidade. Como a relação indivíduo-sociedade é mediada por coletivos concretos, mas implica na configuração de indivíduos específicos - pessoas - ao expurgar a discussão da individualidade dos conteúdos de valorações, o que realmente se faz é tomar um único quadro cultural e uma índividualidade típo - umn estereotipo - como únicos válidos; e negar a pluralidade cultural da história. Admitindo, entretanto, essa pluralidade, o interesse privado deve ser analisado pelo modo como ele se manifesta na integralidade do indivíduo; e não apenas por alguma de suas funções tomada por separado. Impõe-se, portanto, revisar a conceituação de interesse privado. Supontamente, ele é inerente ao modo como grupos e pessoas se relacionam antes de uma identificação de interesse público e em relação com ela. Objetivamente, ele é inferido do modo como se manifesta, nos diversos modos de participação na sociedade econômicfa; aí, sinteticamente, em suas manifestações na produção e no consumo. Abrange a formação de renda e de patrimônio e a concomitante busca de segurança e prestígio. Não pode, em suma, restringir-se ao âmbito dos interesses representados por empresas. Pelo contrário, trata-se de identificar quais são os coletivos básicos das sociedades econômicas de hoje, reconhecida sua diversidade.

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Nessa perspectiva, é preciso levar em conta que a representação dos interesses na produção e no consumo tem que refletir a complexidade da estruturação social e do modo como ela está institucionalizada, com seus segmentos legitimados e seus outros não legitimados; e com as formas de associassão entre a representação econômica e a política. Envolve, portanto, a combinação dos aspectos transitórios e dos que ganham características de permanência. Pessoas e grupos básicos, especialmente a família, são, simultaneamente, produtores e consumidores; e se manifestam, alternativamente, em alguma outra posição. O encaminhamento da análise sobre esse tema demanda o prévio reconhecimento da diversidade de condições de participação na sociedade econômica, que compreende aqueles que podem participar plenamente do conjunto de atividades legitimadas, até aqueles que são completamente excluídos delas, passando por uma variedade de situações, com perfís mais ou menos convergentes com as necessidades da reprodução das pessoas e dos grupos envolvidos. As restrições de mobilidade distribuem-se segundo padrões que refletem as trajetórias pelas quais os integrantes de uma população chegam a ser, mais ou menos, integrantes de sua sociedade econômica. Esta percepção, logicamente, encaminha o conceito de reprsentação de interesses do capital na produção, levando a distinguir, sucessivamente, os interesses transitórios e os que têm diferentes graus de permanência; e adiante, entre os que se definem como empresas capazes de participar plenamente das formas legitimadas de funcionamento e as quese reproduzem em condições parcialmente aceitas, ou mesmo em formas ilegítimas. As influências da organização familiar e das organizações estamentais filtram-se, entre as diversas formas organizadas, resultando em certas margens de flexibilidade de cada sociedade, principalmente em sua forma nacional. Ao deixar de ver os grupos e pessoas somente pelo trabalho que realizam e pelo consumo que efetivam, encontram-se novas referências para a qualificação do interesse privado, que estão ligadas às formas de participação das pessoas em sistemas sociais delimitados por sua definição como nações. Na prática, o questionamento de Marcuse, sobre a unidimensionalidade tem que ser, adicionalmente, ampliado, para incluir todo o relativo ao lastro cultural de cada situação historicamente definida. As pessoas e grupos não são, realmente, redutíveis à unidimensionalidade, apesar de serem pensados e tratados como tal. Suas diversas participações na sociedade são, de fato, interdependentes. O emprego público frequentemente depende de participação política; e o emprego privado, relações de interesse extra empresa, principalmente familiares, no relativo à condução dos negócios. Ambos dependem, de circuitos de amizada - quase de casta - que se fazem nos colégios, nos clubes, nas igrejas, nos quartéis, na prática da política e no cotidiano do trabalho. Ao mesmo tempo, o exercício de certas atividades corresponde a certas possibilidades de consumo, que podem não ser proporcionais ao poder de compra dos salários, mas refletir identificações culturais de tradição. Nas transformações tecnológicas e ideológicas da produção industrializada hoje, há muito menos certeza sobre quaisquer tendências de despersonalização de decisões que se supoz, por

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exemplo, na literatura predominante sobre a empresa que focaliza em seus aspectos operacionais. Na maior parte do sistema de produção, a renovação tecnológica é conduzida por pequenos grupos, inclusive com um forte componente familiar, assim como a qualificação para a tomada de decisões constitui um mecanismo de controle na condução dos interesses organizados nas empresas e na gestão do capital financeiro. A multidimensionalidade dos relacionamentos também significa uma pluralidade de formas de participação, concomitante, em diversos níveis de intensidade de participação e de controle de capital. Assim, a mobilidade é um tema que cobre um conjunto de diferentes âmbitos e escalas de deslocamento dos participantes dos sistema de produção, articulando-se com o quadro de desigualdade inerente a cada sociedade econômica. Compreende um aspecto de mobilidade horizontal - entre situações equivalentes de renda - e outro vertical - entre situações não equivalentes - cuja flexibilidade se altera, entre níveis de renda num dado momento; e ao longo do tempo, mesmo entre situações equivalentes de renda. Trata-se, portanto, de que as condições de mobilidade em cada sociedade mudam ao longo do tempo e entre segmentos tradicionais e modernizados da economia. Daí, que devam ser apreciadas em toda sua extensão e complexidade, segundo se manifestam nos diversos grupos de renda e nas situações de poder; e tal como tem limites inferiores e superiores. Em princípio, é uma questão que abrange uma faixa da distribuição da renda, acima da qual não há porque desejar ter mobilidade, e abaixo da qual ela é esporádica ou simplesmente irrelevante. A restrição superior dispensa explicaçào: corresponde aos grupos que não têm nada mais a aspirar. A restrição inferior está respaldada por várias experiências com a desocupação crônica e com a pobreza crítica, onde se vê, primeiro, que superar as situações criticamente piores é mais difícil que ter mobilidade nas subsequentes; e que os excluídos em geral não têm garantia alguma de serem incluidos. Na prática, ao trabalhar com sociedades reconhecidamente muito desiguais, submetidas a condiçòes de crescimento incerto, é preciso distinguir âmbitos e escalas, bem como, ver como as situações específicas de mobilidade, em seu conjunto, se articulam com os demais aspectos de desigualdade. Observa-se que as inflexões e mudanças de intensidade da mobilidade têm significados específicos na constituição das diversas sociedades, com resultados desiguais em tempo e espaço, e em relação com a circunstância por que passa cada país ou região. Por isso, são necessárias algumas considerações sobre as características da mobilidade. Podem-se distinguir mobilidade vertical e horizontal, bem como seus efeitos cruzados. A vertical descreve movimentos de ascensão, que podem acontecer entre posições conhecidas, ou criando novas posições. A horizontal indica o significado das diferenças de posição concomitantes, ligando os aspectos de renda aos não econômicos. E ambas variam, em tempo e espaço, segundo a flexibilidade objetiva de cada sociedade interfere nos movimentos dos diversos grupos; e segundo as pressões exercidas pelos grupos alteram o sistema. Por isso, ainda, a mobilidade sempre acontece como um fenômeno diferenciado e é diferenciadora, segundo seus efeitos se acumulam numa sociedade, finalmente, indicando um dinamismo da reprodução social, que encontra suas referências na capacidade e nas

