Edição 1 - Agosto 2015

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Infográfico As vidas e os números Sem resposta Rodrigo Peixoto Jaime Cunha O estopim da chacina Jornal Laboratório da Faculdade de Comunicação UFPA Ano I Nº 01 Agosto, 2015 UMA NOITE SEM FIM Nove meses após a chacina em Belém, famílias esperam por justiça. Maria Auxiliadora (foto) perdeu o neto Eduardo Chaves, 16 anos. Saiba quem foram as vítimas da chacina e como o crime reforça a estatística acima da média de homicídios de jovens em Belém e no Pará. Pág. 06 e 07 “O Brasil necessita de uma diferente estrutura de segurança pública, um modelo desmilitarizado de polícia, que sgnifica o próprio fim da PM.” Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFPA. Pág. 02 “A polícia, no Pará, tem 14 mil pessoas e a sociedade sempre se refere a ela como se toda a instituição fosse corrupta ou violenta” Professor do mestrado profissional em Defesa Social e Mediação de Conflitos da UFPA. Pág. 11 Após a execução do Cabo Pet (foto), dez pessoas foram assassinadas em seis bairros da periferia. Apesar dos avanços com a CPI das milícias e o resultado do inquérito militar, o inquérito civil segue inconcluso e sob segredo de justiça. Pág. 04 e 05 18 Um dia antes de morrer, Nadson fez aniversário. Estava entre amigos, na frente da casa de um deles, quando motoqueiros pararam na porta. Foi atingido por dois tiros. Nadson, mais conhecido como careca, era homossexual. Morava com uma de suas irmãs e trabalhava com venda de comida no Comércio. Nadson da Costa Araújo 01:51 21 O Primeiras Linhas não conseguiu detalhes sobre este caso. Jean Oscar Ferro dos Santos 00:05 25 O Primeiras Linhas não conseguiu detalhes sobre este caso. Segundo a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, a família de César tem medo de represálias. César Augusto Santos da Silva 22:42 trabalhava como ajudante de pedreiro. Estava em um churrasco com amigos e o irmão, de 13 anos. Três encapuzados apareceram. Atiraram em Murilo seis vezes. O irmão viu tudo e chamou por socorro. A ajuda chegou para levar o jovem ao hospital, mas viaturas da polícia impediram. Ferreira Barbosa 43 Além de ser policial militar, atuava como empresário no ramo do monitoramento de câmeras de vigilância. Era um dos líderes da milícia. Levou 20 tiros. Os assassinos estavam em um carro prata. A matança das horas seguintes foi uma resposta à execução de Pet. Antonio Marcos da Silva Figueiredo (Cabo Pet) 19:40 16 Fazia o 1º ano do ensino médio, trabalhava com entrega de frutas e ajudava a família com a venda de churrasco. Queria ser policial. Estava com a namorada quando, a um quarteirão de casa, homens vestidos de preto e dirigindo motos os cercaram. A moça foi liberada. Eduardo levou cinco tiros. Eduardo Felipe Galucio Chaves 21:52 20 Bruno morava em Belém há dois anos, na casa da tia. Trabalhava como cobrador de van. Seguia com a namorada na bicicleta quando homens vestidos de preto o pararam e mandaram que a moça se afastasse. Um deles disparou contra Bruno. Quatro tiros. De casa, Dalcymere Gemaque, a tia do jovem, pôde ouvir. Bruno Barroso Gemaque 22:00 21 Morava no Conjunto Carandiru, no Sideral. O Primeiras Linhas não conseguiu detalhes sobre este caso. Por conta de pressões e ameaças, familiares de Alex saíram de Belém. Alex dos Santos Viana 23:37 37 Conhecido como Jarrão, Arllesonvaldo tinha deficiência cognitiva e era cuidado pela mãe. Ele soube do toque de recolher, mas o ignorou. Foi cercado na rua e levou cinco tiros: um na perna, quatro no tronco. Mas não morreu na hora. Levado ao hospital, ainda aguentou até às 18h do dia seguinte. Allersonvaldo Carvalho Mendes 22:15 27 Jeferson trabalhava no setor de serviços gerais em um supermercado. Fazia tratamento contra hanseníase. Morava com a mãe no Guamá, mas estava na Terra Firme quando soube do toque de recolher. No caminho de volta para casa, apareceu um carro prata. Jeferson foi assassinado com três tiros. Jeferson Cabral dos Reis 22:08 Fotos: Luana Coelho Maria Auxiliadora e as lembranças do neto Eduardo, a mais jovem vítima da chacina JURUNAS TERRA FIRME Condor Cremação Cidade Velha Campina Reduto Umarizal Fátima Telégrafo Barreiro Miramar Pedreira Sacramenta Maracangalha Val-de-Cans Pratinha Coqueiro Guajará Tenoné Águas Negras Una São Clemente Benguí Cabanagem Marambaia Mangueirão Castanheira Guanabara Águas Lindas Souza Nazaré São Braz Canudos Batista Campos GUAMÁ MARCO TAPANÃ PARQUE VERDE Universitário Aurá Curió-Utinga Crescimento das taxas de homicídio de 2002 a 2012, na população jovem, em Belém. Crescimento das taxas de homicídio de 2002 a 2012, na população jovem, no Pará. Declínio das taxas de homicídio de 2002 a 2012, na população jovem, média das capitais brasileiras. Curva das taxas de homicídio de 2002 a 2012, na população jovem, média brasileira. Acesse aqui o Mapa da violência Fonte: Mapa da violência: os jovens do Brasil (2014) HOMICÍDIOS DE JOVENS NO BRASIL Homicídio é a principal causa de morte de jovens de 15 a 29 anos. Perfil das vítimas: Jovens negros, do sexo masculino, moradores de periferias e áreas metropolitanas dos centros urbanos Em 2012: Total de jovens: 52,2 milhões (26,9% do total da população) Homicídios de jovens: 30.072 (53,4% do total de homicídios do país) 140,9% 2002/2012 VARIAÇÃO DE 70,2% 2002/2012 VARIAÇÃO DE 92,6 94,1 87,4 78,5 95,7 32,3 37,5 40,5 55,1 57,0 77,9 76,7 73,7 77,1 86,8 56,1 57,0 53,3 50,5 50,7 49,7 57,6 53,5 52,8 53,0 54,5 78,5 78,6 81,2 82,3 80,8 82,7 76,6 59,8 68,0 57,4 100,7 126,1 101,8 84,5 100,9 73,2 67,7 51,9 Opinião Entrevista VIOLÊNCIA Luana Coelho

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Nesta edição temática, o jornal-laboratório Primeiras Linhas trata da chacina ocorrida em Belém em novembro de 2014

Transcript of Edição 1 - Agosto 2015

Page 1: Edição 1 - Agosto 2015

Infográfi coAs vidas e os números

Sem respostaRodrigo Peixoto

Jaime Cunha

O estopim da chacina

Jornal Laboratório da Faculdade de Comunicação UFPA Ano I Nº 01 Agosto, 2015

UMA NOITE SEM FIMNove meses após a chacina em Belém, famílias esperam por justiça. Maria Auxiliadora (foto) perdeu o neto Eduardo Chaves, 16 anos.

Saiba quem foram as vítimas da chacina e como o crime reforça a estatística acima da média de homicídios

de jovens em Belém e no Pará. Pág. 06 e 07

“O Brasil necessita de uma diferente estrutura de segurança pública, um modelo desmilitarizado de polícia, que sgnifi ca o próprio fi m da PM.”

Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFPA. Pág. 02

“A polícia, no Pará, tem 14 mil pessoas e a sociedade sempre se refere a ela como se toda a instituição fosse corrupta ou violenta”

Professor do mestrado profissional em Defesa Social e Mediação de Conflitos da UFPA. Pág. 11

Após a execução do Cabo Pet (foto), dez pessoas foram assassinadas em seis bairros da periferia.

Apesar dos avanços com a CPI das milícias e o resultado do inquérito militar, o inquérito civil segue inconcluso e sob segredo de justiça. Pág. 04 e 05

O MAPA, OS NÚMEROS, AS HISTÓRIAS

18

Um dia antes de morrer, Nadson fez aniversário. Estava entre amigos, na frente da casa de um deles, quando motoqueiros pararam na porta. Foi atingido por dois tiros. Nadson, mais conhecido como careca, era homossexual. Morava com uma de suas irmãs e trabalhava com venda de comida no Comércio.

Nadson da Costa Araújo01:51

21

O Primeiras Linhas não conseguiu detalhes sobre este caso.

Jean OscarFerro dos Santos

00:05

25

O Primeiras Linhas não conseguiu detalhes sobre este caso. Segundo a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, a família de César tem medo de represálias.

César AugustoSantos da Silva

22:42

20

trabalhava como ajudante de pedreiro. Estava em um churrasco com amigos e o irmão, de 13 anos. Três encapuzados apareceram. Atiraram em Murilo seis vezes. O irmão viu tudo e chamou por socorro. A ajuda chegou para levar o jovem ao hospital, mas viaturas da polícia impediram.

Marcus MuriloFerreira Barbosa

22:30

43

Além de ser policial militar, atuava como empresário no ramo do monitoramento de câmeras de vigilância. Era um dos líderes da milícia. Levou 20 tiros. Os assassinos estavam em um carro prata. A matança das horas seguintes foi uma resposta à execução de Pet.

Antonio Marcos daSilva Figueiredo (Cabo Pet)

19:40

16

Fazia o 1º ano do ensino médio, trabalhava com entrega de frutas e ajudava a família com a venda de churrasco. Queria ser policial. Estava com a namorada quando, a um quarteirão de casa, homens vestidos de preto e dirigindo motos os cercaram. A moça foi liberada. Eduardo levou cinco tiros.

