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Índice

Cinemateca: memória e futuro – à conversa com José Manuel CostaabÍlio hernandez

Os filmes não têm a ver com os espectadores que fazem, mas com os traços que deixam – à conversa com Paulo BrancoMargarida cardoso

Vai e vem – a internacionalização do cinema portuguêspaulo cunha

Cinema/História – o cinema como historiador do século XX portuguêstiago baptista

O Império na memória do cinema – uma permanência sem abril (1940 -2015)jorge seabra

Cinema Império – propaganda e censura no Estado NovoMaria do carMo piçarra

Um filme não é uma telenovelajoão lopes

Cinema português – como aproveitar as oportunidades de internacionalização?luÍs urbano

Crítica e cinefilia – dos Cahiers amarelos à nova democracia digitalluÍs Mendonça

Lições do cinema portuguêshaden guest

O cineasta indisciplinar de Deuscarolin overhoff ferreira

A coprodução cinematográfica de língua portuguesa em Moçambiquejoão ribeiro

resuMos/abstracts

notas biográficas

conversas

ensaios

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Editorialana paula laborinho

Cinema português em perspetivaabÍlio hernandez e Margarida cardoso

Diálogo dos mortos e dos vivos – para Pedro Costa, perguntas sombrias com respostas ilustresnicole brenez

testeMunhos

Transmission from the liberated zonesfilipa césar

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Editorialana paula laborinho

presidente do caMões, ip

A publicação da revista Camões sobre Cinema segue o caminho trilhado nos dois números anteriores ao debruçar-se sobre uma arte específica, no espaço da cultura e da história

portuguesas, procurando, através de testemunhos, ensaios e conversas com personalidades marcantes dessa área, desvendar o papel da cinematografia portuguesa no passado, refleti-la no presente e projetá-la no futuro.

Para isso, contámos no Conselho Editorial com a colaboração de Margarida Cardoso e Abílio Hernandez que convidaram críticos, académicos, produtores, historiadores, bloggers, programadores, artistas plásticos e cineas-tas a refletir sobre o cinema português.

A memória e as relações do cinema com a história são um dos principais fios condutores deste número, relembrando que a história do cinema (em todas as suas vertentes) é também a história de um país, das suas dificuldades e das suas qualidades.

Paralelamente, e porque o cinema está em constante diálogo com o mundo, discute-se o lugar do cinema no mundo digital e questiona-se o papel da crítica como elemento basilar para o entendimento de uma arte que não se encerra em si mesma, mas que comunica com outros objetos artísticos (cinefilia vs cinefagia).

A leitura global deste número da revista Camões permite-nos refletir sobre pontos de vista e olhares que contribuem para pensar uma arte em constante mudança, ao mesmo tempo que aponta para a pluralidade de práticas fílmicas que configuram o cinema no contexto português.

Ela aponta também para uma relação cada vez mais forte com outros territórios, evidenciando que o trabalho pioneiro de internacionalização realizado por Manoel de Oliveira e por Paulo Branco tem vindo a prosseguir, com um número crescente de realizadores portugueses a ver o seu nome reconhecido internacionalmente.

As plateias conquistadas nas várias salas internacionais evidenciam que os autores portugueses dominam fluentemente a língua que lhes permite comunicar com os seus espectadores: a linguagem cinematográfica.

Essa é a verdadeira linguagem do cinema: uma língua universal, entendida para além da partilha linguística.

Esperamos que este número sirva esse trilho internacional e contribua para o reconhecimento crescente do cinema português.

Cineteatro Gil Vicente, plateia, 2011. © Filipe Branquinho

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Montanha (2015), João Salaviza. © Filmes do Tejo

Cinema português em perspetiva

abÍlio hernandez

Margarida cardoso

Serge Daney escreveu, um dia, que o cinema é um país suplementar. Com fronteiras fluidas e em permanente mudança, podemos acrescentar. O cinema português faz

parte desse país suplementar, partilhando códigos comuns, propondo práticas fílmicas diversas e estabelecendo diálogos e confrontos com outras práticas, próximas e longínquas, visíveis ou quase invisíveis, no contexto do contributo mais vasto com que o cinema nos convoca para o ato de pensar o estado do mundo e a nossa relação com ele.

De que forma vemos e de que forma outros, fora de Portugal, veem o cinema português? Por natureza, o cinema é uma arte em permanente mudança e, por essa razão, tão importante como perguntar “o que é o cinema português” será perceber de que modos ele pode ser pensado, a partir de que pontos de vista, de que olhares, de que tipo de envolvimento, a partir de que lugar ou distância.