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possibilidades de mobilizar conhecimento de modo adequado às condições objetivas de cada ponto-momento. Nesse sentido, é um aspecto a ser explorado, como um vetor de análise da sociedade contemporânea. Nas sociedades que se reproduzem e se transformam na periferia dos movimentos internacionais de acumulação, a questão da mobilidade deve ser revista, de modo a registrar a complexidade dos deslocamentos de posição, entre os componentes que se transformam com mais intensidade e os menos dinâmicos. Os diferenciais de mobilidade revelam-se essenciais na determinação do conjunto dos movimentos de avanços e recuos nos ajustes setoriais e regionais da acumulação. Nos meios tradicionais, na pequena produção rural, em regiões estagnadas, em cidades pouco industrializadas, a mobilidade tem sido pouca ou nula, coincidindo com a perpetuação das estruturas fundiárias e com movimentos crônicos de emigração. Nas indústrias tradicionais, que funcionam com os padrões tecnológicos e organizacionais da primeira revolução industrial, a mobilidade tem sido muito baixa; e há inúmeros casos de arcaização e desativação de indústrias, que em vários casos revela movimentos de desindustrialização.

Destarte, uma interpretação econômica da mobilidade é essencial, para quaisquer renovações mais significativas da teoria do consumo. Primeiro, porque ajuda a perceber as progressões de diferenças de comportamento, no relativo a consumo em suas diversas formas; segundo, porque mostra que os padrões de consumo estão aderidos a condições concretas de participação em sociedades específicas, que em última análise, significa que podem mudar com a transferência de grupos de uma sociedade para outra. A variedade de reações frente aos movimentos de modernização, e de modos como são processadas as transformações no plano da técnica são, em todo caso, indicações que revelam essas diferenças de capacidade para mudar. A modernização O movimento geral de modernização combina uma progressão básica de renovação tecnológica, sustentada pelo desenvolvimento científico; e um movimento de substituição de referências culturais, fortemente identificado com a urbanização e com a internacionalização das comunicações. Ao longo do século XX, a modernização se acelerou e mudou de forma, inclusive quando seguiu rumos que negaram seus próprios padrões; e quando suas contradições puseram à vista suas tendências dispersivas, que se converteram na pós-modernidade. Os sucessivos impulsos da modernização estiveram, em todo caso, ligados à produção de energia e aos modos sociais de seu uso. Esse rumo geral levou, progressivamente e em diversos planos, a políticas - públicas e privadas - de uso maciço de energia, ao tempo em que, a valorizar a intensificaçào do uso de energia, na produção e no consumo. As possibilidades objetivas de desenvolvimento dos países, bem como suas expectativas, foram alimentados por sua capacidade para por mão em mais energia em menor tempo.

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Esse objetivo tácito verificou-se, desde o processo de produção de produção de bens ao de serviços; e estendeu-se aos modos de manejar o trabalho técnico, o administrativo e o intelectual. No essencial, a cobertura científica desse movimento se fundamenta nos mesmos princípios de aprofundamento, seleção e difusão controlada de conhecimento científico, com sua materialização na revolução da educação e na qualificação do trabalho. A pós-modernidade surge, justamente, quando os avanços do lado da qualificação do trabalho, e na renovação do componente não material da organização, direta e indireta, da produção, deixam como inflexíveis e inadaptados os sistemas de produção propriamente ditos, que se expandem nos aspectos materiais da produção, tanto como nos ideológicos; e que, precisamente, a partir destes últimos, gera orientações para a pesquisa tecnológica, queatingem o sisema, gerando movimentos em cadeia. Os movimentos da modernização desdobraram-se desde as renovações da base de tecnologia e da normatização, no plano organizacional, até os movimentos da qualificação do trabalho, que são, a todas luzes, os que se reproduzem sobre lapsos mais longos. Com o reconhecimento da importância dos modos pós-modernos de pensar e de operar, criou-se uma falsa impressão de que modernismo e pós-modernismo são duas formas, que podem ser isoladas e contrapostas. deixando como inflexíveis e inadaptados os sistemas de produção propriamente ditos. O distanciamento entre a difusão de conhecimento e informação e os princípios normativos da organização, fazem destes últimos uma sobrecarga, que se torna ideologicamente obstrusiva. Mas, ao ver a modernização como processo em curso, antes que como modo genérico de identificação, vê-se que ela conduziu mudanças irreversíveis das sociedades periféricas. Justamente por refletir os deslocamentos da formação de capital nos países controladores da renovação tecnológica, a modernização é um movimento necessário aos seus interesses, que em última instância representa seu controle sobre o consumo. A modernização cria novos mecanismos de controle antecipado do consumo, que regulam os canais de ascensão no quadro geral das condições de mobilidade prevalecentes em cada sociedade. E o comando desses mecanismos é uma forma de poder que se reproduz mediante o controle do nexo externo. No essencial, a renovação de técnicas tem que ser regulada de modo a garantir a amortização dos capitais e a remuneração dos investimentos novos. Do lado do centro, a modernização representava uma expansão de mercados e um mecanismo de controle da produção. Um exemplo notório é a chamada “revolução verde”, que aumentou rendimentos físicos à custa de um rápido aumento da dependência de insumos industriais, abrindo espaço para a produção industrializada de sementes, e para as vendas de fertilizantes e defensivos agrícolas em geral. Na periferia latino-americana, a modernização ensejou uma dupla operação, convergente com a sustentação das estruturas predominantes de poder, que são a valorização da capacidade instalada de produção rural, mediante subsídios à formação de capital e proteção de novas indústrias, que é quando se abrem oportunidades para um modelo de formação de capital, através da renovação e da expansão das atividades do terciário. E isto, finalmente, tem conseqüências mais profundas para a interpretação da formação de capital em geral, já que