Eduardo FelipeGalucio Chaves

21:52 20

Bruno morava em Belém há dois anos, na casa da tia. Trabalhava como cobrador de van. Seguia com a namorada na bicicleta quando homens vestidos de preto o pararam e mandaram que a moça se afastasse. Um deles disparou contra Bruno. Quatro tiros. De casa, Dalcymere Gemaque, a tia do jovem, pôde ouvir.

Bruno Barroso Gemaque22:00

21

Morava no Conjunto Carandiru, no Sideral. O Primeiras Linhas não conseguiu detalhes sobre este caso. Por conta de pressões e ameaças, familiares de Alex saíram de Belém.

Alex dos Santos Viana23:37

37

Conhecido como Jarrão, Arllesonvaldo tinha de�ciência cognitiva e era cuidado pela mãe. Ele soube do toque de recolher, mas o ignorou. Foi cercado na rua e levou cinco tiros: um na perna, quatro no tronco. Mas não morreu na hora. Levado ao hospital, ainda aguentou até às 18h do dia seguinte.

AllersonvaldoCarvalho Mendes

22:15

27

Jeferson trabalhava no setor de serviços gerais em um supermercado. Fazia tratamento contra hanseníase. Morava com a mãe no Guamá, mas estava na Terra Firme quando soube do toque de recolher. No caminho de volta para casa, apareceu um carro prata. Jeferson foi assassinado com três tiros.

Jeferson Cabral dos Reis22:08

22

Marcio era operador de caixa de um restaurante no Umarizal. De folga, foi lanchar com amigos na praça de alimentação do Cordeiro de Farias. Por volta de 0h40, mandou mensagem via Whatsapp para a mãe, Suzana Amaral, dizendo logo iria para casa. Já chegando, foi atingido por um único e fatal tiro.

Marcio Santos Rodrigues01:57

Onze vidas interrompidas à bala. Seis bairros. Uma cidade amedrontada. Boa parte dos assassinatos que marcaram aquela noite de novembro em Belém atingiu a juventude. A chacina engrossou as estatísticas de homicídios de jovens no Brasil. Nadson só pôde saber por um dia o que é ter 18 anos. O irmão de Murilo, de 13, vai lembrar para sempre de quando o viu ser assassinado. Bruno não vai mais andar de bicicleta com a namorada. Eduardo nunca será policial. Por trás dos números, existem histórias vividas e outras que não deram tempo de ser escritas.

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Maria Auxiliadora e as lembranças do neto Eduardo, a mais jovem vítima da chacina

JURUNAS

TERRAFIRME

Condor

Cremação

CidadeVelha

CampinaReduto Umarizal

Fátima

Telégrafo

Barreiro

Miramar

Pedreira

Sacramenta

Maracangalha

Val-de-Cans

PratinhaCoqueiro

Guajará

Campina deIcoaraci

Agulha

Cruzeiro

Paracuri

Ponta Grossa

Tenoné

Águas Negras

Maracacueira

Brasília São João do Outeiro

Itaiteua

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Una

SãoClemente

Benguí

Cabanagem

Marambaia

Mangueirão

Castanheira

Guanabara

ÁguasLindas

Souza

Nazaré

São Braz

Canudos

BatistaCampos

GUAMÁ

MARCO

TAPANÃ

PARQUEVERDE

Universitário

Aurá

Curió-Utinga

Crescimento das taxas de homicídio de 2002 a 2012, na população jovem,em Belém.

Crescimento das taxas de homicídiode 2002 a 2012, na população jovem,no Pará.

Declínio das taxas de homicídio de 2002 a 2012, na população jovem,média das capitais brasileiras.

Curva das taxas de homicídiode 2002 a 2012, na população jovem,média brasileira.

Acesse aqui oMapa da violência Fonte: Mapa da violência: os jovens do Brasil (2014)

HOMICÍDIOS DE JOVENS NO BRASIL Homicídio é a principal causa de morte de jovens de 15 a 29 anos.

Per�l das vítimas:Jovens negros, do sexo masculino, moradores de periferias e áreas metropolitanas dos centros urbanos Em 2012: Total de jovens: 52,2 milhões (26,9% do total da população) Homicídios de jovens: 30.072 (53,4% do total de homicídios do país)

140,9%2002/2012

VARIAÇÃO DE

70,2%2002/2012

VARIAÇÃO DE

92,6 94,187,4 78,5

95,7

32,337,5

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Opinião

Entrevista

VIOLÊNCIA

Luan

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2 - PRIMEIRAS LINHAS - agosto/2015

Coluna do Editor

Opinião

Manuel Dutra

A polícia e a senzalaGrande parte da população de

Belém amanheceu particularmente assustada na manhã de 5 de novembro de 2014, depois que, via redes sociais, foi disseminada a informação sobre uma série de assassinatos entre o fi nal da noite do dia 4 e início da madrugada do dia 5, em diferentes bairros, com destaque para a Terra Firme e o Guamá.

Mensagens assus tadoras foram divulgadas na internet, como esta que, no dia seguinte, apareceu reproduzida no blog Negro Belchior –Afroativismo na Rede: diversidade e direitos humanos: “Convocação geral! Amigos o nosso irmãozinho PET (Cabo Figueiredo) acabou de ser assassinado no Guamá estou indo espero contar com o máximo de amigos vamos dar a resposta SGT Rossicley”.

Ou postagens como esta, estampada no Diário do Pará do dia 5: “Senhores, sério, por favor, façam o que for preciso, mas não vão para o Guamá nem para Canudos nem para a Terra Firme hoje à noite. É uma questão de segurança dos senhores, tá? Mataram um policial nosso, e vai ter uma limpeza na área. Ninguém segura ninguém, nem o coronel das galáxias”.

Na verdade, foram dez as vítimas de uma das mais graves chacinas ocorridas na violenta capital paraense. Nove meses após os crimes, a equipe do Primeiras Linhas, composta por estudantes de Jornalismo da UFPA, entra em campo tentando desvendar o algo mais dos informes factuais, entrevistando familiares das vítimas, ouvindo autoridades e estudiosos. Por fi m, passado o susto inicial, a busca agora é por contar uma história em profundidade.

Esta edição marca, ao mesmo tempo, o reinício do jornalismo impresso na Faculdade de Comunicação da UFPA, com um produto laboratorial em que os estudantes são introduzidos nas práticas que haverão de abraçar na vida real, atentos para as mutações por que passa esse tipo de jornalismo nas suas interações com os suportes digitais.

A chacina de novembro de 2014 em Belém repetiu traços comuns de outras chacinas ocorridas no Brasil. Foi mais uma “operação limpeza”. A PM se mobilizou com o seguinte chamado: “Mataram um policial nosso e vai ter uma limpeza na área”. A matança ocorreu nas baixadas da cidade, equivalentes às favelas de outras partes do país. No calor do acontecimento, os números de mortos não eram precisos. A imprecisão revela o desprezo pela vida dos negros, mulatos e caboclos pobres.

Em agosto de 1993, policiais militares mataram 21 moradores na favela de Vigário Geral, no Rio de Janeiro. Muitos dos envolvidos foram absolvidos por falta de provas. No massacre do Carandiru, em 1992, quem eram os 111 presos mortos senão os negros, mulatos e caboclos que lotam nossas penitenciárias? E quem eram os 27 presos mortos, dez anos depois, no Presídio Urso Branco, de Porto Velho? Há, subjacente às chacinas, uma atitude racista.

Outra marca desses crimes é a impunidade. No Pará, cuja história recente é abarrotada de chacinas, massacres, assassinatos e redução de trabalhadores rurais à escravidão, é importante não esquecer chacinas como as do Castanhal Ubá e da Fazenda Princeza. Logo após o massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em 17 de abril de 1996, tropas do exército foram deslocadas para a região para “conter a escalada da violência”, jargão usado para reprimir a revolta provocada pela brutalidade da Polícia Militar. As violências contra os humildes, ordenadas desde cima, seguem impunes.

Aqui, uma das fundações dessa barbárie pode ser encontrada na repressão que se seguiu à Guerrilha do Araguaia, no auge da ditadura militar. O remate da guerrilha foi uma caçada humana, com

Diretor do Instituto de Letras e Comunicação

Otacílio Amaral FilhoDiretora da Faculdade de Comunicação

/Presidente do Conselho Editorial

Rosane Steinbrenner

Infográfi co e Diagramação

Ricardo Harada Ono Foto de Capa

Luana CoelhoRepórteres

Ana Clara MontenegroLeonardo Rodrigues

Colaboradores

D’Angelo ValenteEdson Costa

Karen LoureiroLorena Emanuele

Monica Melo

Projeto gráfi coOfi cina de Criação

ImpressãoGráfi ca Universitária

Tiragem500 exemplares

EndereçoFaculdade de Comunicação – FACOM

Rua Augusto Correa, 01CEP: 66075-110

Guamá, Belém, ParáTelefone: (91) 3201-8490

Email: [email protected]: primeiraslinhasufpa

execuções de prisioneiros, decapitações e torturas impostas a centenas de pessoas suspeitas de ligação com os guerrilheiros. A ordem era limpar a área. A repressão à guerrilha, fazendo da tortura instrumento de coerção, estabeleceu a brutalidade contra o camponês como um padrão de conduta reproduzido por fazendeiros e grileiros, violência tolerada e em muitas circunstâncias apoiada pelo Estado.

A Polícia Militar, desde então, vem sendo utilizada como instrumento de interesses particulares e como ponta de lança da repressão. A violência, na escala extraordinária que justifi ca chamar de guerra o que veio depois da guerrilha, nasceu da visão governamental do camponês como ameaça comunista, enquadrado, pois, no conceito de inimigo interno. Hoje, a polícia trata os negros, mulatos e caboclos pobres de Belém como inimigos. A PM, herança da ditadura, traz com ela uma cultura militar, a ideia da guerra ao inimigo. Moradores das periferias veem a instituição como uma ameaça. E muitos movimentos sociais das baixadas de Belém adotam nomes de mártires da luta no campo paraense. É importante estabelecer esses nexos.