Este número da revista Camões não pretende traçar uma história do cinema português, fazer um balanço dessa história, propor uma nova doutrina sobre o conceito de cinema nacional ou estabelecer um panorama exaustivo do cinema português contemporâneo. Assume somente que o conceito de cinema português – necessariamente problemático e, portanto, sujeito a permanente debate teórico – é passível de continuar a ser pragmaticamente utilizado enquanto quadro de referência para a pluralidade de práticas fílmicas heterogéneas que se situam no contexto artístico português. Do mesmo modo, não se busca aqui um consenso, nem se quer promover a consolidação do conhecimento existente. Não se trata, pois, de um balanço, nem da oferta do conforto de um saber já adquirido. Pelo contrário, o que se pretende com este número dedicado ao cinema português é, justamente, como o título do volume indica, colocá-lo em perspetiva, quer dizer, submeter à apreciação dos leitores um espaço onde se partilhem conversas, leituras, testemunhos e olhares críticos que proponham reflexões diferentes, eventualmente divergentes ou mesmo opostas, sobre alguns dos aspetos que de modo mais relevante possam marcar a história, a prática e a crítica do nosso cinema.

O cinema português tem sido objeto de um interesse crescente a nível nacional e internacional. Em Portugal e a nível académico, com a sucessiva criação de cursos universitários e politécnicos de licenciatura, mestrado e

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cineMa português eM perspetivaabÍlio hernandez e Margarida cardoso

A quem se destina este número? A cada um(a) de nós, isto é, ao homme ordinaire du cinéma, a figura criada por Jean Louis Schefer, que não deve ser confundida com a figura de cidadã(o) comum, antes designa a entidade criada e moldada pelo próprio cinema, para quem, em palavras do próprio Schefer, os objetos de prazer se tornam objetos de saber e não o inverso. Em suma, um(a) espectador(a) de cinema. Neste caso, do cinema português.

Por fim, é devido um agradecimento profundo a todos quantos, no Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, colaboraram no pla-neamento, na organização e na feitura da revista. Em primeiro lugar e em representação de todos, é devida gratidão a Alexandra Pinho, que desde a primeira hora não só acompanhou e incentivou os responsáveis pela edi-ção, como em muitos momentos os orientou. Sem a sua contribuição, este número dedicado ao cinema português não só seria menos rico, como teria corrido o risco de não se ter sequer completado.

doutoramento e com o consequente desenvolvimento da investigação no âmbito da academia. No plano internacional, é muito clara também a atenção cada vez maior de que é alvo, não já quase exclusivamente sobre Manoel de Oliveira, como sucedeu durante largos anos, nem apenas sobre Pedro Costa, apesar da sua relevância no panorama mundial da arte cinematográfica, mas sobre todo o cinema português e sobre o lugar que ocupa no panorama do cinema contemporâneo.

Com os textos aqui reunidos, pretende-se contribuir para o que podemos designar por um retrato móvel do cinema português, isto é, uma imagem que se vai configurando e enriquecendo com contributos sucessivos e diversos. As conversas incidem sobre três aspetos centrais da atividade cinematográfica: a produção, a criação e a conservação do património cinematográfico. Os ensaios incluem leituras de natureza mais histórica e um ensaio visual que nos propõe uma leitura do cinema português através da linguagem artística. As vozes críticas e os testemunhos, quer nacionais quer estrangeiros, incidem sobre uma função essencial da crítica: ler a arte, neste caso o cinema português, e tentar sondar o mundo através dela.

Os intervenientes neste diálogo são académicos, produtores, historiadores, críticos, bloggers, programadores, fotógrafos, artistas plásticos, cineastas. Pertencem a gerações diferentes e vivem em Lisboa, Paris, Coimbra, São Paulo, Aveiro, Maputo, Cambridge ou Massachusetts. Necessariamente incompleto e não encerrado em si mesmo, o campo de reflexão plural que se propõe afirma-se declaradamente aberto a novos modos de pensar criticamente o cinema em geral e o cinema português em concreto, memórias do seu passado, trajetos do seu presente, projeções do seu futuro.

Num ensaio que escreveu há alguns anos sobre a relação de Adorno com o cinema, Nicole Brenez escreve que o facto de podermos pensar com certos filmes e não apenas sobre eles é o sinal irrefutável do seu valor. Interrogar o cinema, pensar sobre o cinema português, mas pensar igualmente ou sobretudo com o cinema português eis um dos objetivos desta revista. Em suma, interrogar em lugar de prescrever, interrogar o cinema português, pensá--lo a partir dele e com ele. Espera-se que, com as conversas, os ensaios (tanto os textuais como o visual), as vozes críticas e os testemunhos que dela fazem parte, se tenha conseguido construir uma produtiva teia de interrogações, capaz de traçar do cinema português a imagem plural que se procura.

