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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 164, dez. 2007. EDITORIAL A posição do sujeito na infância difere daquela da vida adulta, já que este é o período da vida em que se desdobram os processos cruciais de sua constituição; tempo em que a estrutura é, ainda, “não-decidi- da”. Ao intervir neste momento tão particular, a psicanálise de crianças deli- mita um conjunto de especificidades que abrem uma série de questões àque- les que a ela se dedicam. Além disso, são inúmeras as disciplinas que se dedicam ao trabalho com a infância, tanto no campo da saúde quanto da educação, e que dirigem à psicanálise interrogações relativas à sua prática. Na APPOA, tem sido permanente o trabalho em torno das questões relativas à prática analítica com crianças e das articulações interdisciplinares feitas a partir dela. Um dos espaços de formação que tem se proposto ao estudo e discussão das especificidades levantadas à psicanálise pelo traba- lho com a infância é o Percurso em psicanálise de crianças, proposta construída em parceria com o Núcleo de Estudos Sigmund Freud. A pluralidade de questões e autores que perpassam o campo da psicanálise de crianças conduziu a composição deste trabalho interinstitucional. Neste número do Correio, reunimos alguns dos trabalhos apresenta- dos na I Jornada do Percurso de psicanálise de crianças, a qual aconteceu no mês de setembro deste ano, momento de conclusão de dois anos de trabalho. Os artigos aqui publicados testemunham os efeitos desta proposta de transmissão da psicanálise e o modo como cada um dos autores nela pôde se engajar.

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1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 164, dez. 2007.

EDITORIAL

Aposição do sujeito na infância difere daquela da vida adulta, já queeste é o período da vida em que se desdobram os processos cruciaisde sua constituição; tempo em que a estrutura é, ainda, “não-decidi-

da”. Ao intervir neste momento tão particular, a psicanálise de crianças deli-mita um conjunto de especificidades que abrem uma série de questões àque-les que a ela se dedicam. Além disso, são inúmeras as disciplinas que sededicam ao trabalho com a infância, tanto no campo da saúde quanto daeducação, e que dirigem à psicanálise interrogações relativas à sua prática.

Na APPOA, tem sido permanente o trabalho em torno das questõesrelativas à prática analítica com crianças e das articulações interdisciplinaresfeitas a partir dela. Um dos espaços de formação que tem se proposto aoestudo e discussão das especificidades levantadas à psicanálise pelo traba-lho com a infância é o Percurso em psicanálise de crianças, propostaconstruída em parceria com o Núcleo de Estudos Sigmund Freud. A pluralidadede questões e autores que perpassam o campo da psicanálise de criançasconduziu a composição deste trabalho interinstitucional.

Neste número do Correio, reunimos alguns dos trabalhos apresenta-dos na I Jornada do Percurso de psicanálise de crianças, a qual aconteceuno mês de setembro deste ano, momento de conclusão de dois anos detrabalho. Os artigos aqui publicados testemunham os efeitos desta propostade transmissão da psicanálise e o modo como cada um dos autores nelapôde se engajar.

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NOTÍCIAS

AGENDA DE ATIVIDADES DO INSTITUTO APPOA

– 28 de novembro, às 19 horas – Reunião do grupo Psicanálise e SaúdePública.– 03 de dezembro, às 19 horas – Grupo de estudos, coordenado por JaimeBetts, sobre Psicanálise e Assistência Social.– 03 de dezembro, às 20 horas – Reunião sobre o tema Psicanálise e Justi-ça, para discutir a possibilidade de constituir uma linha de trabalho (clínica,pesquisa e intervenção).– 17 de dezembro, às 20h30min – Reunião da linha de trabalho Psicanálisee Saúde Coletiva.– 14 de janeiro, às 20h30min – Reunião Geral do Instituto (discussão dotema Pesquisa em Psicanálise)

EIXO DE TRABALHO 2007/2008:ENCONTROS DE ESTUDO DO SEMINÁRIO

“A ANGÚSTIA” DE JACQUES LACANCONVIDA PARA O “CARTELÃO”

Dando continuidade à nossa leitura e discussão do Seminário A an-gústia, e encerrando as atividades no ano de 2007, convidamos a todos paraa próxima reunião do “Cartelão”, no dia 13 de dezembro, quinta-feira, às 21h.

Este cartel é preparatório ao nosso próximo Congresso, que se reali-zará nos dias 14, 15 e 16 de novembro de 2008, no Centro de Eventos PlazaSão Rafael.

– Leitura indicada para este encontro: A ANGÚSTIA, de J. Lacan(Seminário 1962/63). Lição XVI (27/03/1963).

– Apresentação desta lição a cargo de: Robson de Freitas Pereira.A Reunião é aberta a todos os interessados.

Data: 13 de dezembro de 2007 – quinta-feira, às 21h, na Sede da APPOA.

Carmen Backes, Lígia Víctora e Robson Pereira (Coordenação)

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NOTÍCIAS

FESTA DE ANIVERSÁRIO DA APPOA - 18 ANOSSÁBADO - 08 DE DEZEMBRO DE 2007

DJ: Garota Vinil (Andréa Ávila)SHOW: Mônica Mendes (voz e violão)

Quitutes: Bom-bolim e Casa de Massas de Gramado

Data: 08 de dezembro de 2007Horário: 21hValor: R$ 40,00Local: Sede da APPOAConvites à venda na SecretariaVenha alegrar nossa festa com sua presença!

CALENDÁRIO DE EVENTOS 2008

Jornada de Abertura da APPOAData: 05 de abril de 2008Local: AMRIGS – Porto Alegre / RS

Relendo Freud e Conversando sobre a APPOAData: 06, 07 e 08 de junho de 2008Local: Hotel Laje de Pedra – Canela / RS

Enlace da ConvergênciaData: 01, 02 e 03 de agosto de 2008Local: Hotel Plaza São Rafael – Porto Alegre / RS

Congresso da APPOAData: 14, 15 e 16 de novembro de 2008Local: Hotel Plaza São Rafael – Porto Alegre / RS

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SEÇÃO TEMÁTICA

PERFUME: CAPTURA DO OBJETO

Aidê Ferreira Deconte

...o seio, o cíbalo, o olhar, a voz: estas partes destacáveis, masintrinsicamente ligadas ao corpo, é disso que se trata no objeto a.

J.Lacan

Neste trabalho não busco formalizar teorias, nem me debruçar exaus-tivamente sobre nenhuma delas. O que eu quero, e espero que con-siga, é abrir um espaço onde juntos possamos pensar sobre um

“caso”. Não me preocupo em levantar um diagnóstico sobre o personagem,gostaria sim de pensar em todas as questões que daí possam surgir.

Cito para vocês uma declaração de Freud: “Eu me surpreendo ao cons-tatar que minhas observações dos pacientes podem ser lidas como roman-ces e não trazem, por assim dizer, a chancela de seriedade que é própriodos escritos científicos.”

Inspirada nesta citação, declaro: eu me surpreendo ao constatar queas observações dos personagens de romance podem me ajudar a pensarnas pecularidades dos meus casos clínicos.

Cheguei a pensar se esta forma de apresentar meu trabalho não seriauma maneira de me insentar de sustentar a teoria, que afinal foi o que estu-damos sistematicamente por dois anos no percurso de psicanálise de crian-ças. Mas, depois de algumas sessões de análise que não trouxeram res-postas, mas ajudaram a sustentar meu desejo, percebi que esta é a minharelacão com a psicanálise, mais perguntas do que respostas, mais dúvidasdo que certezas.

Casualmente (será?) comprei esta semana o livro de J.D.Nasio cha-mado “Os grandes casos de psicose” e o primeiro capítulo, acreditem, é:“Que é um caso?”, me ajudou muito, recomendo a vocês, vale a pena.

O autor escreve que o “caso” para a psicanálise exprime a singularida-de do ser que sofre e da fala que ele nos dirige... um pouco depois ele

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comenta: “O caso se apresenta, portanto, como uma fantasia em que voa-mos livremente de um personagem para outro, no seio de um mundo virtual,estando dispensados de qualquer confronto direto com a realidade. Assim, oexemplo clínico mostra os conceitos e, ao mostrá-los, transforma o leitornum ator que, pela encenação improvisada de um papel, inicia-se na práticae assimila a teoria.” (pag.12)

“(...) o valor didático de um caso reside no poder irresistível da históriaclínica para captar o ser imaginário do leitor e conduzi-lo sutilmente, quasesem que ele se perceba, a descobrir um conceito e a elaborar outros.” (pag.14)

“(...) o caso clínico resulta sempre de um distância inevitável entre oreal de que provém e o relato em que se materializa. De uma experiênciaverdadeira, extraímos uma ficção, e, através dessa ficcção, induzimos efei-tos reais no leitor. A partir do real, criamos a ficção, e com a ficção, recria-mos o real.” (pag.18)

Confesso que J.D.Nasio me ajudou muito a entender e talvez explicara vocês a finalidade deste trabalho, e agradeço a ele.

O filme de Tom Tyrwer, “Perfume: história de um assassino”, é versãodo livro editado em 1985 pelo escritor alemão Patrick Suskind.

Penso na necessidade de resaltar para vocês que entre a história do livroe a que aparece no filme, existem algumas diferenças, talvez não exatamentediferenças, mas passagens que são narradas no livro e que no filme nãoaparecem, ou alguma cena do livro onde tenha havido uma modificação nafilmagem. A necessidade desta ressalva se faz necessária, pois alguns diasatrás num grupo onde discutíamos o caso, apareceram algumas discrepânciasentre o que o livro narra e as cenas que aparecem mais “enfeitadas” pelo diretor.

Feita a ressalva, vamos à história do caso.As palavras “perfume” e “assassino” não combinam e, normalmente,

não aparecem juntas. Um perfume pode ser objeto de desejo, seu cheiropode ser marcante, enjoativo, eterno, efêmero; cada perfume tem um estilo ealguém o elege para ser o seu. Já assassino é uma pessoa que dá medo,remete a extermínio, ninguém quer ser marcado por ele, salvo alguém quealmeje isto de um modo excepcional.

DECONTE, A. F. Perfume...

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A história do “Perfume...” pode fazer esquecer ou não prestar atençãona história do assassino e remete-nos aos odores, os não amores, as dores,os temores de Jean, personagem principal da história. A intensidade comque ele cheira é tão intensa que quase podemos sentir os cheiros inaladospor ele. O diretor do filme lança a pergunta: Jean Baptiste Grenouille é umgênio, um monstro ou um assassino?

A história acontece em Paris do século XVIII. Em 17 de julho de 1738,nasce Jean, ou melhor, onde ele é despejado pela mãe, vendedora de peixeda parte mais fedorenta da cidade. Já teve cinco partos, todos atrás de suabarraca, nenhum vingou, e ela não vê a hora de poder se livrar deste também.Todos acabaram morrendo e sendo soterrados sob os restos de peixes po-dres. Aparentemente, Jean não aceita o desejo da mãe, chora e se denuncia(do latim denunciare, revelar-se, mostrar-se), delatando a mãe, que é mortaenforcada, acusada de infanticídio.

Foi entregue a uma igreja para ser batizado, amamentado por umaama de leite e depois remetido para um orfanato.

A ama de leite o amamenta por um curto período e o devolve ao padredizendo que não quer cuidar daquele ser estranho, totalmente sem cheiro,que a suga completamente.

É remetido ao orfanato e lá é observado pelas outras crianças que o“sentem” um bebê estranho, tentam matá-lo, mas mais uma vez se anunciae se defende da morte. É salvo pela dona do orfanato. Ela o salva não porpena e sim porque “aquilo” era sua mercadoria. A medida que cresce, vaidescobrindo a sua capacidade impressionante de decifrar odores: são chei-ros molhados, secos, fracos, intensos, de bichos, plantas e mais alguns queele nem consegue nomear. Aliás, aprende a falar muito tarde, como se seuolfato apurado bastasse. Fisicamente, Jean é de estatura baixa e pequena,anda encurvado, tem muitas cicatrizes pelo corpo e um pé aleijado.

Na adolescência, é vendido como um objeto pela dona do orfanatopara o dono de um curtume, assim que faz o negócio, ela é roubada e morta.

Jean sobrevive aos maus tratos, ao serviço brutal, à doença, pois écomo se não existisse, não se envolve emocionalmente com ninguém, e é

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como se seu corpo não existisse. É meticuloso no que faz, continua arma-zenando odores em seu nariz.

Até este momento, o odor estava para Jean no seu estado bruto, ocheiro diretamente ligado a coisa inalada.

A partir de sua ida à cidade, inala novos odores, agradáveis, delica-dos, intensos. Descobre que os cheiros podem ser misturados na sua es-sência, como acontece na fabricação dos perfumes.

Um odor especial é captado pelo seu nariz, um cheiro quase imper-ceptível, mas tem sobre ele um efeito arrebatador, faz Jean ficar em transe.Ele tem a sensação de que este aroma seria a chave para ordenar todos osoutros; caminha como um sonâmbulo, orientando-se pelo odor, que quantomais próximo, não torna-se mais forte e sim mais puro.

A dona desta fragância é uma jovem adolescente. Ele pensa que nun-ca havia cheirado algo tão bonito e fica tomado por esta fragância – não pelamoça, que por acaso acaba matando e isto lhe é indiferente. O que lheimporta é aquele cheiro que o deixa siderado, alucinado, rasga a roupa damulher e cheira cada pedaço daquele corpo sem vida, querendo incorporá-lo,entrega-se de modo desenfreado às percepções do seu olfato. Ele concluique este aroma é a pura beleza, beleza pura.

Nesta noite, não consegue dormir, treme de felicidade e de alegria. Écomo se nascesse pela primeira vez. Agora sabia, ele é nada menos que umgênio e sua vida agora tinha um objetivo, fabricar o perfume mais irressistíveldo mundo, a essência do amor. Aqui podemos perceber um delírio megalo-maníaco.

Por sua capacidade de distinção olfativa, consegue ser notado pelodecadente perfumista Giuseppe Baldini, e quando o perfumista o compra edeixam o cortiço, seu ex-dono morre.

Na fábrica de perfumes, cria perfumes inebriantes, que fazem comque seu mestre readquira prestígio e ascensão, mas insensatemente, pedea este que lhe ensine o poder de reter um cheiro para sempre. Para não ficarmuito evidente sua genialidade com a fabricação de perfume e para seumestre deixá-lo em paz, Jean faz de conta que segue algumas normas que

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Baldini lhe ensina, e o mestre pensa que todo o saber é dele, Baldini. Elenão supõe a Jean um saber.

Depois de algumas experiências que não dão certo para seu objetivo,ouve de seu mestre uma história sobre um perfume tão poderoso que, enter-rado junto a um faraó, aberto muito tempo depois, inebria toda a humanidadepor muito tempo. Jean diz que quer fazer um perfume assim. Seu mestre dizque é impossível, pois isto é um mito. Ele entra no discurso, no que é ditopelo mestre de forma delirante, e conclui que fará este perfume, ou até me-lhor que este.