Estabeleceu-se no Brasil, como traço característico, uma cultura que faz da violência sobre pessoas consideradas inferiores coisa banal. Vivemos ainda nesse país uma dominação da casa grande sobre a senzala. Encarar o racismo como um traço da realidade brasileira é passo essencial para enfrentar o problema da violência executada pelo Estado através da Polícia Militar. O Brasil necessita de uma diferente estrutura de segurança pública, um modelo

desmilitarizado de polícia, que significa o próprio fim da PM.

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 51/13 defi ne novos critérios de organização policial. Entre outras diretrizes, o texto propõe que “o Estado deverá organizar polícias, órgãos de natureza civil, cuja função é garantir os direitos dos cidadãos”. A proposta é boa, inclusive porque combate a prática de procedimentos incompatíveis com uma atuação democrática e humanizada. Sintonizada com ela, a Comissão Nacional da Verdade, em seu relatório fi nal, publicado em dezembro de 2014, pede que sejam extintos os procedimentos policiais chamados ‘autos de resistência’. O auto de resistência é um artifício criado durante a ditadura para legitimar assassinatos protagonizados por forças policiais, que alegavam, como ainda

o fazem, resistência à prisão. Tais autos encobrem “operações limpeza”, como a chacina de novembro passado.

A reforma da estrutura policial no Brasil é muito importante para diminuir a violência, mas, assim como outras reformas,

afeta interesses e gera resistências de grupos que veem nela perda de poder e privilégios. É possível que a PEC 51/13, se romper com resistências no próprio Congresso Brasileiro, tenha um importante efeito. A violência e a injustiça no Brasil, entretanto, têm vínculos muito profundos, enraizados desde sempre no racismo que ainda hoje nossas elites, os velhos senhores da casa grande, cultivam. Temos um longo caminho pela frente.

Professor do Programa de Pós-graduação

em Sociologia e Antropologia da UFPA e

coordenador do Observatório de Confl itos

Urbanos na Região Metropolitana de Belém

Encarar o racismo como traço da realidade

brasileira é passo essencial para enfrentar o problema da violência executada pelo Estado

2 - PRIMEIRAS LINHAS - agosto/2015

PRIMEIRAS LINHASJornal-laboratório da FACOM Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Pará.

Rodrigo Peixoto

Professor responsável / Editor-chefeManuel Dutra

Professor responsável / Diretor de Redação

Guilherme Guerreiro Neto

Page 3: Edição 1 - Agosto 2015

PRIMEIRAS LINHAS - agosto/2015 - 3

“O que nós queremos é...”“Justiça!”“O que queremos é...”“Justiça!”, completava em coro

um pequeno grupo de manifestantes pelas ruas da Terra Firme no início de março.

Quatro meses antes, nove pessoas haviam sido assassinadas num intervalo de 4 horas ali mesmo no bairro da Terra Firme e também nos bairros do Guamá, Jurunas, Marco, Parque Verde e Tapanã – a décima vítima morreu na noite seguinte no hospital. Uma chacina em resposta à execução do policial militar Antonio Marcos da Silva Figueiredo, conhecido como Cabo Pet, que também era dono de uma empresa de monitoramento de câmeras de vigilância no Guamá. Testemunhas ouvidas pela investigação do caso afirmaram que Pet impunha o medo em quem recusasse a instalação das câmeras. Ele era ainda líder da milícia do bairro, conforme apontou a CPI das milícias, instalada na Assembleia Legislativa para investigar a atuação de grupos de extermínio e milícias no Pará.

Nos dias 4 e 5 de novembro de 2014, Belém encarnou um clima de medo. Para quem perdeu seus familiares e amigos, sobrou a dor.

“Meu filho tinha só 16 anos. Ele tinha tudo pra ser feliz.” O lamento de Maria Auxiliadora Neves, 58 anos, projetado pelo carro-som, ecoou na rua São Domingos. A marcha para rememorar a matança, orar pelos mortos e cobrar punição aos executores seguiu até a Praça Olavo Bilac, uma das poucas do bairro.

Eduardo Chaves cursava o 1º ano do ensino médio, mas não foi para a aula naquela terça-feira, 4 de novembro. Iria a um aniversário e

Guilherme Guerreiro Neto

Na luta por justiça e pela paz na periferia

Contra a impunidade

Mapa da violência

Familiares das vítimas reunidos no ato, na Terra Firme, que lembrou os quatro meses da chacina

O caso não se resolve com a identificação e prisão dos executores, embora seja esse um passo fundamental. As dimensões do morticínio naquele novembro são mais profundas. Porque o chão batido das periferias com frequência é banhado de sangue. A violência é cotidiana. A disputa de poder entre traficantes, policiais e milicianos coloca a comunidade muitas vezes como refém de uma guerra silenciosa, cujas principais vítimas são os jovens. Assim foi na chacina do ano passado.

Como mostra o Mapa da violência: os jovens do Brasil, de 2014, homicídio é a principal causa de morte de jovens de 15 a 29 anos no país. E a maior parte desses jovens assassinados é formada por negros, do sexo masculino e moradores das periferias e áreas metropolitanas dos centros urbanos. As taxas de homicídio juvenil no Pará

e em Belém superam e muito a média nacional. O Pará é o sexto estado com maior crescimento no número de homicídios de jovens de 2002 a 2012. Entre as capitais, Belém é a oitava.

No fim da marcha que marcou os quatro meses de chacina, enquanto as famílias, em círculo no meio da praça, estouravam balões brancos marcados com os nomes das vidas que lhes foram tiradas, Anderson de Souza olhava dum canto, violão mudo no braço. Ele nada tem a ver com o caso. Mas, com 18 anos, bem sabe – e sente – o que é o dia a dia nas baixadas de Belém, para a juventude. “Ser jovem aqui é arriscado. O índice de criminalidade é muito alto. Tem muitas pessoas que nasceram comigo, conviveram comigo e já morreram.” Mais que a resposta punitiva à chacina, é preciso transformar a lógica perversa da violência. Pela paz nas periferias, pela vida dos jovens brasileiros.

Lá se vão nove meses desde a chacina que tirou a vida de Eduardo, Bruno, Jeferson, Allersonvaldo, Marcus, César, Alex, Jean, Nadson e Marcio. Lá se vão nove meses de espera por justiça para quem ficou, como Auxiliadora. O inquérito da Polícia Civil, até o fechamento desta edição, ainda não fora concluído, seguindo em segredo de justiça. “Está tudo dentro dos prazos legais. As investigações estão avançando”, garante o secretário de Estado de segurança pública e defesa social, general Jeannot Jansen Filho.

Em 17 de abril, foi soprada uma brisa primeira contra a impunidade. O promotor de Justiça Militar, Armando Brasil, apresentou o resultado da investigação que lhe coube. Treze policiais militares foram indiciados

por homicídio na modalidade omissiva. Eles poderiam ter evitado as execuções se agissem de acordo com o protocolo militar. Não agiram. Um outro indiciamento foi feito por incitação ao crime. Há indícios, segundo Brasil, de que policiais estejam também entre os encapuzados, ou seja, diretamente envolvidos na chacina. Mas só o inquérito civil trará a resposta. “Nós temos que chegar em quem apertou o gatilho!” As palavras do deputado estadual Carlos Bordalo (PT), que esteve ao lado do general Jeannot e outras autoridades na ocasião em que o promotor anunciou os nomes dos PMs indiciados no inquérito militar, expressam o que esperam as famílias das vítimas. Bordalo foi o relator da CPI das milícias.

ainda jantaria com o pai. Era na casa dos avós, Auxiliadora e Afonso, que Eduardo morava. Avós que o tinham como filho. Atentos ao toque de recolher propagado após a morte do Pet, eles não queriam que Eduardo ficasse zanzando pela rua. Eduardo estava em casa com a namorada. Afonso, religioso que é, normalmente

não deixava o filho/neto dormir com a moça lá. Naquela noite permitiu, para que Eduardo não saísse para leva-la. Mas ela precisava buscar seu filho. Quando o casal dobrou a esquina, foi parado por homens de preto encapuzados. Liberaram a namorada. Eduardo ficou. Foram cinco tiros. Começava a matança.

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Além da identificação dos responsáveis, é preciso dar um basta na violência contra a juventude

Page 4: Edição 1 - Agosto 2015

4 - PRIMEIRAS LINHAS - agosto/2015

Familiares das vítimas da chacina entregaram, em junho, ao Conselho de Segurança Pública do Estado do Pará (Consep) uma carta aberta revelando “extrema preocupação” com a falta de informações sobre os inquéritos civis do caso. As investigações começaram logo após a madrugada de crimes e, oito meses depois, ainda não houve resposta. O trabalho, comandado pelo delegado Claudio Galeno, diretor de polícia metropolitana, está sob segredo de justiça.

Na carta, as famílias reconhecem que já houve avanços graças à CPI das milícias e ao resultado do inquérito militar, anunciado em abril. Diante de evidências de alteração das cenas dos crimes, não perseguição dos assassinos e omissão de socorro às vítimas foi pedido o indiciamento de 13 policiais militares por homicídio na modalidade omissiva. Embora não tenham participação direta nas execuções, esses PMs poderiam ter evitado o assassínio. “Quando você tem essa soma de condutas que não obedecem ao protocolo policial militar, no meu entendimento, há crime de omissão. Porque eles sabem que têm o dever de agir. O servidor público tem o dever de agir”, explica o promotor de Justiça Militar, Armando Brasil.

Outro PM, que pediu aos colegas via redes sociais que dessem uma resposta à morte de Pet, foi indiciado por incitação ao crime. Além de processo administrativo disciplinar na Polícia Militar, os nomes dos oficiais e praças foram encaminhados à Justiça Comum.