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significa que a acumulação ganha novos significados, diferentes daqueles que podem sser inferidos de um dado conjunto de atividades, e de uma dada composição de produção de bens e realização de serviços. Ambos movimentos refletiram-se na administração da distribuição dos custos sociais dos movimentos de endividamento, em seus aspectos externo e interno. O esforço de cada país para pagar a dívida passou a ser um mecanismo de redistribuição de renda mediante privilégios de financiamento, tributação e inflação, que favoreceu àqueles grupose pessoas melhor preparados e situados para aproveitar o sistema de vantagens de apoio ao capital. Essa percepção da questão identifica o interesse privado unicamente com o das empresas, e descarta os demais componentes do interesse privado, tais como capitalistas individuais e detentores de patrimônio. Descarta-se, por exemplo, a legitimidade dos interesses privados organizados na agricultura em forma não empresarial, assim como os diversos interesses que se organizam a partir do consumo. Ignoram-se as diferenças de nível de organização do interesse privado, que coexistem nas economias periférricas. Tal pluralidade de interesses indica as posições dos consumidores como gestores da renda socialmente disponível, como indutores das transformações da capacidade instalada de produção e como indicadores de opções civilizatórias. Não há consumidores isolados nas cadeias de consumo, que são conjuntos de atos interdependentes de consumo, nem nos circuitos de consumo, que são conjuntos de atos de consumo, correspondentes a certas condições de renda. Noutras palavras, mesmo quando realizado de modo individual, o consumo é parte de certos coletivos, que determinam cada ato de consumo, ou que o situam num contexto de inter-relações, entre produzir e consumir. Consolidação e ruptura de interesses O padrão de acumulação traduz-se num padrão de inrteresses, que se consolidam e criam mecanismos de defesa, que se realimentam na continuidade da acumulação de capital, ou que se modificam, junto com substituições na forma de produção. Os dois movimentos, de consolidação e de ruptura, alternam-se no quadro atual do funcionamento dos sistemas de produção nos países latino-americanos, levando a uma grande continuidade das estruturas de poder, em sua articulação externa e em seu tecido interno. A combinação de movimentos de consolidação e de ruptura no nível operacional das instituições econômicas e das políticas, tornou-se evidente durante os os grandes impulsos de industrialização, entre o aproveitamento de créditos externos e o agravamento do desequilíbrio externo, entre o fortalecimento das empresas e a capacidade de um e outro para representar os interesses contidos na formação dos blocos de poder. Isso se refletiu no modo como as empresas manejam unidades de produção em diferentes níveis de tecnologia, usando o sistema financeiro com a captação de vantagens obtidas através do controle do Estado.

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Isso ficou igualmente claro na operacionalização administrativa dos governos, que passaram a acusar profundas diferenças entre seus níveis centrais ou federais, e os estaduais ou provinciais, ficando a modernização concentrada no nível federal ou centralizado. Os governos passaram a tratar, cada vez mais, com mega empresas e com outras organizações representativas dos interesses do capital e do trabalho, estabelecendo novas referências institucionais, desempenhando novos papéis na representação e no fomento dos interesses do capital. Assim como as empresas se transformam, para se capacitarem para gerir a combinação de interesses mercantís com as da indústria, e como o comércio se adaptou, para trabalhar com os produtos quea indústria impõe ao consumo, o Estado teve que se adaptar aos diversos papéis que lhe são requeridos para subsidiar o capital. Desse modo, a imagem de uma separação entre Estado e sociedade civil, entre governo e empresas, ou entre a formação do Estado e a das relações capital/trabalho, afasta-se, cada vez mais, da realidade. A atividade modernizadora dos governos amplia as diferenças entre os segmentos do capital que tiveram acesso a privilégios e os que não o tiveram. Destarte, elege os agentes capacitados como interlocutores para decidir sobre a condução do processo de acumulação. Por sua vez, a desigualdade incorporada ao sistema de distribuição da renda se acentua, junto com as diferenças entre os que chegam a empregos regulares e se sindicalizam; e os que não penetram no sistema de reconhecimento e legitimação das sociedades contemporâneas. O resultado final é um movimento generalizado de diferenciação da capacidade dos trabalhadores para representar seus interesses de classe, ao lado do aparecimento dos interesses daqueles que se reproduzem na informalidade, que, mesmo operando como quase capitalistas, já estão identificados com a perspectiva dos trabalhadores, já que não têm capacidade para transferir riscos, e têm sua renda regulada pela posse de seus instrumentos de trabalho. Como questão necessária do capitalismo de hoje coloca-se a organicidade da informalidade com sua complexidade e com suas ramificações na problemática do mundo da contravenção e da violência e em novas formas de exploração de grupos sociais reduzidos a falta de mobilidade. Aparentemente, a posse de instrumentos de trabalho continua sendo fundamental no acesso a ocupação, de diferentes modos, para trabalhadores manuais e não manuais, junto com o acesso à estrutura de informações que abastece, seletivamente, os diversos segmentos das sociedades. Os movimentos gerais de exclusão e de inclusão seletiva nos canais de acesso a elevação de renda desdobram-se em efeitos acumulativos, que alteram, progressivamente, as sociedades. Daí que a análise da relação Estado-empresa requer uma prévia reconstituição do contexto da formação ideológica e das práticas incorporadas nas estruturas administrativas de cada um desses âmbitos, para refletir as transformações que acontecem no plano da capacidade de produção e no da centralização do capital e do consumo. As empresas se desenvolvem em concomitância com transformações do Estado e reagem a modificações nas condições de mercado. A evolução das empresas desde suas primeiras formas familiares até as multinacionais

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e suas ramificações em relações com universidades e programas governamentais mostra uma adaptabilidade a condições de controle de demanda. A internalização de interesses privados na estrutura operacional do Estado é uma deteminação da reprodução do poder das empresas que busca constantemente respaldo fora do jogo do mercado e acode ao Estado e ao controle ideológico dos trabalhadores como meios de se complementar. O mundo das empresas reproduz o confronto dos diferentes interesses privados, e entre segmentos do capital e do trabalho, sendo que o aparecimento de instâncias de representação de interesses coletivos, tais como sindicatos e organizações patronais, substituem as representações individuais. Por isso, a internalização de interesses é um meio pelo qual o bloco hegemônico se reproduz em cada sociedade nacional, adaptando as relações locais às do âmbito nacional em seu conjunto. Vê-se, ainda, como certas políticas, como as que atingem a estrutura fundiária e o sistema de crédito, foram objeto de importantes diferenças entre propostas de governos centrais, bem como a execução dessas políticas, ao revelar diferenças entre os interesses representados no nível central e no local, sofreram modificações em suas aplicações locais.

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6. Veracidade e significado da análise em economia A renovação da dinâmica Na origem do interesse pela dinâmica da economia há duas fontes claramente diferenciadas. A primeira é Marx, com a dinâmica do desenvolvimento das forças produtivas, cujo significado ficou restrito ao campo marxista. A segunda é a dinâmica surgida no contexto da económica ocidental, em que o interesse por dinâmica - Harrod, Lindahl, Myrdal – é praticamente uma contra corrente do keynesianismo que permaneceu estático, marginalista e monetarista. O pleito acerca da dinâmica torna-se, adiante, essencial para a teoria do desenvolvimento na qual se divide entre os grupos que reconhecem a abordagem de Marx e os que trabalham a partir da dinâmica em Harrod. Hoje, a necessidade de uma teoria dinâmica é enfatizada de novo pela indiscutível falência da economia neoclássica para dar conta do ambiente critico do capitalismo avançado . Reconduzir a análise económica sobre pressupostos realistas e buscar uma nova operacionalidade é um imperativo daquela teoria social que reconhece a complexidade do sistema de produção e a diversidade de situações que ele compreende e em que se move.A alternativa é manter-se no plano da crítica. Entretanto, a criítica pura seria outro modo de alienação, contraditório com o requisito de compenetração da realidade, que se considera necessário para legitimizar a crítica. É revelador que a dinâmica na economia moderna tenha surgido como representação de um movimento abstrato e não contemple as alterações na composição social. Nessa condição a dinâmica será uma abstração do dinamismo das forças sociais e não refletirá as condições concretas em que se realizam a produção e o consumo. A questão geral da operacionalidade parte do problema levantado por Marx relativo a composição do capital, que se desloca seguindo a renovação de tecnologias e das capacidades para usar as técnicas existentes e as que se incorporam. Porisso há uma diferença entre ver aspectos operacionais em geral e operacionalizar e instrumentalizar a análise. Operacionalizar é dar condições para trabalhar praticamente com a teoria, ou seja, sair do limbo da crítica pura para tratar com a realidade.Instrumentalizar pode significar apenas desenvolver instrumentos que não necessariamente se sustentam na teoria( Morgenstern,1963). cuja aplicação pode dar uma falsa sensação de precisão.Pelo contrário, operacionalizar é trabalhar com a complexidade própria dos fenômenos e internalizar a experiência de superar os obstáculos epistemológicos que se apresentam (Bachelard, 1976).