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Cinemateca: memória e futuro – à conversa com José Manuel CostaabÍlio hernandez

Comecemos pela missão patrimonial da Cinemateca e pelo que está em causa quando

falamos de património do cinema: filmes, instituições que os preservam, como estúdios, cenários e a sala escura com a grande tela iluminada que, durante um século, foi o único lugar identitário do cinema. Sobre o conceito de património, que comporta o desejo de preservação e transmissão, proponho que conversemos também sobre a outra face: a perda, a que ocorreu e a potencial. Falemos do arquivo, esse imenso palácio da memória, como lhe chamou Santo Agostinho, o lugar onde as coisas se conservam e também se perdem. A Cinemateca lida com a memória e o esquecimento, e o José Manuel sabe que dirige uma instituição onde se exerce um poder extraordinário: o de escolher, incluir, mas também excluir, enviar para o lugar do esquecimento. Como é que a Cinemateca lida com o “mal de arquivo”, com a impossibilidade de o estabilizar, de evitar as marcas do esquecimento? Em concreto, que partes da história do cinema – e do cinema português, em especial – é que a Cinemateca decide privilegiar? E com que critérios, sabendo que as decisões produzem um discurso sobre o próprio poder que se exerce?Muito bem, já temos agenda para um dia de conversa! Gostava de começar pela própria definição das funções da Cinemateca, porque elas não foram as mesmas ao longo da sua história, e uma das coisas a que dou muita importância é a clarificação concep-tual que se fez nos anos 90. Da história da

Cinemateca, considero que ela teve a sorte de lhe terem acontecido duas coisas ao nível da estrutura diretiva: a primeira é ter tido di-retores competentes; a segunda é eles terem podido fazer um trabalho continuado, sem demasiadas oscilações ao longo do tempo. Nessa história, há um primeiro ponto de viragem decisivo, em 1980, quando, pela primeira vez, a Cinemateca se torna um organismo autónomo e dá um salto gigan-tesco, que se projetou em saltos sucessivos nas décadas de 80 e 90. Nos anos 90, há um ponto muito importante: a grande força da Cinemateca enquanto organismo cultural, através da sua programação. Isso deve-se muito à contribuição do João Bénard da Costa, que entrou como subdiretor em 80, mas fazendo já a programação. A década de 80 foi uma década de ouro, não só quanto à grelha de programação, que criou uma tradição para as décadas seguintes, mas também pela resposta que houve. Havia uma fome acumulada de cinema neste país, que tinha a contradição enorme de ter sempre mantido uma cultura cinematográfica, pelo menos desde os anos 20, às vezes de forma milagrosa, ao mesmo tempo que teve um acesso escasso ao património, dado que toda a cultura, por exemplo cineclubista, foi feita a partir de muito poucos títulos. Havia uma contradição muito grande entre a cultura de

cinema que havia em Portugal e a escassez de conhecimento de grande parte do cinema, e a Cinemateca veio resolver isso, o que sig-nificou bichas incomensuráveis na avenida, dias e dias, meses seguidos, anos seguidos. A segunda alteração, que provocou uma reflexão e uma clarificação conceptuais, foi a criação do ANIM (Arquivo Nacional das Imagens em Movimento) em fins de 96. E estas duas coisas transformaram o impacto da Cinemateca na sociedade portuguesa, levaram a uma reflexão interna e a outro salto, que foi a criação de um novo estatuto, em que a Cinemateca clarificou a sua missão e a sua definição institucional. Passa a haver uma instituição que se chama Cinemateca Portuguesa, que é o Museu do Cinema em Portugal, dentro do qual há o Arquivo Nacional das Imagens em Movi-mento, que tem a missão de conservação do património português, que a Cinemateca nunca tinha tido. Os arquivos da televisão ficaram de fora. Muito mais tarde, chegá-mos a acordo com a RTP para a salvaguarda dos suportes do seu arquivo histórico.Feita essa clarificação, estabelecemos que, em Portugal, o que definia conceptualmente a Cinemateca era ser o Museu Nacional do Cinema, dentro do qual estava o Arquivo. O nosso é um modelo a que estou profunda-mente ligado e que faz parte da identidade