Após inúmeras tentativas frustadas para separar alguns cheiros e retê-los, Jean cai doente. Baldini faz o possível e o impossível para que ele secure, não por afeto, mas porque Jean é uma mercadoria valiosa. Uma noite,depois da visita do médico que setenciou sua morte para alguns dias, Jean,num fio de voz, pergunta ao seu mestre se existe alguma outra forma deseparar cheiros que não seja por destilação. Baldini diz que sim, que emoutra cidade eles tem uma maneira mais requintada de fazer isto, que nacidade de Grasse existe um método chamado eufleurage, para captação daessência. Uma semana depois Jean está curado.

Ele segue em seu delírio, faz um acordo com seu mestre. Deixa-lhecentenas de fórmulas de perfume e recebe um atestado de assistente deperfumista. Assim que vai embora, a casa de seu mestre desmorona e mes-tre Baldini morre soterrado.

Na sua viagem, vai cada vez mais se afastando e chega a montanhada solidão – nenhum cheiro de humanos a sua volta. Grita de alegria eexaltação, comporta-se como um maluco. Ajeita-se no fundo de uma caver-na onde mal pode se mexer, usa a água que escorre de uma fenda e sealimenta de bichos e plantas que encontra. Não se importa com conforto ouprazer.

“Jaz na mais solitária montanha da França, cinquenta metros abaixo daterra, como em sua própria sepultura. Jamais se sentira tão seguro na vida –nem mesmo na barriga de sua mãe (...) ficava sentado bem mais de vinte horaspor dia em completa escuridão, completo silêncio e completa imobilidade so-

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bre a manta de cavalo no fim da galeria rochosa, recostado contra o entulho,os ombros presos entre os rochedos, e bastava-se a si mesmo.” (pag. 109)

Parecia estar morto, “e no entanto vivia tão intensa e desvairadamentecomo nenhum farrista jamais viveu no mundo... palco deste delírio era –como não poderia deixar de ser – o seu império interior, no qual desde onascimento tinha enterrado os contornos de todos os cheiros com que algu-ma vez se houvesse deparado.” (pag.110)

Em seu delírio, que o autor denomina o “espetáculo do teatro grenoui-lliano da alma”, ele tem um mundo em que é senhor absoluto de “um povosimples dos aromas”, herói deste mundo regido por cheiros. “Seu coraçãoera um púrporeo castelo. Localizava-se num deserto rochoso, camufladoatrás de dunas, circundado por uma depressão pantanosa e por trás de setemuralhas de pedra. Só voando podia ser alcançado. Possuía mil câmaras emil adegas e mil finos salões, entre eles um que tinha um simples canapépúrpura, sobre o qual contumava descansar dos esforços do dia. Mas nascâmaras do castelo havia estantes do chão até o teto, e nelas se encontra-vam todos os aromas que Grenouille, ao longo da vida, havia recolhido em si,milhões deles. E nas adegas do castelo descansavam em barris os melho-res aromas de sua vida. Ao chegarem a maturação, eram engarrafados eficavam, então, em quilométricos corredores, frescos e úmidos, ordenadossegundo ano e origem...” (pag.114)

Este delírio lhe deu uma certa consistência por um tempo. Durantesete anos, Jean viveu assim, vendo e cheirando alucinações.

“Na psicose é a própia estrutura da linguagem do inconsciente que érevelada e o Outro do sujeito aparece desvelado, consistente e absoluto”.(Quinet 2003).

Estava ele um dia ou noite, já não havia diferença, depois de ter bebibovárias garrafas do aroma da jovem de cabelos ruivos, quando tem um sonho,encontra-se completamente envolto em névoa, impregnado de névoa, semnem um pouco de ar livre para respirar, descobre que aquela névoa era ocheiro de Grenouille, e terrível é que ele não conseguia cheirá-lo “era capazde se afogar em si mesmo, mas não conseguia cheirar a si próprio”, quando

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descobre isto se põe a gritar tão alto que destroi as paredes do salão púrpurae todo o seu mundo imaginário, acordou com seu próprio berro. “Ao acordar,ficou se debatendo como se tivesse de afuguentar a invisível névoa que que-ria sufocá-lo. Estava mortalmente assustado, tremia-lhe o corpo todo de puraangústia imortal.” (pag. 119)

Faz várias tentativas para achar seu cheiro, tira suas roupas de anossem lavar. Lava-se na chuva, volta a cheirar as roupas, nada. Teve medonovamente, mas um medo diferente ao anterior, estava com medo de nãosaber ao certo quem era. Novamente a certeza de que tinha que fazer seuperfume original da essência do amor.

Sem tomar banho, totalmente sujo e mal-trapilho, estava com umaaparência terrível, nem parecia um ser humano.

Caminhou até o primeiro vilarejo, algumas pessoas que o viam grita-vam e saiam correndo.

O marquês deste lugar vivia para a ciência, tinha uma teoria sobre ofluidum letale. Sua tese era que a vida só poderia desenvolver-se a uma certadistância da terra, já que dá terra fluia um gás letal que paralisava as forçasvitais e levava a morte.

Jean havia inventado a história de que teria sido feito prisioneiro emuma caverna por sete anos e, pela sua aparência, o marquês pensou que aliestava confirmada sua teoria, pois o contato com a terra por tanto tempotinha feito com que Grenouille ficasse daquela maneira. Mandou buscá-lo.

Fez conferências, tratou de Jean com elementos que estavam longeda terra e isto, segundo ele, fez com Jean ficasse com uma ótima aparência,demonstrou e comprovou com Grenouille sua teoria.

Jean ganhou uma boa aparência e, com roupas novas, se olhou pelaprimeira vez em um espelho. “Viu um cavalheiro em fina roupagem azul...institivamente curvou-se... mas o fino cavalheiro também se curvou... quandoGrenouille ficou novamente ereto, o fino cavalheiro fez o mesmo, e daí ambosficaram parados, olhando-se fixamente.” (pag.127)

Tinha uma aparência, mas não tinha cheiro. Fabricou cheiro de gentee se utilizava deles.

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Depois que adquiriu, mesmo que artificialmente, cheiro de gente, fu-giu, foi para Grasse.

Consegue trabalho em uma fábrica de extratos de perfume e começaa execução de seu perfume perfeito. Aprende a nova técnica e a aperfeiçoa,chegando a conseguir extrair o odor de uma pessoa.

Lembra do mito contado por Baldini e que o perfume foi feito por 13extratos aromáticos. Meticulosamente, mata doze donzelas e extrai delasseu cheiro, todas adolescentes, lindas, embora, segundo ele, não era suabeleza física que todos admiravam e sim seus cheiros que as faziam especi-ais.

A décima terceira donzela era a mais bela jovem do lugar.O vilarejo fica em alvoroço com tantas mortes, e o pai da jovem leva-a

embora, Jean vai atrás, mata a jovem e finalmente fabrica sua obra-prima, operfume da essência das jovens mortas.

É preso e a população quer linchá-lo. É decretada sua morte atrávesde castigos corporais.

Antes que seja executado, ele coloca o perfume em um lenço quesacode ao vento por cima da multidão.

A praça, onde a população está sedenta de sangue e todos furiosos,quando ele chega com o cheiro do seu perfume, muda. As pessoas ficamamorosas, o idolatram, todos tiram a roupa e transam ali no chão, possuidospelo cheiro pertubador do perfume. Todos iguais, todos nus, entregues aogozo total.

E ele, Jean-Baptiste Grenouille, que tinha o insuperável poder de fazeras pessoas o amarem, se amarem, não podia amar.

Todos acreditaram que o desejavam, mas o que elas realmente dese-javam permanecia um segredo para ele. E ele, desejava algo?

Sai rumo a Paris, sabe que pode fazer-se adorado tanto pelo papa quan-to pelo rei, mas tristemente descobre que o que ele não pode é amar e seramado como qualquer pessoa. Então, manda tudo ao diabo, inclusive ele.

Vinte e seis anos depois, Jean entra em Paris e vai, através da sua me-mória olfativa, parar na praça onde sua mãe lhe deu a luz, ou melhor, o olfato.

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Ali, no meio da praça, derruba todo o frasco de seu perfume do amorem sua cabeça, todos os miseráveis que estão em volta são atraidos por ele,sentem um imenso desejo de possuí-lo, e o devoram, literalmente.

Jean, o cheiro lhe deu a vida, mas não amor: o cheiro lhe deu a mortepor amor.

Jean nunca teve um outro que o sustentasse, uma matriz simbólica queo fundasse – simplesmente aquele pedaço de carne deixada no chão pelamãe. Não é pensado, desejado, não tem uma pré-história onde se inserir.

Dolto, no seu livro “A imagem inconsciente do corpo” fala da primeiraseparação, denominada “castração umbilical” – seria a primeira castraçãoimposta ao bebê, separando-o do corpo da mãe.

Ao sairmos de dentro da barriga da mãe, deixamos uma parte impor-tante do que constituia nossa vida no útero, lá funcionávamos como um sóorganismo.

“Portanto, bruscamente, brutalmente, ela (a criança) descobre per-cepções das quais não possuía noção até então: luz, odores, sensaçõestácteis, sensações de pressão e de peso, e os sons fortes e nítidos que elahavia surdamente percebido até então.”

A autora declara a importância do cheiro nas primeiras relações dadupla mãe-bebê: “Ao mesmo tempo que a respiração e o seu próprio gritoque ela (a criança) ouve, a entrada em jogo do olfato (o odor materno) éinconscientemente o impacto primeiro, para o recém-nascido, de umareferenciação particular de sua relação com a mãe. A audição pré-natalensurdecida desaparece, para dar lugar, à audição intensificada das vozes jáconhecidas: as do pai, da mãe e de seus familiares.”

Todas as percepões intensas neste momento são gravadas pelo bebê,principalmente a percepção auditiva, que percebe através da repetição doseu nome, do significante de seu sexo “é menino – é menina”, as expres-sões de “alegria já narcisante, ou de reticência, senão de dor, e de angústiapara eles já desnarcisante.”

“É a linguagem, portanto, que simboliza a castração do nascimentoque denominamos de castração umbilical.”

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No relato dos pais sobre o nascimento dos filhos, é possível imaginar-mos a cena do “vir ao mundo” do bebê, que ali é falado; digamos, então, queno caso de Jean esta cena foi filmada, aliás uma cena impactante. No filme,a mãe sente as contrações do parto e seu mal estar vai aumentando, pensaque não vê a hora de isto tudo acabar, só quer se livrar daquilo. Jean édespejado no chão, tendo a terra fedorenta infestada de restos de peixe esujeira como acolhedores de sua queda. Ninguém lhe fala, ninguém lhe olha,apenas e só o que lhe capta intensamente é o cheiro.

Mais uma passagem do texto: “...A luz ofusca sua retina, o odor desua mãe preenche seu cavum, as vozes da assistência e os ruídos sãoouvidos claramente ...”

A mãe de Jean morre quando ele nasce. Segundo a autora, a morteda mãe marca, de modo permanente, com culpa inconsciente de viver, qual-quer criança que pereceu, por seu nascimento, ter sido responsável pelamorte da mãe, o viver é para ela fundamentalmente ligado com seu nome auma culpa.

E é nesta ordem simbólica precocemente perturbada que encontram-se casos de psicoses precoces.

Se a mãe não fez hipótese, se não houve demanda, se a criança é umpuro real, podemos pensar no autismo. Mas Jean é marcado pelo cheiro, me-lhor dizendo, seu nariz foi marcado, ficou captado pelo cheiro da mãe, queestava impregnada pelo cheiro do lugar. Podemos pensar aqui em “objeto a”?

Lacan diz para que haja partes do corpo que, desligadas, sejamidentificáveis na categoria de pequeno a, são necessárias três condições,uma imaginária e duas simbólicas.

Na citação no início do trabalho, Lacan fala do seio, do cíbalo, do olhare da voz, eu acrescentaria como possibilidade de objeto a, o cheiro. Pensoque a condição imaginária que ele, o nariz, cumpre, é de ter uma formaproeminente (como o seio).

A primeira condição simbólica é ser uma fenda orificial palpitante (comoa boca), e o nariz preenche este quisito, o que é magnificamente mostradopelo diretor do filme em relação ao nariz de Jean.

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A segunda condição simbólica seria a demanda dupla sujeito/Outro(como uma dupla demanda, do sujeito ao Outro e do Outro ao sujeito, comopor exemplo o seio da mãe e a boca do bebê). Que, neste caso, seria ocheiro da mãe e o nariz do bebê. Esta condição me remete a um diálogo quea ama de leite de Jean, ao devolvê-lo ao padre, lhe diz “este bebê não temcheiro de bebê” e o padre lhe pergunta “e qual é o cheiro de um bebê?” ela lheresponde “é um cheiro tipo de caramelo, é um cheiro que quando a gentesente no bebê, mesmo não sendo filho da gente, ficamos capturados poraquele serzinho”.

E do lado da criança como ela seria capturada pelo cheiro? Talvezseja pelo cheiro do leite que sai do seio, ou do perfume que a mãe usa, ou doseu cheiro natural caso ela não use, ou um cheiro intenso mesmo como nocaso de Jean...

Poderíamos falar de um cheiro alucinado que seria reconhecido emseu estatuto de objeto do desejo?

Jean passa todo o seu tempo, atrás do cheiro original, do cheiro que ofunde, que lhe dê uma identidade, não consegue sentir nada ao assassinartodas aquelas mulheres. E porque mulheres? Não seria a procura do cheiroda mãe? Procura do objeto de desejo?

Jean exclui e é excluido pelos outros. Na verdade não existe ele e ooutro, não existe alteridade, ele quer se apossar do cheiro de alguém. Elemata, retira sua essência, ele funciona no real, ele goza no corpo, sempossibilidades de intervenção simbólica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:NASIO, J. D. Os grandes casos de Psicose, Jorge Zahar Editor, Rio de Janei-

ro, 2001.DOLTO, F. A imagem inconsciente do corpo. Editora Perspectiva, São Paulo,

1992.BREUER, J. e FREUD, S. Estudos sobre a histeria. In: Obras Completas, vol. II,

Imago, 1987.

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ABUSO SEXUAL E IMPASSES DA CLÍNICA

Fernanda Perlin Césaro

INTRODUÇÃO

Apresento, por meio deste estudo, dois casos clínicos de criançasencaminhadas para atendimento devido a suspeita de abuso sexual,com intuito de lançar questões acerca da grande importância que

assume o discurso materno na constituição psíquica da criança.Através do desenrolar da clínica destes casos torna-se possível vis-

lumbrar o quanto a função materna, que coloca o filho na condição de objetoe de extensão narcísica, pode conferir a essa relação um caráter abusivobastante intenso.