Esta distinção põe a nú uma contradição do aparelho de análise no campo social, no relativo a sua capacidade operacional, no que ele se volta para instrumentalizar sobre situações de consistência lógica, que não necessariamente estão respaldadas pela experiência, ou em que há pressupostos de generalização ilimitada das proposições, cujos fundamentos factuais devem ser avaliados. Esse problema foi levantado por Adorno, no relativo à metodologia no campo social em seu sentido mais amplo, de modo da teoria que pré condiciona a análise aplicada (Adorno,1961). Também foi quesdtionado por Myrdal, em sua reivindicação de análises pertinentes aos problemas estudados (Myrdal,1968). No essencial, é uma distinção entre

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análises que trabalham com suas limitações e com suas margens de erro; e análises que pretendem aplicar modelos escolhidos independentemente das condições de erro. Supõe-se que instrumentos sejam efetivamente úteis, não que aparentam ser úteis.

A operacionalidade, portanto, está comprometida por uma preferência por resolver problemas de instrumentalização da reprodução do atual sistema de produção, como se ele pudesse prosseguir em sua atual configuração, apesar de se reconhecer que a renovação técnica e de qualificação tendem a deslocar o sistema de sua configuração atual para outra ou outras, que não necessariamente podem ser antecipadas.É a questão da instrumentalidade matemática, que atribui à matematização uma função de substituto da explicação, sem entrar no mérito do significado da prova matemática (Hicks, 1961).

Um aspecto decisivo nesse caso é o gasto de energia pelo sistem produtivo. É preciso aceitar como premissa do sistema de produção, que o consumo de energia continua aumentando e que o suprimento se realiza a custos crescentes e com progressiva diminuição da capacidade ampliar ou mesmo sustentar a oferta. O pressuposto de irreversibilidade (Prigogine, 1986,) torna-se referência necessária na discussão dos problemas de entropia (Georgescu Roegen,1972)e no de escassez absoluta (Pedrão, 1995).Como já se expôs em seções anteriores deste trabalho, a crítica mais profunda da economia ortodoxa dirige-se ao seu fundamento marginalista, justamente, por ser ela inseparável dos pressupostos de escassez relativa e de plena aplicabilidade do cálculo infinitesimal.

Finalmente, os padrões de operacionalidade do capital tomados na instrumentalização da economia são os do capital financeiro, isto é, da representação do capital, não da capacidade de produção que ele representa. Isto resulta em que a heterogeneidade do capital tem que ser ignorada, para criar-se um ambiente artificial de plena comparabilidade entre todas as formas e aplicações de capital. A crescente distância da teoria frente à contradição entre a continuidade da acumulação, a exclusão de pessoas do processo de produção e o desgaste de recursos, tornou-se incompatível com sua legitimidade como ciência social.Junto com essa distância, veio uma dificuldade quase insuperável de ver o processo em seu conjunto; e uma tendência a ver apenas aspectos( Goldmann, 1983).

Os aspectos negativos desse processo, tais como a destruição do ambiente, a queda do emprego formal, convergem numa questão central, de desajuste entre os rumos da transformação do sistema produtivo e as necessidades da sociedade.A totalidade reaparece através do aprofundamento da discussão dos aspectos (Habermas, 1973). Assim, torna-se necessário explicar o processo que gera essa contradição: não as situações específicas de racionalidade de decisão que ocorrem em seu interior. Daí, a análise deve ser dirigida para explicar os porques desse processo e não somente os como. Que há de previsível e de imprevisível nele, quais suas causas, mediatas e imediatas; e como ele se reproduz. Trata-se, portanto, de explicar a mudança social em sua inserção física, no que ela tem de duradouro e de transitório, de contínuo e de descontínuo.

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O trabalho em torno de uma renovação da análise dinâmica no campo social, especialmente em economia, tornou-se um imperativo, para refletir as demandas sociais sobre a economia e para acompanhar o desenvolvimento da ciência. Mas, a busca de uma explicação do dinamismo da economia, separada de uma visão de conjunto da teoria do social nào tem mais sentido que a tentativa de harmonizar o isolamento das províncias do conhecimento com a de um controle da validade científica do saber.

A construção de um pensamento teórico organizado a partir da perspectiva das transformações, sempre foi uma opção cognitiva cujo ponto de partida é a insatisfação com os desdobramentos consequenciais da perspectiva estática, que são descritivos e não podem oferecer explicações realistas do mundo. Trata-se de observar a realidade a partir da perspectiva da transformação, ou de te-la como um desdobramento possível de uma perspectiva da ordem, seja, aceitar como pertinente uma observação a partir das estruturas em si. A inpossibilidade de uma situação de ausência de transformação foi, primeiro, demonstrada por Zenon, num plano genérico especulativo, com argumentos igualmente válidos para o campo físico e para o social. Mas a construção da linguagem científica moderna sobre bases mecanicistas - Descartes e Newton - e do cálculo infinitesimal - Leibniz - aperfeiçoou a abordagem da análise instantânea, vazada num ambiente de pseudo-espaço e pseudo-tempo, que obstruiu a visibilidade de uma abordagem formulada a partir da transformação. Ao encarar a transformação tal como ela se dá no campo social, torna-se necessário levar em conta, que não há caso algum em que a repetição não seja o mecanismo que oferece oportunidades para a introdução de diferenças; e segundo, que as diferenças - sejam anomalias de um processo ou rupturas de um processo - são passos, que dão acesso a outras tantas diferenças. Significa, em primeiro lugar, admitir que a mudança é inevitável no campo social; e logo, que os trajetos de mudança que se percorre, como colocou Vico, são específicos; e se constroem de modo específico, na realidade de cada sociedade. Esse sentido de inevitabilidade e de especificidade deve-se a que em história é preciso pensar que o tempo não pára, que as mudanças acontecem com desigual intensidade e que se propagam com velocidade desigual sobre estruturas que reagem, por seus próprios meios, na transformação da economia mundial. A análise da dinâmica seria, portanto, um modo de aproximar-se mais da realidade. Mas é uma opção de perspectiva, que determina uma linguagem e uma temática. Desde os momentos iniciais de uma teoria social explicitamente organizada - no âmbito do idealismo crítico - há uma questão básica a resolver, para a formulação da dinâmica, que é de estabelecer os padrões que se aceita como representativos de mudança; e de determinar quais os horizontes de tempo em que ela é medida. As sucessivas discussões em torno da mensuração da renda são o primeiro dado e o mais representativo nesse sentido. O segundo, são as variações da capacidade instalada de produção e os usos a ela dados ao longo do tempo. Na perspectiva da economia, a questão central que se identifica, em torno do papel da atividade econômica na constituição da sociedade, é a relação entre a composição do capital, em sua