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das organizações de museologia cinema-tográfica. Pela minha parte, quero dar continuidade a este modelo, cujos desenvol-vimentos não foram totalmente executados. Fizemos o Arquivo, temos a tradição de uma programação forte e dissemos sempre que havia um terceiro polo que tinha de ser cria-do e ainda não está concretizado, o Museu do Cinema, no sentido mais completo do termo. Claro que o lugar identitário básico do Museu do Cinema é a sala de cinema, o primeiro objeto museográfico é o filme em projeção, mas sempre entendemos que o património do cinema não é só o filme, mas é também tudo o que está à volta dele e que, por isso, era nossa missão salvaguardar o património de cinema em geral, documen-tação, objetos, tudo o que tem a ver com a história do cinema português e em Portugal. A Cinemateca é, hoje, detentora de grandes coleções, mas não tem um espaço adequado para expor e deveria ter.

É um objetivo prioritário…Tenho a certeza de que, um dia, isso vai acontecer. Considero que faz sentido a existência de um único organismo para o património do cinema, também porque o cinema é uma arte jovem e por isso a separação histórica que se fez noutras áreas, nomeadamente no livro, com a separação de bibliotecas e arquivos, não faz aqui sentido. Não fazendo, é fundamental perceber que, se se quebrar esse laço, quebra-se aquilo que define uma Cinemateca.Para mim, o que define uma Cinemateca não é ser uma sala de cinema onde se exibe a história do cinema, não é ter um arquivo onde se salva o património, é a articulação entre as duas coisas; é nesse sentido que a sala de cinema nunca pode ser igual, tem de encontrar a sua identidade face às outras salas que hoje procuram, também, exibir património. O património não é, hoje, uma exclusivida-de da Cinemateca no sentido da exibição; o que é específico e cria uma identidade na função exibidora da Cinemateca é a relação com os acervos, não só o nosso, mas também os das outras cinematecas, a relação com o suporte material da arte que exibimos. Portanto, uma das coisas que tem de marcar a diferença nas sessões de

Se calhar, era inevitável começar justa-mente por essa utopia, tentar conservar tudo…A utopia estava mais ao nosso alcance porque a produção era muito inferior ao que é hoje, antes de haver a explosão da iniciati-va independente das novas tecnologias. Em meados do século, depois de uma enorme parte do cinema mudo se ter perdido, parecia possível salvaguardar o património cinematográfico, e isso gerou a ideia de que não devíamos selecionar. Portanto, quando se pergunta o que é que se deve conservar primeiro, a resposta é: há várias razões para se ir conservando, primeiro, certas coisas, em especial perante a iminência da perda, a degradação química, etc.

Há a ideia de um cânone que tem priori-dade…Claro, mas havia a obsessão de não sermos apenas seguidores do cânone no que

cinemateca é essa consciência do suporte material; muitas iniciativas de conservação devem ter repercussão nos ciclos de cinema, e vice-versa, porque, como você disse, por mais que se estabeleçam utopias sobre isso, nunca se conserva tudo e é importante perceber que há essa dialética entre con-servação e exibição. Muitas vezes, é preciso conservar coisas de uma forma inquestio-nável, o que leva a iniciativas de difusão; outras vezes, é por um contexto qualquer de oportunidade, de urgência, que temos de alterar uma prioridade na conservação. Há uma relação muito rica entre esses dois lados que não pode quebrar-se.Podemos conservar tudo? Eu faço parte de uma geração que assumiu como utopia, uma utopia produtiva, a ideia de que devíamos conservar tudo, sem seleção. Hoje, acho que isso é completamente impossível no mundo da produção cinematográfica e audiovisual contemporânea.

