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E D I T O R I A L

Caros Amigos,

Neste 2010, Ano da Biodiversidade, os ecossistemas ainda permanecemna UTI. Embora as superfícies continentais e marítimas designadas comoáreas protegidas venham aumentando progressivamente desde 1970, suasintegridades continuam a ser vitimadas por criminoso desrespeito. Oplaneta continua a ser empobrecido em sua biodiversidade pela exaustãodos solos, pela devastação das florestas para conversão em terras agrí-colas ou pastos, pelo uso abusivo das águas doces correntes e subterrâ-neas, pelo intensivo “envenenamento” dos oceanos e da atmosfera, pelaexaustão dos recursos naturais, entre outros flagelos.

O diagnóstico dos males que afligem o paciente “Terra” já é conhecido, e osremédios e tratamentos a serem ministrados já estão aviados, como revelamvários artigos nesta edição – a começar pela situação dos ecossistemas ter-restres relatada no Panorama da Biodiversidade Global 3, da Convençãosobre Diversidade Biológica (CDB). E, em nosso quintal, a análise da MataAtlântica no Rio de Janeiro aponta para a urgência da preservação einterligação dos focos remanescentes num “corredor verde”, única garantiade sobrevivência da flora, da fauna e dos mananciais de água doce.

Mas, o que levou a espécie humana a legitimar as ações predatórias con-tra sua “única casa cósmica”? O pensamento científico, que tirou nossos pésdo chão, tornando-nos “sujeito abstrato” – e o Direito, que ao funda-mentar a propriedade privada sacramentou o divórcio litigioso entreGaio-Gaia, como revela o texto assinado pelo catedrático em DireitoInternacional Ugo Mattei. Você saberá como a relação conjugal homem(Gaio) e Terra (Gaia) degenerou, e a “esposa Gaia” passou a ser domi-nada e violentada com o direito e com a ciência.

Também a complexa questão “agronegócio x agricultura familiar”, quedomina nosso panorama sociopolítico, é dissecada pelo cientista socialRaimundo Santos. Leia e descubra que muito além do atual discursocentrado no confronto entre interesses aparentemente antagônicos e ir-reconciliáveis corre uma via capaz de solidificar uma profícua comple-mentaridade entre as partes.

E neste momento em que o climatologista Phil Jones é inocentado dasacusações movidas pelos negacionistas das mudanças climáticas no escân-dalo midiático do Climategate – montado para desacreditar a comunidadecientífica e minar a COP-15 –, Heitor Scalambrini Costa denuncia o mo-delo de desenvolvimento Pernambuco, focado na geração de energia apartir de matrizes sujas (termelétrica a óleo combustível e nuclear) e dodesmatamento. Para salientar ainda mais o anacronismo de tal visão, apre-sentamos os exemplos da Alemanha, da Dinamarca e de nosso país nabusca da sustentabilidade a partir de energias verdes e renováveis.

Helio CarneiroEditor

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Colaboraram nesta ediçãoAntonio Silvio HendgesBertrand d’Armagnac

Greenpeace InternationalHeitor Scalambrini Costa

Marcelo LeiteMarianne Siller

Panorama da Biodiversidade Global 3Phil Jones

Priscila de MartiniRafael Méndez

Raimundo SantosRejan R. Guedes-BrunRogério R. de Oliveira

The International Whale CommissionThe Sea World Organization

Thiago de Mello BezerraUgo Mattei

UNEP/GRID-Arendal

Diretora

Editor

Subeditor

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Regina [email protected]

Hélio [email protected]

Henrique [email protected]

Lucia H. [email protected]

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Nº 29 – 2010 - ANO VCapa:Dish Stirling Sunset. Foto: NAT' Sandia Labs

A situação atual dos Ecossistemas TerrestresPolíticas bem direcionadas com foco nas áreas críticas, nas espécies e nos serviços ecossistêmicos podemcontribuir para evitar os impactos mais nocivos às sociedades. Veja como é possível atingir esses objetivos.Por Panorama da Biodiversidade Global 3.

A Lei de Gaia – Os grandes predadores da Mãe TerraA relação dos humanos com o meio ambiente sempre foi marcada por uma concepção mecanicista da vida e pelaapropriação dos recursos naturais. Descubra como o Direito legitimou essas ações predatórias. Por Ugo Mattei

Não somos donos, mas parte da naturezaRespeitada ativista dos direitos dos mais pobres afirma que o Brasil está na contramão da história no tocanteà preservação ambiental. Confira os argumentos que alicerçam tal afirmação. Entrevista com Marianne Siller

Baleias: moratória da caçaA pressão dos conservacionistas forçou a Comissão Internacional da Baleia a manter a proibição da caçacomercial aos cetáceos. Uma vitória contra os países que ameaçam a sobrevivência dos gigantes dos mares.Por Thiago de Mello Bezerra

Agronegócio, agricultura familiar e políticaEspecialista analisa o dinâmico panorama rural brasileiro movimentado pelo “confronto e diálogo” entreo agronegócio e a agricultura familiar, e aponta que ao invés de antagônicos, os dois campos sãocomplementares. Por Raimundo Santos

Energia eólica: o exemplo da DinamarcaOs dinamarqueses exibem os resultados favoráveis de um desenvolvimento construído há cerca de 30 anossobre um mix de vontade política, simplificação administrativa e cooperação com suas populações locais. Por Bertrand d’Armagnac

Alemanha: as lições de um país verdeNa contramão dos países que ainda investem em energia suja – especialmente nuclear –, a previsão é que em2050 toda a eletricidade produzida no país venha de fontes renováveis, como solar, eólica ou biomassa. PorPriscila de Martini

Energias ‘verdes’: vítimas da crise em 2009A despeito da crise econômica, as energias renováveis continuam a ganhar terreno no mundo segundorelatório do Pnuma. Confira a inexorável escalada rumo à sustentabilidade energética do planeta.Por Bertrand d’Armagnac

Energias renováveis em evidênciaO clima, o relevo, a hidrografia e a extensão territorial possibilitam que quase 90% da oferta de energiaelétrica do Brasil sejam provenientes de fontes renováveis. A vontade política poderá tornar esse quadro umarealidade. Por Antonio Silvio Hendges

Modelo predatório: termelétricas, usinas nucleares e desmatamentoO atual crescimento econômico de Pernambuco opta pelo desmatamento e pelas fontes energéticas “sujas”. Uma visãodo século passado à contracorrente do desenvolvimento ambientalmente sustentável. Por Heitor Scalambrini Costa

Florestas urbanas: patrimônio biológico e culturalRecente mapeamento da cobertura remanescente de Mata Atlântica pela Fundação SOS Mata Atlânticae Inpe mostra que esta vegetação reduz-se a 7% de sua área original no território brasileiro.Por Rejan R. Guedes-Bruni e Rogério R. de Oliveira

Aquecimento global: mais ninguém duvidaO pesquisador e cientista pivô do escândalo Climategate acaba de voltar ao seu posto após ser inocentadode más práticas pelas comissões que o investigaram. Veja o que ele tem a dizer sobre o aquecimento global.Entrevista com Phil Jones

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DA

DE

SEGUNDO O “PANORAMA DA

BIODIVERSIDADE GLOBAL 3”,POLÍTICAS BEM DIRECIONADAS,

COM ENFOQUE NAS ÁREAS

CRÍTICAS, ESPÉCIES E SERVIÇOS

ECOSSISTÊMICOS PODEM

CONTRIBUIR PARA EVITAR

OS IMPACTOS MAIS NOCIVOS

ÀS PESSOAS E SOCIEDADES.

CONFIRA COMO ESSES

OBJETIVOS PODEM SER

IMPLEMENTADOS COM

A MÁXIMA URGÊNCIA.

Amelhor informação sobre os habi-tats terrestres diz respeito às flo-restas, que atualmente ocupam cer-

ca de 30 por cento da superfície terrestre doplaneta. Estima-se que as florestas contêmmais de metade dos animais terrestres e deespécies de plantas, a grande maioria delesnos trópicos, e são responsáveis por maisde dois terços da produção primária líquidaem terra – a conversão de energia solar emmaterial vegetal.

O desmatamento, principalmente a conversãode florestas em terras agrícolas, mostra sinaisde diminuição em diversos países tropicais(ver Quadro 1 e Figura 1), mas continua emum alarmante ritmo acelerado. Pouco menosde 130 mil quilômetros quadrados de florestaforam convertidos para outros usos ou perdi-dos por intermédio de causas naturais a cadaano, de 2000 à 2010, em comparação com cer-ca d 160.000 quilômetros quadrados por anona década de 1990. A perda líquida de flores-tas diminuiu substancialmente, passando decerca de 83.000 quilômetros quadrados porano, na década de 1990, para pouco mais de50.000 quilômetros quadrados por ano, entre2000-2010. Isso se deve principalmente aoplantio m grande escala de florestas nas regi-ões temperadas e à expansão natural das flo-restas. Já que florestas recém-plantadas ge-ralmente tem baixo valor de biodiversidade epodem conter uma única espécie de árvore,uma desaceleração da perda líquida florestal

não implica necessariamente uma diminuiçãona perda de biodiversidade florestal global.Entre 2000 e 2010, a área global de florestaprimária (isto é, substancialmente intacta) di-minuiu mais de 400.000 quilômetros quadra-dos, uma área maior do que o Zimbábue.

A América do Sul e a África continuaram a so-frera maior perda líquida de florestas em 2000-2010. A Oceania também relatou uma perda lí-quida de florestas, enquanto que a área esti-mada de florestas nas Américas do Norte eCentral (tratadas como uma única região) foiquase a mesma, tanto em 2010 como em 2000. Aárea de florestas na Europa continuou a se ex-pandir, embora em um ritmo mais lento do quena década de 1990. A Ásia, que teve uma perdalíquida na década de 1990, relatou um ganholíquido de florestas no período de 2000-2010,principalmente devido ao reflorestamento emlarga escala registrado pela China, e apesar demanter altas taxas de perda líquida de florestasem muitos países no sul e sudeste asiático.

As florestas boreais das altas latitudes doNorte, dominadas por coníferas, mantiveram-se praticamente estáveis em extensão, nosúltimos anos. Entretanto, há sinais, em algu-mas regiões, de que elas se tornaram degra-dadas. Além disso, tanto as florestas tempe-radas quanto as boreais tornaram-se maisvulneráveis ataques de pragas e doenças,em parte devido a uma elevação ocidentedos Estados Unidos, desde a década de 1990.

A situação atual dosECOSSISTEMAS TERRESTRES

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SAVANAS E CAMPOS, EMBORA MENOS DO-CUMENTADOS, TAMBÉM SOFRERAM PER-DAS SIGNIFICATIVAS.A área de outros habitats terrestres é bemmenos documentada. Estima-se que mais de95 por cento das pradarias norte-americanasforam perdidas. Terras agrícolas e pastagenssubstituíram quase metade do cerrado, o bi-oma da região central do Brasil, que possuiuma variedade excepcionalmente rica de es-pécies de plantas endêmicas. Entre 2002 e2008, estima-se que o cerrado tenha perdidomais de 14 mil km2 por ano, ou 0,7% de suaextensão original anualmente, bem acima dataxa atual de perda na Amazônia.

Os bosques Miombo da África do Sul, ou-tra região de savana com diversidade vege-tal significativa, também estão experimen-tando o desmatamento continuo. Estenden-do-se da Angola até a Tanzânia e cobrindouma área de 2,4 milhões de quilômetros qua-drados (o tamanho da Argélia), o Miombofornece lenha, material para construção ediversos suprimentos de alimentos silves-

QUADRO 1 - PAISAGENS TRADICIONAIS MANEJADAS E BIODIVERSIDADEPaisagens agrícolas mantidas por agricultores e pastores que usam práticas adaptadas localmente, não só mantêm relati-vamente alta a diversidade genética de culturas e pecuária, mas também podem manter a biodiversidade silvestre. Essestipos de paisagens são encontrados em todo o mundo e são mantidos por meio da aplicação de um vasto leque deconhecimentos tradicionais e práticas culturais que evoluíram paralelamente, criando paisagens com biodiversidade agríco-la globalmente significativa. Exemplos desses tipos de sistemas incluem:

tres e plantas medicinais para as comunida-des locais em toda a região. As florestasestão ameaçadas por desmatamentos paraa agricultura, extração de madeira para fazercarvão e queimadas descontroladas.

O ABANDONO DE PRÁTICAS AGRÍCOLAS

TRADICIONAIS PODE CAUSAR PERDA DE

PAISAGENS NATURAIS E DE BIODIVERSI-DADE ASSOCIADA.As técnicas tradicionais de gestão de ter-ras para a agricultura, algumas que datamde milhares de anos, têm se apresentadocomo uma função importante para manteros assentamentos humanos em harmoniacom os recursos naturais dos quais as pes-soas dependem. [Ver Quadro 1]. Em muitasregiões do mundo, esses sistemas estão seperdendo, em parte devido à intensificaçãoda produção, e em parte devido ao abando-no relacionado com a migração das zonasrurais para áreas urbanas. Em alguns ca-sos, essa tendência pode criar oportunida-des para a biodiversidade por meio dorestabelecimento de ecossistemas naturais

em terras agrícolas abandonadas. No en-tanto, as mudanças podem também envol-ver perdas importantes de biodiversidadecaracterísticas tanto de espécies domésti-cas quanto silvestres e dos serviços ambi-entais prestados por paisagens manejadas.

OS HABITATS TERRESTRES TORNARAM-SE

ALTAMENTE FRAGMENTADOS , AMEAÇAN-DO A VIABILIDADE DAS ESPÉCIES E SUA

CAPACIDADE DE ADAPTAÇÃO ÀS ALTERA-ÇÕES CLIMÁTICAS.Os ecossistemas em todo o planeta, inclu-indo alguns com níveis excepcionalmenteelevados de biodiversidade, tornaram-seextremamente fragmentados, ameaçando aviabilidade de muitas espécies e ecossiste-mas em longo prazo. As informações glo-bais referentes a esse processo são difíceisde serem obtidas, mas alguns ecossistemasbem estudados fornecem ilustrações do ta-manho da fragmentação e seus impactos.Por exemplo, os remanescentes de MataAtlântica da América do Sul, que estima-seconter até oito por cento de todas as espé-

A rizipiscicultura praticada na Chi-na tem sido utilizada pelo menos des-de a dinastia Han, há 2.000 anos.Nesse sistema, os peixes são mantidosem arrozais fornecendo fertilizantes,amolecendo os solos e comendo larvase ervas daninhas, enquanto o arroz for-nece sombra e alimento para os peixes.A alta qualidade dos peixes e do arrozproduzido a partir desse sistema bene-ficia diretamente os agricultores, pormeio de boa nutrição, de baixos custosde trabalho e da redução da necessi-dade de fertilizantes químicos, herbici-das e pesticidas.

Nos vales de Cuzco e Puno, noPeru, os povos Quíchua e Aimará em-pregam uma forma de terraceamentoque lhes permite cultivar safras varia-das, como milho e batata, bem comocriar animais de pasto nas encostas ín-gremes, em altitudes que variam de2.800 a 4.500 metros. Esse sistema su-porta até 177 variedades de batata, do-mesticadas ao longo de muitas gera-ções. Ele também ajuda a controlar aerosão do solo.

Paisagens Satoyama do Japão sãopequenos mosaicos compostos de váriostipos de ecossistemas, abrangendo flores-tas secundárias, lagoas de irrigação, plan-tações de arroz, pastos e pastagens, dosquais proprietários de terras colhem tra-dicionalmente vários recursos, como plan-tas, peixes, fungos, serapilheira e madei-ra, de maneira sustentável. As paisagensSatoyama evoluíram a partir da interaçãode longo prazo entre as pessoas e o meioambiente. Atividades de colheita, tais comoa limpeza periódica de florestas e a co-lheita de serapilheira, impedem que o sis-tema seja dominado por poucas espéciese permitem que exista uma maior diversi-dade de espécies no sistema.

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cies terrestres, são, em grande parte, com-postos de fragmentos de menos de um qui-lômetro quadrado de tamanho. Mais de 50por cento cai dentro dos 100 metros consi-derados como borda da floresta.