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estrutura atual e em suas variações; e o crescimento do produto, no que ele denota uma intensidade de crescimento e uma composição do produto gerado. Não há como escapar de considerar que cada composição de capital permite um número restrito de modos de uso; e que as possibilidades de crescimento do produto dependem desses usos. Esse quadro de possibilidades e restrições significa, simultaneamente, a identificação de um número restrito equivalente, de trajetos possíveis para o crescimento do produto; e a identificação de condições adequadas para isso, do lado da continuidade nas decisões de reposição de capital e do lado da qualificação dos trabalhadores. Tais requisitos, são progressivos, porque refletem os resultados que se alcançam e às alterações das condições em que o processo se realiza. Assim, há uma progressão construida sobre os múltiplos momentos em que se impõe tomar decisões que afetam os usos atuais e os potenciais da capacidade instalada de produção; se aduzem elementos de juizo sobre a extensão, a intensidade e a qualidade, na qualificação do trabalho; e as substituições do capital e do trabalho se traduzem em alterações de seu poder criador. As variações da capacidade instalada são os resultados finais de um conjunto de fatos pertinentes às unidades de produção - fábricas e outros - e às empresas, que se refletem nas condições objetivas em que participam em mercado e nas estratégias seguidas por cada empresa para participar em mercado. Correspondentemente, desenvolvem-se os mecanismos de controle dos usos de trabalho e de trabalhadores. Logicamente, as variações nos usos da capacidade resultam, tanto de dificuldades que as empresas encontram para aproveitar plenamente sua capacidade de produzir, como de estratégias de determinadas empresas, para aproveitar seus investimentos ou para ganhar margens nos preços. Bases doutrinárias da dinâmica econômica A teoria original da Economia Política, especialmente a dos Fisiocratas, foi uma teoria do dinamismo do sistema de produção. Os economistas clássicos trabalharam com a hipótese de um sistema econômico em transformação, cujo dinamismo é conduzido pela formação do capital industrial. A perspectiva estática, bem como a de trabalhar com sujeitos individuais do processo econômico, é uma contribuição dos marginalistas, que desde então não puderam sair do circulo vicioso da individualidade, do mesmo modo que já acontecera com Descartes. Numa visão em perspectiva histórica do conjunto das idéias que formam o tecido da teoria, é mais pertinente procurar contribuições doutrinárias mutuamente afins que seqüências temporais de produtos. Ao risco de errar, sempre, por insuficiência, cabe destacar algumas contribuições dos Fisiocratas e de Ricardo, respectivamente, no relativo à conceituação de causação circular e à colocação de elementos básicos para uma conceituação dos circuitos de produção. Essas duas contribuições foram fundamentais para a uma compreensão adequada de reprodução, portanto, para que se distingam o escopo da reprodução e da acumulação, assim

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como, identifiquem os problemas operativos de uma teoria que explique a sustentação do valor acumulado em sociedades , onde realmente se dá a disputa pela acumulação. Outra contribuição essencial nesse mesmo sentido, é a noção de composição do capital, desenvolvida por Marx, que tem incorporados, conjugados, os aspectos de qualidade do capital e do trabalho, que funciona como um registro da operacionalidade do sistema de produção, no que ela significa uma capacidade efetiva de uso dos recursos constitutivos do sistema econômico, para produzir e para consumir. Observe-se que a noção de composição orgânica aplica-se ao capital, não ao patrimônio. Em Marx a composição do capital é um conceito que resume a transformação do capital total existente, compreendendo alterações dos diversos capitais específicos que o compõem. Além disso, implica em supor que toda formação de capital tem uma dimensão qualitativa, que é essencial na compreensão do capital atual. De reconhecer a composição do capital, torna-se logicamente necesssário desenvolver uma análise que reconhece a complexidade das estruturas tal como elas realmente são; e não pretender simplifica-las para analisa-las. As interpretações de Schumpeter da corrente circular, com o encadeamento de produção e consumo na esfera da microeconomia, constituem outra contribuição fundamental nessa duração. Adiante, a tese de Myrdala de causação circular pressupõe a de um movimento que se reproduz com componentes que se repetem a componentes que se modificam. Pressupõe uma fundamentação psicológica, inegável em sistemas que se formam no campo social. Wicksell também contribui nesse campo, com suas observações sobre a fundamentação real dos fenômenos monetários, e de que a organização financeira tende, necessariamente, a mudar, respondendo a modificações na produção de bens tecnologicamente induzidos (Wicksell,1904). Essa discussão recebeu contribuições fundamentais, a partir do momento em que se desenvolveram os debates sobre o sub-desenvolvimento. Aqui, tornou-se necessário reconhecer a pluralidade de situações, que constitui o material de análise, bem como as instituições e a qualificação dos recursos humanos. Diante dos problemas concretos de descontinuidade da produção, de movimentos incontrolados de desvalorização, de recorrência de inflação e tendência ao desemprego, verifica-se a insuficiência da explicação de movimentos abstratos de crescimento.A visão de limites de recursos e a análise da empresa mostraram, desde a década de 70, que a velha análise dos ciclos econômmicos tinha que ser atualizada e incorporar uma crítica da entropia (Georgescu Roegen,1972).

Do mesmo modo, vê-se a precariedade daqueles pressupostos de condições genéricas de equilíbrio, que supõem invariância dos sistemas financeiro e monetário, e de suas inter-relações com a capacidade direta de produção. Uma das principais contradições – e insuficiências – da análise do desenvolvimento econômico foi, justamente, não ter incorporado entre seus pressupostos a posição central da transformação do capital financeiro, apesar de contar-se toda uma dinastia de análise do capital financeiro que levaria obrigatoriamente a perceber esse fato.(Hilferding, Luxemburgo, de Brunhoff).