Saliento nesse sentido, que o trabalho clínico com crianças exigeatenção quanto ao que dizem pais ou cuidadores a seu respeito, já que étambém dessa forma que podemos nos situar quanto a quem essa criançarepresenta para essas pessoas. Faz-se assim necessário atentar aos luga-res conscientes e inconscientes que a criança ocupa, através da escuta dodiscurso que os pais têm sobre ela. Sendo assim, através de dois casosapresentados neste trabalho, buscaremos apontar a relevância dos lugaresdisponibilizados às crianças pelos pais.

A intenção consiste em demonstrar que alguns pais ao perceberem,de alguma forma, que seu discurso tem papel preponderante na constituiçãodos filhos, acabam dele se utilizando a fim de fazer com que a criança sirvaa algo de seu interesse. Utilizam-na, então, como objeto, configurando, des-sa forma, uma situação de abuso.

Veremos, por meio dos recortes clínicos, como a mãe, de forma per-versa, pode tomar a criança como seu objeto. Nesse sentido, torna-se im-portante que problematizemos de que forma se constitui a perversão. Paraisso, vamos retomar os três tempos do Édipo e alguns tópicos sobre a per-versão, essenciais para a compreensão das operações inconscientes quese apresentam nos casos.

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SEÇÃO TEMÁTICA

OS TRÊS TEMPOS DO ÉDIPOO Édipo em Lacan é um conceito que fala de estruturas marcadas por

posições e lugares, que podem ser ocupados por personagens distintos –função da mãe ou do pai Em Édipo não se fala de valores fixos ou lugaresvagos que se definem por si mesmos, mas sim que estão em função deoutro personagem, conforme nos aponta Bleichmar1 .

Para adentrarmos aos tempos edípicos desenvolvidos por Lacan, ve-remos rapidamente alguns apontamentos sobre o “falo” que serão importan-tes para a compreensão dos tempos.

O falo que falamos é o significante da falta. Falo é aquilo que se ins-creve na falta possibilitando a ilusão de que não falta nada. O Falo simbólicodiz de que se pode perder algo que está presente, e o falo imaginário é o quecompleta a falta, produzindo a expansão do narcisismo, sua satisfação. Ain-da conforme Bleichmar:

“Algo que é vivido pelo sujeito como falta encontra algo, quepode ser qualquer coisa, que produz a ilusão, quando se o tem,de que se está completo. Assim, a função imaginária do falo: oindivíduo sente que algo lhe falta e esse algo seria para ele oque o completaria se o tivesse. O falo imaginário permite-lhemanter a ilusão, então, de que nada faltaria”. O falo imaginário éo objeto que cumpre isto, pode ser qualquer coisa. (Bleichmar,1984)

Bleichmar aponta que para Freud, o Édipo tem relação com a satisfa-ção da pulsão e para Lacan, com satisfação do narcisismo.

Assim, passamos aos três tempos do Édipo: 1º Menino é o falo damãe, 2º o pai priva a mãe de seu falo, 3º o pai tem o falo, mas não o é, o faloestá fora do pai e é reinstalado na cultura. Completa-se o Édipo, dizendo queo falo não se é, que o falo é aquilo que se tem. Separa-se o falo de suasrepresentações.

1 BLEICHMAR, H. Introdução ao estudo das Perversões. Teoria do Édipo em Freud eLacan.Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.

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1º TEMPOO primeiro tempo do Édipo, conforme Bleichmar, é o tempo em que o

menino deseja ser tudo para a mãe, quer ser o objeto de desejo da mãe; paraisto, converte-se naquilo que a mãe deseja. Seu desejo é desejo de outro,em duplo sentido, ou seja, ser desejado pelo outro e tomar o desejo do outrocomo se fosse o próprio.

“Lacan diz que, nessa relação primordial com a mãe, esta é oOutro. O Outro, com letra maiúscula, é o lugar de onde seorigina o código, quer dizer, a linguagem, as palavras, que vãocaptar e moldar, portanto, suas necessidades. A expressãopode parecer enigmática, ‘o Outro como lugar de código’, massignifica que o menino tem a necessidade, mas a única manei-ra de capturar esta necessidade é em termos de linguagem,linguagem que não é dele, que lhe é trazida de fora; é nestesentido que se diz que o Outro constitui o lugar do código, apartir de onde lhe é ocasionada a linguagem. Isto se opera narelação, através do transitivismo.” (Bleichmar,1984)

Ainda conforme Bleichmar, a mãe simboliza o filho como falo, e eleidentifica-se com este objeto imaginário. Ela vê no filho algo de especial e omenino identifica-se com esta imagem de perfeição (seja a de que é forte,inteligente, ou carinhoso) e a toma, dessa forma, como se fosse a dele,toma da mãe o desejo de ser isto. Identificado a essa imagem representaentão para a mãe o falo que a completa.

“A mãe fálica é aquela que sente que nada lhe falta, está com-pleta; neste sentido, tem o falo que a completa. Todas as satis-fações, as frustrações, os desejos, os sonhos de glória, derainha, encontram em seu filho a possibilidade de criar a ilusãode que se realizam. Tem alguém para quem ela é tudo. Aqui amãe goza do atributo de poder marcar a lei do desejo, como leionipotente.” (Bleichmar, 1984)

Neste sentido, a mãe não é representante de uma lei, ela é a próprialei. A dupla, o menino e a mãe, formam uma univocidade narcisista em que

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cada um possibilita a ilusão no outro de sua perfeição. Bleichmar nos apontaque o menino é visto como o falo da mãe e a mãe é quem possui o falo.

2º TEMPOO menino deixa de ser o falo. Vê que a mãe prefere outro objeto que

não é mais ele e supõe que este teria algo que a mãe deseja que ele nãotem. Já a mãe, pode ou não ser privada de sua função fálica, pois pode voltar-se a outro objeto que mantenha sua posição. O menino passa a entenderque há algo além dele, e dá-se conta que a mãe pode substiuir seu objeto. Amãe é, então, submetida a uma ordem que lhe é exterior. O menino estendea sua compreensão e percebe que a castração não é apenas da mãe, masde qualquer pessoa, inclusive do pai. A castração simbólica consiste nainstauração do falo como algo que se dá fora de qualquer personagem. O paientra como um semelhante com o qual o menino rivaliza. Pois o pai, atravésda interdição, questiona o objeto de desejo da mãe.

Este pai é considerado interditor, terrível, ainda não considerado o paisimbólico. Esse pai tem os mesmos atributos da mãe do primeiro tempo: éele quem dita a lei e não aquele que está na representação da mesma. .Para o menino, o pai é o que ele não é: perfeito, o falo. A castração simbó-lica se opera, enfim, quando se perde para sempre a identificação com ofalo.

Através da castração simbólica, que é exercida pelo pai simbólico, omenino deixa de se representar como sendo o falo e a mãe deixa de serfálica: a mãe perde sua identificação com a lei, com ser aquela que a dita. Alei fica instaurada como entidade acima de um personagem. Assim, pode-sedizer que o pai simbólico é o promotor da lei. O Nome do Pai é algo quelimita o poder da mãe pela lei e que está acima da vontade narcísica. Oprotótipo de lei é a proibição do incesto. É uma lei da cultura que regula osintercâmbios sexuais.

“A castração simbólica produz a significação fálica e promove o faloenquanto símbolo. Neste tempo o pai é visto como privador, ele priva a crian-ça da mãe e priva a mãe de seu objeto fálico.” (Bleichmar,1984)

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Há uma substituição da demanda do sujeito, ao dirigir-se ao outro; éaqui que encontra o Outro do outro, sua lei. O pai, quem intervém comoprivador da mãe, significa que a demanda endereçada ao Outro, será enca-minhada a um tribunal superior. Assim, aquilo que retorna à criança é a lei dopai, e o sujeito imaginariamente concebe isto como privação da mãe.

3º TEMPOAqui, conforme Bleichmar, se produz a identificação com o ego ideal,

considerado a imagem da perfeição narcisista, que representa um persona-gem dotado de atributos, perfeição, completude e onipotência.

Aqui surge a aceitação da lei, a aceitação da lei do incesto, que pro-íbe a relação sexual com a mãe e a permite com outras mulheres. SegundoLacan, no terceiro tempo o pai aparece como permissivo, doador, o pai quepossibilita. Ele outorga o direito à sexualidade. É a saída do Édipo, onde opai atesta ter o falo, e promete dá-lo em forma de lei; se a mãe terá ou nãoposse desse falo depende do pai dá-lo em forma de lei. O terceiro tempo é otempo em que aquilo que o pai prometeu é mantido. O pai do terceiro tempopode dar à mãe o que ela deseja, e pode dar porque o possui. O pai é um paipotente. A identificação realizada é com a do Ideal do Eu. O pólo maternovirá a constituir a realidade e no pai, será o que irá constituir o supereu.2

ALGUNS PONTOS SOBRE A PERVERSÃOCalligaris afirma que só há sexualidade pelo viés do objeto parcial, ou

seja, não há amor genital. A colocação em jogo do objeto parcial do fantas-ma é uma regra absolutamente universal. O que faz com que alguém tenhauma vida sexual é que existe olhar, voz, esperma, etc. A pergunta que oautor se faz é: sendo isso verdadeiro para todo mundo, o que faria aespecificidade da perversão?

2 Lacan, J. Seminário V – Capítulo XI

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Falar em estruturação perversa significa falar de características queconstituem predominantemente o fantasma do sujeito. Aí está a diferençaentre ter funcionamentos perversos em situações especificas e ter umaestruturação perversa.

O perverso, segundo Calligaris, encontrou uma forma de reunir, nofantasma, duas posições importantes e que conforme pareceriam impossí-veis de serem operadas simultaneamente, que é a capacidade de se posicionarenquanto falo e enquanto objeto. Como ele realiza tal proeza? Ele usurpa olugar do pai, apropria-se de seu saber suposto e, fazendo isso, passa a ter osaber de como fazer a mãe gozar.

“Se este saber, que permite ter o domínio do gozo do Outro, eupróprio o tenho, não se trata de o supor a um suposto sujeito;então posso realizar o fantasma – já que agora é sem perigo, jáque tenho o saber que domina este gozo e também sei comoutilizar o objeto para fazer o outro gozar. Por isso esse objetose torna um instrumento: meu ser objetável se torna tolerávelporque eu tenho o domínio de seu uso. Por isso o perversotorna-se, ao mesmo tempo, o objeto que virou instrumento, e osujeito do saber sobre o bom uso desse instrumento”.(CALLIGARIS, 1986).

Percebe-se que se está pisando, enquanto analistas, segundoCalligaris, nos terrenos da perversão, quando o paciente fala de um dos doislugares do instrumento do saber, que transferencialmente aparecem comcumplicidade – e ele nos fala como se fôssemos o outro lugar, como seestivéssemos com ele no mesmo fantasma -, ou como desafio – como sefôssemos o Outro e que ele que sabe como nos fazer gozar.

RAFAELRafael é um menino de 5 anos, trazido para atendimento pela mãe,

por suspeita de abuso por parte do pai, Adair, e do meio-irmão de 18 anos(filho de casamento anterior do pai). Mora com a mãe, Marília, de 45 anos ecom a irmã de 16 anos. É filho do terceiro companheiro da mãe, do qual esta

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está separada há aproximadamente oito meses, se contarmos a partir dadata da primeira entrevista com a mãe. De acordo com seu relato, o filhodormia há anos com o companheiro, enquanto ela dormia no quarto com afilha. Nunca havia desconfiado do abuso. Seis meses após a saída do pai decasa, Marília afirma que Rafael começa a relatar situações nas quais o pai oobrigava a manter relações sexuais. Afirma que, chocada, realizou a denún-cia. É importante ressaltar: o filho dormia há anos na cama com o pai, eMarília, toda manhã, encontrava esperma na cama do marido, dados que atéàquele momento não tinham sido suficientes para fazê-la desconfiar queisso pudesse significar algo incestuoso.

Percebe-se que esta mãe vê algo (o esperma e a situação de co-leito), mas age, por muito tempo, como se não tivesse acontecido, e nãoparece ser o caso de uma repressão, nem de uma simples negação, mas deuma renegação. O mecanismo defensivo de renegação, embora não discor-rido teoricamente neste trabalho e nem explicado com maior atenção, operaem todas as estruturas, mas tem um papel muito importante nas perver-sões, realizando a negação de memórias daquilo que é claramente visto. Etem a função também de lidar com a angústia da castração. Pensando destaforma, fica claro como seria impossível perceber tal situação (de ver espermana cama, enquanto um adulto está a dormir com uma criança), e simples-mente considerá-la como normal. Também seria impossível não ter visto, ouseja, a mãe vê, mas renega a situação.

Rafael é uma criança com dificuldades na fala e, devido a isso, naprimeira sessão a mãe prontifica-se a participar, por considerar que eu nãoconseguiria falar com ele, afinal, “só ela entendia o que ele dizia”. Pontuei,então, que tentaria falar com ele. Dessa forma, iniciaram-se as sessões, jádadas pela tentativa de falar com uma criança que tinha sua linguagem aindainterpretada pela mãe. Seu desejo, ainda estava passando pela interpreta-ção da mãe.

Durante os atendimentos, foi bem difícil estabelecer contato comRafael, tanto o visual – passou-se quatro sessões até eu conseguir direcionarseu olhar e prestar atenção no interlocutor – quanto o verbal. Ele esperava

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que eu o entendesse através de gestos, como: pegar na mão; apontar; enun-ciar palavras pequenas e começar a chutar a bola nos meus pés para que eua lançasse de volta... Quando tentava falar, grande parte de suas palavrasera pronunciada com letras trocadas, como o exemplo abaixo, durante abrincadeira de “goleiro”, que explicarei mais adiante:

“– Foi Falca!– Quê?– Assim é falca!– O que é falca?– Assim, quando chuta assim. (Conta isso imitando alguém chutando

a bola). E faz falca no outro. Aí apita (ele imita o apito do juiz). Sabe? Falca!”.Quando insistia em entendê-lo, e o forçava mais a se comunicar, ele

ficava chateado e às vezes irritado, demonstrava o quanto o cansava ter queexplicar o que queria dizer. Isto o distanciava mais, e havia sido complicadoestabelecer o contato. Então, disse-lhe, em um momento que tal conflitoapareceu, o quanto eu era lenta e precisava que ele tivesse paciência comi-go. Desde então, ele começou, pacientemente, a tentar fazer-se compreen-der. Neste momento aponto o quanto sou falha em não compreendê-lo erompo assim, com a postura de mistura que ele mantinha com as pessoas.Ao mesmo tempo, não aponto que é ele quem não consegue se comunicare reconheço que há sim uma dificuldade de compreensão entre as pessoas,a qual se opera o tempo inteiro, nas mais diferentes formas de relação.