Quando os ecossistemas ficam fragmenta-dos, eles podem ser extremamente peque-nos para alguns animais estabelecerem umterritório de reprodução, ou forçam plantase animais a procriarem com parentes próxi-mos. A consanguinidade de espécies podeaumentar a vulnerabilidade a doenças, pelaredução da diversidade genética das popu-lações. Um estudo realizado na região cen-tral da Amazônia brasileira descobriu quefragmentos florestais de menos de um qui-lômetro quadrado perderam metade de suasespécies de aves em menos de quinze anos.Além disso, fragmentos isolados de habi-tat tornam as espécies vulneráveis às mu-danças climáticas, uma vez que limitam sua

As áreas de superfície da terra e do oce-ano designadas como áreas protegidastêm aumentado constantemente desde1970. Embora a extensão de áreas pro-tegidas terrestres seja ainda muito mai-or do que a de áreas marinhas protegi-das, estas últimas têm se expandido sig-nificativamente nos últimos anos, con-centradas em águas costeiras.

Somente as áreas protegidas com umano de estabelecimento reconhecido es-tão representadas neste gráfico. Mais de3,9 milhões de quilômetros quadradosde terra e 100.000 quilômetros quadra-dos de oceano são cobertos por áreasprotegidas, cujas datas de criação nãosão conhecidas. Isso eleva a coberturatotal de áreas protegidas para mais de21 milhões de quilômetros quadrados.

Fonte: PNUMA-WCMC

QUADRO 2 - ÁREAS PROTEGIDAS TERRESTRESDos governos que têm se reportado recentemente à CDB, 57% dizem que agora têm uma quantidade de áreas protegidas igualou superior a 10% de suas áreas terrestres.

Alguns países têm dado uma contribuição desproporcional para o crescimento da rede mundial de áreas protegidas: dos700.000 quilômetros quadrados designados como áreas protegidas desde 2003, quase três quartos se encontram no Brasil, emgrande parte como resultado do Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA). O ARPA envolve uma parceria entre autorida-des brasileiras federais e estaduais, o Fundo Mundial para a Natureza (WWF), o governo alemão e o Fundo Global para o MeioAmbiente (GEF). Tem como objetivo consolidar 500.000 quilômetros quadrados de áreas protegidas na Amazônia brasileira,num período de 10 anos, com um custo estimado de US$ 390 milhões.

Outros aumentos muito significativos ocorreram no Canadá, onde mais de 210.000 quilômetros quadrados foram adicionadosà rede de áreas protegidas desde 2002, e em Madagascar, onde o tamanho das áreas protegidas aumentou de 17.000 para47.000 quilômetros quadrados desde 2003.

capacidade de migrar para áreas com con-dições mais favoráveis.

UM QUARTO DOS SOLOS DO MUNDO

ESTÃO SE TORNANDO DEGRADADOS.A condição de muitos habitats terrestres estáse deteriorando. A Análise Global da Degra-dação e Melhoria dos Solos estimou quecerca de um quarto (24%) dos solos do pla-neta estava submetido à degradação, con-forme medido por uma diminuição da produ-tividade primária, durante o período 1980-2003. As áreas degradadas abrangiam cercade 30% de todas as florestas, 20% de áreascultivadas e 10% de pastos. Geograficamen-te, foram encontradas principalmente na Áfri-ca, ao sul do Equador, sudeste da Ásia e sulda China, centro-norte da Austrália, nas pas-tagens dos Pampas na América do Sul e empartes das florestas boreais da Sibéria e daAmérica do Norte. Em aproximadamente 16por cento dos solos foi observada melhoria

da produtividade, sendo a maior proporção(43%) em pastagens nativas.

As áreas onde uma tendência de degrada-ção foi observada coincidiram apenas comos 15% das terras identificadas como de-gradadas em 1991, indicando que novasáreas estão sendo afetadas e que algumasregiões de degradação histórica permane-cem com níveis inflexivelmente baixos deprodutividade. Cerca de 1,5 bilhão de pes-soas dependem diretamente dos serviçosecossistêmicos prestados por áreas queestão sofrendo degradação. O declínio dafixação de carbono na atmosfera, associa-da a essa degradação, estimado em quaseum bilhão de toneladas, de 1980 a 2003 (qua-se o equivalente de emissões anuais de di-óxido de carbono da União Europeia) e asemissões oriundas da perda de carbono dosolo provavelmente tenham sido infinita-mente maiores.

Milh

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FIG.1 - EXTENSÃO DE ÁREAS PROTEGIDAS FEDERAIS

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Apesar de mais de 12 por cento do solo ago-ra serem cobertos por áreas protegidas, quasea metade (44%) das ecorregiões terrestrestêm menos de 10 por cento de proteção, emuitas das áreas mais críticas para a biodi-versidade continuam desprotegidas. Dessasáreas protegidas, onde a eficácia do manejofoi avaliada, 13% foram consideradas clara-mente insuficientes, enquanto que mais deum quinto demonstraram um manejo eficien-te e o restante foi classificado como básico.

Uma proporção crescente da superfície ter-restre global tem sido designada como áreasprotegidas [Ver Quadro 2 e Figura 1]. No to-tal, cerca de 12,2% gozam de proteção jurídi-

Aproximadamente 600 lo-cais foram identificadospela Aliança para ExtinçãoZero (AZE) como detento-res da população rema-nescente de quase 800 es-pécies de mamíferos, aves,répteis, anfíbios e conífe-ras. A área média e o nú-mero de áreas de conser-vação completamente in-cluídas em áreas protegi-das têm crescido constan-temente desde a décadade 1970. No entanto, amaior parte da área cober-ta pelas áreas de conser-vação permanecem foradas áreas protegidas.

Fonte: Aliança paraExtinção Zero

A Aliança para Extinção Zero (AZE) identificou 595locais no mundo inteiro, cuja proteção é fundamentalpara a sobrevivência de centenas de espécies. Oslocais contêm a população global completa de 794espécies Criticamente em Perigo ou Em Perigo, demamíferos, aves,determinados répteis, anfíbios e co-níferas. É provável que essas espécies se extinguamnestes locais a menos que medidas diretas e urgen-tes sejam tomadas. Os locais estão concentradosem florestas tropicais, ilhas e ecossistemas monta-nhosos. A maioria está rodeada por um intensodesenvolvimento humano, e todos são pequenos,tornando-os vulneráveis às atividades humanas.

Apenas cerca de um terço (36%) estão total-mente contidos em áreas protegidas oficiali-zadas e, em média, 44% da área total desteslocais estavam protegidas em 2009. Mais dametade dos locais AZE (53%) não têm qual-quer status legal, o que representa uma la-cuna importante na proteção de locais críti-cos para a biodiversidade. No entanto, o atualnível de proteção é significativamente melhordo que em 1992, quando apenas um terçoda área dos locais AZE eram protegidos, epouco mais de um quarto dos locais (27%)apresentavam total proteção legal.

ca, compostos de mais de 120.000 áreas pro-tegidas. No entanto, o objetivo de protegerpelo menos 10% de cada uma das regiõesecológicas do mundo – voltadas para a con-servação de uma amostra representativa dabiodiversidade – está muito longe de sercumprido. Das 825 ecorregiões terrestres,áreas que contêm uma grande proporção deespécies comuns e tipos de habitats distin-tos, apenas 56% têm 10% ou mais de suaárea protegida. (ver Figura 2).

A atual rede de áreas protegidas tambémexclui muitos locais de especial importân-cia para a biodiversidade. Por exemplo, aproteção jurídica total é dada a apenas 26%

das Áreas Importantes para as Aves (IBA)– locais com populações significativas deespécies que estão ameaçadas, que apre-sentam alcances geográficos restritos, es-tão confinadas a um único bioma, ou reú-nem um grande número de aves para ali-mentação procriação. Das quase 11.000IBAs em 218 países, cerca de 39% da suaárea total, em média, são protegidas. Damesma forma, apenas 35% dos locais quecontêm a população inteira de uma ou maisespécies altamente ameaçadas são total-mente salvaguardados por áreas protegi-das. No entanto, a proporção de ambas ascategorias de áreas sob proteção legal cres-ceu significativamente nos últimos anos.

FIG.2 – PROTEÇÃO DE LOCAIS CRÍTICOS DE BIODIVERSIDADE

QUADRO 3 – PROTEGENDO A ARCA DE NOÉ DA BIODIVERSIDADE

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Nota - A Antártica é um caso especial, com um tratadointernacional regulamentando estritamente asatividades humanas. Sendo assim, a coloração claraapresentada neste mapa não deve ser interpretadacomo um nível inferior da real proteção.

56% das 825 ecorregiões terres-tres (regiões com áreas que con-têm uma grande proporção deespécies comuns e tipos de ha-bitats distintos) têm 10% ou maisde sua área incluídos em áreasprotegidas, o limite definidocomo uma submeta para alcan-çar a meta de biodiversidade para2010. A coloração mais clara nomapa representa ecorregiõescom níveis relativamente baixosde proteção.

Fonte: PNUMA-WCMC

❚ No distrito de Kodagu do estado de Karnataka, Índia, bosques sagradosmantêm significantes populações de árvores ameaçadas, como a Actinodaphnelawsonii e a Hopea ponga. Esses bosques são também o lar de microfungos raros.

❚ Na Tanzânia central há uma maior diversidade de plantas lenhosasnos bosques sagrados do que em florestas manejadas.

❚ Em Khawa Karpo, no leste do Himalaia, árvores encontradas em locais sagra-dos têm um tamanho total maior do que aquelas encontradas fora destes locais.

❚ Os recifes de coral perto de Kakarotan e Aldeia Muluk, na Indonésia, sãoperiodicamente fechados para a pesca pelos anciãos ou chefes das aldeias. Ofechamento dos recifes garante que os recursos alimentares estejam disponíveisdurante os períodos de significado social. O comprimento médio e a biomassade peixes capturados nas duas áreas foram considerados maiores do que osdos peixes das áreas de controle.

❚ A quantidade de cascas que se pode coletar da Rytigynia kigeziensis, árvoreendêmica do Vale Albertine, no oeste de Uganda e essencial para a medicinalocal, está sujeita a rituais estritos, requisitos específicos para a coleta e aobrigação de se obter licenças está enraizada no nível local. Isto mantém aextração de cascas dentro de limites sustentáveis.

As diversidades cultural e biológica estão intimamente interligadas. A biodiver-sidade ocupa um lugar central em muitas religiões e culturas, enquanto ascosmovisões influenciam a biodiversidade por meio de tabus e normas cultu-rais que incidem sob a forma como os recursos são utilizados e manejados.Como resultado, para muitas pessoas a biodiversidade e a cultura não podemser consideradas independentemente uma da outra. Isso é especialmente ver-dadeiro para os mais de 400 milhões de membros das comunidades indígenase locais para os quais a biodiversidade da Terra não é apenas uma fonte debem-estar, mas também o fundamento da sua identidade cultural e espiritual.A estreita associação entre a biodiversidade e a cultura é particularmente evi-dente em locais sagrados, aquelas áreas que são consideradas importantesdevido ao seu significado religioso ou espiritual. Por meio da aplicação deconhecimentos e costumes tradicionais, uma biodiversidade única e importantetem sido frequentemente protegida e mantida em muitas dessas áreas ao lon-go do tempo. Por exemplo:

FIG. 3 - COBERTURA DE ÁREAS PROTEGIDAS TERRESTRES POR ECORREGIÃO

QUADRO 4 – DIVERSIDADE CULTURAL E BIOLÓGICA

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É óbvio que os benefícios das áreas protegi-das para a biodiversidade dependem funda-mentalmente do modo como são geridos. Umarecente avaliação da eficácia da gestão cons-tatou que, das 3.080 áreas protegidas pes-quisadas apenas 22% foram consideradas”sólidas”, 13% “claramente insuficientes”, e65% presentearam uma gestão “básica”. Naavaliação foram identificadas como fraque-zas comuns a falta de pessoal e recursos,envolvimento inadequado da comunidade eprogramas para pesquisa, monitoramento eavaliação. Aspectos relativos ao estabeleci-mento básico das reservas e manutenção dosvalores das áreas protegidas foram conside-rados positivamente fortes.

Comunidades indígenas e locais desempenhamum papel importante na conservação de áreasde alta biodiversidade e valor cultural.

Além de áreas protegidas oficializadas, hámilhares de Áreas Comunitárias de Conser-vação (ACCs) em todo o mundo, incluindoflorestas sagradas, zonas úmidas e paisagens,lagos de vilas, áreas florestais de captação deágua, extensões hidrográficas e costeiras eáreas marinhas (ver Quadro 4). Esses são ecos-sistemas naturais e/ou modificados, de valorsignificativo em termos de sua biodiversida-de, importância cultural e serviços ecológi-cos. Eles são voluntariamente conservadospor comunidades indígenas e locais, por in-termédio de leis habituais ou outros meioseficazes, e geralmente não são incluídos nasestatísticas oficiais de áreas protegidas.

Em todo o mundo, quatro a oito milhões dequilômetros quadrados (a estimativa mais altaé de uma área maior do que a Austrália) per-tencem ou são administrados por comunida-

des. Nos 18 países em desenvolvimento comas maiores coberturas florestais, mais de 22%das florestas pertencem ou estão reservadospara as comunidades. Em alguns desses paí-ses (por exemplo, México e Papua Nova Guiné)as florestas comunitárias representam 80% dototal. Isto não significa que todas as áreassob controle das comunidades sejam efetiva-mente conservadas, embora uma parte subs-tancial o seja. De fato, alguns estudos mos-tram que os níveis de proteção são realmentemais elevados no âmbito das gestões de co-munidades ou indígenas do que somente nagestão do governo. ■

QUADRO 5 – O QUE ESTÁ EM JOGO?

Alguns valores estimados da biodiversidade terrestre

Panorama da Biodiversidade Global 3 – Textoproduzido pela Convenção sobre DiversidadeBiológica (CDB), em maio de 2010. A versãoem português está disponível em http://gbo3.cbd.int. e www.mma.gov.br/portalbio.© Secretariado da CDB.

❚ A indústria do turismo da África meridional, que dependeem grande medida do avistamento da vida silvestre, foi esti-mada em US$ 3,6 bilhões em 2000.

❚ Calcula-se que o rendimento real dos pobres na Índia au-menta de US$ 60 a US$ 95, quando o valor dos serviçosecossistêmicos, como a disponibilidade de água, a fertilida-de dos solos e alimentos silvestres é levado em conta – e quecustaria US$ 120 per capita para substituir a subsistênciaperdida se esses serviços fossem negados.

❚ Os insetos que transportam o pólen entre as culturas, especial-mente frutas e legumes, têm seu valor estimado em mais de US$200 bilhões por ano para a economia global de alimentos.

❚ Os serviços de captação de água para a região de Otago, naNova Zelândia (ilustrados abaixo) fornecidos pelos habitats decampos endêmicos do gênero Chionochloa (touceiras de gra-míneas) nos 22.000 hectares do Parque de Conservação TePapanui, estão avaliados em mais de US$95 milhões, basea-dos no custo de fornecimento de água por outros meios.

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A relação dos humanos com omeio ambiente sempre foi mar-cada por uma concepção me-canicista da vida e pela apro-priação dos recursos naturais,ignorando a necessidade de ga-rantir a sua reprodução. E oDreito sempre legitimou essasações predatórias por meio doinstituto da propriedade priva-da, como explica esta análiseda relação homem-Terra.

por Ugo Mattei

Os grandes predadoressejam eles animados ou inanimados. Comoo proprietário, hoje pode livremente des-truir um bem próprio (ou matar um coelhopróprio), assim o “dominus” tinha pode-res ilimitados sobre os seus bens, incluin-do a propriedade fundiária, e direito de vidae de morte sobre escravos, filhos e mulher.A meu ver, Gaio não é visto como um per-sonagem histórico. É, ao invés, o modeloantropológico pressuposto pela ordem ju-rídica individualista ocidental, assim comoele chegou, por meio de uma longa eaventurosa história, até a nossa moderni-dade. Gaio é aqui o indivíduo ocidentaldotado de direitos de propriedade priva-da, êxito hodierno do processo transfor-mativo que chamamos de progresso.

UM MITO MILENAR

Hoje, Gaio dirige um automóvel, tem umacasa própria, mora na cidade, vive sozinhoou em uma família nuclear, se comunica como celular, vê TV, tem direito de voto e podecomprar bens de consumo para satisfazercada um dos seus desejos. Gaio é dotadode direitos que formalizam o seu poder deter. Hoje, a propriedade privada de Gaio nãose estende aos escravos, e a sua é formal-mente igual a ele.