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Dentre as inúmeras lições que se retiram dessa experiência de tentativas de desenvolvimento econômico, está, justamente, que as respostas de um mesmo tipo de políticas variam, no tempo e no espaço, segundo são aplicadas por diferentes agentes econômicos, e enquanto mudam os sistemas de produção e de financiamento, e muda a composição do consumo. O essencial é perceber a especificidade das políticas, ligado ao de limitação dos horizontes de confiabilidade de informações, de aplicabilidade dos equipamentos e da qualificação dos trabalhadores. No conjunto, corresponde às limitações objetivas dos horizontes de confiabilidade com que se estabelecem programas de produção, programas de investimento e de educação. Ao registrar os desajustes entre a composição do capital e a da mão de obra, em torno da produção anual e em relação com as propostas de programa de produção e formação de trabalhadores, a análise do desenvolvimento colocou questões muito mais amplas da reprodução dos sistemas de produção, que não podem ser desconsideradas na perspectiva de análise de dinâmica.Compreendeu-se que era preciso, como continua sendo, crescer mais que a operação do mercado internacionalizado oligopólico permite. Verificou-se, amargamente, como e quanto o desenvolvimento é contraditório aos interesses do capital internacionalizado. Será essa uma razão para preferir os interesses do grande capital e abdicar do desenvolvimento? A ilusão do desenvolvimento (Arrighi, 1996)apenas descreve a amarga realidade da desigualdade.A polémica em torno do desenvolvimento econômico também chamou a atenção para um aspecto especial da composição do sistema de produção, que é a combinação dos sistemas de infraestrutura, especialmente de energia e transportes, com os sub-sistemas constitutivos da produção de bens. Seja, por coincidir historicamente com a expansão desses sistemas, especialmente com a produção em massa de energia, o sistema de produção foi, progressivamente, condicionado pelo perfil dos sistemas de infraestrutura. Junto com a generalização do uso de energia elétrica, há um aspecto da padronização dos usos de energia na produção, que funciona como regulador da formação de capital, deixando de ser induzido, para ser indutor das transformações do sistema de produção.A emergência de uma produção alternativa de energia, isto é, fora dos sistemas integrados, é um modo de atender aqueles consumos que o sistema integrado não deseja atender, antes que um sinal de independência dos consumidores. Esses dois argumentos apontam a elementos próprios de cada sistema nacional de produção, no que eles podem ser tomados como parte da reprodução interna de economias nacionais. Mas contêm, implícitos, os efeitos indiretos de relacionamentos internacionais, já que as cifras globais de transações entre países denotal - e ao mesmo tempo, ocultram - relações entre empresas associadas e dentro de uma mesma empresa, que tornam fictício o conceito de balanço nacional de pagamentos internacionais. Sinteticamente, esses elementos aparecem na incorporação explícita dos elementos de ajustes e desajustes ao longo do tempo, entre a capacidade para exportar e para importar , cujo significado pode ser melhor apreciado à luz de uma visão de conjunto da previsibilidade e do controle dos movimentos de capital. Com esse critério, como se verá adiante, cabe julgar a importância do capital especulativo, frente ao capital que se incorpora efetivamente à produção; e considerar o significado das

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tendências predominantes, de aumento da proporção de capital especulativo, nas decisões de aplicações na produção. A análise dos fenômenos de desenvolvimento e de sub-desenvolvimento, completa-se com a das políticas econômicas determinadas pela preodominância de fenômenos de atraso e desigualdade, no que elas refletem determinada captação da realidade e determinada instrumentalidade nas intervenções. As formulações de políticas a curto, médio e longo prazo têm diferentes consistência e eficiência, segundo se sustentam sobre a cobertura e a confiabilidade de informações sobre o curto prazo, ou incluem maiores margens de previsões e de incerteza, a médio e a longo prazo. Há uma questão relativa a disponibilidade e qualidade de informações; e outra, relativa aos pressupostos doutrinários que orientaram a construção dos sistemas de informações. Nesse contexto, de atividades datadas e localizadas, a racionalidade técnica e a eficiência instrumental dos diversos agentes, com que se materializam suas participações na produção e no consumo, aparecem como produtos de confrontos de força e de conciliações entre interesses, mais e menos organizados, que se manifestam, com diferente continuidade, confiabilidade e incerteza. Em história, a razão se materializa em racionalidade. A experiência com os problemas de desenvolvimento e sub-desenvolvimento alertou, também, para o velho problema da finitude de recursos, que leva a confrontar o conceito marginalista de escassez relativa com o de escassez absoluta. A rigor, todos os recursos são finitos e atingidos por essa condição. Mas alguns são muito escassos, continuam sendo usados e não são substituíveis. O caso dos recursos minerais é o mais notório e demanda regras de raciocínio adequadas. O desenvolvimento de uma análise econômica dos recursos minerais ocupou o centro mais consistente da recente análise econômica do ambiente, dando-se que a operacionalização dessa economia da ecologia teve que enfrentar problemas práticos cada vez mais complexos, relativos à concepção dos fenômenos de descontinuidade, irreversibilidade e entropia. Trata-se, agora, de responder a demandas que se formam em outras áreas do conhecimento. Frente a esses problemas, a teoria econômica é chamada a dar outro tipo de respostas, que se somam aos antes indicados, de desemprego e exclusão. Sinteticamente, a sociedade econômica atual convive com uma expansão de seus horizontes espaço-temporais, concomitante a uma entropia de seus recursos físicos.A base territorial do sistema produtivo encontra áreas de expansão e outras de decadência combinando aumentos vegetativos de população com migrações e estas úlltimas com movimentos expulsivos e atrativos. Com essa compreensão da complexidade de elementos comportamentais que interagem, chega-se a uma nova leitura da ligação entre o plano físico e o social. A visão do mundo físico que se extrai do nível atual de conhecimento do universo de matéria e energia, é a de um ambiente constituido de forças, em parte convergentes e em parte contraditórias, que operam de modo eventualmente conhecido, mas sujeito a uma erraticidade não conhecida. Tal visão obriga a reconsiderar os modos como a teoria econômica processa os dados dos movimentos da natureza.

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A análise do meio ambiente desenvolveu-se como novo catalítico do conhecimento e das percepções do universo físico, levando a colocar de modo mais amplo e radical os problemas de incerteza da produção. Essas observações compreendem, desde os elementos relativos aos macro-ambientes climáticos e modificações de solo e sub-solo, às condições de funcionamento do universo nuclear, com suas consequências na reprodução de vida, portanto, nas condições em que pode haver povoamento, produção e consumo. A incorporação desses novos níveis de conhecimento traduz-se em novos requisitos de análise, no relativo ao tratamento da incerteza e da continuidade entre a percepção do curto e do longo prazo. A questão do contraste entre os elementos estruturais da análise instantânea - geralmente tomada como de curto prazo - e a de longo prazo, que se faz com referências genuínas de tempo. Com essas referências, ressurge a velha questão do tratamento do tempo na operacionalização da teoria. Destacam-se, agora, dois aspectos principais: o de continuidade entre as referências de anállise feitas sobre diferentes horizontes de tempo; e de distinção entre duração dos fenômenos e prazos de análise. A possibilidade lógica, de objetos que podem funcionar sem se enquadrarem em horizontes definidos de depreciação tem que ser considerada, já que significa uma outra abertura de análise da renovação dos horizontes de tempo. Horizontes espaço-temporais e entropia do sistema de produção Com essa visão da relação entre o plano físico e o social, torna-se necessário colocar alguns aspectos principais do quadro físico. Destacam-se os seguintes: • A economia usa recursos que tendem a se esgotar. • As possibilidades de substituição de recursos são limitadas em tempo e espaço e

genericamente decrescentes. • A participação de trabalhadores na produção tende a cair em termos absolutos. • Os interesses sobre a reprodução e a expansão do sistema divergem, mesmo quando não são

contraditórios. • A sobrevivência das empresas ao conflito de interesses é desigual e tem conseqüências

também desiguais em tempo e espaço. Esses elementos governam as margens de liberdade com que se formulam e desenvolvem análises do sistema de produção. Na prática, não há como levar a cabo uma análise realista da economia hoje, sem levar em conta esses fatos. Prévia a qualquer colocação sobre a definição de uma sistemática de análise, é preciso estabelecer quais são as condições ambiente necessárias para situar a compreensão do funcionamento do sistema social e técnico da produção. Até o advento da industrialização da produção, os sistemas de produção - regionais, nacionais ou imperiais - sucederam-se com variadas continuidade e descontinuidade. Desde então, apesar de tão pouco tempo transcorrido, subentende-se que o sistema seja contínuo, seja, que a produção