Exatamente. Houve alguma evolução nesse aspeto?A resposta curta é não. Estamos a trabalhar no sentido de encontrar soluções, mas ainda não conseguimos inverter esta curva. Nos anos 70/80, com o acumular do património, constatou-se que não bastava salvar os arquivos, evitar os incêndios e guardar as obras nas prateleiras, porque elas continua-vam a degradar-se. Percebeu-se que conser-var o cinema implica estruturas próprias com investimentos técnico-científicos avultados, com investigação, com criação de estruturas técnicas sofisticadas. Quando há o susto que gerou a ideia do nitrate can’t wait, as cinematecas recentram a sua priori-dade na conservação. Paralelamente, houve um recrudescimento do interesse por pro-gramar e há iniciativas que reaproximam as cinematecas da investigação académica, dos historiadores de cinema, começa a haver os festivais de património, etc. Há histórias pouco conhecidas, mitos criados fora da Cinemateca, de que ela só conservava certo tipo de filmes, só ficção e apenas ficção de alguns realizadores. Desminto isso radicalmente. A ideia, nos anos 80, era duplicar as películas em nitrato, portanto todo o cinema português e alguns clássicos estrangeiros, porque há aqui outra questão – os tesouros das cinematecas –, que às vezes englobam cópias preciosas de filmes estrangeiros. É o caso de Os Quatro Filhos, do Ford, ou de Uma Mulher na Lua, do Lang, porque tínhamos em Portugal cópias mais completas do que as conhecidas no resto do mundo. Em geral, a prioridade era, obviamente, o cinema português, porque é esse que nos cabe salvaguardar. Há um consenso internacional: se cada um pre-servar bem o seu património, o património mundial está preservado. Esse programa era só para o nitrato, portan-to desde Paz dos Reis até 1950. Não eram assim tantos filmes e, grosso modo, em duas décadas, preservámos praticamente tudo até 1950. Onde já não chegámos a tempo foi aos anos 50. Primeiro, foi ao período do mudo que demos prioridade. Salvaguardámos todas as ficções portuguesas sobreviventes e descobrimos algumas nessa altura, como Os Faroleiros, que se considerava perdida. De outros filmes

respeita à conservação. Tínhamos uma consciência muito forte de que o cânone evolui e que aquilo que hoje se considera importante salvaguardar pode não ser aquilo que as gerações futuras vão pensar. A grande maioria do património cinemato-gráfico acumulado nas cinematecas desde os anos 30 e, no nosso caso, sobretudo, dos anos 50, ainda hoje existe e, em alguns ca-sos, provou uma resistência muito superior à que pensávamos, revelou-se muito mais durável do que pensávamos nessa altura. E a ironia das ironias é que, hoje, estamos a produzir maciçamente imagens num suporte que teoricamente pode ser o ovo de Colom-bo, se transformarmos um filme num código numérico, e é suposto podermos guardar esse código para sempre, mas o problema é saber onde é que o código se armazena, como é que o descodificamos, e estes dados introduziram incógnitas muito grandes sobre a conservação contemporânea. Estima-se que a nossa época vai ser outra época de perdas, porque abandonamos a pro-dução em película em termos industriais sem termos soluções de arquivo suficientemente generalizadas e fiáveis para garantir que o que hoje está a ser feito vai durar. Grande parte dos suportes digitais é muito perecível, o que significa que os ciclos de duplicação têm de ser cada vez maiores e que estamos

outra vez perante um património ameaçado. Voltemos à questão da seleção… Nós vivíamos com essa ideia de que valia a pena conservar tudo. No caso português, essa utopia foi particularmente produtiva porque, para o bem ou para o mal, o pa-trimónio português era pequeno. Não fiz contas atualizadas para esta conversa, mas suponho que, em Portugal, não devemos ter ainda atingido, em números redondos, mil longas-metragens produzidas, mas andamos perto. É muito pouco e a pergun-ta óbvia é se o país quer preservar o seu património, se lhe reconhece importância. E, se esses filmes são uma parte importan-te do património cultural do país, porque não fazer o esforço de os salvar todos? Nós tivemos consciência disso desde o princí-pio e portanto, em Portugal, estabelece-mos um programa sistemático que visava a preservação de todo o património.

Deixe-me interrompê-lo com um dado do seu documento estratégico de 2013, o ano anterior à sua tomada de posse, que refere que, do número total de 25.916 títulos em película, foram, nesse ano, preservados e restaurados apenas 6, o que é de facto muito pouco, foi o pior ano de sempre.Estávamos no auge da crise…

José Manuel Costa, 2016. Fotografia: Henrique Calvet. © Cinemateca Portuguesa--Museu do Cinema

AniM. © Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

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ter sido o lugar identitário e único do cinema durante cerca de 100 anos. neste papel da cinemateca de conservação e divulgação do património, há fronteiras que não podem deixar de se preservar, e essa fronteira é a experiência de ver um filme no lugar para o qual foi feito. Porque ainda agora, mesmo com o digital, se calhar 99% dos filmes são feitos a pensar naquele dispositivo. Estou 300% de acordo.

Os filmes nasceram neste dispositivo, o ecrã não foi apenas uma inovação tecnológica, foi mais do que isso, foi a criação de um espaço mágico.Era mágico… Eu acho que o cinema nasce, em grande parte, da magia.