A protagonista feminina é Gaia, a terra viva,um lugar que, há alguns milhões de anos,hospeda o humano. Há muito mais tempo Gaiaé lugar da vida, um agregado complexo deecossistemas, de nexos, de comunidades, de

da Mãe Terra

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Oprotagonista masculino dessa his-tória é Gaio, misterioso autor jurí-dico romano, que viveu há mais de

2.000 anos e é autor de um livrinho de “Ins-tituições”, cuja estrutura fundamental cons-titui a ossatura da concepção ocidental dodireito privado. Um legado da antiguidaderomana que ainda hoje fundamenta, em ní-vel global, a concepção dominante da pró-pria “juricidade”. Gaio representa em toda asua grandeza a concepção romana do “do-mínio” como espaço de poder individualformalizado e ilimitado sobre as coisas.

O domínio romano não é aberto a todos. Élimitado ao “pater familias”. O pai-patrãotem domínio absoluto sobre os seus bens,

Lei de Gaia

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redes, de relações, de coope-ração e de conflito, de hierar-quia, de transformações len-tas e de revoluções imprevis-tas. Os mitos sobre Gaia sãocomplexos e fascinantes evariam através das culturas.

Complexa e fascinante é tam-bém a história da relação deGaio com Gaia. Hoje, o jovemGaio estuda, a partir da esco-la primária, a evolução davida sobre a terra. Darwin do-mina (por enquanto) a suapercepção, e dali ele retira osentido do progresso e docrescimento. Os antepassa-dos de Gaio nasceram naÁfrica. Gaia lhes ofereceu ali-mento sob forma de frutos ede caças. Depois, Gaio apren-deu a domesticar os animais,para tirar deles alimento evestuário. Sucessivamente,cerca de 2.000 anos atrás,Gaio compreendeu que Gaiapodia ser induzida a produzirmais alimento do que espon-taneamente ofereceria. Intuí-do o nexo causal entre seme-adura e colheita, Gaio se tor-nou sedentário. Os antepassados de Gaiologo inventaram um direito à posse exclusi-va, conhecido como propriedade.

A propriedade servia para remunerar os es-forços na caça, na criação e na semeadura.Era preciso definir, por isso, quem estavadentro e quem estava fora. Era preciso evitarque a colheita fosse roubada por quem nãotinha se esforçado para arar o campo. Umaampla literatura apologética da propriedadeprivada se baseia ainda hoje sobre esse seunexo moral com o trabalho agrícola.

Depois, menos de 300 anos atrás, Gaio in-ventou as máquinas e fez a revolução in-dustrial: podia até produzir bens de massaextraindo a energia para fazer isso das vís-ceras de Gaia. Havia passado cerca de 10.000anos desde a revolução agrícola. Quando arevolução industrial ocorreu, os escritos doGaio histórico haviam sido redescobertoshá cerca de 700 anos (depois de terem seperdido nos séculos escuros) em uma bibli-oteca perto de Pisa, e a propriedade privadaestava plenamente formalizada, e foi a or-dem institucional que a tornou possível.

Gaio se tornou patrão das minas, foi indus-triário e capitalista. Hoje, Gaio fez outra re-volução: usa o computador, e a sua maiorriqueza prescinde de todo contato com umbem material. O mais rico e admirado é ofinancista, não mais o industriário taylorista.

Entre o aparecimento do homem sobre Gaiae a revolução agrícola, a distância é de mi-lhões de anos. Entre a revolução agrária e aindustrial, são milhares. Entre a revoluçãoindustrial e a informática de hoje, são pou-cas centenas de anos. Essa impressionanteaceleração histórica exalta Gaio e lhe fez vi-ver um senso de onipotência. Enquanto di-rige sua pick-up supertecnológica (e talvezpromovida como ecológica), ele se comprazque seus filhos de cinco anos sabem seadaptar melhor do que os de 14 à progres-são geométrica da tecnologia.

Mas qual relação liga Gaio a Gaia? Em mui-tas culturas, Gaia é vista como mãe. “Pachamama”, a mãe terra. Mas Gaio não reconhe-ce essa relação. Para ele, Gaia é um objeto,ou melhor, o objeto por antonomásia do seu“dominium”. Antes da estruturação jurídi-

ca da relação de domínio (ochamado domínio quiritário)ocorrida na última parte doprimeiro milênio antes deCristo, Gaia já é uma “con-denação” para Gaio. A Bíbliaconta que ele foi expulso porcausa do pecado da suamulher. Um Deus masculinoexpulsa Gaio do Éden e ojoga entre os braços de umanova fêmea, Gaia justamen-te, com a qual ele será con-denado a conviver. Gaia setorna mulher de Gaio? Comose desenvolveu o casamen-to? Por muito tempo, as coi-sas funcionaram bem.

A OBSESSÃO DA POSSE

Gaio observa Gaia, a corteja,procura compreendê-la, tal-vez se apaixona por ela. Sabeque é intimamente ligado aela, sabe que a sua própriavida depende da boa relaçãoque consegue ter com a suaesposa. Adapta a ela os seuscomportamentos, a acaricia edela extrai prazer. Busca res-peitar suas amizades, os es-paços vitais dos quais Gaia

tem necessidade. Gaia é comunitária por na-tureza, é feita de nexos e é na comunidadeecológica que ela se alegra e prospera, belís-sima. Gaia, durante muito tempo, comparti-lha seus gostos. Ama a comunidade. O seuhorizonte é constituído pelo grupo, pela re-lação, pela cooperação indispensável paraconviver junto com Gaia. Mas Gaio desen-volve logo a obsessão pela parte de dentro epela parte de fora. Inventa as fronteiras. In-venta a guerra. Frequentemente, ignora Gaiapara se engajar em novos conflitos, distantedo seu vilarejo onde abandona suas mulhe-res dedicadas ao cuidado do grupo, à buscade água e ao cultivo de Gaia.

Em bem pouco tempo, Gaio começa a enjo-ar do fato de estar junto com Gaia. Querpossuir suas riquezas, quer ter. Gaio desco-bre que, para ter, é preciso excluir. Exclui asmulheres, semelhantes a Gaia na índole, asreduz a objeto e reivindica sua proprieda-de. Exclui os diferentes, os escravos, os des-viantes. Também sobre eles exerce o domí-nio. Gaio organiza o trabalho dos seus sub-metidos, e com esse trabalho transformaGaia. Quantifica-a e deseja sempre mais dela,

Para o homo erectus, Gaia era a Mãe-Terra. Galileu excluiu o “nãomensurável” do mundo da relevância científica. Newton distancia ainda

mais Gaio de Gaia. E com Descartes, Gaio se emancipa da matéria.

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Thzami Rinpoche

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lançando-se à conquistaguerreira de novos espa-ços e colônias.

O seu compromisso se ex-pande e, com isso, as suasriquezas e o seu delírio deonipotência. Nos novoslugares, encontra novascomunidades. Comunida-des que respeitam Gaiacomo uma mãe, como umaamiga ou como uma espo-sa que vivem com ela emequilíbrio harmonioso; querespeitam e admiram suasqualidades. Gaio não su-porta essas amizades deGaia e as destrói, saque-ando suas riquezas. Asqualidades não se medem,e o que mais interessa aGaio é medir, quantificar ovalor das suas riquezaspara criar organizaçõessempre mais ricas e pode-rosas, capazes de um do-mínio absoluto que agoraele chama de “soberania”,

Gaia ama a beleza e a harmonia,e sua essência está no ecossistema:um conjunto de relações mutualistasem que o todo não é uma simples

soma das partes.

e que ele modela sobre a propriedade absolu-ta e individual de um território.

A CIÊNCIA DA QUALIDADE

Gaio ama o prazer, mas o considera um luxo,um lugar da estética. O prazer gerado pelaqualidade, um estado do ser, não o ajuda aacumular e a ter sempre e ainda mais. Porisso, Gaio diferencia entre arte e ciência. Aprimeira se fundamenta na qualidade, narelação e na comunidade espiritual entreartista, obra e fruidor. A segunda, apenasna quantidade. A ciência de Leonardo daVinci, uma ciência da qualidade, é assimesquecida: o protocientista será Galileu,aquele que exclui a qualidade e o “não men-surável” (estética, odores, sabores, harmo-nias) do mundo da relevância científica.

Gaio inventa a manufatura e a produção emsérie. Inventa máquinas prodigiosas fun-dadas em leis absolutas e imutáveis queaprende a descobrir e medir com precisão.Gaia lhe oferece a energia para fazer isso,das suas vísceras sai antes o carvão e de-pois o petróleo. Gaio se torna sempre maisrico e cobre de honras quem lhe permitiutornar-se rico. Newton, na Londres do seutempo, tinha status de superstar. Gaia amaa beleza e a harmonia. A sua essência está

no ecossistema, um conjunto de relaçõesmutualistas em que o todo não é uma sim-ples soma das partes. Gaio coloca a si mes-mo no centro. Promove a sua visão ego-cêntrica. Inventa o humanismo. Descobreque Gaia não é mais o centro do universo.Reage a isso colocando a si mesmo ali.

Com Descartes, o eu pensante, Gaio seemancipa da matéria, da qual recusa, aomesmo tempo, a essência animada. Gaio seemancipa até do seu corpo, do seu ser pes-soa. Agora, conta apenas por aquilo quetem. É sujeito abstrato, “dominus borghe-se”, dotado de poderes ilimitados sobreGaia, da qual rejeita a identidade viva, redu-zindo-a a uma máquina. Para ele, Gaia é go-vernada por leis mecânicas, semelhantesàquelas sob tutela da sua propriedade pri-vada, da qual a força da soberania exige orespeito sob pena de suplícios e galeras.

Gaia deve se revelar inteiramente aos seusolhos, deve lhe confessar todos os segre-dos de si mesma, justamente aqueles quepodem torná-lo ainda mais rico e poderoso.Gaia é agora prisioneira e, como os prisionei-ros, deve ser torturada para lhe extrair a ver-dade: como e onde posso encontrar novasriquezas, novas consciências, novo poder?

Gaio assume as vestes deFrancis Bacon, onipotentee cruel chanceler de sua ma-jestade, que foi há muitotempo um grande jurista egrande cientista. É Baconque teoriza sobre a inquisi-ção na Inglaterra da MagnaCarta. É Bacon que ensinao método científico para in-terrogar Gaia impiedosa-mente com o fim último detransformá-la e desenvolvê-la. Gaio, ao mesmo tempo,estende a sua imagem àssuas mulheres: se são ca-pazes de ter, terão direito àparidade formal.

Mas Gaia é esposa explo-rada, dominada e violen-tada com o direito e coma ciência. Permaneceráinerte? Alguém se levan-tará em sua defesa?

A GUERRA DAS ROSAS

Para ver uma reflexão so-bre como o direito codifi-

cou as relações com a natureza pode-se leras teses de Fritjof Capra contidas em: “Oponto de mutação” (Ed. Cultrix) e “La sci-enza della vita” (Ed. Rizzoli). Sobre as rela-ções entre ciência e direito: “Legal Alchemy.The Uses and Misuses of Science in theLaw”, de D. Faigman.

A história da relação entre Gaio e Gaia é umaverdadeira Guerra das Rosas. Vejam-se a res-peito: “A ciência de Leonardo da Vinci”(Ed. Cultrix), de Fritjof Capra; “Dopo il Levi-atano. Individuo e comunità”, de GiacomoMarramao (Ed. Bollati Boringhieri); “Law andthe Rise of Capitalism” (Ed. Monthly Re-view Press), de Michael E. Tigar. Enfim, deveser assinalada a publicação do panfleto dojornalista francês Hervé Kempf, “Per salvareil pianeta dobbiamo farla finita con il capi-talismo” (Ed. Garzanti). ■

Ugo Mattei – Da cátedra Alfred e Hanna Frommde Direito Internacional e Comparativo da Uni-versidade da Califórnia e professor de Direito doHastings College of the Law, também na Califór-nia, e da Universidade de Turim, na Itália. O arti-go foi publicado no jornal Il Manifesto (13/3/2010).A tradução de Moisés Sbardelotto para IHU On-line, publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos– IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos– Unisinos, em São Leopoldo, RS (23/3/2010).

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mas parte da natureza.”entrevista com Marianne Spiller

IHU ON-LINE – QUANDO E POR QUE A SENHORA VEIO PARA O BRASIL?Marianne Spiller – Desde minha infância, na Suíça, me preocupeicom as populações pobres. Em 1972, decidi deixar meu país paraconhecer melhor essa situação no mundo. Eu tinha professores muitocompetentes, como o religioso francês Abbé Pièrre e Dom HelderCâmara, arcebispo brasileiro, que divulgou no mundo inteiro que “apobreza é um escândalo”. Estes dois homens me indicaram o Brasil.

IHU – SEU TRABALHO FOI INICIALMENTE COM CRIANÇAS E JOVENS EN-VOLVIDOS COM DROGAS. FALE-NOS DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE

AMPARO À INFÂNCIA?M.S. – A associação foi fundada em 1979 por um grupo de brasilei-ros e suíços, que desejavam contribuir para a redução da pobreza.

Ativista dos direitos dos mais pobres, fundadora da Associa-ção Brasileira de Amparo à Infância, no Paraná, e engajadana cruzada da “água como direito humano, não commodity”,Marianne Spiller afirma que, no tocante à preservação ambi-ental, o Brasil está na contramão da história. Confira nestaentrevista os argumentos que alicerçam tal afirmação .

Com fé e coragem, começamos no ano de 1981, na área rural no sulde Curitiba, com uma creche para crianças de famílias pobres.

IHU – A SENHORA ADOTOU A “QUESTÃO DA ÁGUA”. POR QUÊ?M.S. – Descobri que não se pode apoiar a libertação dos pobressem se preocupar com a situação dos recursos naturais. Os po-bres são os primeiros que sofrem de maneira intensa as consequ-ências da destruição e da privatização dos recursos naturais pelasgrandes empresas transnacionais. Minha preocupação inicial foi aatuação da empresa suíça Nestlé, e adotei a questão ao me tornaruma ativista contra a privatização da água e o agronegócio. Éeticamente condenável que a água – um direito para todos – sejatransformada em negócio para saciar a ganância de poucos.

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Marianne Spiller – Ativista por Direitos Humanos e Meio ambiente.Entrevista transcrita do IHU On-line [IHU On-line é publicado peloInstituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dosSinos – Unisinos, em São Leopoldo-RS (3/8/2010).

IHU – QUAL A SITUAÇÃO ATUAL DO POVO QUE VIVE DO SÃO FRANCISCO?M.S. – Viajei várias vezes à região e vi como o rio está morrendo. Atransposição, ou seja, retirada de água do rio, é um problema gravepara a população ribeirinha, para as comunidades indígenas e paraa natureza. A construção de grandes canais traz destruição aosbiomas da catinga, do cerrado e às comunidades indígenas.

IHU – A ONU REAFIRMOU QUE A ÁGUA UM DIREITO DO SER HUMANO...M.S. – Em março de 2009, participei do 5º Fórum Mundial dasÁguas, em Istambul, Turquia. O evento foi organizado pelo Con-selho Mundial da Água, criado pelas grandes transnacionais queoperam com o hidronegócio, que rende muito dinheiro. Vi como asdelegações sul-americanas, coordenadas por Bolívia e Uruguai,tentavam pressionar o fórum para que o acesso à água fosse con-siderado um direito, pleito rechaçado..

A declaração final afirmou ser o acesso à água uma necessidadebásica, mas não um direito humano. Houve uma declaração alter-nativa, assinada por Bolívia Uruguai e Cuba. entre outros países.Entre março de 2009 e agosto de 2010, data da declaração da ONU,foi dado um grande passo: uma vitória mobilizada por ONGs emovimentos da sociedade civil de vários países. E quem mais lu-tou pela água como direito humano foi o país mais pobre da Amé-rica Latina – a Bolívia. São os pobres que têm a força da verdade eliberam a natureza, enquanto as transnacionais destroem a nature-za e trabalham com a mentira.

IHU – COMO AVALIA A CONFERÊNCIA MUNDIAL DOS POVOS SOBRE

AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS E PELOS DIREITOS DA “MADRE TIERRA”?M.S. – Foi simplesmente fantástico. Eram esperadas entre cinco edez mil pessoas, mas compareceram 35 mil. No dia 22 de abril, Diada Madre Terra, parecia que Cochabamba, Bolívia, era o centro domundo tal o entusiasmo. Em todos os lugares viam-se cartazescom a frase “A Terra não pertence ao homem. O homem pertenceà Terra.” Um claro paradigma de origem indígena, o conceito deque o homem não é dono da natureza, mas parte dela. Penso que oantropocentrismo é o mal na raiz deste capitalismo destruidor, noqual o homem se sente no direito de destruir a natureza.