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industrializada - diferente da mercantil - tem a capacidade de reintegrar integralmente seus resultados, portanto, de expandir-se a uma velocidade crescente. Há três possibilidades de que isso não aconteça. Primeiro de que uma parte do esforço de trabalho realizado não se complete, e se frustre antes de dar resultados; a de que haja desperdício do trabalho realizado e concluido; e segundo de que a capacidade de produção construida não seja adequadamente usada. São três possibilidades que não são mutuamente excludentes, que em todo caso devem ser examinadas frente às condiçPrimeiroões objetivas de mercado em que as operações de produção e consumo acontecem, e em todo caso, em que o uso da capacidade instalada e da qualificação incorporada ao trabalho acontecem. A expansão dos horizontes espaço-temporais se faz à custa da transformação de força de trabalho dispendida em formas de capital que retêm certo poder de reprodução no sistema. É válida enquanto essas formas de capital são equivalentemente produtivas; e deixa de ser válida quando elas perdem essa formalidade. Os horizontes espaço-temporais possíveis da produção mercantil-agrícola-manufatureira mudaram quando foram modificadas as perspectivas de renovação tecnológica dos equipamentos navais; e quando foi inventado o relógio de pêndulo, que permitiu homogeneizar o controle do tempo. Tal perda pode decorrer de alterações no modo de funcionamento do sistema em seu conjunto, ou de alguma de suas partes em especial. Por exemplo, a acumulação em equipamentos movidos a carvão deixou de ser funcional, quando a maior parte dos equipamentos passou a ser movida a diesel ou pela energia de sistemas integrados. Paralelamente, houve outra perda, quando a tecnologia produtora de equipamentos movidos a carvão se torna insatisfatória em cada segmento da produção. Assim, há uma perda nos sistemas de produção, que decorre de seu modo de funcionamento e da intensidade de seu funcionamento, segundo o tipo de recursos que eles usam.Isso se aplica a sistemas que usam energéticos completamente não renováveis para produzir bens descartáveis e contaminantes (v.g. baterias de telefones celulares, até sistemas que usam energéticos plenamente renováveis, como energia solar direta, para produzir alimentos. Evidentemente, daí, pode se desenhar uma tabela dos sistemas, dos mais renováveis aos menos renováveis, dos de baixa entropia aos de alta entropia. Mas há outra perda, que se localiza na relação entre o funcionamento do sistema de produção e o sistema de recursos sobre o qual ele se assenta. Tanto como a produção usa recursos não substituíveis, ela estabelece novas rotas de organização do sistema de recursos, com correspondentes modos de inserção de cada tipo de recurso. A entropia dos recursos naturais pode ter uma trajetória definida muito acima daquela do sistema de produção e, em todo caso, pouco sensível a ela. Mas constitui uma referência, cujo significado não pode ser desconsiderado, porque induz efeitos generalizados no sistema, que podem chegar de modo direto, tais como do esgotamento de uma mina, ou indireto, como os de uma queda de vazão de rio, causada por desmatamento.

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A causação circular acumulativa Há, de fato, três abordagens da questão da dinâmica no campo social, que se complementam ao longo dos raciocínios analíticos. Uma que procura relações de causalidade do sistema de produção, no modo como ele se reproduz e se expande. Outra, que observa os efeitos do ambiente social e físico no dinamismo da economia. Finalmente, outra, que apomta às interações entre as relações de causalidade próprias dos sistemas de produção e as do sistema de recursos sobre o qual ele se instala. O principal problema de análise está, justamente, na relação entre a composição do capital e o crescimento do produto social. Não há como evitar de considerar, que cada composição de capital permite um número restrito de modos de uso de capital; e que as possibilidades de crescimento do produto dependem desses usos. Esse quadro de possibilidades e restrições significa, simultaneamente, a identificação de um número restrito de trajetos possíveis para o crescimento do produto; e a identificação de condições para isso, do lado da continuidade nas decisões de reposição de capital, e do lado da qualificação dos trabalhadores. Tais requisitos, logicamente, seriam progressivos, respondendo aos resultados que se alcançam e às alterações das condições em que o processo de produção se realiza. Assim, é uma progressão construida sobre os múltiplos momentos em que se impõe tomar decisões que afetam os usos atuais e potenciais de capacidade instalada de produção; em que se aduzem elementos de juizo sobre a extensão, intensidade e qualidade na qualificação do trabalho; e finalmente, em que as substituições de capital e de trabalho se traduzem em alterações de seu poder criador. As variações da capacidade instalada são resultados finais de um conjunto de fatos pertinentes às unidades de produção - fábricas ou outros - e às empresas. Mas, também, têm que ser revisadas. Não são resultados de períodos claramente divididos, senão que resultados flutuantes, que são constantemente alterados. A noção de causação circular acumulativa é necessária, quando se trata com universos não estáticos ou quando se admite que o universo social da produção protagoniza o encontro de uma dialética orgânica com a mundo em que acontece. O sistema de produção se expande, de modo desigual, com movimentos concomitantes de retrocesso. A verdadeira estagnação torna-se uma anomalia, justamente por ficar fora dos movimentos de expansão e retrações na acumulação de capital e na qualificação de trabalho. Na prática, a causação circular significa que investimentos levam a novos investimentos; e que a qualificação do trabalho é progressiva: leva a aprofundamento e difusão do conhecimento. Por extensão, leva à formação de certas tendências na formação de capital, que deslocam o sistema de um perfil de funcionamento a outro.