Exatamente. Perturba-me um pouco pen-sar nas gerações mais novas que nunca viram um filme em sala de cinema. O cinema foi a arte mais popular no século XX e uma arte central na história da arte moderna e contemporânea, embora, na maior parte das vezes, os historiadores

de arte se esqueçam de mencionar o cinema nas suas histórias da arte. Mas a sala e o ecrã são mais do que uma ques-tão tecnológica, pois há todos os rituais, toda a liturgia que tem que ver com essa relação individual do espectador...Mas que já se perdeu mesmo na sala, não é?

Sim, já se perdeu na sala… Mas podemos dizer que, durante cem anos, o cinema foi site-specific, foi feito para aquele lugar. Claro que a sala ainda existe, agora há salas muito diferentes, e existe um mar de ecrãs que nos cercam por todo o lado e onde, entre outras coisas, se veem filmes. E ver filmes é diferente de ver cinema…… aquela coisa maravilhosa no filme Visita ou Memórias e Confissões. O Manoel de Oliveira põe-se em cena, apresenta-se, volta-se para a câmara e diz “Eu sou Manoel de Oliveira, realizador de filmes cinemato-gráficos”.

Eu sou de uma geração mais velha, a mi-nha e a sua foram as primeiras gerações

vámos filmes dos considerados grandes au-tores portugueses pela crítica internacional e filmes dos realizadores portugueses que não estavam nesse cânone. Trabalhámo-los, horizontalmente, todos. Agora, vou ser um bocadinho utópico, não muito: mais 10 ou 20 anos a fazer isto sistematicamente e tínhamos conseguido preservar grande parte da história do cinema português, mas houve uma rutura total, com a emergência da crise, por volta de 2010-2011.

Falemos da revolução digital, da mudança de paradigma, porque não é apenas uma mudança tecnológica que está em causa. Claro que há um mundo tecnológico que está a tornar-se obsoleto, mas na história do cinema a mudança atual é a mais profunda que o cinema já conheceu. É muito diferente da mudança do mudo para o sonoro. Muda não só a experiência individual do espectador com o filme, como está a mudar o próprio cinema. não temos ainda uma noção exata por que transformações o cinema, enquanto arte, ainda pode passar. Mas há uma questão que tem a ver com o que, há pouco, referíamos, que é o facto de a sala escura

que foram encontrados e considerados fundamentais, como Os Lobos, vieram a ser descobertas, em Paris, cópias mais comple-tas e de melhor material. Depois, em relação ao período do acetato, ti-vemos consciência de que a história portugue-sa não se partia em 1950. Do ponto de vista quantitativo e da sua importância histórica, não podíamos ignorar o boom de produção após 74, no documentário e na ficção.

na questão da preservação, houve o problema da cor, nos filmes dos anos 70…Houve, a cor era um critério decisivo. Mas olhamos para a nossa história e percebemos que, se continuarmos só com o critério da ordem cronológica, o que acontece? Prova-velmente, só daqui a 10 ou 20 anos é que vamos começar a pegar na produção pós-74. Ora, esta produção ocupa uma grande parte da história do cinema português, já ameaçada. Por outro lado, as emulsões de cor podem começar a alterar-se após meia dúzia de anos. Em menos de 10 anos, uma cópia (não os negativos, que duram mais tempo) pode começar a ficar cor de rosa. Portanto, concluímos que não podíamos ter um critério de conservação

que fosse puramente cronológico. No caso português, nos anos 90, abrimos uma linha de duplicação específica para a produção pós-74, paralela à salvaguar-da dos primórdios do cinema português.Há ainda a questão das atualidades e dos documentários. Todos os anos, alocáva-mos parte do orçamento para preservar documentários antigos, a propaganda do Estado Novo e algumas curtas-metragens da produção pós-74. Foi a nossa resposta à questão da seleção, não podíamos usar apenas um critério cronológico, mais valia a pena correr o risco de perder algumas coisas anteriores e não correr o risco de começar a perder o património contemporâneo.

Podemos dizer que essa estratégia resultou e que a Cinemateca conseguiu conservar a história de um século?Todos os filmes, todos os realizadores, incluindo os do chamado cinema comercial, que é uma dicotomia de que não gosto nada. Acho que é um equívoco total a distinção entre cinema de autor e cinema comercial, não porque não haja diferenças de estratégia muito grandes no cinema português, mas porque a questão não é o autor. Para usar essa terminologia de que discordo, preser-

josé Manuel costa

Cartaz de Os Lobos. © Cinemateca Portuguesa--Museu do Cinema

Visita ou Memórias e Confissões.