IHU – PARA A SENHORA A CONFERÊNCIA PROPICIOU A DESCOBERTA

DE UMA “CULTURA” QUE DESCONHECÍAMOS. QUE CULTURA É ESSA?M.S. – Os povos originários da Bolívia e do Equador têm um con-ceito muito diferente da Pátria Mãe; eles têm uma relação de amorà Mãe Terra. O discurso mais radical foi de um chanceler ao afirmarque “no capitalismo o mais importante é o dinheiro, no socialis-mo é o homem e para os povos indígenas são as montanhas, asflorestas, os rios. O homem vem depois”.

Isso é muito interessante e traz uma visão totalmente diferente. Ofuturo tem de pender para esse lado. Evo Morales disse que “noséculo passado lutamos muito pelos direitos do homem, dos negros,dos homossexuais, das mulheres, das crianças, e de todos os povosmarginalizados. Este século, entretanto, será da Mãe Terra. Se nãoaumentarmos o respeito à natureza não haverá um futuro bom”..

O acesso à água é uma necessidade básica e um direito humano.

IHU – A IDEIA DO “VIVER BEM” PODERIA SER IMPLEMENTADA NA

AMÉRICA LATINA?M.S. – Com certeza, em todo o mundo. Viver bem não quer dizerviver melhor. A mola mestra deste capitalismo destruidor é a con-corrência. Você precisa ser melhor que o outro. O viver bem édiferente, é comunitário, é uma construção coletiva da realidade.Há também valores, como os que estão na nova Constituição daBolívia, como “não mentir”. É algo tão simples, mas de suma im-portância, pois muita coisa em nossa sociedade se baseia na men-tira. Outro valor da Constituição boliviana é “não ser preguiço-so”. O mais importante é não cair na ganância de ter mais e mais,mas sim de ser feliz com uma vida simples e com o suficiente. Setodos quiserem tudo, precisaremos ter vários planetas.

IHU – COMO VÊ A SITUAÇÃO DOS RIOS NO BRASIL A PARTIR DAS

PROPOSTAS DOS CANDIDATOS À PRESIDÊNCIA?M.S. – O Brasil está na direção de uma ação destruidora, fato evidentequando observamos Belo Monte e a epidemia de hidrelétricas quecomeçaram a ser pensadas ainda na ditadura. Tudo isso é uma violênciapara os rios e cria muitos problemas transfronteiriços. A hidrelétrica doRio Madeira, por exemplo, cria problemas para a Bolívia, pois os peixesnão conseguem fazer a piracema. Um candidato pensa um pouco maisno lado ecológico do que o outro, mas a grande direção não é favorávelà preservação da natureza. O Brasil está na contramão da história.

IHU – TAMBÉM NA CONTRAMÃO EM RELAÇÃO À POBREZA?M.S. – Durante os últimos anos houve grandes mudanças na relaçãodo Estado com a pobreza, que pela primeira vez figurou nas preocupa-ções governamentais. Ninguém pode tirar esse mérito da gestão dopresidente Lula. Esses programas do Governo Federal são um grandeavanço. Só o fato de ter registrado a existência de quase todas asfamílias pobres do Brasil já é uma grande evolução. Mas há necessi-dade de mudanças mais profundas. Precisamos urgentemente da re-forma agrária e da redução das propriedades agrícolas. Mas a preocu-pação social ainda é maior que a ambiental.

IHU – A SENHORA INTEGRA A CAMPANHA INTERNACIONAL PARA CRI-AÇÃO DE UMA CORTE PENAL INTERNACIONAL...M.S. – Sou amiga de Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel e presi-dente de uma Academia de Ciência, em Veneza. Essa academiaesforça-se para levar adiante a campanha pela criação de uma cor-te internacional por penas ao meio ambiente. Há muitos crimescontra a natureza que lesam a humanidade e fazem sofrer milhõesde pessoas, mas não existe um tribunal especializado. É uma inici-ativa muito importante. Há um grupo de juízes na Inglaterra com omesmo objetivo e o presidente Evo Morales capitaneia pela cria-ção de uma justiça climática internacional. Mas não será fácil, poisesse projeto tem de passar pela ONU e por mudanças no estatutode Roma. Mas, a semente está lançada. ■

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Baleias: moratória da caçaEm sua última reunião, em junho último, a pressão de cidadãos eentidades conservacionistas de todo o mundo forçou a ComissãoInternacional da Baleia a manter a proibição da caça comercialaos cetáceos. Uma vitória contra os países que teimam em colo-car os gigantes dos mares na lista de extinção das espécies.

Após cinco dias de muitas negociações entre os 88 países membros,dentre eles o Brasil, a 62a Reunião

Anual da Comissão Internacional da Baleia(CIB), realizada na cidade de Agadir, emMarrocos, as baleias foram mais uma vezsalvas da extinção programada. A CIB ba-teu o martelo pela permanência da morató-ria contra a caça comercial de baleias, emvigor desde 1986, e ainda a redução da caçade dez baleias fins. Além disso, foi determi-nada uma pausa com um ano de reflexãopara que se possa tratar novamente o futu-ro da Comissão. A reunião teve como pon-to positivo a divisão de grupos para dis-cussão de seus pontos de vista, sendo essa

por Thiago de Mello Bezerra

a primeira vez em que os países participan-tes tiveram a oportunidade de estabelece-rem conversas bilaterais em prol de um en-tendimento que ajudará nas futuras discus-sões para um acordo e uma CIB eficientes.

A delegação brasileira – composta pelo di-plomata do Ministério das Relações Exteri-ores (MRE), ministro Fábio Pitaluga; pelopresidente do Instituto Chico Mendes deConservação da Biodiversidade (ICMBio),Rômulo Mello; pela gerente de Biodiversi-dade da Comissão Internacional da BaleiaA CIB foi criada em 1946 para regulamentar acaça das baleias via definição das espécies,locais de caça de cada país e número de aba-

tes. Ela é integrada por dois blocos: o dos paí-ses conservacionistas – do qual o Brasil fazparte – e o dos países pró-caça. Para que qual-quer proposta da CIB seja aprovada ou ocorraqualquer alteração na Convenção é necessá-rio o mínimo de três quartos de votos.

A Comissão formou um grupo de trabalhopara discutir seu próprio futuro e elaborouum documento apresentado ao públicocomo proposta de consenso do presidentee vice-presidente da instituição no último22 de abril. O governo brasileiro, através doMRE, MMA e ICMBio, analisou a propos-ta, e alinhavou os pontos positivos e nega-tivos, como segue:

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Cidadania&MeioAmbiente 17Cidadania&MeioAmbiente 17

Thiago de Mello Bezerra – Da Ascom/ICMBio. Artigo publicado pelo www.ecodebate.com.br (30/6/2010)

Positivos:❚ Número máximo de baleias a serem captu-radas num período de 10 anos;❚ Monitoramento da caça através de ob-servadores de bordo;❚ Coleta de material biológico e formação deum banco genético dos animais capturadoscom possibilidade de verificação das infor-mações fornecidas pelos países baleeiros;❚ Monitoramento por satélite em tempo realdas embarcações de caça;❚ Inclusão das ameaças atuais às baleias noescopo da CIB (mudanças climáticas, polui-ção marinha, bycatch, emalhe, entre outros);❚ Criação do Santuário de Baleias noAtlântico Sul;❚ Reconhecimento do whalewatching comoalternativa de uso não-letal das baleias; e❚ Inclusão dos pequenos cetáceos na CIB.

Negativos:❚ Fragilização da moratória da caça comer-cial de baleias;❚ Continuidade da caça de baleias no San-tuário de Baleias do Oceano Austral;❚ Despesas de monitoramento da caça di-vidido pelos países membros e não apenaspelos países baleeiros;❚ Números de baleias a serem caçadas anu-almente maior do que o de baleias caçadasnos anos anteriores (2008 e 2007);❚ O documento prevê a comercialização deprodutos das baleias;❚ Prevê a caça de baleias ameaçadas;❚ O documento prevê a caça de espéciessobre as quais não se tem informações ci-entíficas suficientes capazes de garantirque as capturas sejam sustentáveis semameaçar a sobrevivência das espécies.

A conclusão dos órgãos representantesdo Brasil na CIB foi de que mesmo commuitos pontos positivos, a proposta deconsenso não reflete de forma satisfatóriaos interesses do Brasil. ■

Sete das 13 espécies de baleias estão ainda muito ameaçadas, mesmo após déca-das de proteção. Baleias, golfinhos e botos estão sucumbindo a novos e semprecrescentes perigos. Colisões com navios e emaranhamento em redes de pesca ame-açam de extinção a baleia franca do Atlântico Norte, enquanto a baleia cinza doPacífico Norte está em perigo crítico devido à intensa atividade de exploração de gáse petróleo em suas áreas de alimentação. Como se são bastasse, os cetáceos tam-bém estão sendo severamente afetados pela contaminação tóxica dos oceanos, pe-los efeitos das alterações climáticas e pela degradação do habitat.

Só no século 20 foram mortas mais de 2 milhões de baleiasPior ainda é a caça comercial e ilegal. Apesar de o apresamento estar proibidodesde 1985, da atual moratória e do fato de todo o Oceano Antártico ter sidodecretado santuário de baleias, a cada ano mais de 1.000 cetáceos são mortospara abastecer o mercado comercial. O maior extermínio ocorreu em 1961, quando70.000 baleias fora dizimadas.

O risco de extinção é agravado por três fatos:1 – Pelos últimos nove séculos, as baleias foram tão perseguidas que seus contin-gentes populacionais originais foram drasticamente reduzidos.2 – O extremamente lento ciclo de reprodução: em média, uma fêmea tem apenasum filhote a cada três anos.3 – O surgimento, a partir de 1920, do arpão com ponta de granada explosiva, eos navios-fábrica que, em menos de duas horas processam industrialmente umabaleia de 100 toneladas em carne, óleo e produtos embalados para consumo.Daí a necessidade de uma moratória geral e sem período de carência, o que exigiráuma irrefreável força de pressão popular em escala mundial sobre os governos queestimulam o apresamento de cetáceos e inventam álibis para “mascarar” a caçacomercial. Japão, Noruega e Islândia pretextam “pesquisas científicas” para conti-nuar a matança. Só o Japão a cada ano abastece seus frigoríficos com a carne de500 baleias minke. As explicações e cotas sobre o “abate científico” estão detalha-das em http://iwcoffice.org/conservation/table_permit.htm.

As quatro principais espécies em risco de extinção:1 Baleia azul1 Baleia azul1 Baleia azul1 Baleia azul1 Baleia azul – – – – – População estimada: 400 a 1.400. O maior mamífero da Terraatinge comprimento de até 33 metros e peso de 130 toneladas. Hábitat: maresgelados da Antártida e norte dos oceanos Pacífico e Atlântico22222 Cabeça-redondaCabeça-redondaCabeça-redondaCabeça-redondaCabeça-redonda – – – – – População estimada: 8.000. Conhecida como bowhead (“ca-beça em arco”), ela pode medir até 18 metros e pesar 100 toneladas. Habitat: Ártico3 Franca do norte3 Franca do norte3 Franca do norte3 Franca do norte3 Franca do norte – – – – – População estimada: 320. Dóceis e vagarosas, elas sãopresas fáceis para os baleeiros. Chegam a medir 18 metros e a pesar 80 toneladas.Habitat: a maioria vive na costa atlântica do Canadá4 Baleia cinza4 Baleia cinza4 Baleia cinza4 Baleia cinza4 Baleia cinza – – – – – População estimada: 26.400. Formam grupos de, no máximo,três animais, atingindo até 14 metros e 35 toneladas. Habitat: naturais da regiãonorte do Atlântico e do Pacífico, foram dizimadas no Atlântico. As sobreviventes sãoencontradas na costa oeste do Canadá e dos EUA.

Outras espécies ameaçadas:5 Minke do sul5 Minke do sul5 Minke do sul5 Minke do sul5 Minke do sul – – – – – Só recentemente foi reconhecida como uma espécie diferente da minkecomum. Habitat: Antártida.6 Minke 6 Minke 6 Minke 6 Minke 6 Minke – – – – – Espécie mais numerosa de todas, tem população estimada de 900. 000 indivíduos.Habitat: todos os oceanos, mas prefere águas mais frias.7 Franca pigméia7 Franca pigméia7 Franca pigméia7 Franca pigméia7 Franca pigméia – – – – – É a menor e a menos conhecida, não chegando a 7 metros. Habitat:mares da Tasmânia, Nova Zelândia e África do Sul.8 Baleia de Bryde8 Baleia de Bryde8 Baleia de Bryde8 Baleia de Bryde8 Baleia de Bryde – – – – – Habitat: exclusivamente águas tropicais e subtropicais (temperaturaem torno de 20 oC) nos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico.9 Sei9 Sei9 Sei9 Sei9 Sei – – – – – Uma das mais rápidas, atingindo velocidades de até 50 km/h. Habitat: todos osoceanos, exceto as regiões polares.1010101010 JubarteJubarteJubarteJubarteJubarte – – – – – É o mamífero com o maior ciclo migratório da Terra: algumas saem da Antártidapara se acasalar na América Central. Habitat: todos os oceanos e visita a costa brasileira.11 Cachalote11 Cachalote11 Cachalote11 Cachalote11 Cachalote – – – – – Inspirou o personagem do romance Moby Dick. Mas, contrariamente aomonstruoso gigante criado por Melvile, na vida real o cachalote não chega a 20 metros.12 Franca do sul12 Franca do sul12 Franca do sul12 Franca do sul12 Franca do sul – – – – – Foi uma das primeiras espécies a ser caçada (45.000 mortas no início doséculo 19). Habitat: encontrada no Hemisfério Sul.13 Fin13 Fin13 Fin13 Fin13 Fin – – – – – Chega aos 100 anos e é a segunda espécie em tamanho, podendo passar de 26metros. Hábitat: águas profundas no norte do Atlântico, do Pacífico e também na Antártica.

Fontes: The International Whale Commission (http://iwcoffice.org/index.htm); The Sea World Organization(www.seaworld.org); Greenpeace (www.greenpeace.org/international)

BALEIAS: VÍTIMAS DE VELHAS E NOVAS AMEAÇASA cada ano maisde MIL baleias são

mortas para abastecero mercado comercial.

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A bibliografia acadêmica vem apresentando um debate no qual nossorural aparece como um mundo dinâmico movimentado pelo “confrontoe diálogo” entre o agronegócio e a agricultura familiar. Já se tornou tãocomplexo o mundo rural brasileiro que a estrutura governamental háanos se repartiu, significativamente, em dois ministérios, um para cadalado (Ministério da Agricultura e Ministério do Desenvolvimento Agrá-rio). Não por acaso, o atual governo, liderado por um partido de com-promisso camponês — ativista da luta pela terra nos anos 1980 e 1990—, é chamado a administrar o grão-capitalismo (usando a expressãocom que um sociólogo do Rio de Janeiro se refere à economia brasilei-ra), dele (e da “herança maldita” recebida de FHC) extraindo sucessospara sua política econômica.

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agricultura familiar e política“A economia não é um templo, mas um campo de testes”. (Habermas)

por Raimundo Santos

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No mundo rural de hoje dispõem-sepossibilidades de desenvolvimen-to localizadas no agronegócio e na

agricultura familiar, alvos de políticas pú-blicas especiais nada desimportantes. É sóver o seu número, diversificação e abran-gência crescentes, aqueles dois ministéri-os mais e mais articulando ações com oMinistério do Meio Ambiente e a Secreta-ria da Pesca, além de vários outros progra-mas de envergadura (ações no território,os Pronafs, etc.). Toda uma trama institu-cional atua num meio rural já bem distantedo mundo da tradição e do tempo dos“grandes domínios”.