Uma brincadeira que Rafael repetia muito era a de goleiro: um era ogoleiro e o outro chutava a bola. A riqueza desta brincadeira emergiu da cons-trução dos limites das traves da goleira, do ponto de onde a bola seria chuta-da e de quais atitudes seriam consideradas falta. Houve questionamentossobre porque o limite se coloca para um e não para o outro, complicaçõesdecorrentes das tratativas sobre as regras e sobre o descumprimento delas,como, por exemplo, considerar gol quando a bola passa por fora dos limitescombinados e quando se chuta a bola de outro lugar que não o combinado.

Dentre as brincadeiras de Rafael estão as trombadas de carrinhos:carros são destruídos e pessoas morrem acidentadas. Nesses casos, a

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tentativa do analista de chamar a ambulância ou os bombeiros era sempreignorada e fazia com que Rafael se fechasse e propusesse outra brincadeira.Tais trombadas também eram direcionas aos meus dedos e canelas, e mui-tos “ais” e “uis” produzi durante as brincadeiras.

Considerando importante que sua imaginação pudesse aparecer tam-bém em contextos infantis, já que grande parte de suas brincadeiras erarelacionada a filmes televisivos para adultos, convidei-o para inventar umahistória sobre as figuras de um dominó com desenhos que estávamos mon-tando. Deu certo, ele adorou a idéia, embora se utilizasse de recursos bemlimitados. O dominó consistia em duas partes de desenhos diferentes, e,portanto, o sentido da brincadeira consistia na tentativa de juntá-las. Quandomontávamos a figura do gato, por exemplo, e na outra ponta havia a figura dotrem, ele dizia: “o gato pegou o trem”. E eu continuava a instigar sua imagi-nação, perguntando por que o gato havia pegado o trem. Ele respondia algocomo: o gato pegou o trem porque queria viajar. Mas quando eu insistiamais: “para onde o gato quer viajar?” Ele não respondia, e rapidamente seocupava de pegar mais peças para iniciar outra montagem.

Mas houve um momento em que montou um violão com as peças dodominó, tendo logo depois tomado um violão de brinquedo que havia na salae começado a cantar músicas: “se a casa cair, deixa que caia, hoje eu vouamanhecer na gandaia”. Ou “seu guarda eu não sou vagabundo, eu não soudelinqüente, eu sou um cara carente. Eu dormi na praça pensando nela...”.

Também havia a brincadeira do “Chinês”, que era muito habilidosocom lutas e enfrentava sempre muitos inimigos, os quais eram derrotados àsdezenas. Mas nesta brincadeira, eu deveria ficar atrás da poltrona, pois eleestava matando todos os malfeitores imaginários, mantendo-me protegida.Eventualmente, deveria sair correndo dali, pois eles haviam me descoberto,e eu era jogada para trás da porta, onde deveria ficar em silêncio para não sernovamente descoberta. E ele corria lutando pela sala com seus punhos, ecom facas e bombas imaginárias.

Rafael utiliza bico e não mais freqüenta a escolinha. Esteve matricula-do e freqüentando durante um curto período de tempo em que era levado pelo

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pai. Conforme a mãe, era o pai quem realizava os cuidados com Rafael:alimentava, dava banho; realizava, enfim, a maternagem É importante salien-tar que o pai acusa judicialmente a mãe de doença mental e de incapacidadepara cuidar do menino.

Houve uma vez, em que brincamos de restaurante e de bar. No restau-rante, éramos um casal que estava jantando fora (com direito a comidinhasfeitas com massinhas de modelar), mas Rafael realizava dois papéis: ele orasentava à mesa e conversava enquanto comíamos, ora era o garçom que nosservia. No bar, revezávamos-nos: uma hora um trabalhava, outra hora o outro.Quando foi a sua vez de ser cliente, interpretou dois papéis: o de um pai e ode um filho, que iam a um bar juntos. Primeiramente sentou em um banco epediu forçando a voz:

“– Quero uma pinga e um pastel. E este que está comigo é o meu filho(correu para o outro banco e abaixou-se para parecer menor).

– E o que o seu filho deseja? – pergunta.Ele volta para o lugar de pai e diz:- Uma Coca-cola e um pastel.Rafael interpreta os dois lanchando e paga a conta (como pai, no

caso).”Rafael brinca de diversas outras coisas, como “siga o chefe”, “escon-

de-esconde”, dominó, desenhar no paint brush, e ainda de outras brincadei-ras inventadas, como a de goleiro.

Marília faz relatos sérios sobre o grau de abuso que Rafael vivencioucom o pai: cenas de violência, assaltos, sexo, uso de drogas e morte. Afirmaainda, que Rafael era abusado, simultaneamente, pelo pai e pelo irmão, eque era levado por Adair a uma casa de prostituição, onde o via fazer sexocom um travesti, sendo, em seguida, abusado por ambos. Teria ainda, acom-panhado o pai e o irmão a um assalto, tendo ficado esperando dentro docarro. Neste episódio, um policial descobre o carro estacionado, percebe quehá uma criança e é baleado pelo pai e pelo irmão sob os olhos do menino.

O nascimento de Rafael foi muito desejado, principalmente pelo pai, elogo que nasceu, sua mãe não pôde voltar para casa. Conforme o relato da

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mãe, essa passou por um período de “branco”, o qual lhe rendeu um tempode internação. Marília relata em sessão todos os abusos que seu filho so-freu, afirmando que esses lhe foram contados pelo próprio menino. O tempointeiro, durante quase um ano do atendimento de Rafael, Marília mostrou-sepreocupada em receber um laudo que atestasse ao juiz a comprovação doabuso, abordando incansavelmente a questão judiciária, ao mesmo tempoem que demonstrava muitas dificuldades em operar os cuidados básicoscom essa criança. Não lembrava o que ele comia, não sabia se sentia frio oucalor e se estava com fome ou com sede.

Marília relata sobre seus dois maridos anteriores. Com o primeiro, paide sua filha, ela afirma ter tido uma boa relação, que só terminou porque estefoi morar em outra cidade. O segundo marido enforcou-se na casa de Marília,que foi acusada de tê-lo assassinado. Por isso, enfrentou júri popular, noqual foi considerada inocente. Foi durante o julgamento que conheceu Adair,o qual compunha o júri que lhe dera a sentença, e que acabou se tornandoseu terceiro marido, e pai de Rafael.

Marília diz nunca ter sentido nada pelo seu próprio pai, e que sentiu amorte dele como se fosse de um estranho. Porém, quando o cantor Teixeirinhamorreu, passou vários dias acamada e em estado de ausência.

Marília, conforme relatei anteriormente, não conseguia estabelecer umcontato básico com Rafael, não sabia falar coisas mínimas dele, nem quan-do houve insistência do terapeuta para direcioná-la a tais questões, atravésde perguntas e comentários no início ou no final dos atendimentos do meni-no. Em determinada ocasião, a mãe ligou para dizer que o menino havia tidopesadelos com o pai e havia acordado assustado. Curiosamente, quandofala sobre a criança, é sobre algo que lhe ajudaria em sua construção jurídicadefensiva.

Vê-se também a dificuldade de Marília em liberar Rafael de ser umaextensão narcísica sua. As palavras dele só poderiam exercer algum signifi-cado no mundo se ela as traduzisse. Ela, desta forma, não estava a favore-cer a criança a tornar-se um sujeito no mundo do código da linguagem, massustentava a sua posição de acoplamento ao corpo materno. Marília coloca-

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se acima da lei, como legisladora onipotente, e percebe-se também a dificul-dade extrema de suportar a diferença. Quando esta diferença aparece, Maríliatenta aniquilar o que não esta de acordo com o que pensa. Toda a vez que omenino ou a terapeuta manifestam oposição, ela demonstra não conseguirsuportar.

Porém, tal questão não se esgota tão simplesmente assim: Maríliautiliza a criança e também o seu espaço terapêutico como instrumentospara condenar o pai, afirmando a perversão deste. Exige, durante vários aten-dimentos, que a criança repita o que ela diz sobre os acontecimentos, masesta nunca o faz. Exige, ainda, que a analista ateste o abuso através de umlaudo. Transferencialmente, Marília tenta colar-me no lugar de quem vai ajudá-la a colocar o marido na cadeia, por meio da exigência do laudo, e tambémda insistente solicitação de que eu seja testemunha de acusação. Seriamoscúmplices nisso. Porém, quando não confirmo no laudo a situação de abu-so, Marília entra em estado de fúria, afirmando que eu não sirvo para nada,que estou ajudando a deixar solto “um monstro” e que procuraria “uma psicó-loga de verdade”: uma que ficasse “ao seu lado”. Exemplo bem claro de umaproposta perversa de transferência, conforme nos aponta Calligaris3 : ou cúm-plice ou desafiadora.

ISABELIsabel está entrando na primeira série e mora com a mãe (Joana), o

pai e o irmão mais velho. A família de seu pai tem origem árabe, fato que,devido à especificidade dessa cultura, confere às mulheres uma posiçãoinferior a dos homens. Porém, a mãe de Isabel é brasileira e trabalha, e amenina vai à escola. Joana inicia o atendimento de sua filha queixando-semuito do sogro por manter esse tipo de postura.

3 CALLIGARIS, C., Perversão – um laço social? Conferência de 25-07-86, Salvador, Bahia.Edição Cooperativa Cultural Jaques Lacan, 1986.

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O caso chega ao atendimento devido ao relato da menina, que denun-cia ter sofrido abuso por parte do avô paterno. Na fala da mãe, encontramosdúvidas quanto à veracidade do relato da filha: Joana afirma que talvez hajaapenas uma invenção da filha e reitera que é nisso que todos em sua casaacreditam.

Isabel é uma menina que gosta de vestir-se como adolescente, com-pareceu muitas vezes à sessão com roupas curtas, mesmo em dias muitofrios. A mãe diz que tenta vesti-la de outra forma, mas que a filha é “muitoteimosa”. Isabel já compareceu à sessão com cabelos compridos, interlacefeito em salão. Tal criança exerce atração sexual e, muitas vezes, a vizinhaque a traz ao atendimento, relata que há homens que ficam dizendo coisaspara a menina quando estão no ônibus ou na rua, enquanto estão a caminho.Em algumas sessões Isabel questiona-se sobre ser menina e ser mulher.

Isabel gostava de abraçar, sentar no colo, beijar e fazer carinho, deuma forma um tanto “pegajosa” e descontextualizada. A maneira como amenina demonstrava afeto era um pouco exagerada, se compararmos aojeito afetivo das crianças, mesmo as mais carinhosas.

Bastante criativa, gostava de brincar com tinta, misturando cores einventando cores novas; também elaborava, durante as sessões, questõessobre nascimentos de bebês. Além disso, gostava de tentar montar blocos,os quais desmoronavam sempre, e que ela associava consigo: ela tambémdesmoronava o tempo inteiro.

No início do tratamento, ainda dormia na cama dos pais. Assim que aanalista pontuou a necessidade de que Isabel dormisse em sua cama, amãe o fez; entretanto, afirmou à criança que essa era uma ordem da psicó-loga. Quando pergunto à criança como ela se sentia com essa situação, elarespondeu que sentia falta da mãe, principalmente quando tinha pesadelos,mas que era importante ter ordem.

Durante o atendimento, Joana freqüentemente perguntava se a filhahavia mencionado a situação de abuso para a analista. No mesmo dia emque a menina fez tal relato, a mãe ligou para marcar um horário para seratendida. Na sessão com a mãe, essa chega prontamente perguntando se a

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filha havia me contado sobre o abuso. Quando lhe confirmo, ela pergunta seeu tenho certeza de que realmente foi abusada. Lembro a ela do comporta-mento e dos sintomas da filha, afirmando que esses são um tanto comunsem crianças que sofreram abuso. Ela conta, então, que o avô tem buscado amenina na escola, e que essa tem gostado de tal situação. Segundo a mãe,é por isso que acredita que Isabel tenha inventado a história. Neste momen-to, sou bastante dura com Joana, dizendo que não entendo como pode per-mitir que a pessoa que é suspeita de ter abusado sua filha a busque nocolégio. Então, ela diz que não suspeita mais do avô, mas sim de um outroparente. Quando a confronto sobre minha dificuldade em considerar tal pos-sibilidade, ela suspira, faz uma pausa e diz que tem algo muito importante adizer e que não sabe exatamente como será a minha reação.

Afirma, então, que nunca houve abuso e que ela fizera a denúncia emfunção de ter sido acusada pelo sogro de ter provocado um incêndio em suacasa, o qual havia vitimado sua esposa. A denuncia seria, assim, uma formade vingar-se dele, por meio da acusação de que teria abusado da neta.

Sendo assim, Joana inventa a história do abuso e faz a filha repeti-la,enunciando inclusive os detalhes que descreviam exatamente a forma comoo avô a tocava e a lambia. Utiliza, dessa forma, sua filha para praticar a suavingança. Fica então evidente a utilização da criança como objeto para atin-gir seus planos de incriminar o avô. Claramente, ela toma o filho como objetode seu gozo.

Isabel toma as palavras da mãe como verdade, inclusive construindosintomas que são bastante comuns em crianças abusadas. A criança nãoconsegue distinguir entre aquilo que realmente lhe acontece e aquilo que amãe diz que lhe acontece. E mesmo que ela reconheça essa diferença cons-cientemente, opera-se nela a produção destes sintomas e o discurso damãe faz-se verdade no fantasma da criança.

Na sessão em que Joana teve de falar sobre a situação de abuso comIsabel, explicitou-se que a menina não entendia direito o que havia lhe acon-tecido. Põe-se, primeiramente em dúvida e, após o momento de confusão,pergunta se devemos respeitar os adultos. Dirijo a pergunta à mãe da crian-

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ça, e esta diz que sim, ao que Isabel responde com outra pergunta: porquesua mãe não respeitava seu avô. Posteriormente, nesta sessão, os blocosmontados por Isabel não desmoronaram.

OBSERVAÇÕES CONCLUSIVASLacan aponta que o sujeito pode escolher ser ou não ser o falo, e

coloca a palavra escolher entre aspas, pois não há como manipular o simbó-lico, o que torna o sujeito tanto ativo como passivo nesta questão.

Bergès e Balbo4 afirmam que para romper com esta univocidade coma mãe é necessário que o narcisismo da mãe possa suportar cair, tantocomo um duplo do filho, quanto como um duplo para ela mesma. O faloimaginário deve cair para que o falo simbólico venha a se situar entre eles, demodo a separá-los, dando lugar à castração simbólica. A criança deve dese-jar um outro grande outro, que não é o grande outro da mãe. Desejar outracoisa e não mais aquilo que a mãe deseja. Pode-se vislumbrar nas mães deRafael e de Isabel o quanto estão sustentando seus filhos como objetos paraa satisfação de desejos próprios. Ambas utilizam-se dos filhos como instru-mento para operar uma vingança contra o pai e o avô, respectivamente, atra-vés das acusações de abuso.