Coleção Cinemateca Portuguesa-Museu do

Cinema

Acho que é um equívoco total a distinção entre cinema de autor e cinema comercial, não porque não haja diferenças de estratégia muito grandes no cinema português, mas porque a questão não é o autor

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de cinéfilos, e a nossa cultura cinemato-gráfica sustentou-se nisso, na cinefilia, e o cinema tem esta sorte extraordinária de ser a única arte a que se aplica o sufixo filia. Mas, se calhar, estamos numa fase em que a cinefilia está a dar lugar a uma “cinefagia”, as pessoas consomem filmes sem chegar a essa relação intensa com o cinema.Há um fenómeno curioso, que é um pouco o prolongamento disso, que é o problema da apropriação, da cópia individual. Há um fenómeno de prolongamento da cinefilia, mas que também é essa forma de cinefagia.

É, embora a sala da casa talvez seja a menos má das alternativas. Como é que na Cinemateca se discutem essas mudan-ças de paradigma?Discute-se muito, não necessariamente bem, e não se discutiu na altura certa. Comecemos pela tecnologia. Se aceitarmos que a história das artes é a história de ma-nifestações associadas a suportes materiais e tecnológicos, quando há uma mudança radical neles, há uma mudança radical dessa arte ou uma perda da sua influência e nasce outra arte.

Quando me perguntam “Qual é a diferença no ecrã, se se pode fazer com o digital igual ao que fazia com o analógico?”, uma das formas com que respondo é evocando um artigo do Rick Altman, de 1984, que se chama “Para uma teoria da história das tecnologias de representação”. Já começava a haver a transformação videográfica, não é ainda a revolução digital, e ele faz uma pergunta muito interessante, que é “O que aconteceu na história cada vez que uma tecnologia de representação deu origem a outra?” – a pintura sobre escultura da Idade Média, que dá origem à pintura bidimensio-nal, o fresco e as outras técnicas de pintura que se desenvolvem mais tarde, a passagem da pintura a óleo para a fotografia, e a pas-sagem desta para o cinema. Cada vez que há um salto destes, surge uma nova tecnologia de representação que muitas vezes, não fazendo a anterior desaparecer, se torna do-minante. Ora, é curioso ver o que acontece entre o analógico e o digital porque, quando a cadeia digital substitui de uma ponta à outra a analógica, é verdade que as salas são iguais ao que eram e que muita gente faz filmes em digital parecidos com os que faziam em película, mas a pergunta que eu faço é: “O que significa essa coincidência?”

Significa que houve um período de compe-tição entre duas tecnologias, um período de transição, neste caso de umas décadas, em que já havia uma tecnologia nova que, para vencer a anterior, tem de começar por provar – isso é analisado pelo Altman – que

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faz tudo o que a outra faz. Claro que, se ela surge, é para proporcionar algo diferente. No caso do digital, uma facilidade e uma rapidez de produção enormes, uma mul-tiplicação do fator que já vinha do vídeo, que é a apropriação individual da obra, mas essas novidades no período de transição coincidem com o momento em que a nova tecnologia copia a anterior, como sempre aconteceu. O problema é que ela tem uma natureza completamente diferente e por isso vai fazer coisas diferentes. Basta dizer que a sala escura não é necessária. Ela não era só uma continuação linear da tradição de espetácu-lo anterior, era também uma necessidade tecnológica, porque a tecnologia fotográfica associada ao movimento só funcionava em sala escura. Ora, a imagem digital não pre-cisa sequer da projeção. Posso inventar ecrãs gigantescos sem precisar da projeção, nem de escuridão. E aquilo que não é necessário, um dia, deixa de existir, porque a necessida-de justifica a sua história. A mudança maior praticamente está feita portanto, o digital ganhou a batalha. Chamar-lhe cinema, ou não, é relativamente secundário porque é como chamar pintura a duas épocas da pintura completamente diferentes. As cinematecas deveriam pensar muito nesta questão, porque isto levanta várias questões. Uma é a adaptação à produção e à tecnologia modernas: os arquivos têm de se adaptar rapidamente e conservar as imagens que hoje estão a ser feitas. É um desafio gigantesco, e os processos que existem são relativamente viáveis para uma pequena produtora com meia dúzia de filmes para guardar, mas muito complicados para um arquivo nacional. A única maneira de garantir a sobrevivência é a migração constante, em menos de cinco anos. E há outra questão decisiva: por um lado, como conservar tecnicamente o património analógico e, por outro, como é que o vamos mostrar às gerações futuras. Aquilo a que as nossas gerações chamaram cinema vai conti-nuar? Aquilo que está a nascer na produção contemporânea vai ser ainda o cinema? Num momento de mudança, este devia ser um dos momentos mais interessantes e mais ricos da museologia. Há quem ache que é uma perda de tempo discutir a conservação do