Às vésperas desta eleição presidencial de-cisiva, na qual inclusive a consolidação doEstado Democrático de direito corre risco,este texto se refere à controvérsia em tornodaquela dualidade a que se atribui adinamização da vida rural. Centralizada en-tre o PSDB e o PT, a disputa mostrará com-preensões diferenciadas tanto no que serefere ao processo democrático em cursocomo em relação aos grandes temas postosem discussão durante a campanha eleito-ral, como a questão agrária e rural. Com baseem certa bibliografia, estas páginas regis-tram uma controvérsia que tem a ver comcampos que se expressam nos dois princi-pais candidatos. Com Serra estão conheci-das áreas de esquerda de enraizada orien-tação gradualista e reformista-democrática,bem diferentes das influentes tendênciasde esquerda que compõem o largo arco deapoio à candidatura de Dilma Rousseff.[1]

Assim, em uma ponta, pode-se ver na bibli-ografia aqui referida uma tendência quedefende a agricultura familiar em termos deum “campesinismo” novo e atualizado, pon-to de vista hoje hegemônico nas esquerdasmilitantes. Este campo vê-se reforçado porautores dos mais credenciados (Veiga, 1998;Abramovay e Veiga, 1998; Veiga, 1994; apudSauer, 2008), que, naqueles anos 1990, jus-tificaram um ressurgimento da reforma agrá-ria distributivista, aumentando as expecta-tivas em relação ao advento de um novodinamismo econômico com base na agricul-tura familiar. Realçando seus atributos van-tajosos em relação ao agronegócio(pluricultura, absorção da pobreza,sustentabilidade, etc.), chega-se a pensarque a agricultura familiar tem todas as con-dições para ser o protagonista de um novopadrão de desenvolvimento social e eco-nômico no mundo rural (Sauer, 2008).

Todavia é de se registrar um grupo de estudi-osos do agronegócio que se propõe ir alémda ênfase na dimensão econômica do grandeempreendimento. [2] Realizando uma aberturaanalítica em relação à bibliografia denuncista,esta vertente volta suas vistas para a “socie-dade” do agronegócio. Assim, ao direciona-rem sua investigação, seus autores estão fa-zendo um diagnóstico do custo social doagronegócio, ator que não teria obtido o di-namismo que o separa dos seus antepassa-dos sem o uso privatista do Estado, a con-centração da propriedade e o caráter predató-rio do empreendimento, como mostra o estu-do minucioso realizado em três regiões (oNorte mato-grossense, o Triângulo mineiro eo Oeste baiano). No entanto, o que chama aatenção no estudo são a diversidade das re-lações sociais que envolvem o conjunto domundo à volta dos agronegócios e, especial-mente, a segmentação social que prospera na“sociedade do agronegócio”.

Há outras opiniões a respeito da agriculturafamiliar com postura mais positiva em relaçãoaos agronegócios. É o caso de John Wilkin-son, o principal autor referido nestas notas,que se associa a uma “nova síntese” que “jáse desenha em torno da noção de “território”,como diz ele próprio. Visando ampliar o hori-zonte dos defensores da agricultura familiar,Wilkinson se propõe ir além de três posiçõesconsideradas insuficientes: (a) daqueles quesuperestimam o grau de consolidação de cer-tos segmentos de produtores, “por não leva-rem em conta as transformações na dinâmicarecente dos mercados”; (b) dos que (em estu-dos da pluriatividade) subestimam “as opor-tunidades para a agricultura familiar nos no-vos mercados de nicho como também na cri-se do modelo dominante da agricultura espe-cializada” (Wilkinson, 2008: 14) ; e (c) dos que“descuidam do significado dos espaços demercados ocupados pelas PMEs (pequenase médias empresas) e da dinâmica do setorinformal” (aqui aludindo a estudos sobre aagroindústria) (Ib.).

O autor põe o seu tema — a agricultura fa-miliar e os mercados — no cenário eco-nômico atual. Diz ele que, no mundo dasgrandes cadeias de commodities, a agricul-tura familiar tem que operar com novos ní-veis de qualidade e novas escalas de pro-dução. Ela é chamada a obter “capacidadespróprias” para desenvolver “iniciativas au-tônomas”, o que exige aprendizagem cole-tiva capaz de levar consideráveis contin-gentes a processos de muita inovação. Opróprio tema da segurança alimentar e osrequerimentos de qualidade realçam o pa-pel da fiscalização e das regulamentaçõesdo poder público em seus três níveis (mar-cas, certificações, etc.) e também estimulama agricultura familiar e o mundo artesanal aprocurarem uma reestruturação que os ha-bilite a entrar nos novos mercados, não fazmuito reservados à grande empresa. O for-talecimento (“autônomo”, por sua qualida-de) dos “mercados dos orgânicos” (maisabrangentes) e a ida da agricultura familiara mercados regionais e nacionais (aos “con-sumidores desconhecidos”) não constitu-em as últimas fronteiras da sua expansão.

A agricultura familiar não só tem posiçãoimportante no mercado interno como tam-bém já responde por fatias das exportaçõesbrasileiras. O grande varejo e os grandessupermercados, anota o autor, já mobilizamos pequenos e médios produtores paramontar os seus grupos de fornecedores deprodutos de qualidade especial (Id. : 209).

Para Wilkinson, “à medida que a agricultu-ra familiar se oriente ao mercado e adotepráticas de um pequeno empresário, abre-se uma ponte para uma aproximação aomundo dos agronegócios” (Id.: 206). O au-tor não tem dúvida: “O mercado, portanto,nos seus diversos aspectos, começa a sero grande desafio também para a agricultu-ra familiar” (Id.: 209). Este caminho expres-sa um condicionamento da esfera econô-mica que os dois lados (o agronegócio e aagricultura familiar) parecem subestimar aonão ver “a profundidade das transforma-ções nos valores da sociedade que sãoparcialmente refletidos nas novas dinâmi-cas dos mercados”, delas não escapandoo grande mundo das commodities (rastre-abilidade, internacionalização dos valoresambientais e sociais). Ao não reconhece-rem as mudanças, os representantes doagronegócio e os defensores da agricultu-ra familiar não se dispõem a explorar “osespaços de convivência”.

Toda uma tramainstitucional atua

num meio rural já bemdistante do mundo da

tradição e do tempo dos“grandes domínios”.”

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Heréda, Beatriz., Medeiros, L., Palmeira, M. e Leite, S. P. So-ciedade e economia do “agronegócio” no Brasil. Caxambu:Anpocs, 2009.Sauer, S. Agricultura familiar versus agronegócio: a dinâmi-ca sociopolítica do campo brasileiro. Brasília: Embrapa, 2008.Wilkinson, J. Mercados, redes e valores. Porto Alegre:UFRS, 2008.

NOTAS:[1] O artigo de Serra acerca dos 25 anos da Nova Repúblicae o seu discurso ao aceitar a candidatura presidencial, divul-gados pela imprensa de junho, são bem expressivos do campoacima referido.[2] Trata-se da pesquisa “Sociedade e economia do ‘agrone-gócio’ no Brasil”, coordenada por Beatriz Herédia, LeonildeMedeiros, Moacir Palmeira e Sérgio Pereira Leite. Cf. Herédiaet al. (2009).

O autor alude ao fenômeno do Corpora-te Social Responsability (CSR), obser-vando que os dois lados não percebema incidência da valorização de “uma sé-rie de qualidades, separadamente ou emconjunto, que questionam a sujeição devalores ambientais, sociais, culturais epolíticos a prioridades de custo e esca-la” (Id.: 211). Sistemas de certificações,redes alternativas de produção e con-sumo questionam o modelo de econo-mia industrial e põem em realce o mun-do artesanal. E ainda: “Na medida emque a economia desloca-se para servi-ços, este reconhecimento se desdobraem externalidades positivas para outrossetores, sobretudo o turismo” (Ib.).

Daí advém a necessidade de requalifi-car o dualismo antigo no qual ainda seconcentra a bibliografia denuncista oude “viés campesinista” (sic). O agro-negócio é criticado por viver obceca-do pela busca de competitividade nassuas grandes cadeias de commodities,o que impede a sensibilização pelostemas do meio ambiente e do trabalho.Por sua vez, os defensores da agricul-tura familiar desqualificam o CSR, con-siderando-o simples “greenwashing ecooptação”, e não buscam ver “em quemedida mudanças na sociedade, refle-tidas mais por intermédio do mercadodo que em períodos anteriores, estãocriando bases novas para uma convi-vência entre estes dois segmentos, sem eli-minar as grandes áreas de conflitos quecontinuariam alimentando mobilizações so-ciais e políticas” (Wilkinson, 2008: 210).

O sentido dos tempos atuais requer atençãopara temas emergentes: “Do lado do merca-do, porém, muitos sinais apontam para umreconhecimento e uma valorização de umnovo dualismo em relação a sistemas de pro-dução” (Wilkinson, 2008: 211). O CSR expres-sa “tendências mais abrangentes pela valo-rização de uma série de qualidades” e leva auma espécie de “paradoxo”: “Ou melhor, exis-te um reconhecimento de que custos quenão levam em conta essas qualidades trans-formam essas próprias qualidades em cus-tos. Sistemas de certificação, por um lado, eredes alternativas de produção e consumo,por outro, focalizam, sobretudo, a valoriza-ção de processos produtivos distintos emrelação ao modelo industrial, ratificando umreconhecimento do ‘mundo artesanal’ bemcomo dos sistemas de produção local” (Ib.).

O autor acredita que novos estudos virãocontribuir para reequacionar a desconfiançados porta-vozes da agricultura familiar, par-tidários, acrescenta Wilkinson, de uma lon-ga “guerra de posições” (sic) contra os agro-negócios. Estes, por sua vez, medem tudopor seu modernismo empresarialista, desco-nhecendo a força da agricultura familiar e domundo artesanal. “Na sua desconfiança demanifestações de CSR”, diz o autor, “os por-ta-vozes da agricultura familiar parecem su-bestimar o grau em que o mercado se tornaum canal de expressão dos valores de movi-mentos sociais” (Id.: 212). Esse novo espa-ço do mercado abre possibilidades para ummínimo de “reconhecimento mútuo”, quepode, ao mesmo tempo, favorecer o diálogosobre os outros temas de maior conflito nocampo político-institucional (Id.).

Já não é possível deixar de reconhecer aimportância que têm tanto os agronegó-cios quanto a agricultura familiar, estedado apontando para a necessidade de

explorar as bases de “convivência en-tre ambos”. Não se trata mais de umarecuperação das virtudes campone-sas da agricultura familiar. O impulsojá estaria noutra dimensão. “O mer-cado ainda é o mesmo?”, esta é a tesedo autor, e o seu ponto consiste emque, à medida que se diversificou, omercado pôs-se diante do camponêsatual de diferentes modos. Trata-sehoje de mercados atravessados pordiversas mediações e regulações dopoder público; resultantes, acrescen-temos, de ações praticadas na esferada política (partidos, Congresso, sin-dicatos, movimentos, associações,governo e agências governamentaisnos seus três níveis).

Essa controvérsia acerca das relaçõesentre o agronegócio e a agriculturafamiliar mostra o papel decisivo dopoder público. A propósito, há umatendência incipiente que também pro-cura ir além da ênfase no tema da po-laridade “grande domínio” – agricul-tura familiar e que se refere ao grão-capitalismo dominante no mundo ru-ral, como Wilkinson, sem defensivis-mos paralisantes. Esta bibliografiarealça a questão do sentido e das pri-oridades da ação de governo, cha-mando particularmente a atençãopara os investimentos animadores davida rural no âmbito regional e local,

investimentos estratégicos para a refor-ma democrática do mundo rural. Este,certamente, será tema desta eleição. ■

Os porta-vozes daagricultura familiar parecemsubestimar o grau em que omercado se torna um canal

de expressão dos valoresde movimentos sociais.”

Raimundo Santos – Cientista social e autor,entre outros, de Agraristas políticos brasilei-ros. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira–Nead, 2007. Artigo publicado na Revista Espa-ço Acadêmico (11/8/2010).

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O panorama energético planetário mudou à luz do aquecimentoglobal e das mudanças climáticas. Agora, os governos enfrentam odesafio de produzir energia limpa para suprir o crescente consumo

sem impactar negativamente o meio ambiente e com reduçãodas emissões de CO2 e de outros gases de efeito estufa.

A procura por soluções para a sustentabilidade energética jáé uma realidade em alguns países, embora em outros o modelo

de desenvolvimento continue subordinado à utilização defontes energéticas “sujas”. Confira nos artigos desse dossiê.

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Energia eólica: o exemplo da Dinamarcapor Bertrand d’Armagnac

Os dinamarqueses exibemos resultados favoráveisde um desenvolvimentoconstruído há 30 anossobre um mix de vontadepolítica, simplificação ad-ministrativa e cooperaçãocom a população local.

A30 quilômetros da costa oeste da Di-namarca, ao largo do porto de Esbjerg,

as 91 turbinas do parque eólico de HornsRev 2 giram dia e noite, faça chuva ou façasol. No total, 209 MW são produzidos des-de setembro de 2009 em quase 35 quilôme-tros quadrados. Um pouco mais perto dacosta, o parque Horns Rev 1, instalado em2002, emprega 80 geradores com uma po-tência de 160 MW. Esse conjunto consti-tui, atualmente, o maior parque offshore domundo. Ele também é o mais recente exem-plo da política da Dinamarca em matéria depromoção de energias renováveis.

Mais de 22% da eletricidade produzida naDinamarca provêm da energia eólica – terres-tre ou marítima – enquanto a França esse por-centual é de 1,5. Para chegar a seu patamar, osdinamarqueses apostaram em diversas ala-vancas. Para começar, a energia eólica é, na-quele país, um pouco mais “problema de to-dos” do que em outros países. “O movimentopela energia eólica partiu do campo – expli-ca Ann Pedersen Bouisset, do ministério dasRelações Exteriores – e os primeiros gerado-res eólicos foram instalados por cooperati-vas de comunidades ou de municipalidades.”

O ENVOLVIMENTO DA POPULAÇÃO

Essa iniciativa participativa está presenteainda no acordo da política energética, ela-borado em fevereiro de 2008 pelo governo epelo Parlamento, a fim de traçar a estratégiaenergética do país. O texto permite que oscidadãos participem dos projetos de parques

Bertrand d’Armagnac – A reportagem origi-nal Energie éolienne: la leçon danoise, foi pu-blicada no jornal francês Le Monde (28/7/2010).

eólicos próximos de suas casas. E um fundoajuda as associações de proprietários locaisde turbinas a financiar os estudos prelimina-res sobre os projetos de implantação.

Esse método facilitou a aceitabilidade socialda energia eólica, garantindo às populaçõesque elas teriam poder de decisão. Dessa forma,informa recente pesquisa, 90% dos dinamar-queses citam a energia eólica como prioridadeno desenvolvimento das energias renováveis.

Para a implantação dos parques Horns Rev1 e 2, foi realizado diálogo prévio com ospescadores de Esbjerg, que não se opuse-ram ao projeto, certos de que seria melhorinfluenciá-lo em vez de tentar – provavel-mente em vão – entravá-lo. Assim, eles con-seguiram que o esquema de implantação ini-cial fosse deslocado para melhor respeitaras zonas de pesca. Além disso, receberam 1milhão de euros a título de indenização.

UMA ADMINISTRAÇÃO RACIONALIZADA

A simplificação máxima do processo de ins-trução dos projetos é outra chave do su-cesso dinamarquês. Um guichê único, reu-nindo os diferentes ministérios interessa-dos e a Energinet, a administradora de trans-porte de eletricidade, foi implantado naDanish Energy Authority. Ele administra aseleção de regiões onde serão desenvolvi-das as capacidades de produção energéti-ca, coordena todos os estudos, inclusive aauditoria ambiental, e depois faz as licita-ções. A Energinet tem a obrigação de fazer

a conexão de qualquer projeto autorizadodesde sua instalação e de pagar uma pena-lidade se isso não for feito quando a produ-ção de eletricidade começar.

A energia eólica tem um real impacto sobrea indústria e o mercado de emprego dina-marqueses. Em 2010, as vendas de tecnolo-gia eólica deverão representar mais de 10%das exportações. Especialmente graças aosprojetos Horns Rev 1 e 2, que assumiram olugar da atividade petroleira offshore, o por-to de Esbjerg se impôs como “a primeiraplataforma logística do país para os equi-pamentos offshore”, destaca John Snedker,político da cidade.

A partir de suas plataformas, a dinamarquesaVestas entrega dezenas de turbinas para todoo mundo, enquanto a alemã Siemens atualmenteenvia aerogeradores fabricados na Dinamarcae destinados a serem instalados na Inglaterra.

Enquanto a França dá seus primeiros pas-sos, a Dinamarca já pensa na renovação deum parque ultrapassado. Um programa demodernização sustentado por subsídiosgovernamentais foi lançado. Por sua vez,as indústrias dinamarquesas vêem o futuroem parques cada vez maiores e em sistemascada vez mais potentes. ■

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Danish Wind Industry Association

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por Priscila de Martini

Opaís que produz quase metade da ener-gia solar no mundo tem mais dias ne-

bulosos do que ensolarados. Parece, no mí-nimo, um investimento equivocado, mas omotivo de as coisas serem desse jeito expli-ca, em grande parte, o porquê de a Alema-nha estar rente na batalha contra a depen-dência dos combustíveis fósseis – intensifi-cada com o combate ao aquecimento globale, agora, ainda mais urgente depois do vaza-mento de petróleo no Golfo do México. Des-de muito cedo, os alemães reconheceram aimportância da transição para uma econo-mia mais limpa e, recentemente, começarama colher os frutos de seu pioneirismo.