No que se refere a Rafael, percebe-se a dificuldade da mãe emtransitivar para que ele tenha sua fala descolada da dela. Seus desejos esuas observações poderiam apenas chegar a algum lugar se tivessem pas-sagem através da voz da mãe. Ela, ainda, mantém-se onipotente, acreditan-do que seu filho necessita dela e que não seria capaz de dizer diretamente oque pensa. Conforme a avaliação do caso, percebe-se como há um forte eclaro interesse para que o filho não tenha voz.

A mãe de Isabel inventa que a filha foi abusada pelo avô para tentarincriminá-lo, devido a uma necessidade de vingança. Inventa uma versão

4 Bergès, Jean. Jogo de posições da mãe e da criança: ensaio sobre o transitivismo / JeanBergès, Gabriel Balbo. – Porto Alegre: CMCEditora, 2002.

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sobre este abuso e faz a filha repeti-lo. Tal versão discursiva causa confusãona menina, que começa a desenvolver sintomas: dificuldades de aprendiza-gem e de relacionamento na escola, uso de roupas que lhe conferem umcaráter sedutor e outros que aparecem em seus desenhos e em suas brinca-deiras.

Essas mães sabem o que aconteceu enquanto realidade, mas inven-tam uma realidade outra, e pertinente perguntar se delirante ou se comorenegação, com o claro objetivo de incriminar outrem (como nos casos dis-cutidos, o pai e o avô).

Podemos também concluir que independente dos fatos, há sim umabuso que se efetiva e este abuso diz respeito à capacidade das mães goza-rem com seus filhos, de transformá-los em instrumentos para o seu gozo.

REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS:CALLIGARIS, Contardo. Perversão – um laço social? Conferência de 25-07-86,

Em Salvador, Bahia. Salvador: Edição Cooperativa Cultural Jaques Lacan,1986.

BLEICHMAR, H. Introdução ao estudo das Perversões. Teoria do Édipo em Freude Lacan.Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.

LACAN. J. O Seminário, livroV. As formações do inconsciente. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 1999.

BÈRGES, J e BALBO.G. Jogo de posições da mãe e da criança: ensaio sobre otransitivismo. Porto Alegre: CMCEditora, 2002.

MESS, Lúcia Alves – Abuso Sexual – trauma infantil e fantasias femininas/PortoAlegre: Artes e Ofícios, 2001.

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PSICANÁLISE DE CRIANÇAS. QUE CENA É ESTA?

Chaveli D. Brudna

Apropósito do trabalho clínico com crianças, penso que viabilizamos aabertura de um “palco” para que a encenação do teatro de algunspersonagens tenha lugar. Quem são os personagens? Que anima-

ção é esta? Qual o lugar do terapeuta nesta cena?O teatro de fantoches1 tem sua origem na Antigüidade. Os homens

começaram a modelar bonecos de barro, mas sem movimentos, e aos pou-cos foram aprimorando estes bonecos, conseguindo mais tarde a articula-ção da cabeça e membros para fazer representações com eles.

A respeito do teatro de sombras existe uma lenda chinesa. Um impe-rador, desesperado com a morte de sua bailarina favorita, ordenou ao magoda corte que a trouxesse de volta do “Reino das Sombras”, caso contrário,seria decapitado. O mago usou a sua imaginação e, através de uma pele depeixe, macia e transparente, confeccionou a silhueta de uma bailarina. Omago ordenou que no jardim do palácio fosse armada uma cortina brancacontra a luz do sol e que esta deixasse transparecer a luz. Houve uma apre-sentação para o imperador e sua corte.

Já o boneco de fio ou marionete, é uma espécie de boneco manipula-do por fios, cabos ou varetas, para a encenação do teatro de fantoches. Nacultura Ocidental surgiram durante a Idade Média, na França e Itália. Asapresentações podem ser feitas em pequenos teatros (confeccionados noformato de caixa, para ocultar o manipulador), em teatros abertos, ou mes-mo sem este aparato cenográfico.

A marionete é composta por três elementos estruturais: o boneco oufigura animada, representando um ser humano, animal ou criatura antropo-

1 Os parágrafos que trabalham a dimensão do teatro de fantoches foram elaborados tendocomo referência os verbetes propostos pela Wikipedia, disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/TeatronaEscola

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mórfica; os fios de comando, que comunicam ao boneco os gestos e açõespretendidas pelo animador; o comando ou cruzeta, destinada a controlar osfios e os movimentos do boneco. Trata-se de uma técnica comum em dife-rentes culturas, mas com uma grande complexidade formal, tanto na cons-trução da figura como no seu sistema de manipulação. A funcionalidade damarionete depende de uma compreensão adequada dos seus princípiosmecânicos e estruturais.

Ao representar através do fantoche, a criança usa como recurso bási-co da expressão, a palavra. Por conseguinte, é principalmente através daentonação da voz que transmitirá ação, emoção e a mensagem que a histó-ria encerra. Manipula o objeto com gestos e palavras ao mesmo tempo emque é ela própria animada pela linguagem, o campo simbólico ao qual estásubmetida desde sempre.

Então, quem fala aí?Tomar como metáfora a animação artística dos fantoches e das mari-

onetes, e a história do teatro de sombras, é um convite para que possamosseguir desdobrando a questão sobre o limite que instaura o desejo e consti-tui o sujeito, nesta relação construída entre sujeitos que se propõem pais eeste “ser” que é convocado a ocupar o lugar de filho. Que convocação éesta? Com que face, com que máscara ela se apresenta?

A criança quando chega para atendimento, vem trazida por um outro.É este quem se queixa de algo que ela vem apresentando como sintoma. Écomo se nada além do sintoma pudesse ser vislumbrado. Somente em umsegundo momento poderemos relançar e construir junto com os pais a ques-tão sobre o que se passa com esta criança, em um movimento de implica-ção destes no que vem se fazendo notar como “problema”. O que a criançaencena com seu sintoma?

Na perspectiva de ilustrar e contribuir com as questões relativas aoatendimento clínico de crianças, trago aqui, de forma breve, fragmentos docaso de uma paciente (então com 8 anos) que encontra,entre alguns brin-quedos, um fantoche “de mão”, no caso um macaco com cabeça, boca,mãos e tronco. É despertado nela o interesse por criar uma fala, a princípio

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tímida, pois balbuciava algo que eu não compreendia, para em seguida criarum diálogo para o boneco, aliando aos seus movimentos a palavra.

Com o movimento de sua mãozinha faz a boca do boneco abrir, esoltando um grito se assusta, de forma que reage fechando a sua própriaboca e a do boneco, envergonhada. Em seguida, ainda encabulada, pare-ceu-me sentir grande vontade de fazê-lo falar, e eu lhe animo a isso. Nesteinstante, encontra meu olhar, como se buscasse a confirmação se poderiaou não seguir em suas construções, sendo que estas, em um primeiro mo-mento, necessitariam da sustentação da terapeuta. A menina passa a mon-tar uma história para o personagem, agora seu amigo,dando-lhe o nome de“Sr. Macaco”, que “era preguiçoso, molenga, comia demais e só queria dor-mir”.

Nos atendimentos seguintes, solicita que eu tome o boneco em mi-nhas próprias mãos e o manipule por cima do encosto de uma cadeira, deforma que meu corpo ficasse fora da cena. Sigo perguntando a ela o que eledeveria falar, e então, uma de cada vez, toma-o em mãos para que perguntasas mais corriqueiras, mas fundamentais para R., pudessem ir se desenro-lando (sobre seu nome, quem o teria escolhido, onde mora e com quem, oque mais gosta de fazer, se é menina ou menino, o que cada um tem dediferente e de parecido...). Aos poucos, o boneco passa a narrar muitos deseus medos e dúvidas. Podemos pensar que é R. quem se conta e se escu-ta através dele, na transicionalidade que o brincar, a encenação permite, ouseja, a passagem de um lugar ao outro, fazendo-se ouvir através de umpersonagem, no movimento de elaboração de suas questões.

Os pais de R., quando a trazem para atendimento, contam do medode morrer, ao qual a menina muito vinha falando, medo de dormir sozinha,que tem tido pesadelos e visto fantasmas, de que não quer crescer, e quepor várias vezes negou-se a ir para escola por medo da professora, comfortes dores de barriga. R. é a caçula de uma prole extensa de pais de meiaidade. O pai é aposentado; a mãe, ainda trabalha. As duas filhas mais velhassão fruto de um primeiro casamento deste pai, que fica, após a separação,com a guarda das mesmas. Em seguida, conhece sua atual esposa, com

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quem teve mais dois filhos homens. Por último vem a menina R., que nãohavia sido planejada.

No discurso deste pai aparece o relato de um “não lembrar maiscomo criar meninas, que são sensíveis demais”, queixa-se de se sentir velhoe com pouca disposição para brincar. Relata também não ter compreendidoo choro da filha que ao presenciar um momento de brincadeira entre os pais,quando sua esposa comenta estarem apenas “ficando, como é moda dizerhoje em dia”, e que teria sido enganada, pois oficialmente não seriam casa-dos, então corria o risco dele ir embora a qualquer momento. R. chorandopergunta sobre o casamento e pede para ver as fotos do mesmo. Os pais,por sua vez, encontram dificuldades para falar sobre isto.

Vai ser na cena do atendimento, através do “Sr. Macaco”, interrogan-do-o, que R. pode trazer questões sobre ter uma família e irmãos, sobre oprimeiro casamento do pai, confeccionando bonequinhos, “noivos”, com pa-litos de picolé, que primeiro participam de uma brincadeira de esconde-es-conde, depois se casam diante de um padre. Aos poucos,foi sendo possívelfalar de suas fantasias a respeito de uma mulher desconhecida, que um diafora o amor de seu pai e mãe de suas irmãs.

Primeiro, é R. quem manipula o fantoche, construindo uma históriapara este. Depois solicita que eu encarne este personagem e fale com ela.Passado algum tempo de atendimento, ela pode tomá-lo novamente em mãose então fazê-lo interrogar a si mesma, podendo responder diretamente a elesobre suas próprias questões. Lembremos que quando um fantoche fala,não é ele que fala, é alguém que o anima. Esta construção metaforiza aprópria condição de faltante do sujeito, enquanto sujeito dividido, e alienadode si mesmo, portanto, marcado por uma falta de saber em relação à verda-de que o determina, condição de não saber que permite ao sujeito encontrar-se consigo mesmo através de um outro.

Na conclusão do atendimento ela pôde se despedir do “amigo” dizen-do que sentiria saudade, e agradecê-lo por ter lhe feito companhia duranteaquele ano. Agora ela já poderia seguir fazendo arte fora do consultório eestender a sua rede de amigos para além do “Sr. Macaco” (que chorou, ficou

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um pouco triste, mas se conformou pois certamente teria outras criançascom quem brincar).

Em entrevista com o pai da paciente, que dizia não compreender oque se passava com a menina (em contrapartida, a respeito de seus filhoshomens podia dizer muitas coisas), ele pôde, em um momento, lembrar desua própria infância, dizendo “mas quem sabe eu saiba o que pode ter acon-tecido...”, e relata que escutava seu próprio pai, que ao chegar em casa, equestionado sobre onde andava, respondia que estava na companhia da “ou-tra”. Aqui era ele próprio quem não compreendia o que se passava (pois paraele os pais mantinham um bom relacionamento, eram carinhosos entre si ecom os filhos), questionava-se diante das poucas palavras que encontrava,sentia-se igualmente muito angustiado, pois não conseguia interrogar o paisobre esta “outra” que se fazia presente em seu discurso, ficando assimsem respostas.

O fato é que, relembrando este episódio, supôs que “quem sabe” issotambém teria se passado com a sua filha, e agora ele compreendia algo epodia se aproximar um pouco mais da menina sem se sentir tão afrontadopor suas perguntas. “Ela entendeu mal, não é nada disso, posso explicarmelhor”, pôs-se a dizer o pai.

Este momento de construção com os pais, em que eles são convoca-dos a retomar o lugar transferencial na relação com o filho, é fundamental notrabalho clínico com crianças. Eles são convocados a se autorizar a buscarem suas próprias experiências um saber, reconhecendo-se sujeitos de umahistória e incluindo seu rebento neste roteiro, portanto um saber que temvalor de transmissão.

Trata-se de favorecer o reconhecimento da criança como sendo igual-mente passível de se fazer interrogar pela história que lhe antecedeu, e daqual hoje é convidada a fazer parte, suportando seus questionamentos, poisisso diz da construção de um lugar próprio, de uma busca que interroga seulugar frente ao desejo dos pais.

Tão delicada quanto a construção de uma marionete são os elemen-tos que dizem da constituição do sujeito. A Psicanálise dirá da dependência

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do bebê para com a instância do Outro, encarnado por quem exerce a funçãomaterna, enquanto portador dos significantes, que permitirá ao sujeito ace-der às representações; trata-se então de uma alienação fundante que intro-duz irremediavelmente o “ser” em uma dimensão simbólica.

Lacan, através de suas formulações teóricas, se refere ao falo comosendo um investimento que circula em diferentes lugares, e ao Nome-do-Paicomo o significante organizador de um código comum a todos os sujeitos,na determinação de funções e limites do gozo.

O falo tem as características de um significante na medida em que secoloca no lugar da falta. É um significante que tem uma função, ele abreespaço para uma suposição, para o que remete a uma potencialidade dosujeito, potência esta suposta, arbitrária, da mesma forma que os significantesnão têm relação direta com a “coisa” que nomeiam, são arbitrários. O falo,portanto, cumpre uma função imaginária, de ilusão de completude inicialentre mãe/bebê, que logo é frustrada em função de desencontros entre dife-rentes demandas e suas satisfações.

Um exemplo desta dimensão de suposição de um sujeito de desejo e,portanto, de potência para o desenvolvimento construída pelo Outro primordi-al, é quando uma mãe, ainda durante a gestação, pode referir-se ao filhodizendo – “Ele vai ser jogador de futebol, olha como é ágil com as perninhas,já está chutando!”

Trata-se aqui do engendramento do ego ideal como um investimentoparental, que se dá durante o estádio do espelho. A partir do que é supostode sujeito nesta criança, sendo pura miragem de unidade, numa demandarecíproca de amor (desejo da mãe de ter o falo e desejo da criança de ser ofalo da mãe, prolongamento e complemento desta).

É em função deste Outro que a criança se situa egoicamente, namanutenção de uma “unidade narcísica” que se constrói no primeiro tempodo Édipo. Segundo Bleichmar, “seu desejo é o desejo do outro, em duplosentido, ou seja, ser desejado pelo outro e tomar o desejo como se fora opróprio” (1988, p. 27). O Outro primordial “empresta” seu olhar, sua voz, otoque, devolve à criança uma palavra, introduzindo-a em uma série significante

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(regida por um código), o qual fica marcado em função de uma repetição,mas também em função de que esta voz tem uma modulação especial, setratando de uma pulsão invocadora como afirma Lacan, despertando e enla-çando o gozo paralelo à satisfação das necessidades puramente orgânicas.