Ainda há insegurança e medo entre aqueles que perderam parentes na chacina. Alguns saíram de Belém, outros evitam falar sobre o caso. Situações de constrangimento por policiais militares preocupam. O Sargento Rossicley, policial que aparece no inquérito militar

Ana Clara Montenegro

Armando Brasil (centro) comandou a investigação militar do caso

Policiais militares indiciados por homicídio omissivo:• Capitão Jacson Barros Sobrinho• Primeiro-tenente Carlos Eduardo Memória• Segundo-tenente Cássio Rogério Dantas Garcia• Segundo-tenente Monica Amorim dos Santos• Cabo Márcio Rogério da Cunha• Cabo Haroldo Cézar Macedo• Cabo Jorge Barbosa Low• Soldado Adriano Santos Tavares • Soldado Raimundo Nonato Mendes Pimenta• Soldado Adriano Roberto Borges dos Santos• Soldado Aldo de Jesus Pamplona Ribeiro• Soldado Walace Pimentel de Souza• Soldado Rodrigo Mendonça da Costa

Policial militar indiciado por incitação ao crime:• Sargento Rossicley Ribeiro da Silva

Resultado do inquérito militar

Os avanços e a espera pela solução do casoCom o inquérito civil em aberto, o que se tem de concreto vem da investigação militar e da CPI

CPI das milíciasAinda em dezembro do ano

passado, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre grupos de extermínio e milícias no Pará, proposta pelo deputado Edmilson Rodrigues (PSOL), foi aceita na Assembleia Legislativa. A CPI indicou registros de atuação de milícias criminosas no Pará desde a década de 1990. Hoje, pelo menos quatro milícias estão ativas: uma em Marabá, outra em Igarapé-Miri, e duas em Belém, a de Icoaraci e a do Guamá.

“Cidadãos que se consideram acima da lei”, assim os milicianos foram definidos pelo deputado Carlos Bordalo (PT), relator da CPI. Algumas milícias locais contam com mais de 30 integrantes identificados. Todas organizadas essencialmente por policiais militares, tendo uma parcela de civis. No caso da chacina de novembro, foi confirmado pela CPI o envolvimento da PM, miliciana ou não, para vingar a morte do

Cabo Pet, um dos comandantes da milícia local.

Doze motocicletas, cada uma com dois milicianos, saíram às ruas do bairro da Terra Firme às 21h30 do dia 4 de novembro, apenas duas horas depois do assassinato do policial. Segundo Bordalo, as armas utilizadas eram de posse da polícia e os próprios PMs fecharam as saídas do bairro e soltaram o toque de recolher enquanto era realizada a matança.

Para os criminosos, o clima era de raiva, vingança e ameaça. Para os moradores, de medo. Medo de que nada pudesse lhes dar segurança, afinal, quem os assustava era quem prometera proteção. Crimes de milicianos já eram conhecidos e considerados até cotidianos para os moradores de algumas comunidades, mas quase completamente ignorados pelo resto da sociedade paraense. A investigação da CPI detectou as milícias criminosas, entendeu como elas se formam e como funcionam.

Kla

yton

Silv

a

pela incitação ao crime em redes sociais, é citado na carta aberta dos familiares por manter posturas de intimidação.

Outra preocupação ocorre porque a periferia de Belém continua a conviver com assassinatos nos moldes dos que marcaram a chacina.

E as milícias seguem em ação. A carta das famílias aponta que “esse tipo de ‘estado paralelo’ pode estar aumentando seu poder, por ineficiência ou omissão do Estado e apoiado cada vez mais por parte da sociedade”, que recorre à segurança prometida pelas milícias.

4 - PRIMEIRAS LINHAS - agosto/2015

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PRIMEIRAS LINHAS - agosto/2015 - 5

Milícia é uma organização informal e ilegal que funciona para fins econômicos a partir da exploração de várias modalidades de crime. Cada milícia tem sua hierarquia e suas regras, de modo que se um integrante se opuser ou agir de modo inadequado, sofre consequências. No Pará, todas as milícias detectadas foram originadas por policiais militares que, principalmente por interesses econômicos, uniram-se para oferecer serviços a comunidades.

1. Valem-se da especialização de seus membros, especialmente para as ações de extermínio

2. O território de atuação determina o alcance das ações, inclusive no que diz respeito à capacidade de exercer poder político e servir-se dele para o crime

3. A condição de agentes públicos dos membros atrai o suporte de outros agentes públicos que, mesmo por omissão, contribuem para os resultados das ações

4. O extermínio é sempre motivado por dinheiro ou por vantagens de qualquer natureza; decorre do controle do tráfico de drogas e de contratos de eliminação pactuados com comerciantes

5. A adoção de uma estrutura de concílio na tomada de decisões e encaminhamentos operacionais, em que um grupo decide quem merece morrer por quebrar regras

(Fonte CPI das milícias)

O que fazer?

O que é a milícia?

Como agem as milícias

PRIMEIRAS LINHAS - agosto/2015 - 5

Funcionamento das milíciasInicialmente, os serviços

milicianos tratam da segurança da população local, que paga para que policiais, mesmo fora do seu horário de trabalho, deem maior atenção a alguns estabelecimentos, tanto públicos como privados. “A milícia age como um estado paralelo e não deixa de ser considerada por alguns um mal necessário”, conta Bordalo. Ou seja, é passada uma falsa sensação de segurança que dura até uma crise como a chacina.

Segundo Bordalo, no caso do Cabo Pet, aqueles que contratavam seus serviços recebiam plaquinhas da empresa Ômega, criada pelo próprio policial. As placas eram então penduradas nas portas dos estabelecimentos e, desta forma, sabia-se que aquele lugar deveria receber segurança da milícia.

Os milicianos ganham o respeito da população e, a partir disso, envolvem-se com outras atividades, como a venda de segurança para os traficantes de drogas, o extermínio de pessoas, o roubo e comércio de sucatas e, em última instância, o assalto a cofres públicos. Tudo para ganhar dinheiro.

Com o tempo, esses grupos também procuram poder político, envolvendo-se com diferentes partidos e candidatos, sendo que

alguns dos milicianos planejam disputar as próximas eleições. De acordo com as investigações da CPI, o próprio Cabo Pet pretendia se candidatar a vereador.

A ação dos milicianos deixa, então, de ter como foco a proteção para fazer a promoção do crime e a desvalorização da vida. A CPI chegou a investigar encomendas de morte que custavam de 200 reais a 15 mil reais. Houve casos de jovens infratores que, ao voltarem para casa depois de passarem por medidas socioeducativas, foram mortos imediatamente por milicianos.

Falar sobre milícia já causa perigo. “Agora que a poeira baixou, estamos com medo do que eles podem fazer com quem for contra”, disse um dos presentes na passeata que lembrou os quatro meses da chacina.

Quando o assunto é a polícia, também há um pé atrás. “Nós tivemos muita dificuldade de colher o depoimento das testemunhas porque elas estavam com medo. Quando você colhe depoimento de uma testemunha sobre um crime supostamente praticado por um policial militar, você tem dez vezes mais chance de ter insucesso do que sobre um crime comum”, afirma o promotor Armando Brasil.

Diante de um cenário tão complexo, que medidas, então, o poder público deve tomar para melhorar a segurança pública? Existem no Pará as Unidades Integradas Pro Paz, do governo do estado, que agem para minimizar a adesão dos jovens à violência, mas pouco podem fazer sobre a existência dos atuais grupos criminosos que possuem tanto poder na periferia.

A CPI das milícias recomendou a criação de uma delegacia especializada para investigação dos crimes praticados por milícias. O deputado Edmilson Rodrigues propôs a criação de um sistema único de segurança, em que o governo federal possa trabalhar diretamente com municípios e estados, e assim ter mais controle do que acontece.

Diante do envolvimento da polícia na chacina, o Coronel Roberto Campos, comandante geral da Polícia Militar

do Pará, afirma que é preciso mostrar transparência. “Ficamos tristes? Ficamos. Mas temos que mostrar transparência. Vamos apurar, dar o direito à defesa e ao contraditório para o servidor policial militar. Ele vai tentar explicar aquela situação e vai arcar com as consequências.” Essas consequências, porém, ainda não chegaram.

A superação do medo por familiares das vítimas e parte das comunidades para pedir por investigações, prestar depoimentos e exigir respostas é o que impede a chacina de ficar no esquecimento. A população vai precisar dessa mesma coragem para cobrar mais ações do governo e exigir o mínimo: uma vida em que os cidadãos e a polícia estejam do mesmo lado, lutando pela vida e pela segurança da população.

Kle

yton

Silv

a

Carlos Bordalo (PT) foi o relator da CPI das milícias na Alepa

Acesse aqui o relatório final da CPI da milícias

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6 - PRIMEIRAS LINHAS - agosto/2015

O MAPA, OS NÚMEROS, AS HISTÓRIAS

18

Um dia antes de morrer, Nadson fez aniversário. Estava entre amigos, na frente da casa de um deles, quando motoqueiros pararam na porta. Foi atingido por dois tiros. Nadson, mais conhecido como careca, era homossexual. Morava com uma de suas irmãs e trabalhava com venda de comida no Comércio.

Nadson da Costa Araújo01:51

21

O Primeiras Linhas não conseguiu detalhes sobre este caso.

Jean OscarFerro dos Santos

00:05

25

O Primeiras Linhas não conseguiu detalhes sobre este caso. Segundo a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, a família de César tem medo de represálias.

César AugustoSantos da Silva

22:42

20

trabalhava como ajudante de pedreiro. Estava em um churrasco com amigos e o irmão, de 13 anos. Três encapuzados apareceram. Atiraram em Murilo seis vezes. O irmão viu tudo e chamou por socorro. A ajuda chegou para levar o jovem ao hospital, mas viaturas da polícia impediram.

Marcus MuriloFerreira Barbosa

22:30

43

Além de ser policial militar, atuava como empresário no ramo do monitoramento de câmeras de vigilância. Era um dos líderes da milícia. Levou 20 tiros. Os assassinos estavam em um carro prata. A matança das horas seguintes foi uma resposta à execução de Pet.