A Alemanha parece estar em um ritmo com-pletamente diferente das grandes potênci-as. Enquanto a maré negra se espalha e oBrasil só tem olhos para a exploração do pré-sal, os alemães anunciaram uma meta arroja-da: em 2050, a previsão é de que toda a eletri-cidade produzida no país venha de fontesrenováveis, como solar, eólica ou biomassa.Em 2009, as fontes alternativas responde-ram por 16,1% da eletricidade gerada no país.

O segredo alemão não é nenhum mistério, ea própria Alemanha busca disseminar as ex-periências que deram certo para o resto domundo. O primeiro fator foi uma mudança depostura, que para os europeus ocorreu já nadécada de 70. Ao contrário dos demais paí-ses, a Alemanha resolveu responder à crisedo petróleo da época com o investimentoem energias limpas. O resultado são déca-

Priscila de Martini – Reportagem publicadano jornal Zero Hora (26/7/2010).

das de estudos que levaram o país à lideran-ça em tecnologia no setor. Grande parte dosmais modernos equipamentos – de célulassolares fotovoltaicas a turbinas eólicas – éproduzida em território alemão.

“Há muito intercâmbio com a Alemanha;enviamos muitos pesquisadores para univer-sidades alemãs. Temos na UFRGS um peque-no gerador eólico de uma empresa alemã”,revela o peruano Harold Deza Luna, pesqui-sador em energias renováveis do Laboratóriode Transformação Mecânica da UFRGS.

Mas não é só tecnologia que a Alemanhaexporta. A legislação criada pelo país paraimpulsionar a produção de energia renová-vel foi copiada por cerca de 70 nações mun-do afora. A principal delas entrou em vigorem 2000: a Erneuerbare-Energien-Gesetz,conhecida pela sigla EEG – que, segundoLuna, é a maior lição alemã para o Brasil. É oque pensa também a americana Piper Foster,da Sopris Foundation, dos EUA.

“Essa é a medida isolada mais poderosapara combater as mudanças climáticas eincentivar as energias renováveis”, diz apesquisadora, há mais de um ano em Berlim,para estudar as experiências alemãs no de-senvolvimento de energias limpas.

Pela EEG, todo cidadão pode montar umapequena central de energia de fontes reno-váveis, que é ligada à rede elétrica. As ope-radoras do país são obrigadas a comprar o

que for produzido em excedente, pagandotarifas preestabelecidas, que valem por 20anos. Os valores variam de acordo com otipo de energia, sendo mais altos para as fon-tes que custam mais e que precisam ser maisdesenvolvidas, como a solar fotovoltaica. Adiferença de preço é repassada para os con-sumidores, que têm um pequeno aumentona conta de luz. Assim, o custo-benefício dainstalação da tecnologia para esse tipo deenergia torna-se muito interessante.

Muitos governos ainda não fazem grandesinvestimentos em energias renováveis de-vido ao alto custo. Isto, segundo Piper, éum erro que poderá colocar empresas e pa-íses em uma situação muito vulnerável nofuturo. “Quando as pessoas dizem que ener-gia renovável é cara, ignoram o fato deque o preço dos combustíveis fósseis estáaumentando e que carvão, gás natural epetróleo estão acabando. Apesar de o cus-to das energias renováveis ser mais altono início, podemos prever seu custo nolongo prazo, porque vento e sol são gra-tuitos”, conclui Piper. ■

Alemanha: as lições de um país verde

Na Alemanha, a energia atô-mica é uma fonte com os diascontados. Até 2050, as 17usinas nucleares em atividadesserão desativadas, e toda a ele-tricidade produzida no país viráde fontes renováveis, comosolar, eólica ou biomassa.

NOTA DO EDITOR:Em 2000, a coalizão Socialdemocrata-Verde acertou o fimgradativo da produção de energia nuclear na Alemanha até2022. Em 2003 e 2005 foram desativados, respectivamente, osreatores de Stade e de Obrigheim, restando em funcionamento17 usinas nucleares. Mas neste 2010, a chanceler Angela Merkeldefendeu a extensão do prazo de funcionamento por mais 20anos, fato que traria crescimento de 0,5% do PIB, gerando 71mil novos empregos, e reduzindo mais 16% as emissões de CO2.A decisão será votada ainda este ano.

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Youth Alternative Summit - Berlim 2008 - Frank Berlin

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Energias ‘verdes’: vítimas da crise em 2009por Bertrand d’Armagnac

As energias renováveis continuam aganhar terreno no mundo segundo orelatório “Tendências Mundiais de In-vestimento nas Energias Sustentá-veis”, do Programa das Nações Uni-das para o Meio Ambiente (Pnuma).Confira a escalada rumo à sustenta-bilidade energética do planeta.

ENERGIAS VERDES EM ALTA

Além do relatório do Pnuma, também o estu-do realizado pela rede mundial REN21 – Re-newable Energy Policy Network for the 21stCentury (www.ren21.net), que busca promo-ver essas energias, confirma que “apesardos ventos contrários causados pela reces-são econômica, pela baixa do preço do pe-tróleo e pela ausência de um acordo inter-nacional sobre o clima, as energias reno-váveis conseguiram se segurar bem”.

Embora, segundo o Pnuma, o montante dosinvestimentos mundiais em energias reno-váveis em 2009 – US$162 bilhões – tenharecuado 7% em relação a 2008 – em funçãoda crise mundial –, ele ainda é quatro vezesmaior do que o de 2004. As dificuldades definanciamento encontradas pelos investido-res são a principal explicação do mau desem-penho de 2009. Os especialistas do Pnumaafirmam que:“As energias limpas não sãouma bolha criada pelos últimos episódiosde um boom do crédito, mas representamum setor de investimento que continuarásendo importante nos próximos anos.”

A observação dos primeiros meses deste anovem confirmar essas declarações, uma vez queno primeiro semestre US$65 bilhões foram in-vestidos em energias verdes, um crescimentode 22% em relação ao mesmo período de 2009.Esse belo início de ano acontece apesar dacrise que agita determinados países europeusdínamos no setor das energias verdes e davolatilidade dos mercados financeiros.

ENERGIAS FÓSSEIS EM BAIXA

Em 2009, pelo segundo ano consecutivo,os gastos para instalar novas capacidades

Bertrand d’Armagnac – O artigo Les énergies“vertes”, victimes de la crise en 2009 foi publi-cado no jornal Le Monde (18/7/2010) e emwww.ecodebate.com.br

de produção renováveis (incluindo a hidre-létrica) foram superiores aos dedicados àsenergias fósseis. Quase 50 GW de capaci-dade de geração de energia verde foram cri-ados no mundo (sem contar as grandes ins-talações hidrelétricas) contra 40GW em2008, segundo estimativas da agência daONU. Com a contribuição da hidroeletrici-dade (mais 28GW), as energias renováveisse aproximam do nível de novas capacida-des à base de energias fósseis (83GW). Alémdisso, em 2009, as energias renováveis for-neceram 18% da eletricidade consumida nomundo, segundo a REN21.

O ano de 2009 também foi marcado pelaentrada em vigor dos planos de retomadaadotados para fazer frente à crise econômi-ca. Uma parte – US$188 bilhões, segundo oPnuma – foi dedicada às energias verdes eà economia de energia. Mas esseempurrãozinho ainda não surtiu todos seusefeitos, uma vez que somente 9% do orça-mento previsto para as energias verdes fo-ram gastos em 2009. O resto deve, a princí-pio, ser desbloqueado em 2010 e em 2011,contanto que os planos de rigor que se es-palham pelos países desenvolvidos nãocomprometam esses programas.

PESQUISA E DESENVOLVIMENTO

A parte dos investimentos dedicados em2009 à pesquisa e ao desenvolvimento emenergias limpas pelas empresas e pelos go-vernos chegou a US$24,6 bilhões, contraUS$24,2 bilhões em 2008, um recuo de 16%em relação a 2008 para os primeiros (comUS$14,9 bilhões) e um crescimento de 49%para os segundos (com US$9,7 bilhões).Os governos mostraram vontade política

para apoiar a emergência desse novo ramode energia, ao mesmo tempo em que criamempregos verdes.

A evolução dos gastos varia de acordo coma região. Dos US$119 bilhões gastos fora deorçamento de pesquisa e desenvolvimento,a China assumiu a liderança na classificaçãomundial com US$ 33,7 bilhões, um aumentode 53%. Os Estados Unidos (US$ 17 bilhões),o Reino Unido (US$ 11,7 bilhões) e a Espa-nha (US$ 10,7 bilhões) vêm na sequência.

A energia eólica atraiu a maior parte dessesinvestimentos em 2009, representando naEuropa e nos Estados Unidos 39% da po-tência recém-instalada, ao passo que a Chi-na dobrou sua capacidade eólica com a adi-ção de 18,8 GW em 2009. No período 2005-2009, o relatório de REN21 mostra que apotência instalada em energia eólica pro-grediu em média 27% por ano.

Apesar de os investimentos nas tecnolo-gias verdes tenderem a subir a médio pra-zo, o futuro poderá ser caótico. A conclu-são decepcionante da cúpula de Copen-hague, a dificuldade da administraçãoObama em ter aprovada sua lei sobre oclima ou a vontade dos governos euro-peus de reduzir os subsídios para as ener-gias renováveis mostram que o cresci-mento dos investimentos pode sofrercontratempos conjunturais. ■

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Energia solar - Decathon 2009

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Brasil: energias renováveis em evidênciapor Antonio Silvio Hendges

Com o fracasso das negociações inter-mediadas pela ONU na COP-15, o Bra-

sil anunciou medidas unilaterais para redu-zir suas emissões de CO2, estabelecendo ameta de diminuir entre 36% e 39% até 2020as suas emissões de gases de efeito estufa.A Lei de Política Nacional sobre Mudançado Clima (PNMC), de dezembro/2009, esta-belece princípios, objetivos, diretrizes, ins-trumentos e metas, em busca da consolida-ção de uma economia de baixo consumo decarbono. A recuperação de 100 milhões dehectares de pastos degradados, que tam-bém está prevista na PNMC, pretende as-segurar a expansão agrícola evitando o des-matamento e preservando as áreas naturais.

Outra contribuição indispensável do paíspara a sustentabilidade planetária são osbiocombustíveis, setor em que o Brasil é amaior liderança mundial. O biodiesel, quedesde 2005 tinha 2% de adição ao dieseltradicional, passou para 5% em janeiro de2010, meta que estava estabelecida para2013. O etanol movimenta metade da frotaleve do país. Os carros flex-fuel que permi-tem combinar etanol e gasolina correspon-dem a 34% da frota de veículos leves. Nos30 anos em que o etanol está em uso noBrasil, 850 milhões de toneladas de CO2deixaram de ser emitidas. Recentemente foiconcluído o zoneamento agroecológico dacana-de-açúcar, que orienta os investimen-tos desta cultura, impedindo o plantio embiomas como a Amazônia, Pantanal e áre-as de vegetação nativa. As queimadas nasáreas de produção também foram reduzi-das, possibilitando a diminuição de 6 mi-lhões de toneladas de CO2 na atmosfera.O clima, relevo, hidrografia e extensão ter-

ritorial possibilitam que quase 90% da ofer-ta de energia elétrica do Brasil sejam defontes renováveis.

No conjunto da matriz energética brasilei-ra, 47% são de fontes renováveis. A médiamundial neste setor é de 14%. Em 2007, osprodutos da cana-de-açúcar e o bagaçoda cana passaram a ocupar o primeiro lu-gar, deslocando a energia hidráulica para asegunda posição. A energia eólica tambémestá sendo considerada como estratégicapara a auto-suficiência, sendo que nos pró-ximos anos devem acontecer investimen-tos de R$ 9,4 bilhões em 71 empreendimen-tos com capacidade para geração de1.805,7 MW. Isto coloca o país no centrode uma mudança do paradigma energéticoe na vanguarda tecnológica da geração deenergias renováveis.

Através de gestão ambiental, conservaçãoe eficiência energética, manejo adequadodos resíduos sólidos, estímulo aos Meca-nismos de Desenvolvimento Limpos, for-mação de parcerias e consórcios, participa-ção popular, educação ambiental e açõesafirmativas, os municípios são fundamen-tais para que as metas brasileiras de redu-ção de gases de efeito estufa se consoli-dem como um exemplo para a comunidadeinternacional, atraindo investimentos quepodem melhorar a qualidade de vida e con-tribuir para o crescimento econômico e so-cial das cidades e regiões brasileiras. ■

Antonio Silvio Hendges – Professor de biolo-gia, Agente Educacional no RS e articulista doportal Ecodebate - Publicado em www.revistaemevidencia.com.br (9/7/2010).

Clima, relevo, hidrografia e extensãoterritorial possibilitam que quase 90%da oferta de energia elétrica do Brasilsejam de fontes renováveis com reduzi-da emissão de CO2. Esse ideal pode seratingido via políticas de gestão ambi-ental, pesquisa edesenvolvimento e efi-ciência energética.

O Brasil entra na corrida por transportescoletivos sustentáveis e não poluentes como desenvolvimento de um ônibus movidoa hidrogênio a partir de tecnologia total-mente nacional. Criado pelo InstitutoAlberto Luís Coimbra de Pós-graduaçãoe Pesquisa em Engenharia, da Universi-dade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ), o ônibus será uma das opções detransporte na capital fluminense durantea Copa do Mundo de 2014 e os JogosOlímpicos de 2016. O projeto conta comparceria da Federação das Empresas deTransportes de Passageiros do Estado doRio de Janeiro (Fetranspor).

O que diferencia o veículo de outros simi-lares que já circulam na Europa é que suaspilhas a combustível podem ser abastecidastanto com hidrogênio como por meio darede elétrica comum. Além disso, o ôni-bus é equipado com um sistema capaz detransformar a energia liberada durante asfreadas em eletricidade, ampliando a efi-ciência energética. “A energia elétrica con-vertida por esse sistema é lançada no mo-tor, economizando o hidrogênio a bordo”,explica Paulo Emílio Valadão de Miranda,coordenador do Laboratório de Hidrogê-nio da Coppe. Por conta desse mecanis-mo de abastecimento, o coletivo não pre-cisa ter uma pilha a combustível enormenem consumir tanto hidrogênio. Como re-sultado, o ônibus híbrido tem uma efici-ência energética muito maior que a dosconvencionais a diesel e não emite polu-entes. O único resíduo lançado no ar peloveículo é o vapor d’água, oriundo da re-ação eletroquímica da pilha a combustí-vel, alimentada de hidrogênio e oxigênioproveniente do ambiente.

Fonte: A partir do artigo de Silvia Pachecono jornal Correio Brasiliense (23/8/2010).

UFRJ desenvolve ônibusmovido a hidrogênio

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Pacific Northwest National Laboratory

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O crescimento de Pernambu-co está subordinado a ummodelo de desenvolvimentoeconômico que opta pelo des-matamento e pelas fontes ener-géticas “sujas”. Uma visão doséculo passado a contracor-rente do desenvolvimento am-bientalmente sustentável.por Heitor Scalambrini Costa

Notícias veiculadas pela mídia deixarampreocupadas todas as pessoas que

querem, esperam e desejam que Pernambu-co se desenvolva de forma sustentável e,assim, melhore a condição de vida da po-pulação local. O tão propalado e propagan-deado crescimento econômico do Estadonão é um fim em si mesmo: é uma ferramen-ta, um instrumento para o desenvolvimen-to. E o desenvolvimento que nós defende-mos é aquele que seja sustentável em to-dos os aspectos: econômico, ambiental,social e cultural.

DESMATAMENTO E ENERGIA “SUJA”Inicialmente, deixou-nos perplexos, o anún-cio do secretário estadual de Recursos Hí-dricos, na 9ª Reunião do Conselho delibera-tivo da Sudene, ocorrida em 29 de abril, deque o Estado vai entrar na disputa para rece-ber uma central nuclear que o governo fede-ral planeja instalar no Nordeste. É sabido queno seu artigo 216, a Constituição Estadualproíbe a instalação de usinas nucleares emPernambuco enquanto não se esgotar todaa capacidade de produzir energia elétrica deoutras fontes. Logo, o governador vai terque mudar a Constituição Estadual.