Na relação de espelhamento, o primeiro sujeito ali é o outro. A mãeouve um balbucio e devolve à criança dizendo “eu estou com fome”, fala nolugar da criança, traduzindo algo que é inserido na cadeia significante. Colo-ca-se como fundamental que a criança encontre na imagem do semelhantea sua própria imagem, em uma projeção imaginária, pois assim o é em umprimeiro momento de estruturação do sujeito. A mãe aqui se vê frente à “suamajestade, o bebê”; recobre este corpo com seu olhar e lhe dá um nome.

Mas este olhar da mãe se desvia, investe igualmente outros objetosque não somente o seu bebê, o que nos dá notícias do quanto ela está ounão atravessada pelo Nome-do-Pai, na imposição de uma reserva desejantediante do gozo nesta relação dual. A castração estaria então demarcada , nosentido de que existe uma regra maior que baliza esta relação, impedindodeterminadas posições de gozo e impondo lugares distintos para cada um.

Portanto, não se trata da subtração de um objeto real, mas antes, deum objeto imaginário (o falo, como potência desmedida), na interdição de umgozo, desviando-o para outras finalidades, outros objetos; há a transposiçãode uma relação dual imaginária para uma relação simbólica.

É através da privação, que se abre uma possibilidade outra que a dese render ao gozo junto do corpo da mãe. Tem lugar um corte na relação,produzindo uma separação e uma perda. A criança se distingue do falo,deixa de sê-lo, perde sua identificação com ele. “Que a mãe se apresenteassim implica uma restrição de seu poder sobre seu filho; este situa-se,então, não em relação ao desejo dela e sim a uma ordem compartilhada portodos e não detida com exclusividade por ninguém” (Bleichmar,1988, p. 49)

Ao mesmo tempo, é como se o sujeito percebesse os investimentosparentais em um extremo, exacerbados, uma demanda à qual ele não teriacondições de responder completamente, como algo que o ultrapassa, fazen-do surgir a questão sobre “o que fazer com isso que determinaram para

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mim?”. Segundo Lacan “o ideal do ego é uma constelação de insígnias, (...)um distintivo que alguém leva para assinalar um lugar, desempenhando umafunção, tendo um papel, que fica indicado através das mesmas” (apudBleichmar, 1988, p.58), ou seja, é o fato de assumir a masculinidade ou afeminilidade, identificando-se com esta posição, que é geral e diz respeito auma classe de homens ou de mulheres, direcionando assim seu olhar paraum vínculo social mais amplo do qual fará parte, e que passa a constituir-seagora para ele.

Como efeito da castração, ficam interditadas certas formas de gozo edeterminada uma filiação e sexuação, balizadas por lugares identificatórios,definidos em função dos quais o sujeito poderá referenciar-se. Seria entãonestas circunstâncias que o “fantoche de mão” passa ao estatuto de mario-nete? Distancia-se de uma mão que o manipulava diretamente, para entãoser animado pelos fios de desejos agora tomados como próprios, desperta-dos em função da marcação de uma falta.

Lacan, ao refletir sobre o humano afirma:...É que o eu humano é o outro, e que no começo o sujeito estámais próximo da forma do outro do que do surgimento de suaprópria tendência. Ele é originariamente coleção incoerente dedesejos – aí está o verdadeiro sentido da expressão corpoespedaçado- e a primeira síntese do ego é essencialmente alterego, ela é alienada. O sujeito humano desejante se constituiem torno de um centro que é o outro na medida em que ele lhedá a sua unidade, e o primeiro acesso que ele tem do objeto, éo objeto enquanto objeto do desejo do outro. (LACAN, 1955-1956, p.50).

É aqui que, sobre a estruturação do sujeito, a psicanálise dirá danecessidade de que este ser esteja antecipado para o outro, imaginarizado.Segundo Laznik:

... a posibilidade de entrar na alienação, não apenas a que é própriaao estádio do espelho – alienação em uma imagem fálica no olhar do Outro-, mas, ainda, alienação nos significantes (...), fazer-se sujeito de um enunci-

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ado é admitir fazer-se representar por um significante que remete a outrosignificante, o lugar do sujeito oscilando a cada vez. (1997, p.178)

Tem espaço no trabalho clínico colocar em palavras o que a criançaencena; portanto, nomear, decifrar, descrever, antecipar, supor algo no lugardisto que aparece muitas vezes no real do corpo e garantir que se possa falarsobre isso. Viabilizar a construção de uma história, muitas vezes significacalar e então, como platéia, contemplar este processo, que se faz notarsomente quando nos retiramos, disponibilizando ao sujeito espaço para cons-truir uma narrativa para si.

Assim, podemos pensar na antecipação como uma plataformade passagem, um lugar de onde se possa partir, mas que tam-bém, em algum momento, possa desdobrar-se na construçãode uma versão própria, numa apropriação singular destessignificantes ofertados pelo Outro, versão que na infância seráconstruída no terreno do faz de conta, como uma história parabrincar. (GIONGO, 2004, p.37)

Como responder diante da forma como a criança nos convocatransferencialmente? O que ela convoca ali? O terapeuta é convocado a brin-car, e segundo L. Bernardino “...as intervenções devem levar em conta emque lugar o Outro está colocado para a criança ...” (2004, p.84). Supõe-seque este seja um dos interrogantes que acompanha a clínica psicanalíticade crianças, na medida em que não contamos com uma técnica específica,mas com o brincar “associando livremente”. É neste sentido que Freud pôdepensar que a criança cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elemen-tos de seu mundo de uma forma que lhe agrade, determinada por um únicodesejo, o de ser grande.

O analista dispõe do desejo,a desejo de que um sujeito se constitua,habilitando a criança a uma nova posição subjetiva, um lugar desde ondepossa se contar como sujeito de desejo, não como puro objeto do gozo doOutro. Jerusalinsky, ao confrontar a perspectiva terapêutica e a perspectivaque se orienta pelo discurso do sujeito, para garantir que a criança possa sesubjetivar afirma:

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... A pére-version se situa muito mais do lado do discurso, e não daterapêutica, que é a transformação desse traço em signo, e dele para umvalor significante, colocando-o na série da linguagem. (2004, p.47)

Este mesmo autor em diálogo com A. Vorcaro, afirma o quanto deuma posição perversa há entre a mãe e a criança, no sentido de dar umaversão do pai (segundo o modo como Lacan utiliza a palavra, quando produzsua escansão: père-version), qualquer que seja, mas inscrevê-la.

Quais são os desdobramentos desta construção? Seguindo o raciocí-nio de Jerusalinsky, estamos diante do maior obstáculo para o analista notrabalho clínico: que se refere à queda de sua subjetividade, queda do imagi-nário, de sua versão pessoal, por esta estar “divorciada das formas de repre-sentação que a criança tem nessa família”(2004, p.45). Portanto, devemosestar atentos para a consideração do lugar que a criança ocupa no discursodos pais, para evitar ali a quebra com a articulação do Nome- do- Pai que asustenta.

Segundo as construções de Vorcaro, diante do brincar se trataria de“...introduzir um jogo, (...) para permitir um desdobramento, pois aí não háum significante suficiente para fazer disso uma linguagem, (...) fazer um jogoque inclua o jogo da criança”. E segue, citando Jean Bergès “sem o real dacriança, que de alguma maneira sublinhe que a interpretação tem um senti-do, nada acontece.” (2004, p.46)

Mas em algumas situações clínicas, diante de crianças que apresen-tam dificuldades de estruturação, podemos pensar que o terapeuta é convo-cado a ocupar um lugar semelhante ao que Freud descreve como sendo o do“escritor criativo”, onde este coloca em cena seus devaneios, ou seja,disponibiliza um imaginário a partir de onde, brincando, a criança possa seconstituir. Isso não é tarefa fácil, pois coloca o terapeuta diante de suasmaiores resistências.

O escritor alemão Michael Ende2 na obra infantil “O teatro de sombrasde Ofélia”, fala sobre uma velhinha, para quem seus pais, no dia do seu

2 Autor da belíssima e consagrada obra intitulada “A história sem fim”.

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nascimento, desejaram que fosse uma grande atriz. Ofélia cresce e tem avoz muito fraquinha, o que lhe impede de realizar o desejo dos pais. Masainda assim, herda destes o gosto pelas grandes palavras dos poetas, ser-vindo à arte, ainda que de forma mais humilde. Vai ser em meio a um grandeteatro que encontra um lugar, pequeno, sob o chão, aos pés do palco ondefica a soprar para os atores as falas de seus papéis, “para que eles nãoperdessem o fio da meada”, pois ela, com o passar do tempo, tinha decora-do todas as grandes comédias e tragédias.

O teatro tem suas portas fechadas por ocasião do grande sucesso datelevisão e do cinema, o que fez com que o público fosse perdendo o interes-se. Sozinha, depois que a cortina havia se fechado pela última vez, Ofélia ésurpreendida por uma enorme sombra que se apresenta como sendo a “Som-bra Marota”, que não se parecia com nada, e não tendo onde ficar, pois nãopertencia a ninguém, foi convidada pela velhinha para que lhe fizesse compa-nhia, já que agora não tinha mais trabalho. Com o passar do tempo, muitasoutras sombras sem dono (“Morte Solitária”, “Noite Enferma”, “Nunca Mais”...)vieram em sua procura e com ela aprenderam as grandes palavras dos poe-tas, fazendo com que suas vidas mudassem bastante, pois agora elas podi-am representar vários papéis e tomar formas variadas (reis e lobos, donzelase feiticeiras...).

O texto deste livro é encantador e suscita várias interpretações. Écomo se no trabalho clínico com crianças, tomássemos seus sintomas comosombras, que abandonadas não pertencem a ninguém, sendo que às aco-lhemos, ajudamos a construir novos contornos, soprando o texto de suaprópria história, na busca de um endereçamento possível situado no planosimbólico; “para que não percam o fio da meada”.

REFERÊNCIASBLEICHMAR, Hugo. Introdução ao Estudo das Perversões. Teoria do Édipo em

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BRUDNA, C. D. Psicanálise de crianças...

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LACAN, J. O Seminário, Livro 3, As Psicoses [1955-56]. Rio de Janeiro: Zahar,Ed.2002

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TDAH: SEGREGAÇÃO E ROTULAÇÃO

Zélia Carmo*1

“A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiámas não pode medir seus encantos.

A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existemnos encantos de um sabiá

Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinareOs sabiás divinam”

Manoel de Barros

Está em voga um transtorno denominado TDA/H, “Transtorno de déficitde atenção e hiperatividade”, que, sistematicamente, tem circuladocomo um diagnóstico que dá uma “resposta rápida” para enquadrar o

sofrimento. Em muitas situações, com este diagnóstico, tem-se a ilusão deque haverá um alívio que minimizará a angústia dos pais, da escola e dosprofissionais envolvidos. Associado a esta “resposta rápida”, costuma sefazer o uso da medicação. Em geral, o medicamento minimiza a angústia nabusca pelo padrão de normalidade, mas corre-se o risco de que promova“rotulação” daquele que é medicado.

Este tema – “TDA/H: segregação e rotulação” – me mobilizou pelonúmero de crianças e adolescentes que venho atendendo no ambulatório deum hospital público e que chegam com este diagnóstico. Muitas vezes, es-sas crianças parecem ser medicadas em sintonia com uma época em quenão se tem tempo: tempo para brincar, tempo para olhar, para observar, nãofazer nada, pesquisar ou apenas ser e estar.

1 Psicóloga, Psicanalista (Formações Clínica do Campo Lacaniano), Pós Graduada em Psica-nálise e Saúde Mental (UERJ), Mestranda pela UVA (Universidade Veiga de Almeida), Traba-lho de pesquisa e clínico institucional no ambulatório de Psiquiatria da Infância e Adolescên-cia – Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE-UERJ), Capsi -– Centro de AtençãoPsicosocial – D. Adriano Ipólito – Nova Iguaç[email protected]

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SEÇÃO DEBATES

Sabemos que Freud, desde o começo de seu ensino, situa o sistemainconsciente fora do tempo. Na “Psicopatologia da vida cotidiana (1907)2 ”,afirma que o inconsciente está fora do tempo, utilizando para isso o termoZeitloss, que emprega repetidamente quando se refere a esta característicado inconsciente. Em seu artigo “O Inconsciente(1915)3 ”, define o fora dotempo, Zeitloss, do processo inconsciente mediante três características:sua falta de ordenação temporal, sua falta de modificação como conseqüên-cia da passagem do tempo e sua falta de relação com o tempo. O tempo doinconsciente não é um tempo linear; ele supõe uma descontinuidade. Ossonhos, os lapsos, as formações do inconsciente se apresentam como umairrupção, como o efeito de uma descontinuidade temporal. Isso significa tam-bém que uma representação inconsciente não segue as leis cronológicas dotempo, mas sim as leis simbólicas. O funcionamento do inconsciente seapóia não somente nas leis da repetição, mas especialmente nas leis dosimbólico, do significante, da metonímia e da metáfora. Desta forma, susten-tar que apenas o tempo cronológico é determinante do processo desubjetivação é afirmar que o organismo determina as variações do sujeito,suposição que corre o risco de referendar a alienação subjetiva. Será que anormalização esperada das crianças e adolescentes, levando em conta ape-nas o tempo de maturação do organismo, não correria o risco de operarcomo um obstáculo suplementar à subjetivação? Fui então ao Hoauiss bus-car a definição destes dois verbos: segregar e rotular.

O que é segregar? Pôr de lado, separar, expelir, desligar, afastar, isolar.O que é rotular? Etiquetar, tachar, denominar.Ao “rotular” um sujeito sem levar em conta sua história pessoal, corre-

se o risco de segregá-lo. Os grupos de auto-ajuda, ainda que promovam a

2 Freud, S. Psicopatologia da vida cotidiana [1907], In Edição Standard Brasileira dasObras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1980,V.VIII.3 Freud, S. O Inconsciente [1915], In Edição Standard Brasileira das Obras PsicológicasCompletas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1980, V. XIV.

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circulação da palavra, podem pelo processo de identificação à “doença”, ao“rótulo” TDHA, deixar de priviliegiar a história do sujeito. Como diz Rossanoem seu livro, “Somos todos desatentos? O TDA/H e a construção debioidentidades (2005)”, há a assunção de uma bioidentidade, o ponto nodalde interesse recai sobre as manifestações no corpo, uma biologização dosujeito: “ele(a) tem TDA/H”. O interesse pelo sujeito parece ser apenas bio-lógico: seu transtorno. Nesta perspectiva se fragilizam as possibilidade dapesquisa, pois o enquadramento diagnóstico de crianças e adolescentesobstrui o campo para formulação de outras indagações em relação ao sujeitodo desejo. “Por que está agitado?” “Por que não vai bem na escola?” “Porque está agressivo(a)?” Assistimos a uma exigência imperiosa de acabarcom este mal estar, da agitação, da impaciência, da não aprendizagem.Responde-se talvez rápido demais às demandas das instituições envolvidas.Os encaminhamentos que nos chegam são feitos por profissionais de diver-sas áreas como: médicos, pedagogos, assistente social, juizado da infânciae adolescência.