Antonio Marcos daSilva Figueiredo (Cabo Pet)

19:40

16

Fazia o 1º ano do ensino médio, trabalhava com entrega de frutas e ajudava a família com a venda de churrasco. Queria ser policial. Estava com a namorada quando, a um quarteirão de casa, homens vestidos de preto e dirigindo motos os cercaram. A moça foi liberada. Eduardo levou cinco tiros.

Eduardo FelipeGalucio Chaves

21:52 20

Bruno morava em Belém há dois anos, na casa da tia. Trabalhava como cobrador de van. Seguia com a namorada na bicicleta quando homens vestidos de preto o pararam e mandaram que a moça se afastasse. Um deles disparou contra Bruno. Quatro tiros. De casa, Dalcymere Gemaque, a tia do jovem, pôde ouvir.

Bruno Barroso Gemaque22:00

21

Morava no Conjunto Carandiru, no Sideral. O Primeiras Linhas não conseguiu detalhes sobre este caso. Por conta de pressões e ameaças, familiares de Alex saíram de Belém.

Alex dos Santos Viana23:37

37

Conhecido como Jarrão, Arllesonvaldo tinha de�ciência cognitiva e era cuidado pela mãe. Ele soube do toque de recolher, mas o ignorou. Foi cercado na rua e levou cinco tiros: um na perna, quatro no tronco. Mas não morreu na hora. Levado ao hospital, ainda aguentou até às 18h do dia seguinte.

AllersonvaldoCarvalho Mendes

22:15

27

Jeferson trabalhava no setor de serviços gerais em um supermercado. Fazia tratamento contra hanseníase. Morava com a mãe no Guamá, mas estava na Terra Firme quando soube do toque de recolher. No caminho de volta para casa, apareceu um carro prata. Jeferson foi assassinado com três tiros.

Jeferson Cabral dos Reis22:08

22

Marcio era operador de caixa de um restaurante no Umarizal. De folga, foi lanchar com amigos na praça de alimentação do Cordeiro de Farias. Por volta de 0h40, mandou mensagem via Whatsapp para a mãe, Suzana Amaral, dizendo logo iria para casa. Já chegando, foi atingido por um único e fatal tiro.

Marcio Santos Rodrigues01:57

Onze vidas interrompidas à bala. Seis bairros. Uma cidade amedrontada. Boa parte dos assassinatos que marcaram aquela noite de novembro em Belém atingiu a juventude. A chacina engrossou as estatísticas de homicídios de jovens no Brasil. Nadson só pôde saber por um dia o que é ter 18 anos. O irmão de Murilo, de 13, vai lembrar para sempre de quando o viu ser assassinado. Bruno não vai mais andar de bicicleta com a namorada. Eduardo nunca será policial. Por trás dos números, existem histórias vividas e outras que não deram tempo de ser escritas.

Foto

s: L

uana

Coe

lho

Maria Auxiliadora e as lembranças do neto Eduardo, a mais jovem vítima da chacina

JURUNAS

TERRAFIRME

Condor

Cremação

CidadeVelha

CampinaReduto Umarizal

Fátima

Telégrafo

Barreiro

Miramar

Pedreira

Sacramenta

Maracangalha

Val-de-Cans

PratinhaCoqueiro

Guajará

Campina deIcoaraci

Agulha

Cruzeiro

Paracuri

Ponta Grossa

Tenoné

Águas Negras

Maracacueira

Brasília São João do Outeiro

Itaiteua

ÁguaBoa

Una

SãoClemente

Benguí

Cabanagem

Marambaia

Mangueirão

Castanheira

Guanabara

ÁguasLindas

Souza

Nazaré

São Braz

Canudos

BatistaCampos

GUAMÁ

MARCO

TAPANÃ

PARQUEVERDE

Universitário

Aurá

Curió-Utinga

Crescimento das taxas de homicídio de 2002 a 2012, na população jovem,em Belém.

Crescimento das taxas de homicídiode 2002 a 2012, na população jovem,no Pará.

Declínio das taxas de homicídio de 2002 a 2012, na população jovem,média das capitais brasileiras.

Curva das taxas de homicídiode 2002 a 2012, na população jovem,média brasileira.

Acesse aqui oMapa da violência Fonte: Mapa da violência: os jovens do Brasil (2014)

HOMICÍDIOS DE JOVENS NO BRASIL Homicídio é a principal causa de morte de jovens de 15 a 29 anos.

Per�l das vítimas:Jovens negros, do sexo masculino, moradores de periferias e áreas metropolitanas dos centros urbanos

Em 2012: Total de jovens: 52,2 milhões (26,9% do total da população) Homicídios de jovens: 30.072 (53,4% do total de homicídios do país)

140,9%2002/2012

VARIAÇÃO DE70,2%2002/2012

VARIAÇÃO DE

92,6 94,187,4 78,5

95,7

32,337,5

40,5

55,1 57,0

77,9

76,773,7

77,186,8

56,1

57,0 53,3

50,550,7 49,7

57,6

53,552,8

53,054,5

78,5 78,681,2

82,3 80,8

82,776,6

59,868,0 57,4

100,7

126,1

76,6101,8

84,5

100,9

73,267,7

51,9

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PRIMEIRAS LINHAS - agosto/2015 - 7

O MAPA, OS NÚMEROS, AS HISTÓRIAS

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Um dia antes de morrer, Nadson fez aniversário. Estava entre amigos, na frente da casa de um deles, quando motoqueiros pararam na porta. Foi atingido por dois tiros. Nadson, mais conhecido como careca, era homossexual. Morava com uma de suas irmãs e trabalhava com venda de comida no Comércio.

Nadson da Costa Araújo01:51

21

O Primeiras Linhas não conseguiu detalhes sobre este caso.

Jean OscarFerro dos Santos

00:05

25

O Primeiras Linhas não conseguiu detalhes sobre este caso. Segundo a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, a família de César tem medo de represálias.

César AugustoSantos da Silva

22:42

20

trabalhava como ajudante de pedreiro. Estava em um churrasco com amigos e o irmão, de 13 anos. Três encapuzados apareceram. Atiraram em Murilo seis vezes. O irmão viu tudo e chamou por socorro. A ajuda chegou para levar o jovem ao hospital, mas viaturas da polícia impediram.

Marcus MuriloFerreira Barbosa

22:30

43

Além de ser policial militar, atuava como empresário no ramo do monitoramento de câmeras de vigilância. Era um dos líderes da milícia. Levou 20 tiros. Os assassinos estavam em um carro prata. A matança das horas seguintes foi uma resposta à execução de Pet.

Antonio Marcos daSilva Figueiredo (Cabo Pet)

19:40

16

Fazia o 1º ano do ensino médio, trabalhava com entrega de frutas e ajudava a família com a venda de churrasco. Queria ser policial. Estava com a namorada quando, a um quarteirão de casa, homens vestidos de preto e dirigindo motos os cercaram. A moça foi liberada. Eduardo levou cinco tiros.

Eduardo FelipeGalucio Chaves

21:52 20

Bruno morava em Belém há dois anos, na casa da tia. Trabalhava como cobrador de van. Seguia com a namorada na bicicleta quando homens vestidos de preto o pararam e mandaram que a moça se afastasse. Um deles disparou contra Bruno. Quatro tiros. De casa, Dalcymere Gemaque, a tia do jovem, pôde ouvir.

Bruno Barroso Gemaque22:00

21

Morava no Conjunto Carandiru, no Sideral. O Primeiras Linhas não conseguiu detalhes sobre este caso. Por conta de pressões e ameaças, familiares de Alex saíram de Belém.

Alex dos Santos Viana23:37

37

Conhecido como Jarrão, Arllesonvaldo tinha de�ciência cognitiva e era cuidado pela mãe. Ele soube do toque de recolher, mas o ignorou. Foi cercado na rua e levou cinco tiros: um na perna, quatro no tronco. Mas não morreu na hora. Levado ao hospital, ainda aguentou até às 18h do dia seguinte.

AllersonvaldoCarvalho Mendes

22:15

27

Jeferson trabalhava no setor de serviços gerais em um supermercado. Fazia tratamento contra hanseníase. Morava com a mãe no Guamá, mas estava na Terra Firme quando soube do toque de recolher. No caminho de volta para casa, apareceu um carro prata. Jeferson foi assassinado com três tiros.

Jeferson Cabral dos Reis22:08

22

Marcio era operador de caixa de um restaurante no Umarizal. De folga, foi lanchar com amigos na praça de alimentação do Cordeiro de Farias. Por volta de 0h40, mandou mensagem via Whatsapp para a mãe, Suzana Amaral, dizendo logo iria para casa. Já chegando, foi atingido por um único e fatal tiro.

Marcio Santos Rodrigues01:57

Onze vidas interrompidas à bala. Seis bairros. Uma cidade amedrontada. Boa parte dos assassinatos que marcaram aquela noite de novembro em Belém atingiu a juventude. A chacina engrossou as estatísticas de homicídios de jovens no Brasil. Nadson só pôde saber por um dia o que é ter 18 anos. O irmão de Murilo, de 13, vai lembrar para sempre de quando o viu ser assassinado. Bruno não vai mais andar de bicicleta com a namorada. Eduardo nunca será policial. Por trás dos números, existem histórias vividas e outras que não deram tempo de ser escritas.

Foto

s: L

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Maria Auxiliadora e as lembranças do neto Eduardo, a mais jovem vítima da chacina

JURUNAS

TERRAFIRME

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CidadeVelha

CampinaReduto Umarizal

Fátima

Telégrafo

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Miramar

Pedreira

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Maracangalha

Val-de-Cans

PratinhaCoqueiro

Guajará

Campina deIcoaraci

Agulha

Cruzeiro

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Águas Negras

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Brasília São João do Outeiro

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Benguí

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Nazaré

São Braz

Canudos

BatistaCampos

GUAMÁ

MARCO

TAPANÃ

PARQUEVERDE

Universitário

Aurá

Curió-Utinga

Crescimento das taxas de homicídio de 2002 a 2012, na população jovem,em Belém.