Outra ação do executivo, na mesma linhada perplexidade, foi o envio à AssembléiaLegislativa (AL) do Projeto de Lei (PL) 1496/2010, autorizando o desmatamento de1.076,49 hectares de vegetação nativa, paraa ampliação do Complexo Industrial e Por-tuário de Suape, no Grande Recife. Com a

pressão das organizações da sociedade ci-vil pelo absurdo proposto, um substituti-vo foi enviado e aprovado, para o desma-tamento de 691 hectares (tamanho aproxi-mado de 700 campos de futebol), de matanativa, sendo 508 de mangue, 166 de res-tinga e 17 de mata atlântica. Ação idênticade desmatamento de vegetação nativa estátambém em tramitação na AL, o PL 1591,que autoriza o desmatamento de 7,4 hecta-res, distribuídos em 44 fragmentos, visan-do o alagamento de uma área paraa formação do reservatório de uma PCH(pequena central hidrelétrica) chamadaPedra Furada, no município de Ribeirão,na Mata Sul.

A OPÇÃO TERMELÉTRICA

Mais recentemente, o comunicado divulga-do pelo grupo finlandês Wärtsilä, que iráassumir a construção da usina termelétricaSuape II, no Complexo Industrial e Portuá-rio de Suape, com uma potência instaladade 380 MW, funcionando com óleo com-bustível: uma sujeira só para o meio ambi-ente. O projeto do tipo “chave na mão”(turnkey) pertence a um grupo formado pelaPetrobrás e a Nova Cibe Energia (GrupoBertin), cujo início de operação comercialestá prevista para 1º de janeiro de 2012.

Em nome de alavancar o desenvolvimen-to do Estado, com novos investimentospara a região e a criação de novos postosde trabalho e geração de renda, se perpe-tua um modelo predatório, cujas conse-

qüências podem ser traduzidas na acelera-ção da degradação ambiental e no aumen-to das emissões de gases de efeito estufa,responsável pelas mudanças climáticas;além de pressionar os problemas econô-micos e sociais com mais concentração dariqueza gerada.

A questão das opções e das escolhas dasfontes de energia é assunto em pauta, nocontexto mundial, pois são as fontes ener-géticas atuais (petróleo/derivados, gás na-tural, carvão mineral e minérios radioativos)responsáveis por mais de 2/3 das emissõesde gases de efeito estufa no mundo. Comrelação à instalação de termelétricas no stado, recordemos da TermoPernambuco TermoPe), movida a gás natural, que até ecentemente, por falta deste insumo, nunc-a havia atingido sua capacidade instalada lena de 520 MW, além de ter contribuído e ontribuir significativamente para a ajoração extraordinária das tarifas de energ-ia elétrica no Estado. Trata-se de um exemp-lo que não podemos esquecer.

O que deixa atônito a todos é este anúncio,completamente inexplicável do ponto devista ambiental e da oferta de energia elétri-ca, da Energética Suape II. O combustível aser empregado é o óleo combustível, quedentre os combustíveis fósseis é o mais“sujo”, pois para cada 0,96 m3 de óleo com-bustível consumido na usina serão emiti-das 3,34 toneladas de CO2 (segundo a Agên-cia Internacional de Energia).

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termelétricas, usinas nuclearesMODELO PREDATÓRIO:e desmatamento

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Heitor Scalambrini Costa – Graduado em Físi-ca pela Universidade de Campinas/SP, mestradoem Ciências e Tecnologias Nucleares na Universi-dade Federal de Pernambuco, e doutorado emEnergética - Université d’Aix-Marseille III (Droit,Econ. et Sciences) (1992). Professor associado daUniversidade Federal de Pernambuco. Artigo pu-blicado em www.ecodebate.com.br (2/6/2010).

A OPÇÃO NUCLEAR

O interesse pelas usinas nucle-ares é outra decisão absurda dogoverno estadual, completa-mente descabida, fora de pro-pósito e equivocada. Os argu-mentos utilizados como o da di-versificação da matriz energéti-ca, atendendo o crescimento dademanda de energia da região,de que é uma tecnologia segu-ra, não emissora de CO2 e bara-ta para a produção de energiaelétrica, são argumentos falaci-osos e não representam a ver-dade dos fatos.

Com relação aos custos daeletricidade nuclear eles sãocaros e irão impactar aindamais as tarifas de energia elé-trica, uma das mais caras domundo. É uma tecnologia se-gura? Como se fosse possí-vel, alguns de seus defenso-res chegam a afirmar que osriscos de ocorrer um acidenteinexistem. Obviamente, não podemos ne-gar os renovados esforços da indústrianuclear em apresentar-se como segura, to-davia, acidentes em instalações nuclearesem diversos países continuam a demons-trar que esta tecnologia é perigosa, ofere-cendo constantes riscos que podem trazerconseqüências catastróficas ao meio am-biente e à humanidade, por centenas demilhares de anos. Sem falar em outro pro-blema que continua sem solução no Brasile no mundo, que é o armazenamento dolixo radioativo gerado pelas usinas. Esti-ma-se que estes rejeitos tenham que ficarisolados durante até 10 mil anos. Aí se evi-dencia um problema de ordem ética, poisusamos a eletricidade agora e deixaremospara as gerações futuras resolver o quefazer com este lixo.

Afirmar que as centrais nucleares não con-tribuem para os gases de efeito estufa, quesão “limpas”, é uma meia verdade. No con-junto de etapas do processo industrial quetransforma o mineral urânio, desde quandoele é encontrado nas minas em estado natu-ral até sua utilização como combustível den-tro de uma usina nuclear, chamado ciclo docombustível nuclear, são produzidas quan-tidades consideráveis de gases de efeito es-tufa. Segundo dados da Agência Internaci-onal de Energia Atômica se consideramos a

mineração do urânio, o transporte, o enri-quecimento, a posterior desmontagem dacentral (descomissionamento) e o processa-mento e confinamento dos rejeitos radioati-vos, esta opção produz entre 30 e 60 gramasde CO2 por kWh gerado. Já de acordo com ametodologia de Storm e Smith para o cálculode emissões, o ciclo de geração por fontesnucleares emite de 150 a 400 g CO2/kWh,enquanto o ciclo para geradores eólicos emitede 10 a 50 gCO2/kWh. O cálculo que faz aOxford Research Group chega a 113 gramasde CO2 por kWh. Isso é aproximadamente oque produz uma central a gás. Portanto, aquitambém tem um mito, um afã de descartar,cortar e mostrar uma parcialidade sobre a re-alidade desta fonte de energia.

DESPREZO PELOS IMPACTOS AMBIENTAIS

Quanto os desmatamentos previstos na áreade Suape, também há um engano que com-prometerá as futuras gerações, em afirmarque o “novo ciclo de desenvolvimento (?)”,e que a “redenção econômica do Estado (?)”exigirá “o sacrifício ambiental” daquela área,segundo o diretor de Engenharia e MeioAmbiente de Suape (JC de 25/04/2010 “Osdesafios do Desenvolvimento”).

É preciso que se façam os investimentos cor-retos a fim de compatibilizar o desenvolvimen-to que leva em conta a saúde, a educação, a

cultura, com a diversidade e coma proteção dos recursos natu-rais. Temos sim, que avançar nosentido de uma mudança de pa-radigma da relação das indústri-as com os recursos naturais,com o uso de novas tecnologi-as, que possam ser menos polu-entes, que possam contaminarmenos, que assumam esse pa-pel da responsabilidade social eambiental. É preciso cada vezmais dizer alto e em bom tom queo meio ambiente não atrapalha odesenvolvimento.

Empreendimentos da magnitu-de que estão ocorrendo nãopodem acontecer sem uma for-te participação da sociedade,pois os impactos ambientais,entendidos como as conseqü-ências das ações previstas e emandamento, acabarão influindona qualidade de vida, não so-mente dos moradores daquelaregião, mas de todo o Estado.

Partindo do conceito de desenvolvimentosustentável podemos afirmar que é um ab-surdo e um equívoco que o governo esta-dual opte pela energia nuclear e pela terme-létrica a óleo combustível para geração deenergia elétrica, considerando que o Esta-do conta com outras opções de produção apartir de energias renováveis e limpas (so-lar, eólica, bioeletricidade/bagaço da canade açúcar). Para um desenvolvimento sus-tentável, voltado para o bem de todos, dapessoa humana e da natureza, não se deveoptar pelo desmatamento e sim pela preser-vação ambiental.

O mais importante a destacar é que o cresci-mento que estamos vivenciando em Pernam-buco está subordinado a um modelo de de-senvolvimento econômico que consideraque crescer desmatando e utilizando fontesenergéticas “sujas” é o único caminho. Umavisão do século passado que ainda dominaas mentes dos gestores. ■

É preciso que se façam os investimentoscorretos a fim de compatibilizar o

desenvolvimento que leva em contaa saúde, a educação, a cultura,

com a diversidade e com a proteçãodos recursos naturais.”

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por Rejan R. Guedes-Bruni e Rogério R. de Oliveira

Em recente mapeamento sobre a cobertura remanescente de MataAtlântica nos estados brasileiros, a Fundação SOS Mata Atlânticae o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) assinalam queesta vegetação encontra-se reduzida a 7% de sua área original noterritório brasileiro.

No estado do Rio de Janeiro, a florestadistribui-se por 807.495 ha, o que cor-

responde a 18,37%. Destes remanescentes,cerca de 30% se encontram em unidades deconservação, ora na Serra do Desengano,ao norte; nas Serras dos Órgãos e Tinguá,na porção central; ao sul e sudoeste, os con-trafortes da Bocaina e da Mantiqueira e, orana região metropolitana, revestindo os Ma-ciços da Tijuca e da Pedra Branca.

Estes grandes corpos florestais assim dis-persos pelo território do estado podem serconectáveis por uma malha de pequenosfragmentos florestais presentes nas cerca-nias da malha rodoviária, dos espaços edi-

ficados ou ainda de áreas de agricultura epastagem. Juntos, os grandes corpos flo-restais e os pequenos fragmentos detêmimportantes matrizes de espécies florestais,recursos ambientais, bem como fontes dehistória, cultura e transcendência. A cida-de do Rio de Janeiro detém 16% de rema-nescentes, que totalizam 17.358 ha de áre-as de Mata Atlântica.

O naturalista Carl Von Martius – responsávelpela Flora Brasiliensis, a mais importanteobra de referência sobre as plantas brasilei-ras (http://florabrasiliensis.cria.org.br/) – emsuas primeiras incursões à vegetação da ci-dade, nos arredores do Corcovado, Pão de

Açúcar, Lagoa Rodrigo de Freitas e serraniasmais afastadas, descreve em seu relatório deviagem ao rei: “Diante de tanta riqueza deformas, não temos mãos e olhos suficientespara realizar nosso trabalho. Cada um denós teria que ser pintor, empalhador, caça-dor e herbalista para poder representar ereunir toda esta riqueza.”

Este encantamento diante da assombrosa di-versidade biológica, que “ama esconder-se”aos olhos dos especialistas, não finda com opassar dos séculos. Nos anos 60, várias ex-cursões científicas foram empreendidas porbotânicos, como bem exemplifica a coleçãode Dimitri Sucre, depositada no herbário do

patrimônio biológico e culturalFlorestas urbanas:

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Jardim Botânico do Rio de Janeiro, desvelan-do o que a natureza teimava em ocultar, mes-mo diante do crescimento urbano da cidadesobre restingas, mangues e morrotes, comoos do Cabrito, do Sacopã e Pedra de Itaúna.Várias novas espécies foram ali coletadas edescritas para a ciência, num local de potenci-al biológico pouco valorizado.

O incêndio sobre a mata do Morro dos Ca-britos e Sacopã (originado pela queima deum balão junino, em 20 de junho último) e aproposta de crescimento da cidade sobre asencostas trazem à tona não só o valor quetêm pequenos fragmentos de vegetação na-tiva, como o enorme papel que as florestasurbanas desempenham para a qualidade devida dos habitantes da cidade, a saber: ame-nização do clima, fixação de carbono, produ-ção de água pelas nascentes, redução dachuva e interceptação de poluentes presen-tes no ar atmosférico ao passar pelas copasdas árvores, além de conforto ambiental.

No caso da cidade do Rio de Janeiro, a inte-ração destes dois sistemas de natureza tãoopostas – cidade e montanha – leva ao esta-belecimento de uma rede de trocas, que co-labora para a construção de uma realidadeímpar. Se por um lado, as florestas provêmserviços ambientais à malha urbana que aengloba, por outro o processo de expansãourbana tem provocado alterações significa-tivas na cobertura florestal, modificandosuas estrutura e funcionalidade, especial-mente nas áreas montanhosas.

A interface cidade-floresta envolve nume-rosos vetores de transformação localiza-dos (edificações formais; estradas; trilhas;loteamentos; favelas etc.) e difusos (even-tos climáticos extremos; poluição atmosfé-rica; queimadas etc.), os quais, raramente,têm sido abordados numa visão sistêmica,global e articulada do meio ambiente.

Assim, o avanço acelerado da urbanizaçãosobre as encostas montanhosas da cidaderesulta na rápida degeneração ou remoçãoda floresta, favorecendo sua destruição ousubstituição por feições urbanas. Esta si-tuação é ainda mais inquietante quando seconsidera a Zona Oeste como pólo de cres-cimento da cidade do Rio de Janeiro.

Além desta importância local, cabe às florestasurbanas um destacado e relevante papel noque se refere às mudanças climáticas em escalaglobal. O aumento da quantidade de CO2 na

atmosfera constitui um dos principais causa-dores de alterações climáticas, em função doaumento da retenção de calor vindo do sol.

Dentre as poucas alternativas disponíveispara equilibrar a concentração de carbonona atmosfera destacam-se a redução daqueima de combustíveis fósseis e o aumen-to do seqüestro de carbono. Quando as flo-restas são derrubadas, o carbono presentena biomassa viva, acima do solo, é lançadoà atmosfera sob a forma de CO2. Areabsorção deste carbono ocorre simulta-neamente ao processo de regeneração flo-restal, quando através da fotossíntese oCO2 é convertido em biomassa florestal.

No decorrer dos anos, ao longo da sucessãoecológica, com o aumento da presença de ár-vores a estocagem de carbono é simultanea-mente acrescida, principalmente, sob a formade madeira. Portanto, as florestas secundári-as (que constituem a maioria das formaçõesflorestais do Rio de Janeiro) contribuem paraa redução dos gases responsáveis pelo efei-to estufa, sendo um dos poucos mecanismosefetivos de retirada do CO2 atmosférico.

A conservação dos fragmentos florestaisinseridos em contextos urbanos deve seravaliada de forma constante, interdisciplinare participativa. De acordo com a Sociedadede Restauração Ecológica (SER), “restaura-ção ecológica é o processo de assistir a re-cuperação e o manejo da integridade eco-lógica, contextos históricos e regionais e aadoção de práticas culturais sustentáveis”.

Como pode ser observado no conceito, a res-tauração de ambientes degradados impõe aparticipação da comunidade nas ações de res-tauração de áreas degradadas e é fundamen-tal para a permanência dos resultados dessasações. Portanto, a restauração de florestasurbanas degradadas depende tanto de umarcabouço técnico quanto de um processode forte caráter formativo e educativo.

Assim, é cada vez maior a percepção de queas comunidades estabelecidas nos arredo-

Rejan R. Guedes-Bruni- Pesquisadora do Jar-dim Botânico do Rio de Janeiro. Rogério R. deOliveira é professor associado do Departamentode Geografia da PUC-Rio. Artigo publicado no Jor-nal da Ciência, SBPC, JC e-mail 4043 (1/7/2010).

res de suas florestas constituem importan-tes atores para se apreender a história dapaisagem local e a valorização do conheci-mento “tradicional” sobre o remanescentede floresta. O resgate deste conhecimentointernalizado pelas comunidades atingidas,quando integrado aos dados de diferentespesquisadores, constitui relevantes subsí-dios para ações de conservação que venhamser implantadas pelos órgãos de governo.

O legado destes incêndios, que infelizmen-te se repetem com lamentável precisão bri-tânica a cada inverno, só pode ser inteira-mente conhecido anos depois. Apesar deaparentemente as florestas se recuperaremapós a passagem do fogo, sua composiçãoe seu funcionamento ficam comprometidos.