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Os circuitos de produção O dinamismo da relação entre o sistema de recursos e o de produção se realiza mediante cadeias específicas de relacionamento concreto entre participantes da sociedade econômica, em suas diversas ações de produção e de consumo. Mediante cadeias de eventos e efeitos em cadeia, os vários agentes têm diferentes âmbitos e intensidade de participação na sociedade econômica, segundo participam de formas de organização local, micro ou macro regional, nacional ou internacionalizadas; e segundo participam de formas estáveis ou precárias de participação. A primeira observação que leva a trabalhar com a noção de circuitos de produção, é que todos os relacionamentos em torno da produção e do consumo, se realizam em lapsos de tempo, que por menores que sejam, formam parte do processo total de uso do tempo; e estabelecem os tempos atribuídos a cada conjunto de atividades ligado à produção de uma dada mercadoria.A redução do tempo trazida pela telemática qualifica essa colocação, mas não a elimina, senão ressalta a diferença entre os segmentos da economia mundial que operam nesse tempo quase nulo e todos aqueles outros segmentos que operam em intervalos de tempo significativos. Essa observação leva a questionar, como não representativa, a modalidade de análise marginalista em economia, que utiliza uma linguagem baseada no cálculo infinitesimal e que se representa nos pseudo-espaços demarcados por eixos ortogonais. Ao reconhecer que todas as atividades têm alguma duração, contrasta-se seu tempo positivo com o tempo nulo, que seria pré-condição necessária dessa análise instantânea, observando que os tempos específicos insumidos em cada atividade só têm sentido pela posição que ocupam na seqüência específica das atividades envolvidas na produção de um dado produto. Por exemplo, o tempo gasto com a modelagem de uma máquina só se compreende como seqüência do tempo gasto nma usinagem de seus componentes e no que, adiante, será gasto em sua pintura. O mesmo acontece na seqüência clássica das atividades agrícolas desde o plantio à colheita. Destaca-se, portanto, a diferença entre os tempos reais das atividades incorporadas em processos e o pseudo-tempo dessas mesmas atividades consideradas isoladamente, ou em que possa haver atividades em tempo realmente nulo.Na prática a redução do tempo das comunicações não elimina o tempo da produção industrial. Renda familiar,continuidade e descontinuidade na qualificação dos trabalhadores A questão central relativa ao tabalho refere-se ao futuro dos que são ou precisam ser trabalhadores, compreendendo a situação dos que podem ser denominados atualmente de trabalhadores, dos que precisam trabalhar para sobreviver, ou que querem trabalhar por uma ou outra razão.De um lado estão as necessidades da população, de encontrar ocupação remunerada; e de outro lado está a demanda de trabalho por parte do sistema de produção.

Enquanto essa demanda de trabalho é regida pela lógica da reprodução do capital, logicamente, tende a procurar soluções que aumentem o controle do capital sobre a sociedade.Os limites

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internos desse controle estão na relação capital-trabalho, que materialmente é a relação entre empregadores e empregados. Mas esses limites internos correspondem a limites externos, que são os da viabilidade política das relações de trabalho. Tais limites externos terão que ser examinados objetivamente.

O cerne do problema é a polaridade entre dominação e equidade,que regula a desigualdade e a igualdade de oportunidades(Smith, 1977; Galbraith, 1996). Mas esse problema é tergiversado, quando é apresentado como um problema de aproveitamento do potencial de trabalho da sociedade civil pela sociedade econômica, do mesmo modo como se apresenta a relação com o trabalhador como uma relação unidimensional (Marcuse, 1967).

O processo geral de desemprego e de exclusão, temporária ou permanente, das pessoas do mercado de trabalho, o impedimento de que os jovens entrem na sociedade econômica,é um resultado da lógica da acumulação, que se desenvolve em sentido contrário ao da lógica do desenvolvimento social. O processo em si de exclusão está ligado a problemas de descontinuidade na qualificação dos trabalhadores, que se traduzem em aumento do número daqueles que perdem capacidade para conseguir ocupação, e daqueles que não conseguem entrar no mercado de trabalho.

As grandes tendências da criação de postos de trabalho contrastam com a necessidade insubstituível, de conseguir renda de todos que não têm rendas de capital.Daí, a operacionalidade da economia reafirma-se como aquela proposta por Hegel,"de atender as carências (objetivas) da sociedade". Acumulação restrita e acumulação secular A velha questão da acumulação refere-se à projeção do sistema de produção em seu próprio tempo, de mdo análogo à projeção de uma galaxia no espaço que ela própria cria. As teorias dos clássicos referem-se ao movimento geral de acumulação inerente ao processo econômico, que pode ser atribuído às condições favoráveis e às restrições da produção industrializada. Tal movimento,como disse Marx, está condicionado por uma sucessão de movimentos de conversão entre formas de produção, que por sua vez representam condições de complexidade do sistema de produção. As mudanças estruturais no perfil dos movimentos negativos de transformação do sistema – suas desvalorizações – levam a questionar esse eixo de relação entre as conversões do capital e o movimento secular de acumulação.Em princípio, há fundamento para questionar a continuidade, primeiro, porque ela depende da sociedade, que se engaja em processos de expansão econômica ou que opta por manter padrões de reprodução e de consumo.Segundo, porque ela encontra obstáculos materiais, tais como restrição de energéticos e de água, e não só obstáculos epistemológicos a la Bachelard. Terceiro, porque a perspectiva de futuro representa sempre uma ruptura com o presente, que dificilmente interessa a quem controla hoje o sistema. A tese de que o comércio engendra crises financeiras necessárias a sua expansão (Braudel, 1996; Arrighi,1997) aponta a certa tendência à crise, justamente, como resultado da irreversibilidade

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das desvalorizações, da entropia do sistema de recursos e da perda social do processo.De fato,a esfera financeira vive sempre à beira da crise, ou em crises parciais, que funcionam como mecanismos de reajuste. A plena estabilidade não pode ser almejada, porque é incompatível com a renovação tecnológica. O desemprego tem sido o mecanismo de expurgar trabalhadores que não podem acompanhar os requisitos do capital.

Assim, qualquer análise dinâmica, que pretenda considerar condições concretas de funcionamento do sistema de produção,é também uma teria da mudança social. É uma teoria que tem que trabalhar no ambiente de restrições dado pela entropia de recursos e pelo aumento de complexidade da sociedade.Assim, tem que trabalhar em termos de movimentos restritos de acumulação, que se desdobram desigualmente, entre os espaços sociais das diversas economias.São movimentos que se vêm de diversos modos, segundo a economia desde a qual se analisa o fenômeno. Os movimentos de acumulação restrita são os que estão ao alcance das sociedades não hegemônicas, que flexibilizem a tendência geral do sistema.

Tal alternativa, entretanto, depende de como cada economia periférica se integra no circuito de economia internacionalizada, como combina posições desfavoráveis e posições favoráveis. Referências bibliográficas ADORNO, Theodor W., Dialectica Negativa, Taurus, Madrid, 1975. ADORNO, T; Horkheimer, M., Dialética do Esclarecimento, Jorge Zahar, Rio, 1985. AMIN, Samir, La Acumulación a Escala Mundial, Siglo XXI, Mexico, 1972. Aristóteles, Obras, Aguilar, Madrid, 1977 Albert, Hans, Tratado da Razão Crítica, Tempo Brasileiro, Rio, 1976. ARRIGHI, Giovanni, A ilusão do desenvolvimento, Vozes, Petrópolia, 1997. - O longo século XX, Unesp. São Paulo, 1996. Baran, Paul, La Economia Política del Crecimiento, Fondo de Cultura Económica, Mexico, 1983. Bloch, Ernst, Sujeto-Objeto, el Pensamiento de Hegel, Fondo de Cultura Económica, 1983. Boulding, Kenneth, A Reconstruction of Economics, Science Editions, Nova York, 1967. Braudel, Fernand, O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico, Martins Fontes, Lisboa, 1983.

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