Crescimento das taxas de homicídiode 2002 a 2012, na população jovem,no Pará.

Declínio das taxas de homicídio de 2002 a 2012, na população jovem,média das capitais brasileiras.

Curva das taxas de homicídiode 2002 a 2012, na população jovem,média brasileira.

Acesse aqui oMapa da violência Fonte: Mapa da violência: os jovens do Brasil (2014)

HOMICÍDIOS DE JOVENS NO BRASIL Homicídio é a principal causa de morte de jovens de 15 a 29 anos.

Per�l das vítimas:Jovens negros, do sexo masculino, moradores de periferias e áreas metropolitanas dos centros urbanos

Em 2012: Total de jovens: 52,2 milhões (26,9% do total da população) Homicídios de jovens: 30.072 (53,4% do total de homicídios do país)

140,9%2002/2012

VARIAÇÃO DE70,2%2002/2012

VARIAÇÃO DE

92,6 94,187,4 78,5

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55,1 57,0

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Cem pessoas. 110, 50, 125, 10... O número de vítimas variava ao sabor do momento, como numa roleta russa macabra, e parecia sempre impreciso. Nas redes sociais, havia um alvoroço com vídeos, fotos e áudios referentes à chacina que surgiam a cada instante, muitos falsos ou retirados de outro contexto.

Às 8 horas da manhã, sabia-se que oito pessoas haviam sido executadas, incluindo-se o cabo da polícia cujo assassinato parecia ter desencadeado as outras mortes. Mesmo assim, o medo generalizado fez com que muitos não deixassem suas casas. Universidades tiveram suas aulas canceladas por falta de alunos. Achava-se que haveria uma troca de tiros entre bandidos e policiais na Avenida Perimetral, na Terra Firme. Os bandidos, sedentos por vingança, iriam invadir também o centro. Belém cairia numa guerra sem fim entre as forças policiais e o poder paralelo. Nada disso, de fato, ocorreu.

Próximo às 10 horas, autoridades do governo do estado reuniram-se em entrevista coletiva para prestar esclarecimentos e tranquilizar a população. Uma nota veiculada pela agência de notícias do governo esclarecia que “a respeito dos boatos divulgados nas redes sociais, o secretário de Estado de Segurança Pública e Civil, Luiz Fernando Rocha, ressaltou que já estão sendo tomadas medidas para se investigar e punir os responsáveis”. Na nota, o secretário afirmava que “o nosso sistema de

Leonardo Rodrigues

Convocação, boato e medo via redes sociais

Medo real

Perfil da ROTAM no Facebook avisava: “a caça começou”

Sargento Rossicley Silva, indiciado: “vamos dar a resposta”

Rep

rodu

ção

Rep

rodu

ção

segurança já está monitorando as redes sociais e investigando quem são os autores desses virais, que servem apenas para causar pânico à população”.

A legislação brasileira considera esse tipo de falso alarme como um delito, cujas penalidades são mais brandas que as de um crime. Há, inclusive, diversos crimes para quem divulga informações falsas, como a denúncia falsa de crimes ou a prestação de queixas contra uma empresa visando prejudicar sua imagem no mercado, mas nenhum relacionado à promoção de pânico coletivo e seus possíveis danos sociais ou psicológicos.

Por conta disso, em casos como o que aconteceu em Belém, André Ribeiro, delegado da Polícia Federal especializado em crimes virtuais, diz que as pessoas precisam ter bom senso e saber filtrar as informações que consomem na internet. “Sabe-se que a internet é um palco de sensacionalismo, de pessoas que querem chamar a atenção. Quanto à divulgação de boatos, eu, como policial, vou ver a procedência da informação. Mas, se a cada pessoa que divulga algo na internet, a polícia se mobilizar para ver se é verdade, nós não apuramos crime nenhum”, explica Ribeiro.

Às 10 horas, mais mortes foram confirmadas, totalizando 11.

Enquanto alguns mantinham a rotina inalterada, outros ainda sentiam receio do que poderia acontecer – o que não impediu que em pouco tempo as ruas voltassem a ficar cheias.

Vanessa Alves, estudante e membro do coletivo Tela Firme, grupo que produz vídeos expondo um lado da Terra Firme diferente da tradicional abordagem da mídia, foi uma das que viveu um dia de apreensão. “Aquela noite foi muito angustiante. Lá, próximo onde eu moro, foram dois que morreram. Então foi uma correria, invadiram a rua, invadiram por lá tudinho. Uma confusão. Aí, sabe, teve um momento em que a gente se pegou: ‘cara, o que a gente faz agora? Quem a gente vai chamar?’. Porque é a polícia que tá vindo matar aqui. Pra quem a gente vai pedir ajuda? Não tinha o que fazer. Tinha simplesmente que entrar na tua casa e rezar pro dia... sabe?”

No dia seguinte à chacina, Vanessa ficou preocupada pensando nas notícias ruins que poderia receber. Ela conhecia algumas das vítimas. “Não tinha amizade. Mas eu sabia, por exemplo, que não era bandido. E mesmo que fosse! Por mais que fosse, não merecia pagar com a vida”, comenta a estudante.

Apesar dos desmentidos sobre os boatos, Vanessa duvida do número oficial de mortos divulgado. “Não sei se foram 100 pessoas, mas também não foram 11. A gente sabe que só aqui no bairro morreu mais gente do que falaram. E a gente também ouve relatos de pessoas que trabalham no [Centro de Perícias] Renato Chaves e no IML que foram proibidas de dizer quantos corpos deram entrada naquele dia.”

Segundo Vanessa, desde o surgimento de milícias na periferia de Belém, a relação dos moradores com a polícia mudou. No dia 5 de novembro, ela teve uma encontro com os integrantes

do Tela Firme, onde tentaram decidir o que fariam em relação à chacina. A reunião se estendeu até tarde. Enquanto voltava para a casa a pé com o namorado e um membro do grupo, uma viatura da polícia cruzou o caminho deles. “Ficamos apreensivos mesmo. Passaram direto, não fizeram nada. Mas ficaram olhando. Já pensou? Ficar com medo de ver uma viatura da polícia, que era pra te dar proteção, segurança e tudo?”

Vanessa conversava com um amigo no celular quando recebeu a notícia de que o cabo Pet havia sido assassinado. “No momento, eu achei que não fosse acontecer nada”. Mas, em seguida, ela foi alertada a se recolher em casa porque a polícia estaria se articulando para invadir o bairro.

O alerta que Vanessa recebeu, diferentemente de muito do que foi divulgado naqueles dias, tratava de algo verdadeiro. A articulação de policiais nas redes sociais foi confirmada pela CPI das milícias. Segundo o relatório, o que distingue essa chacina de outras promovidas por agentes de segurança pública “foi a forma de ‘CONVOCAÇÃO’ para dar a ‘RESPOSTA’ a quem supostamente havia matado um policial militar”.

“A caça começou...!!!”, anunciava o perfil da ROTAM no Facebook, que dizia ainda que a instituição estava “com sangue nos olhos”. Em seu perfil, o sargento Rossicley Silva fez uma chamada a seus colegas. Por conta dessa conduta, a CPI das Milícias recomendou o indiciamento do sargento Rossicley e dos responsáveis pelo perfil ‘Rotam PA’ por apologia ao crime.

Informações desencontradas e chamados de policiais para resposta circularam na cidade

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PRIMEIRAS LINHAS - agosto/2015 - 9

A palavra oportuna e o olhar oportunista

Boatos...

Imagens falsas e desmentidos se espalharam nas redes

Leandro Lage

Rep

rodu

ção

“Tá ligado que os pm tão passando tudo ferro em nós, siô? O bagulho é doido, sabe que nós não vai deixar por isso não... Olha, amanhã vâmo

tocá o terrô na cidade, vâmo nos vingá desse bando de pm filha da p..., vâmo matar é todo mundo. Olha, ali na Alcindo Cacela, no Cesupa, Cesupa ali de

direito, nós vâmo é matar é todo mundo naquele c... Tá dado o aviso.” – Áudio compartilhado em grupos do aplicativo de mensagens instantâneas WhatsApp,

um dos mais usados para espalhar boatos e informações sobre a chacina na periferia de Belém.

A dúvida se os rumores eram verdadeiros ou não, junto à pressa para repassar as informações, desencadearam um efeito desastrado, mais do que desastroso, de susto e recolhimento em Belém. Sentia-se um perigo iminente e a necessidade de replicar os dados como forma de alertar pessoas próximas. Tentava-se evitar uma tragédia que não existia nas proporções em que se imaginava.

Alda Costa, professora de comunicação social da UFPA e coordenadora de um projeto de pesquisa sobre mídia e violência, critica a forma imprudente como as informações se disseminaram nas redes sociais. Ela também faz críticas ao poder público por não ter

tranquilizado a população a tempo e ao tratamento irresponsável que parte da imprensa deu ao caso.

“Eu vi determinados apresentadores demarcando um número de pessoas mortas, assassinadas nesse dia. E a matéria era só isso. Não havia uma contextualização do fato, nenhum esclarecimento sobre o que aconteceu. Então você se preocupa com a quantidade e não se preocupa com o fato e com o acontecimento em si, você não se preocupa com o problema social que é a violência, mas acaba desviando a atenção em busca de audiência”, aponta a professora.

A chacina não era apenas imaginação. De fato aconteceu, mas, graças à boataria, ao questionável

“Existe um antídoto contra a eterna sedução da guerra?”, indagou certa vez a escritora americana Susan Sontag. Provocada pela desconcertante condição contemporânea de sermos constantemente interpelados pelo sofrimento dos outros, em especial graças ao trabalho das mídias em mostrar-nos ostensivamente imagens de sujeitos em situações não apenas de dor, mas de injustiça, a escritora despejou sobre nós aquela pergunta porque, precisamente, criticava o oportunismo de se olhar e - por que não? - de se produzir e se publicar determinadas imagens atrozes da morte de outras pessoas.