Por ser uma preocupação que vem causando um forte impacto naatualidade, a medicalização poder-se-ia dizer excessiva, de algumas crian-ças e adolescente. O setor de psiquiatria da infância e adolescência no qualtrabalho tem como um diferencial o diagnóstico firmado sobre a escuta dahistória do sujeito em questão e sua família. Considera-se de importância capi-tal para o atendimento do caso a caso (a clínica do um a um). O diagnóstico,sempre delicado na infância, precisa ser criteriosamente constituído a fim deevitar equívocos que levem à estigmatização da criança. Chama atenção que,do universo em atendimento no ambulatório, diversas crianças e adolescentescheguem medicadas. É importante lembrar que a medicação, quando neces-sária e criteriosamente indicada pode ser eficaz, tornando-se aliada do pacien-te. Estas medicações, muitas vezes, são ministradas para aliviar o sofrimento;ou, em algumas circunstâncias, para dar uma resposta ao que é exigido comopadrão de normalidade. Ninguém pode chorar, não se adaptar, falar alto ou atémesmo tirar nota baixa, pois supostamente deve estar sofrendo de algumtranstorno da atualidade. Nestes termos, a medicação aparece com a fun-

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SEÇÃO DEBATES

ção de “salvadora” por que favoreceria a adequação ao padrão de normalida-de. Existe a necessidade da urgência! As crianças e adolescentes são en-caminhadas aos médicos e medicadas; o excesso de medicalização corre orisco de tamponar as manifestações subjetivas.

BREVE HISTÓRICO DO TDA/H OU DDAEm 1902, o pediatra inglês George Frederic Still (em palestras no

Royal College of Phisicians) foi quem atribuiu como “maus comportamentos”diversas condutas infantis. Ele estudou 20 casos (três meninos para cadamenina). Havia nos relatos ausência de “volição inibitória”, ou seja, a criançanão tinha limites, nada a detinha. Este comportamento tinha como caracte-rísticas: atitude desafiadora, agressividade, indisciplina, desatenção eimpulsividade. Estas crianças foram criadas em ambientes bons e o cuidadoparental era satisfatório. Ele atribuiu às crianças com estas característicasum “defeito no controle moral”, herdado geneticamente.

Nos anos de 1917/18, houve uma pandemia de encefalite que ajudoua reforçar a hipótese de uma causa biológica para estes distúrbios de condu-ta infantil, já que uma de suas seqüelas era uma marcante hiperatividade.

Em 1922, este quadro foi denominado como “desordem pós-encefalíticado comportamento” contribuindo para estabelecer como categoria a “lesãocerebral mínima”. Com esta categorização, as crianças que apresentavamcomportamentos semelhantes aos das vítimas da encefalite, que não tinhampassado por estas doenças, passaram a ser consideradas portadoras de umdano na estrutura cerebral que era apenas reprimido. O termo “lesão cerebralmínima” não explicava apenas transtornos de comportamento, mas tambémos de linguagem e aprendizagem.

Em Londres, no ano de 1962, discutiu-se em um Simpósio a dificulda-de de generalização de hipóteses localizacionistas cerebrais e a persistên-cia da impossibilidade, na grande maioria dos casos, de identificar uma le-são. Mudou-se a denominação para “disfunção cerebral mínima”.

Foi na imprecisão deste termo que houve sua disseminação no cam-po médico e entre os leigos, especialmente nos EUA nas décadas de 60 e

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70, pois ele passou a abrigar crianças com conduta hiperativa, desatenta,anti-social ou com problemas de aprendizagem. De fato, este equívoco per-mitiu a proliferação deste diagnóstico garantindo que esses desvios ficas-sem atrelados ao registro fisicalista.

Segundo Werner Jr. (1997/2001) o surgimento e a aceitação rápidadesse diagnóstico podem ser explicados pelo contexto histórico e socialdos EUA na década de 60, como:

– a prosperidade econômica no pós-guerra começa a enfraquecer e aestabilidade da família americana começa a dar evidentes sinais de novacrise;

– aumento do número de divórcios, de suicídios e uso abusivo detranqüilizantes;

– movimento hippie;– a classe média clama por uma explicação para os distúrbios de

comportamento e para as dificuldades escolares de seus filhos.Este último item é atendido e acolhido pelos médicos, pelas autorida-

des sanitárias tendo como avalista o discurso científico, pois o fracassoescolar e a indisciplina se descolam de possíveis matrizes econômicas,sociais ou familiares e passam a ser atribuídos à “disfunções cerebrais míni-mas”. O sujeito não é visto como “DCM”. Nada mais adequado para eximiras instâncias culturais (a escola) de sua responsabilidade frente a tais pro-blemas e para aliviar a culpa de pais pelas dificuldades de suas crianças eadolescentes.

No Brasil na década de 60, a DCM reforçou a ingerência de psiquia-tras e psicólogos no cotidiano da família e da escola; começaram a surgirespecialidades para dar conta destes transtornos, destes rótulos. A DCMcontribuiu para a emergência da especialidade de psicopedagogia, ajudandoa disseminar e institucionalizar a noção de “dificuldades específicas na apren-dizagem”.

A psicomotricidade, em suas concepções mais antigas, acrescentaque a DCM é a falta de coordenação entre o que o sujeito se propõe a fazere a respectiva ação, que dificulta a sua expressão através do corpo, resultan-

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SEÇÃO DEBATES

do em hiperatividade, dificuldade na organização temporal e orientação es-pacial, percepção visual e esquema corporal, e tinha como proposta a reedu-cação para corrigir tais disfunções.

Naquele período, a intervenção do neurologista clínico costumava serum campo pouco conhecido, sua concepção era a terapêutica medicamentosados comportamentos hiperativos e impulsivos, o que ajudou a elevar ospsicofármacos ao eixo do tratamento de tais condições.

Em 1960, surgia o diagnóstico de “síndrome da criança hiperativa”,designando crianças que apresentavam atividade motora muito acima doque seria esperado para sua faixa etária.

Em 1968, houve a inclusão da categoria “reação hipercinética da in-fância” na segunda edição do DSM-II – Diagnostic and statistic manual ofmental disorders da APA (Associação Americana de Psiquiatria) – que de-monstrava o rápido respaldo que essa nova descrição passou a receber dacomunidade científica.

A presença da expressão “reação” indicava a influência que noçõespsicanalíticas ainda exerciam na compreensão do transtorno e em todo oDSM-II. A ascendência da psicanálise na psiquiatria americana desse perío-do permitia conciliar o reconhecimento da existência da síndrome com apostulação de fatores ambientais e psicológicos envolvidos em sua origem,entendendo-se que a inquietude da criança poderia ser causada por eventosde sua vida familiar e social.

Em 1970, o alvo das pesquisas começou a deslocar-se da hiperativi-dade para as dificuldades de atenção e do controle dos impulsos.

Em 1980, na terceira edição do DSM a entidade foi renomeada porDDA – “distúrbio de déficit de atenção”, que incluía subtipos: com e sem ahiperatividade. Por outro lado, esta mudança fundamentou a ampliação daabrangência do diagnóstico permitindo a inclusão de crianças sem nenhumahiperatividade, aparentemente “tranqüilas”, facilitando também que os adul-tos passassem a figurar entre os portadores do transtorno.

Segundo a visão psiquiátrica da atualidade, o TDA/H corresponde auma síndrome caracterizada por comportamento hiperativo e inquietude

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motora, desatenção marcante, falta de envolvimento persistente nas tarefase impulsividade. São mais comuns em meninos e costumam iniciar-se entreos três anos e os sete anos de idade. Os sintomas persistem nos anosescolares e em metade dos casos continuam na vida adulta.

CONCLUSÃOConcluímos que não parece ser casual, nesse momento atual em que

o Brasil vem passando por diversas transformações, que o TDA/H e a medi-cação tornem-se praticamente indissociáveis, com um público-alvo amplia-do, onde cresce o interesse da indústria farmacêutica neste diagnóstico paraminimizar o sofrimento de nossos pacientes, visando a acalmar a angústiadiante de nossa história brasileira: guerra do tráfico, escolas sem futuro,adolescentes sem perspectiva de trabalho, famílias dilaceradas, entre outrostantos fatores.

Observamos que diante do histórico do TDA/H os efeitos do uso damedicação mostrou-se incapaz de funcionar como prova diagnóstica. A par-tir de pesquisas médicas com substância semelhante, “Dexedrine”, a açãodos estimulantes não difere muito entre pessoas com ou sem o transtorno.Houve esforços para o aprimoramento de critérios descritivos para defini-lo,mas tornou-se mais imprecisa a eleição daqueles que devem ou não recebero fármaco.

Temos constatado que a pesquisa psiquiátrica estaria nos aproximan-do da verdade que repousa na bioquímica cerebral acorrentada à genética daespécie, deixando de privilegiar a posição do sujeito do desejo. Detectamostambém que não se tem privilegiado as diferenças culturais, que são ignora-das na maioria das categorias das classificações atuais, ou seja, o que emalguns países é considerado uma peraltice em outro pode ser elevado àcategoria de distúrbio patológico.

Acreditamos que qualquer um dos sintomas do TDA/H (comporta-mento hiperativo, inquietude motora, desatenção marcante, falta deenvolvimento persistente nas tarefas, impulsividade) somados podem provo-car comprometimento clinicamente importante no funcionamento social, aca-

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SEÇÃO DEBATES

dêmico ou ocupacional. Constatamos que a concepção do transtorno dife-renciada pelo DSM vem sendo criticada como estanque por não levar emconta as modificações psicológicas e comportamentais que ocorrem à me-dida que a criança cresce.

Detectamos que se os profissionais envolvidos no atendimento de seuspacientes ficam presos a descrições nosográficas, correm o risco de minimizara importância das questões emocionais, os desajustes ambientais, reduzin-do a queixa da família e da escola ao discurso científico, oferecendo-se umaterapêutica preventiva (exercício de atenção, relaxamento ou volta à calma),reeducativa, na tentativa de controlar a disciplina deste sujeito na sala deaula; lugar que a criança, adolescente mantém seu contato social. A históriafica obscurecida pelos fenômenos isolados que o classificam. Nestas condi-ções, pode-se observar a criação de uma “bioidentidade”, fazendo eco aodiscurso científico.

Constatamos que a criança ou adolescente precisam cumprir o quelhe exigem dentro do tempo que não pertence a eles: o tempo dos pais, daescola, da Internet, da telefonia, da violência, da falta de espaço para exercera função criança e a função adolescente. Por estarem sofrendo de algo queé pertinente a seu crescimento e a seu tempo ou estarem vivendo problemasfamiliares, estas crianças e adolescentes não conseguem dizer ou expres-sar o que sentem, sintomatizando no local em que exercem sua funçãosocial: na escola. O problema de aprendizagem é a soma de fatores exter-nos e internos, ou seja, o que pertence a eles e o que se exige deles.

A nossa aposta do tratamento caminha no sentido de escutar o que acriança ou adolescente tem a nos dizer para podermos fazer os encaminha-mentos necessários, dando seqüência a uma escuta diferenciada que pro-cura tratar do sofrimento de existir. Esta diferença pode viabilizar o caminhode um tratamento possível, buscando evitar os equívocos dos diagnósticosacabados, passíveis de gerar violência, isto é, a violência da interpretaçãofundada exclusivamente em diagnósticos nosográficos que pode descon-siderar o individual de cada um.

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Bralck, E. Disfuncion cerebral em el nino. Barcelona: Editoral Pediátrica, 1982.FREUD, S. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas.

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In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed. 2003.LIMA, R. Somos todos desatentos? O TDA/H e a construção de bioidentidades.

Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005.

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RESENHA

A TRAVESSIA DO INFERNO

Comissão de Aperiódicos da Associação Psicanalítica dePorto Alegre (org.). Psicose: aberturas da clínica. PortoAlegre. APPOA : Libretos 2007. 296p.

Vou direto ao ponto: este é um livro indis-pensável a quem lida com psicanálise.Por quê? Por dois principais motivos. O

primeiro concerne à sua arquitetura. Esta cole-tânea sobre a psicose prima pela abrangência epela coerência harmoniosa dos artigos apresen-tados. Mas, entenda-se bem, harmonia não éredundância; não é o mais do mesmo. Os auto-res retomam de Lacan não aquilo que, suposta-mente, é sabido e repetido, mas sua incansável vontade de cavar até onde orochedo freudiano parece inquebrável. O resultado compensa. Tanto os tra-balhos históricos sobre o conceito de psicose quanto os que refletem sobrea prática clínica institucional formam um coro teórico em uníssono que incitaa psicanálise a falar sobre o que se situa nos limites da razão.

O segundo motivo concerne à qualidade intelectual do texto, isto é, aoseu valor metapsicológico. Um bom estudo psicanalítico faz-nos reconhecerna prática o cânone teórico estabelecido; um ótimo trabalho psicanalíticoexpande o pensamento clínico além do que conhecemos ou do que está aum palmo do nariz e, por isso, mal notamos. Psicose: aberturas da clínica é,desse aspecto, uma empreitada plenamente bem-sucedida. Os autores arti-culam dados clínicos e noções teóricas de forma convincente e apontampara horizontes da pesquisa e da direção da cura que soam como inéditos.Em outros termos, redescrevem a atividade analítica de modo a realçar no-vos conceitos ou a revigorar aqueles exauridos pelo desgaste da familiarida-de.

Dou como exemplo, entre muitos, três dos que me pareceram particu-larmente interessantes. O primeiro é o de testemunho. A noção de testemu-

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RESENHA

nho, empregada de modo tácito ou explicitamente tematizada, é descritacomo uma posição analítica fundamental no processo de cura da psicose.Testemunho, no uso vernacular, é sinônimo de demonstração cabal, afirma-ção fidedigna, prova de existência de algo ou exercício de certas habilidadescognitivas ou sensoriais que levam ao conhecimento da verdade. Os autoresfazem convergir todos esses significados para um único vértice do tratamen-to: o acesso do sujeito a um modo de subjetivação compatível com anormatividade psíquica ou, se se preferir, com a responsabilidade pelo seudesejo. A versatilidade semântica da palavra testemunho é, dessa forma,transcrita na notação psicanalítica e ganha uma tonalidade que a rejuvenes-ce. O psicanalista, obviamente, é testemunho da construção de metáforasdelirantes ou não-delirantes pelas quais o sujeito ensaia os primeiros pas-sos de sua ressubjetivação. Mas o analisando psicótico, ao balbuciar psiqui-camente o que antes lhe havia sido interditado, testemunha, igualmente, aescuta do psicanalista. Finalmente, ambos testemunham o poder do dispo-sitivo de fala, do laço transferencial, de fazer advir o que parecia fadado àinexistência.