Nas chuvas fevereiro de 1996, as regiões oes-te e norte do Rio de Janeiro foram assoladaspor um sistema frontal estacionário que che-gou a 127mm de chuva em seis horas, ocasio-nando desabamentos de encostas com inten-sidade e número jamais registrados, com umsaldo de mais de 50 vítimas fatais. Foram con-tabilizados somente no Maciço da Tijuca umtotal de 104 desabamentos. Deste total, 86%se deram em áreas de encostas cobertas porcapim colonião ou em florestas regeneradasapós incêndios. Somente 2% dos deslizamen-tos em áreas de florestas conservadas. Ouseja, os incêndios de hoje podem ser respon-sáveis por desabamentos de amanhã.

A convivência diária com a estética do belogeológico e o privilégio de uma paisagem na-tural como a da cidade do Rio de Janeiro diale-ticamente dificulta aos seus habitantes a com-preensão do quão distinto e singular é sua si-tuação de ente da diversidade biológica. Osjornais exemplificaram diferentes formas desentimento e ação por parte dos cidadãosno sentido de expressar seus desejos deconservação daquela pequena mata nos ar-redores da lagoa Rodrigo de Freitas, tantoquanto das florestas que emolduram o acer-vo artístico particular a cada carioca e brasi-leiro. Olhando numa escala micrométrica defloresta e amplificando-a para a escala doCódigo Florestal Brasileiro, restam-nos osdizeres de Heidegger, para quem: “maior quea realidade é a possibilidade”. ■

Cabe às florestas urbanasum destacado e relevante

papel no que se refereàs mudanças climáticas

em escala global.”

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AS Aquecimento global:

Entrevista com Phil Jones

EL PAÍS – O SENHOR OU A SUA EQUIPE EXAGERARAM O AQUECIMENTO?Phil Jones – Nunca. Não manipulamos os dados. Não há dúvidasobre a ocorrência da elevação das temperaturas planetárias. Duasequipes nos Estados Unidos usam outras séries de dados, e as con-clusões de todos os grupos apontam mais ou menos os mesmosdados acerca do aquecimento global. A notar que nossa série dedados está até abaixo dos observados pelas equipes americanas.

EL PAÍS – MESMO NA ÚLTIMA DÉCADA?P.J. – Sim. É preciso valorizar a significância estatística do aqueci-mento, pois é difícil trabalhar com tendências de curto prazo, algo quenão se deve fazer. Não se deve esperar aumentos temperatura a cada

Phil Jones teve um ano horrível. No final de 2009, pouco antes da COP-15, emCopenhague, um hacker postou na web milhares de e-mails da prestigiadaUnidade de Investigação do Clima (CRU, na sigla em inglês) da universidadebritânica de East Anglia, dirigida por Jones. O escândalo ficou conhecidocomo Climategate, já que, nos e-mails, Jones e seus colegas aparentementeexageravam o aquecimento global. Pesquisador e cientista britânico, Jonesacaba de voltar ao seu posto após ser inocentado de más práticas pelas comis-sões que o investigaram. Veja o que ele tem a dizer sobre o aquecimento global.

ninguém mais duvida!

ano; o sistema climático não funciona assim. Há variabilidade anualpropiciados por eventos como o El Niño ou atividades vulcânicas, equalquer aquecimento produzido pelo homem se sobrepõe a isso.

EL PAÍS – NÃO HÁ REFUTAÇÃO CIENTÍFICA SOBRE ESSA QUESTÃO?P.J. – Não. Nenhum climatologista duvida disso. O negacionismoé suscitado por pessoas que alardeiam dúvidas na imprensa paralevar o público a duvidar da questão climática.

EL PAÍS – PARECE QUE OS NEGACIONISTAS ESTÃO TENDO SUCESSO.P.J. – Eles só sabem semear dúvidas. Não pesquisam nem ofere-cem novos dados sobre as temperaturas dos últimos 100 anos.

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Muitos criticaram que não publicamos os dados brutos de tempe-ratura obtidos em nossas estações de observação. Fizemos issoem janeiro deste ano, e ninguém os usou. Eles só querem provocarceleuma na internet e na mídia. Li um livro que compara tal açãocom as táticas usadas no passado pelas empresas de tabaco paracalar os médicos que afirmavam ser o tabaco uma causa de câncer.

EL PAÍS – QUEM PODE TER PIRATEADO SEUS E-MAILS?P.J. – Ninguém sabe. Estamos convencidos de que foi alguém defora da universidade.

EL PAÍS – ALGUÉM QUE QUERIA MINAR A CONFIANÇA PÚBLICA NA CIÊNCIA

DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS?P.J. – Provavelmente.

EL PAÍS – O SENHOR AFIRMOU TER DITO NAQUELES E-MAILS “COISAS

HORRÍVEIS”. A QUE SE REFERIA?P.J. – Que alguns e-mails lidos anos depois podiam ser mal interpre-tados. Tony Blair diz, em suas memórias, que esperara nunca apro-var a Lei de Liberdade de Informação porque ela torna praticamenteimpossível para o governo a discussão franca. Tudo o que for escri-to em um e-mail pode ser usado mais tarde. As afirmações em nos-sos e-mails foram retiradas de seus contextos originais e erronea-mente interpretadas à luz de acontecimentos posteriores. Esses e-mails nunca foram escritos para serem lidos dez anos depois.

EL PAÍS – COMO ACHA QUE DAQUI A 20 OU 30 ANOS O CLIMATEGATE

SERÁ CONSIDERADO: ASSUNTO RELEVANTE OU UMA PIADA?P.J. – Espero que as pessoas voltem a acreditar na ciência, masacredito que isso vai demorar alguns anos. Aqui, colocam-se duasquestões. Muitos acreditam que o planeta está aquecendo. É ridí-culo colocar em dúvida o aquecimento global – algo claro, quenenhum cientista questiona. Depois, há quem afirme que mesmonesse caso o tal aquecimento não é devido à atividade humana.

EL PAÍS – O DEBATE SOBRE A INFLUÊNCIA HUMANA NO AQUECIMENTO ÉRELEVANTE?P.J. – Há cientistas que ainda duvidam, mas são poucos. E quan-do se lhes é perguntado como explicam o aquecimento ocorrido,todos têm muita dificuldade em apresentar justificativas, já que émuito difícil encontrar além dos gases de efeito estufa. Outra expli-cação racional para o evento

EL PAÍS – FALA-SE QUE OCORREU PERÍODO QUENTE SEMELHANTE AO

ATUAL NA IDADE MÉDIA.P.J. – Seriam necessárias mais evidências para esse período sobreo qual a informação é muito restrita, e mesmo assim só disponívelpara o hemisfério norte.

EL PAÍS – JÁ OCORRERAM PERÍODOS TÃO QUENTES COMO O ATUAL?P.J. – Sim, e sabemos a razão da alternância de períodos quentes e friosno passado. A quantidade de radiação solar era diferente e, por isso, nofuturo teremos idades de gelo. Esses processos ainda continuam e vãocontinuar, mas em escala temporal completamente diferente da humana.Atualmente, falamos de mudanças climáticas em um século, período detempo muito curto em comparação aos dados do passado.

EL PAÍS – TAMBÉM HÁ QUEM AFIRME QUE MESMO SENDO DEVIDO À EMISSÃO

DE GASES DO EFEITO ESTUFA O AQUECIMENTO NÃO É FATOR DE PREOCUPAÇÃO.

P.J. – Em algumas regiões pode ser que não haja com o que se preo-cupar. Na Europa Ocidental, por exemplo, os impactos não serãomuito graves. Os britânicos não se importam de ter um clima um pou-co mais quente, até porque não teriam de deixar o país para tirar féri-as. Mas, no sul da Espanha, onde já faz muito calor, a vida poderia setornar muito difícil, e em outras zonas aumentariam as secas. As pre-visões indicadas no painel do IPCC (Painel Intergovernamental so-bre Mudanças Climáticas) referenciam aumento de temperatura dedois e seis graus até 2100, se continuarmos emitindo gases do efeitoestufa. Mesmo um aumento de dois graus é um aquecimento muitogrande. Essa é a média mundial, e por isso algumas regiões se aque-ceriam muito mais. Não acredito que essa incerteza seja desculpa paranão se fazer nada. Pode-se dizer que outras coisas são mais impor-tantes. Mesmo a menor previsão representa um aquecimento 2,5 vezesmaior m relação à temperatura no século 20.

EL PAÍS – MESMO COM ESSE QUADRO ACREDITA HAVER SOLUÇÃO PARA AQUESTÃO?P.J. – Há quem diga que estamos condenados, o que é ridículo.Mesmo com seis graus a mais, continuaremos aqui, não desapa-recemos como espécie. Seria ridículo mirar na pior previsão.

EL PAÍS – NÃO FOI PRECIPITADO VINCULAR-SE CADA ONDA DE CALOR ECADA SECA COM AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS? TALVEZ, POR ISSO, QUANDO

OCORREU UM INVERNO MAIS FRIO OS CÉTICOS TENHAM USADO A OCOR-RÊNCIA PARA AFIRMA QUE NÃO ESTÁ ACONTECENDO NADA.P.J. – O inverno passado pareceu muito frio. Mas só na Europa Oci-dental e na costa leste da América do Norte. No entanto, ele foi o maisquente em todo o mundo desde 1850. Não se pode afirmar que nomundo faz frio só porque numa dada região ocorreu um inverno maisrigorosos. Tem-se de observar séries de décadas, não anos individua-lizados. A década que agora termina foi a mais quente desde 1850; emais quente do que a dos anos 1990, a qual, por sua vez, foi mais quen-te que a de 80, e esta mais do que a de 70, e assim por diante. Essas sãoas mudanças climáticas que devemos considerar.

EL PAÍS – ACREDITA TER HAVIDO MUITO CATASTROFISMO, FATO QUE DE-BILITOU A PERCEPÇÃO DO PROBLEMA?P.J. – Talvez por parte das organizações ambientalistas. Mas nãocreio que esse extremismo tenha chegado às publicações científi-cas, que só divulgam fatos comprovados. O problema é como ainformação aparece na mídia.

EL PAÍS – ALGUMAS DESSAS AFIRMAÇÕES ALARMISTAS E SEM RIGOR CHE-GARAM AO IPCC...P.J. – Não no grupo científico.

EL PAÍS – UMA INVESTIGAÇÃO INDEPENDENTE CONCLUIU QUE O GRÁFICO

QUE MOSTRAVA AUMENTO DA TEMPERATURA MUITO ACENTUADO NO SÉ-CULO 20 ERA ENGANOSO.P.J. – Esse diagrama não foi figura em nenhum trabalho científico, nemno último relatório do IPCC. Surgiu no relatório da Organização Mete-orológica Mundial, de 1999. Feito para um público não científico, porisso relativamente simples. Às vezes nos pedem para escrever em ter-mos simples para um público amplo, fato que torna difícil pôr advertên-cias que não desestimulem o interesse do público em geral. ■

Rafael Méndez – Entrevista de publicada no jornal espanhol El País(12/9/2010).

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1. ATIVIDADE SOLAR E CLIMA: O SOL É A CAUSA DO AQUECIMENTO GLOBAL?Resposta: Nos últimos 35 anos de aquecimento global, o solapresentou uma ligeira tendência de resfriamento. Sol e climatêm caminhado em direções opostas.

2. O CLIMA SEMPRE MUDOU

R Mudanças climáticas naturais no passado mostram que o cli-ma é sensível a um desequilíbrio energético. Se o planeta acu-mula calor, as temperaturas globais sobem. Atualmente, o CO2está impondo um desequilíbrio energético devido ao aumentono efeito estufa. As mudanças climáticas do passado, na verda-de, proporcionam evidência à sensibilidade do clima ao CO2.

3. HÁ CONSENSO CIENTÍFICO A RESPEITO DO AQUECIMENTO GLOBAL?R A posição das Academias de Ciências de 19 países, maisvárias organizações científicas que estudam climatologia, é queos seres humanos estão causando o aquecimento global. Maisespecificamente, 97% dos climatologistas que ativamente publi-cam estudos endossam a posição do consenso.

4. O AQUECIMENTO GLOBAL AINDA ESTÁ ACONTECENDO?R Medições empíricas do conteúdo de calor da Terra mostram que oplaneta ainda está acumulando calor e o aquecimento global aindaestá ocorrendo. Temperaturas de superfície podem mostrar resfriamen-to de curto prazo quando se troca calor entre a atmosfera e o oceano,que tem muito mais capacidade de armazenar calor do que o ar.

5. QUAL A CONFIABILIDADE DOS MODELOS CLIMÁTICOS?R Embora haja incertezas nos modelos climáticos, eles conse-guem reproduzir com sucesso o passado e fizeram predições queforam subsequentemente confirmadas pelas observações.

6. AS MEDIÇÕES DE TEMPERATURA DA SUPERFÍCIE TERRESTRE SÃO CONFIÁVEIS?R Vários estudos sobre o efeito de ilhas urbanas de calor e influ-ência da localização dos medidores concluíram que eles têm in-fluência desprezível nas tendências de longo prazo, particular-mente quando feita a média de regiões extensas.

7. O AQUECIMENTO GLOBAL ESTACIOU EM 1998?R O planeta continuou a acumular calor desde 1998 – o aque-cimento global ainda está acontecendo. No entanto, as tempe-raturas de superfície mostram muita variabilidade interna devidoà troca de calor entre os oceanos e a atmosfera. 1998 foi umano particularmente quente devido a um forte El Niño.

8. OS CIENTISTAS PREVIRAM UMA ERA GLACIAL IMINENTE NOS ANOS 70?R As previsões de uma Era Glacial na década de 70 foram base-adas principalmente na mídia. A maioria das pesquisas daqueleperíodo, publicadas em periódicos científicos e revisadas por pa-res, já previam o aquecimento causado pelo aumento de CO2.

9. ESTAMOS NOS APROXIMANDO DE UMA NOVA ERA GLACIAL?R O efeito de aquecimento de mais CO2 se sobrepõe com folgaà influência de mudanças na órbita da Terra ou atividade solar,mesmo que esta caísse para os níveis do Mínimo de Maunder.

10. A ANTÁRTICA ESTÁ PERDENDO OU GANHANDO GELO?R Enquanto o interior da Antártica Oriental está ganhando gelo con-tinental, a Antártica como um todo está perdendo este gelo a umarazão cada vez mais rápida. O gelo oceânico antártico está aumen-tando apesar do Oceano Antártico estar se aquecendo intensamente.

Aumentos nas temperaturas anuais para um período recente de cinco anos (1951-1980)

RESPOSTAS CURTAS E FINAS AOS NEGACIONISTAS DO AQUECIMENTO GLOBALSkeptical Science, a página de John Cook cujo lema é “seja cético diante do ceticismo com o aquecimento global”,produziu uma impressionante lista de 119 respostas a supostos argumentos contra a noção de aquecimento globalantropogênico (AGÁ, para simplificar) repetidos à exaustão pelos mal denominados “céticos” (negacionistas).

São respostas breves e úteis, mas não param por aí. Cada uma delas traz links para quem quiser se aprofundar nasreferências científicas. Na próxima vez que um termochato pegar no seu pé, saque a lista (há até versões paracelulares). Abaixo, uma amostra das dez primeiras respostas, cujas versões completas devem ser lidas emwww.skepticalscience.com/argument.php.

Fontes: Hansen, J., Sato, M., Ruedy, R., Lo, K., Lea, D.W. and Medina-Elizade, M. (2006). Global temperature change. Proc. Natl. Acad. Sci.,103, 14288-14293. Cartógrafo/designer: Hugo Ahlenius, UNEP/GRID-Arendal. Publicado em Global Outlook for Ice and Snow InternationalPolar Year (IPY) educational posters (julho 2007). Link: http://maps.grida.no/go/graphic/increases-in-annual-temperatures-for-a-recent-five-year-period-relative-to-1951-1980

O aquecimento é generaliza-do, geralmente maior sobreos continentes do que sobreos oceanos. Os maiores au-mentos de temperaturas pla-netários situam-se no Árticonorte-americano, no norte daSibéria central e na penínsu-la Antártica. Estes recentesaumentos de temperatura sãoconfirmados por alteraçõesem outros dados relevantes,como perda do gelo marinho,mudanças na vegetação detundra para arbustiva e mi-gração dos ecossistemas ma-rinhos e terrestres para lati-tudes mais altas.

Dados insuficientes

Variações de temperatura

Fonte: Marcelo Leite, Ciência em Dia

2001-2005Variações na temperaturamédia superficial em oCpara o período 1951-1980

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