O que se viu tanto na noite de 4 de

novembro de 2014 quanto no noticiário do dia seguinte se adapta com precisão ao cenário de uma guerra. Trata-se de um conflito armado, silencioso, que ganha as ruas da cidade durante as madrugadas e mesmo durante os dias, eficaz na produção de corpos sem vida, de famílias enlutadas, de imagens violentas, de figuras políticas de prontidão para explorar ou acobertar e de sujeitos que, se não seduzidos pela guerra, tornaram-se tão indiferentes a ela a ponto de escarnecer, zombar do sofrimento distante.

Mais vil que os boatos maldosos e o inventário incessante das vítimas fatais é a representação da violência a que a mídia às vezes se presta. Como alertou o filósofo Jean-Luc Nancy, a

dualidade entre imagens da violência e violência das imagens esconde uma verdade incômoda: a violência sempre se realiza como imagem, pois, antes de mais nada, quer ver sua marca impressa na vítima. Com isso, não se quer sugerir que a mídia, lugar por excelência dessa violência das imagens, cale-se diante da guerra. Pelo contrário. Espera-se que, mais do que todos, atue contra essa eterna sedução da dor dos outros.

Se as imagens da violência e do sofrimento dos outros estão tão banalizadas, não é, diria um outro filósofo francês, Jacques Rancière, porque vemos imagens demais, ou corpos demais a sofrerem nas telas e páginas, diante de nós. Vemos, na

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Mestre e doutorando em Comunicação pela UFMG e

professor da Unama

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verdade, corpos incapazes de nos devolver o olhar que lhes dirigimos; sujeitos que são objetos de palavra sem que eles mesmos tenham a palavra. Mostrar em demasia ou dissimular. Esse não é o problema. Trata-se de lutar contra aquele oportunismo que se compraz das cenas violentas e do sofrimento do outro começando pela abertura à palavra e pela concessão de um lugar para esses sujeitos numa ordem do visível, mas também do dizível.

serviço prestado pelos meios jornalísticos e à falta de uma informação oficial do poder público foi inflacionada a ponto de parecer

ainda maior do que era na verdade, atingindo muito mais pessoas do que alcançaria caso os boatos não tivessem se espalhado.

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A princípio, pobreza e violência não estão diretamente relacionadas. Então por que no Brasil essa equação parece mais ou menos exata? Em periferias, o vácuo deixado pelo poder público acaba sendo ocupado pelo tráfico e por milícias. É, portanto, a vulnerabilidade em que certas áreas se encontram o que leva à violência, não as condições socioeconômicas de um lugar.

O narcotráfico ergue à sua volta um poder paralelo, dominando regiões, estabelecendo regras e impondo ordens. Sem ter a quem recorrer, os moradores submetem-se a tais desmandos. Ou correm o risco de sofrer represálias. Costuma-se pensar que a violência se manifesta somente na agressão física – homicídios, linchamentos, e todo tipo de atrocidades –, mas ela também está presente no medo, em portas e janelas gradeadas. A qualquer instante, como um rastro de pólvora sobre o qual não se tem controle, teme-se que uma faísca, uma só faísca, provoque uma explosão.

A polícia, cuja função é proteger a população, está sobrecarregada e

Leonardo Rodrigues

A violência do dia a dia tornada natural

Nas baixadas de Belém, a violência está entranhada e, por vezes, banalizada

tem sua imagem manchada por uma parcela de policiais corruptos. Muitas vezes, a corporação é desacreditada e temida pelas comunidades. Coronel Roberto Campos, comandante geral da Polícia Militar no Pará, afirma que polícia não deve ter vergonha de apontar seus erros: “Temos que crescer com esses erros, para tentar melhorar e não deixar que aconteçam de novo”, mas considera que o lado

bom do trabalho policial também deve ser mostrado.

Para Alberto Pimentel, advogado e coordenador de comunicação da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), a segurança não se resume apenas ao reforço dos aparelhos de repressão do Estado, mas a um conjunto de políticas públicas para desenvolver as comunidades e dar a elas maior

dignidade. “Nós precisamos repensar a nossa própria concepção de segurança. O que é se sentir seguro? O que é para o jovem se sentir assim? Se você é jovem e consegue ter uma educação de qualidade, boas condições para se desenvolver, um bom emprego, então isso traz segurança”, considera Pimentel.

Ele diz que a naturalização da violência gera mais violência e a perda da sensibilidade. Uma forma de recuperar a capacidade de indignação, na opinião de Pimentel, seria resgatar a cidadania, a solidariedade e, principalmente, o sentido de ser comunidade. “As relações entre as pessoas precisam ser estreitadas. Vive-se numa sociedade individualista, e isso favorece a violência porque eu olho o outro sempre de uma forma estranha.”

Satisfazendo um primitivo anseio por justiça, tenta-se punir criminosos com as próprias mãos. Mas, aos poucos, ocorre o pior: o horror da violência, alimentada pela mídia e pela experiência cotidiana, acaba passando despercebido, como algo natural. Como se o tão vibrante vermelho fosse uma cor neutra.

O caminho do diálogoSeria o diálogo uma forma de

acabar com a tão enraizada cultura da violência? É o que Danila Cal, professora de comunicação da Universidade da Amazônia (Unama), discute na etapa paraense de um projeto em conjunto com outras duas instituições, a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade da Carolina do Norte.

Os estudos buscam entender de que forma o debate pode contribuir com a resolução de conflitos. Em Belém, Danila analisou o embate, em áreas periféricas, entre policiais e adolescentes. Ela considera que, mesmo que o Brasil não passe por uma guerra, o conflito entre grupos sociais existe, muitas vezes de forma sutil.

A pesquisa contou com três encontros reunindo policiais e adolescentes: dois no Guamá e uma na Pedreira. Tanto os policiais quanto

os adolescentes foram incentivados a dialogar entre si, expondo cada um seu ponto de vista sobre as possibilidades de construção de uma cultura de paz nessa relação. Muitos dos jovens nunca tinham estado tão próximos dos agentes de segurança. Os policiais, por sua vez, orientaram os adolescentes sobre como se portar em uma abordagem (deletar após esse trecho), e apontaram características que, segundo a lógica deles, indicam quando alguém é criminoso, como o modo de andar e de se vestir.

Além dos adolescentes, outros moradores do Guamá e da Pedreira participaram dos encontros. Eles diferenciaram os adolescentes envolvidos com o crime (“vagabundos”) daqueles não envolvidos (“estudantes”). E ainda deram uma definição aos agentes de segurança corruptos: “criminosos”.

Segundo Danila, o que ficou evidente nessas conversas foi o medo que muitos sentem em relação à polícia ao mesmo tempo em que esperam ações da corporação. “Como faltam políticas públicas sociais nesses lugares, a polícia acaba sendo referência de política. Então, a comunidade chama a polícia para resolver uma diversidade de situações, isso a sobrecarrega e acaba gerando mais insatisfação, porque a polícia não consegue dar conta de todas as demandas, a maioria endereçada a outros órgãos públicos”, explica a professora.

De acordo com Danila, o ponto de vista dos policiais quase nunca é considerado. “Os policiais alegaram estar em uma situação delicada: ao mesmo tempo em que precisam responder às fortes relações hierárquicas da corporação, ainda que

não concordem com algumas condutas, também sofrem pressão da comunidade em razão de alguns policiais corruptos, “criminosos”, prejudicarem a imagem deles. Então, eles sofrem com os problemas da imagem e da hierarquia, e estão num lugar com possibilidade de ação limitada”.

Ao fim, houve concordância sobre a importância da comunicação e do diálogo entre polícia e comunidade. “Todos têm um objetivo em comum: querem viver em uma comunidade pacífica”, afirma Danila, mas pondera que somente esse desejo não é suficiente para mudar a violência. “A questão é que não basta vontade, falta infraestrutura e uma revisão da própria polícia. Que instituição é essa? Qual é a melhor forma dela funcionar para atingir esse objetivo de garantir a nossa segurança?”, questiona.

Sentido de comunidade e diálogo podem ser antídotos contra a perda de sensibilidade

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A tolerância à violência

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Entrevista

Primeiras Linhas: Qual o caminho para criar uma cultura de paz? Para muitas pessoas, a violência é tida como algo natural.

Jaime Cunha: Desde cedo, nós somos orientados de que a violência é um meio legítimo. Basta você ver qualquer criança que está na frente da televisão, ela está o tempo todo sendo instigada de que a violência é algo que se pode lançar mão, tanto se você for o bandido como se for o mocinho. A rigor, os nossos heróis são tão violentos quanto os inimigos que eles atacam. Então nós criamos uma cultura de naturalização da violência. No nosso país, nós criamos a cultura de tolerar desrespeito e violência. Uma pessoa que não respeita o pai e a mãe em casa vai respeitar outras pessoas na rua? Vai respeitar o professor, o policial? Não vai. Então nós criamos uma tolerância e uma naturalização do desrespeito. Essa naturalização do desrespeito, via de regra, acaba em conflito, em violência.

PL: Por que o modo de organização das milícias domina certos territórios?

JC: A milícia é um fenômeno que surge na ausência do poder público. Quando o poder público não está presente, quando as instituições do Estado não estão presentes, quando a sociedade não acredita nas instituições, ela acaba recorrendo a determinadas estratégias, como as milícias. Ou seja, a milícia não prospera em um local onde o poder público faz seu papel. Certamente a milícia prospera onde a sociedade acha que o Estado está fazendo menos do que deveria, e a representação do Estado que está mais próxima, principalmente das comunidades mais carentes, é a polícia.