Estamos habituados a enfatizar o peso que o olhar do Outro ou aperformatividade da linguagem têm na formação da subjetividade. O conceitode testemunho, todavia, afirma algo mais; afirma a performatividade da escu-ta, o que não é a mesma coisa. Quem escuta como ouvidor-analista nãosabe o que vai ouvir, da mesma maneira que quem fala não sabe exatamenteo que vai dizer ou o que quer dizer com o seu dito. Essa é a condição sinequa non da subjetivação. O ouvidor-analista não é um ouvinte qualquer. Suafunção nem é a do ouvidor-profeta – que só escuta o eco de suas própriasprofecias -, nem a do ouvidor-apóstolo – que só tem ouvidos para os discur-sos do mestre. No ato testemunhal, quem declara e quem ouve a declaraçãoestão, ambos, diante de um depoimento em primeira mão. O testemunho é,assim, correlato da surpresa, da aceitação de um novo início, do acolhimen-to da palavra imprevista que, apenas em retrospectiva e por mútuo acordoimaginário, será comemorada como um feliz achado do processo desubjetivação.

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RESENHA

A segunda noção que pretendo acentuar tem como referente a idéiade palavra justa. A expressão, ao que entendi, foi criada por Maud Mannoni.Palavra justa é a resposta do analista à palavra inaugural do analisandopsicótico na montagem testemunhal. E, novamente, o termo justo, comoaconteceu com o termo testemunho, foi arrancado de seu contexto de sen-tido ordinário para ser portador de um significado próprio do vocabulário dapsicanálise. Justo, certamente, tem a ver com a justeza adequada ao univer-so dos fatos instrumentais e com a idéia de justiça como fundamento daética. Na atividade analítica, porém, a palavra justa refere-se à implicação doanalista no sintoma do analisando.

O que pode significar, entretanto, “estar implicado em um sintomapsicótico”? A expressão, é claro, não é uma recomendação para que oanalista se torne cúmplice da psicose do analisando. Implicar-se no sinto-ma é exercer a difícil função de colocar entre parênteses os saberes institu-ídos, sejam eles da ordem do senso comum ou dos paradigmas psicanalíti-cos herdados. Essa função já é bastante árdua na análise de neuroses. Noacompanhamento testemunhal das psicoses ela exige um trabalho de sus-pensão narcísica de rigorismo quase ascético. O analista deve atribuir aoanalisando a capacidade de se subjetivar sem dispor da garantia de teoriasconsagradas e confiando exclusivamente no poder criativo da palavra ou dogesto traduzível em linguagem. Seu papel é o de confirmar a singularidadedo desejo emergente do sujeito, malgrado a carência de esquemas queassegurem a distinção indubitável entre a palavra capturada na metaforizaçãodelirante e a palavra que desliza no circuito da metaforização neurótica.Entretanto, o efeito do que foi enunciado pelo analisando e legitimado peloanalista só pode ser validado a posteriori, donde a permanente hesitação, apermanente “prova da dúvida” que o último deve suportar. Auscultar a singu-laridade do discurso psicótico para decidir aquilo que, nele, porta os indíci-os formais de uma possível universalidade significante e significativa definea tarefa necessária ao advento da palavra justa. Tarefa, por conseguinte,exigente, que requer empenho, esforço e paixão pelo que se faz.

Contudo, mostram os autores, não estamos totalmente privados de

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RESENHA

critérios para julgar o andamento de uma cura no caso das psicoses. Esseângulo do problema põe em relevo a terceira noção que gostaria de comen-tar, a de angústia. A angústia, sabemos, é o nó górdio da psicanálise, quan-do não da existência humana, como assinalaram, entre outros, Kierkegaarde Heidegger. Basta evocar o papel desse conceito em Freud, Lacan ouWinnicott para apreciarmos o peso que lhe foi dado em nossa disciplina.

Usualmente, no entanto, costumamos circunscrever a angústia nointerior do campo pulsional ou no registro do Real, realçando, sobretudo,sua intensidade afetiva. A angústia, diz-se, é o que desmantela, paralisa oudesativa o sistema de representações mentais – regime simbólico e ima-ginário –, levando o sujeito a passagens ao ato hetero ou autodestrutivas; adefesas de retraimento autístico ou, por fim, a distúrbios graves daautopercepção corporal. Essa concepção, apresso-me em dizer, se justifi-ca. A manifestação afetiva da angústia é, de fato, seu lado mais inquietante.Ela está no centro nevrálgico do sofrimento psíquico, razão pela qual lheconferimos um estatuto de relevo no equipamento metapsicológico. Porém,nem sempre a dor mais estridente é a que produz mais malefícios. A angús-tia, em sua expressão emocional, é apenas a ponta de um iceberg, cujopotencial disruptivo ultrapassa de longe sua aparência dolorosa.

É isso que alguns autores deste volume sinalizam e que merece sersublinhado em negrito. Angústia, afirmam eles, além do excesso afetivo-pulsional, também significa fechamento, clausura, curteza, brevidade, e éneste ponto que a experiência psicótica se mostra mais devastadora. Poiso estreitamento e a fugacidade de que se trata atingem e desorganizam aexperiência do tempo e do espaço. No dramático caso de anestesia senso-rial analisado no tópico da apresentação de pacientes e no “caso Bethânia”essa constatação fica evidente. Penso, então, que discutir os transtornosda experiência da temporalidade e da espacialidade na psicose não signifi-ca, como se pode pensar, fazer a psicanálise correr atrás e a reboque dagrande tradição da fenomenologia psiquiátrica. Significa, ao contrário, fratu-rar a couraça da fenomenologia para extrair da psicose aquilo que estáenterrado em suas entranhas, ou seja, a malograda relação com o Outro.

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RESENHA

Recapitulo, de modo breve, os traços gerais da argumentação expos-ta e defendida nos dois casos. Em condições usuais de normatividade psí-quica – incluindo, aqui, os transtornos neuróticos na acepção psiquiátrica -,a experiência do tempo e do espaço mantém-se intocada em suas funda-ções. O sujeito acredita na ficção imaginária do tempo presente porque, noinconsciente, continua amarrado e sem riscos de rompimento ao tempo pas-sado e ao tempo futuro. Dito de outra maneira, a experiência de sua ipseidadee continuidade interiores permanece íntegra justamente porque ele interpretao presente, de forma compulsória e imediata, como um elo imaginário nacadeia entre o passado e o futuro. Com maior ou menor consciência, todosujeito “sabe” que, em última instância, sua identidade ou subjetividade é umcondensado de traços identificatórios significantes e de narrativas significati-vas que tiveram origem no passado e que aspiram a prolongar-se no futuro.Na subjetivação lograda, portanto, a ilusão egóica do presente é, de fato,sustentada pelo fluxo que vai de um passado em perene acúmulo a um futuroincessantemente adiado. Sem esse “não mais”, “não ainda” a corrida dodesejo rumo ao objeto desejado estagna, extravia-se, perde a bússola.Presentificar a existência subjetiva é, assim, uma operação sutil, complexa,que jamais se esgota no aqui e no agora das sensações, impressões, idéi-as, estímulos ou quaisquer outros sinais de resposta homeostática à varia-ção ambiental. Presente, na realidade psíquica, não é um ponto contínuo oudescontínuo em uma linha unidimensional que se projeta no infinito físico-matemático; presente é datação, situação transicional entre o “antes” dafantasiosa realização do desejo e o “depois” da mais recente frustração dodesejo.

O que ocorre com a experiência do tempo ocorre, mutatis mutandis,com a do espaço. O espaço subjetivo, físico ou mental, nunca é um espaçogeométrico restrito às coordenadas de altura, largura e profundidade. A ex-periência do espaço sempre é uma experiência de elo simbólico e de relaçãoimaginária com o Outro. Sabemos que estamos ou estivemos aqui porque ooutro está, esteve, estará ou poderá estar lá. O lugar subjetivo no espaçonão é o de uma mônada solipsística cheia de si mesma e alheia ao mundo.

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RESENHA

Ter um espaço ou ocupar um espaço é imaginar, fantasiar ou conceber even-tos passíveis de acontecer no intervalo temporal que nos separa do Outro. É,em suma, inquietar-nos, interrogar-nos quanto ao desejo Outro para decidir-nos, num salto às cegas e sem rede de proteção, se recusamos, negamosou consentimos em ceder ao pedido que nos é sugerido, imposto ou solicita-do. Assim, o presente temporal e espacial é, inevitavelmente, um presentede expectativas, promessas, ameaças, enfim, um presente cujo estofo é arememoração do que o Outro supostamente quis de nós e a antecipação doque supostamente pode querer. Sem essa dimensão fantasmática do tempoe do espaço como espectro e parúsia o presente se torna um pesadelo.

Nos casos mencionados, os autores revelam o desastre provocadopela ausência do tempo e do espaço estendidos na vida psíquica. A rupturado sujeito com os restos dos laços com o Outro o leva a fantasiar o futurocomo um enigma vazio, impedindo seu ingresso na esfera da subjetivação.Diante dessa impossibilidade, surge, então, a tentativa fracassada de con-trair, enxugar o tempo e o espaço para amputá-los de tudo que sobra dasombra do Outro. Em síntese, a resposta psicótica é a tentativa inútil edolorosa de imobilizar o desejo no instante vivido e na fração do corpo imagi-nariamente reduzido à fantasia do “corpo mínimo”. A intensidade da angús-tia, vista desse prisma, é o resultado da compressão do gozo, da pulsão oudo arremedo de desejo em um presente temporo-espacial residual e rudi-mentar. A anestesia corporal mencionada e a invenção de neologismosjoycianos, como “pedrital” e “hospinstante”, exibem, nos níveis do corpo e dalinguagem, as conseqüências dessa manobra desesperada do sujeito paraencolher-se na auto-suficiência do presente a fim de exorcizar o espectro e oreencontro com o Outro maligno. Bethânia, ao dizer que “Estou esperandoque eu possa viver”, afirma que não há vida onde só existe tempo presente enão há sujeito na ausência de um Outro que nos autorize a ter uma existên-cia com direito a passado, futuro e vínculo com outros além de nós.

O analista, desse modo, dispõe de pistas que indicam a boa direçãoda cura na psicose, apesar das injunções da escuta sem pressupostos e daaceitação da singularidade do sujeito sem obediência aos códigos de

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subjetivação prêt-à-penser. Sempre que se observam no analisando sinaisde abertura para o passado rememorado, para o futuro idealizado e para osoutros colaterais como fonte de promessas, estamos no caminho certo.Estamos atravessando a angústia-estreito, vendo a luz no fim do desfiladei-ro. Estamos, enfim, aptos a escutar a sabedoria inconsciente do analisandocitado em um dos artigos, que dizia gostar e sentir-se atraído pelo trecho deDostoiévski, na Recordação da casa dos mortos, no qual é dito: “tem que sepassar pelo inferno para, só então, encontrar a felicidade”.

Em oposição ao mito de Loth – ilustração do medo neurótico dorecalcado - a passagem pelo inferno psicótico exige que analista e analisan-do olhem para trás em busca do tempo e do espaço perdidos, únicos antído-tos contra o presente sufocante, claustrofóbico e dessubjetivizante da psico-se. E cabe ao analista, pelo ato testemunhal e pela palavra justa, acompa-nhar o analisando nessa travessia sem outra companhia ou fiador, exceto afé na idéia de que o Outro pode ser benevolente. Digo fé, pois o pressupostoda inocência do Outro, como bem disse Piera Aulagnier, é, ao mesmo tem-po, um requisito ineludível de nossa subjetivação e uma aposta racionalmen-te infundada e infundável. É uma imputação feita ao Outro de maneira gratui-ta, sem chão de crença, causa, razão ou saber. Podemos entender – e,ainda assim! – que o Inferno pode ser o Outro; impossível é entender o quenos predispõe a confiar nele. Quem duvidar, leia os relatos deste livro. Obser-ve-se o crédito insistente, inderrogável, logicamente exasperante e, às ve-zes, aparentemente insensato, dado pelos autores-analistas à premissa darealidade de um Outro que, apesar de não ter existência sensível, mesmoassim é suposto estar lá como doador do que não tem. Absurdo “científico”?Talvez. Mas, e daí! Credo quia absurdum! Melhor dito, em nossa “nativa”língua freudiana: “ça n’empêche pas d´exister”.

Jurandir Freire Costa

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AGENDA

DEZEMBRO – 2007

PRÓXIMO NÚMERO

Reunião da Comissão de EventosDia Hora Local Atividade

Reunião da Comissão de Aperiódicos

Sede da APPOA Reunião da Comissão da Revista

MÚSICA

Reunião da Comissão do Correio

19h30min

15h30min

Sede da APPOA

Sede da APPOA

Reunião da Mesa DiretivaSede da APPOA21h8h30min

20h30min

06

06, 13e 20

10 e 1707, 14 e 2107 e 14 Sede da APPOA

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EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

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Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Gerson Smiech Pinho e Marcia Helena de Menezes Ribeiro

Integrantes: Ana Laura Giongo, Ana Paula Stahlschmidt,Fernanda Breda, Márcia Lacerda Zechin, Maria Cristina Poli,

Marta Pedó, Mercês Gazzi, Norton Cezar Dal Follo da Rosa Júnior, Robson de Freitas Pereira e Tatiana Guimarães Jacques

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 2007/2008

Presidência: Lucia Serrano Pereira1a Vice-Presidência: Lúcia Alves Mees2a Vice-Presidência: Nilson Sibemberg

1a Secretária: Lucy Linhares da Fontoura2a Secretária: Maria Elisabeth Tubino

1a Tesoureira: Ester Trevisan2a Tesoureira: Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz

MESA DIRETIVAAlfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Laura Giongo, Ana Maria Medeiros da Costa

Ângela Lângaro Becker, Beatriz Kauri dos Reis, Carmen Backes,Emília Estivalet Broide, Fernanda Breda, Ieda Prates da Silva, Maria Ângela Bulhões,

Maria Ângela Cardaci Brasil, Maria Cristina Poli, Maria Lucia M. Stein,Otávio Augusto Winck Nunes, Robson de Freitas Pereira, Siloé Rey e Simone Kasper

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

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S U M Á R I O

EDITORIAL 1

NOTÍCIAS 2

SEÇÃO TEMÁTICA 4

PERFUME: CAPTURA DO OBJETOAidê Ferreira Deconte 4

ABUSO SEXUAL E IMPASSES DA CLÍNICAFernanda Perlin Césaro 15

PSICANÁLISE DE CRIANÇAS.QUE CENA É ESTA?Chaveli D. Brudna 31

SEÇÃO DEBATES 43TDAH: SEGREGAÇÃO E ROTULAÇÃOZélia Carmo 43

RESENHA 52A TRAVESSIA DO INFERNO 52

AGENDA 59

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PERCURSO EMPSICANÁLISE DE CRIANÇAS

N° 164 – ANO XIV DEZEMBRO – 2007