PL: Qual é a sua opinião sobre a ação da polícia? Em 2013, na época dos protestos de junho, dizia-se que os policiais estavam agindo

com brutalidade...JC: As pessoas precisam deixar

claro o que elas querem que a polícia faça. A polícia tem um papel constitucional, a polícia é subordinada ao poder político. A polícia tem uma missão específica. Eu acho interessante que as pessoas que acusaram a polícia de brutalidade eram as mesmas que estavam jogando coquetel molotov na polícia. Quer dizer que jogar coquetel molotov na polícia, destruir o patrimônio público e privado não é violência? Se o policial tentar impedir isso aí com bala de borracha, gás lacrimogênio, spray de pimenta e cassetete é brutalidade? Então nós precisamos primeiro definir o que é que entendemos como brutalidade. Ou se brutalidade é só quando a polícia bate.

PL: Você acha que as pessoas ainda não entendem direito qual o papel da policial? Ou é a própria policial que não sabe?

JC: As pessoas não entendem até onde vai o seu próprio direito. Elas vão para as ruas reivindicar direitos, mas poucas têm uma noção clara de que direitos são acompanhados de deveres. Eu não posso cometer um ato de brutalidade e, ao mesmo tempo, me queixar que a instituição responsável pela segurança pública é brutal. Eu só posso fazer isso se eu, como cidadão, estiver respeitando o direito das outras pessoas. A impressão que dá é que toda vez que a polícia entra em cena, a polícia é brutal. Existem excessos? Claro que existem. A polícia é perfeita? Claro que não. A polícia comete erros graves? Evidentemente que comete erros graves. Mas a polícia, no Pará, tem 14 mil pessoas e a sociedade sempre se referea ela como se toda a instituição fosse corrupta ou violenta.

PL: Essa imagem de repressão não

estaria ligada à ditadura militar?JC: Não. Em qualquer país

democrático, quanto mais democrático é o país, mais arraigado é o respeito às regras. Democracia não significa ausência de regras. Em todo país existe a figura da polícia. Todo país. Como aquela instituição responsável por fazer com que as regras sejam cumpridas, ou de ir atrás daqueles que resolvem transgredir as regras. E a polícia tem sempre o potencial de fazer uso da força, institucionalmente ela tem essa possibilidade. Quando a polícia utiliza essa força desnecessariamente, é uma coisa. Por exemplo, a polícia prende e assassina um jovem, ou agride fisicamente o jovem. Ou, sem motivo algum, a polícia joga uma bomba de gás lacrimogênio no meio de um aglomerado. Toda ação ilegal da polícia tem que ser repudiada. Agora não vamos confundir isso com as ações da polícia no cumprimento do seu dever legal. Toda vez que a integridade física de alguém, o patrimônio público ou privado estiverem sendo ameaçados, é obrigação da polícia intervir, inclusive com força.

PL: A Comissão Nacional da Verdade que, recentemente, investigou a violação dos direitos humanos ocorrida no regime militar, recomendou, em seu relatório final, a desmilitarização das polícias estaduais. Esse é o caminho para democratizar a polícia?

JC: Eu não sei. Tenho muitas dúvidas em relação a isso. Se nós estamos dizendo que a desmilitarização é a solução, indiretamente estamos dizendo que a Polícia Civil, que não é militarizada, é um paraíso, não tem problema nenhum. As pessoas sempre trazem propostas de reformulação, de modificação, sem um estudo ou

JAIME CUNHA é professor do mestrado profissional em defesa social e mediação de conflitos, da UFPA, e realiza pesquisas sobre violência e políticas públicas. Em 2013, publicou, como organizador, ao lado de Daniel Brito, o livro Na Periferia do Policiamento: direitos humanos, violência e práticas sociais (Paka-Tatu). Em entrevista ao Primeiras Linhas, Jaime defende o fortalecimento da polícia como instituição, mas não deixa de criticar a maneira como ela age na atualidade: “Toda ação ilegal da polícia tem de ser repudiada. Agora não vamos confundir isso com as ações da polícia no cumprimento do seu dever legal”.

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demonstração de que o que elas estão propondo funcionou em outros lugares. Por exemplo, quais são as experiências que mostram que essa desmilitarização realmente democratizou a polícia? Qual é a experiência que mostra que as polícias não militarizadas, pelo simples fato de serem não militarizadas, são menos violentas e menos corruptas do que as polícias militares? Nós temos o exemplo da Polícia Civil. Se nós mandarmos a Polícia Civil fazer os mesmos serviços, de patrulhamento ostensivo, que a Polícia Militar faz, provavelmente vamos ter os mesmos problemas.

PL: Você acha que a abordagem dos policiais é pautada pelo racismo?

JC: Isso é uma balela. São declarações de efeito midiático. Ou de efeito militante. Vou citar um exemplo: no Guamá, que tem umas 120 mil pessoas, uma parte considerável dessa população éjovem e classificada como negra. Se você for perguntar quantos desses jovens já foram abordados pela polícia, você vai descobrir que, mesmo sendo negros, mesmo sendo pobres, a maioria nunca foi.

PL: Há perspectiva de mudança de diminuição da violência em Belém nos próximos anos?

JC: Eu não vejo. Porque os fatores que levam à violência continuam muito presentes, e não há indicações de que sofreram alguma modificação drástica. As instituições continuam enfraquecidas. A família está enfraquecida. A escola está enfraquecida. A polícia está enfraquecida. A família não resolve a questão da criação dos filhos. No final, sobra para a polícia resolver. A escola não dá conta de socializar os alunos e educar. No final, sobra para a polícia resolver. Então tudo no final sobra para a polícia resolver, e a polícia não tem uma varinha mágica para dar conta de todos os problemas.

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Integrantes do coletivo de audiovisual Tela Firme, da Terra Firme

No Guamá, Raimundo Oliveira coordena o Espaço Nossa Biblioteca

Uma biblioteca viva

A rua vai se estreitando à medida que é percorrida, como galhos de árvore que se dobram sobre a trilha de uma floresta. Mas o que se vê são postes numa sequência desalinhada; fiações elétricas que cruzam o espaço num intrincado que impressiona; casas que invadem as calçadas como se avançassem, também, por quem passa; e uma rua cada vez mais irregular, que não segue retas nem curvas. É a desordem urbana típica das periferias brasileiras.

Se, para muitos, a Terra Firme permanece uma selva inexplorada, visitada ocasionalmente através da televisão ou das páginas dos jornais em abordagens nem sempre justas ou generosas, grupos como o Tela Firme pretendem desmistificar a imagem do bairro e contribuem para melhorar não só a visão externa sobre o lugar, mas também o ânimo dos próprios moradores.

Sob o comando de Francisco

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Leonardo Rodrigues

Batista, o grupo atua há mais de um ano produzindo vídeos sobre o cotidiano e os acontecimentos. Nos fundos de um bar, encontra-se o espaço onde a maioria dos vídeos do Tela Firme é feita. É uma sala pequena, que se torna ainda menor com os objetos que a ocupam. Para as gravações, tudo é retirado e desenhos coloridos que cobrem a parede ao fundo são revelados por completo.

Há falta de equipamentos, mas as produções, disponíveis no canal do Youtube grupo, são feitas com esmero. Algumas são cômicas, outras impactantes, como o vídeo Poderia ter sido você!, que relembra as chacinas ocorridas na Grande Belém e no qual cada personagem se coloca no papel de uma das vítimas. A ideia para esse vídeo surgiu em uma reunião um dia após a chacina de novembro de 2014. Vanessa Alves, estudante e integrante do Tela Firme, conta que, a princípio, o grupo teve medo de se posicionar,

“mas a gente entendeu que tinha o dever de fazer algo”.

O trabalho do Tela Firme já é reconhecido pelos moradores do bairro. Vanessa conta que, por onde passam, vestindo ou não uma camisa

branca com o logo do projeto, são cumprimentados nas ruas. “Eu não sou mais a Vanessa Alves, eu sou a Vanessa do Tele Firme. A gente ganha uma nova identidade”, conta a estudante.

Na Rua Barão de Igarapé Miri, no bairro do Guamá, uma série de pinturas em muros chama atenção de quem passa, indicando o caminho para uma instituição que há mais de 38 anos atua na área, o Espaço Cultural Nossa Biblioteca. As setas nas pinturas levam a uma casa de dois andares, com fachada estreita, mas relativamente larga em profundidade. No primeiro andar, há prateleiras, em ambos os lados, com livros para crianças e adultos, e mesas para leitura. No andar de cima, uma sala para aprender música e outra para artes marciais.

O prédio não está nas melhores condições, apresenta infiltrações e a parte destinada às artes marciais é escura e não possui forro, mas é indicativo do caráter da Nossa Biblioteca: um espaço cujas atuações visam transformar a realidade do seu entorno sugerindo soluções, cobrando serviços, oferecendo diversas atividades, uma “biblioteca viva”, na definição de Raimundo Oliveira, líder da instituição.

O empréstimo de livros é gratuito e qualquer pessoa pode

se cadastrar, também sem custo. Ainda funciona assim, mas, como as doações não são garantidas, não se sabe até quando. Para acabar com as incertezas, Raimundo quer tornar a Nossa Biblioteca definitivamente pública. Seria um ganho e tanto para o Guamá, que, assim como outros bairros da periferia, não possui sua própria biblioteca pública. “Por que não há isso em todos os bairros de periferia da cidade? A biblioteca produz criminoso? Tem bar, tem boca de fumo, salão de beleza... Por que não tem biblioteca?”, questiona Raimundo.

Tanto Raimundo, do Nossa Biblioteca, quanto Francisco, do Tela Firme, sabem que o combate à violência começa pela criação de opções de lazer, recreação e oportunidades aos jovens. É através de pessoas como eles, e toda a rede de voluntários que os acompanha, que se consegue enxergar uma perspectiva melhor. Os moradores das baixadas de Belém não respiram só violência. Os ares da cultura e de boas iniciativas por cidadania também sopram na periferia.

Iniciativas comunitárias mostram que as baixadas de Belém não oferecem só violênciaA periferia também respira cultura