património analógico. Há uma corrente que diz que se deve congelar, no sentido físico do termo, porque, congelando o património, ele irá durar mais e, se daqui a 50 anos houver novos processos de digitalização, pode-se sempre recorrer a ele. Portanto, vê-se a con-servação dos originais como uma espécie de fonte, um tesouro escondido que fica imerso no icebergue para alimentar uma transmis-são que é sempre feita em digital. Depois, há outras correntes, nas quais me incluo, que afirmam que a museologia assenta no esforço de dar a conhecer o cinema do século XX também através do seu suporte tecnológico. Se nos limitarmos a congelar e a só mostrar

digitais pequenas, leves, etc. Perceber o cinema do século XX é também perceber um corpo indissociável de que o suporte tecnológico faz parte. Falando das transformações que a Cinema-teca tem de ter, esta direção diz, claramente, sim, estamos num contexto diferente, sim, não podemos ignorar o digital, sim, o cinema português tem de ser digitalizado a partir de matrizes de alta definição, senão vai deixar de circular, mas isso não quer dizer que toda a exibição, incluindo a museo- lógica, tenha de ser em digital. A partir de agora, uma das características distintivas da atividade de exibição museológica é que ela

josé Manuel costa

Sala dos Cupidos. © Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

as cópias em versão digital, perdemos um ponto essencial: fazer que as novas gerações percebam por que é que o cinema foi feito assim. Se se perceber a tecnologia, agarrar uma bobine, um filme, perceber o seu peso, o ta-manho, como é que entrava nas máquinas, etc., vai-se perceber que máquinas eram aquelas que faziam aqueles planos, por que é que os movimentos de câmara eram assim e não de outra maneira, perceber que o travelling e a panorâmica no cinema clássico nunca teriam sido o que foram se a tecno-logia fosse a que existe hoje, com câmaras

E há outra questão decisiva: por um lado, como conservar tecnicamente o património analógico e, por outro, como é que o vamos mostrar às gerações futuras

tem de ser feita a partir do suporte original. Daqui nascem outras questões, porque a nossa maneira de ver está a mudar muito de-pressa e começamos a reparar, por exemplo, em defeitos das películas, em que há 10 ou 20 anos não reparávamos. O digital está a mudar a maneira de ver. Portanto, temos um novo desafio que é explicar às pessoas que não existe a “imagem perfeita”, o conceito de uma boa imagem é um conceito cultural e voltamos ao problema das tecnologias de representação: cada nova tecnologia criou um olhar sobre elas e criou um padrão. Portanto, como diz Altman, não há repre-

Eisenstein. Coleção Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

O digital ganhou a batalha. Chamar- -lhe cinema, ou não, é relativamente secundário porque é como chamar pintura a duas épocas da pintura completamente diferentes

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ajuda a difundir o cinema português no mundo? Existe alguma cooperação específi-ca com os países de língua portuguesa?Começando pela rede internacional, a nossa rede natural é a FIAF (Federação Interna-cional de Arquivos de Filmes).

Faz agora 60 anos que aderiram.Exato. O nosso esforço tem de começar por potenciar conhecimento nas cinematecas. É um esforço que não pode ser unilateral, tem a ver com a receção nas outras cinematecas. O cinema português merece ser muito mais conhecido do que é. Há coisas pontuais em que tenho feito um grande esforço. Um exemplo muito particular é o da obra do Paulo Rocha, que teve um gesto único na história das cinematecas: quando morreu, deixou em testamento à Cinemateca todo o seu património, os seus filmes, os seus objetos de cinema, os seus direitos, tudo. Estou a tentar dialogar com várias cinematecas para que a sua obra seja outra vez reconhecida, porque ele chegou a ser relativamente reconhecido na Europa, mas hoje está esquecido, como outros cineastas das gerações do Cinema Novo, como o Fernando Lopes, mesmo o António Reis, um pouco menos o João César Monteiro...Por outro lado, o que vai acontecer é que o cinema circulará através do digital, por isso, como dissemos no nosso plano estratégico em relação ao cinema português, ele tem de ser objeto de uma política sistemática

de produção de matrizes digitais de alta--definição, sem o que ele deixará de circular fora da Cinemateca. Do mesmo modo que defendo que na Cinemateca devemos guardar a cópia em 35 mm original e exibi-la sempre que possível, também defendo que, como arquivo nacional, a Cinemateca tem de ser parte de uma cadeia de produção de novas matrizes para que os filmes circulem; senão, daqui a cinco ou dez anos, os filmes portugueses só se veem na Cinemateca. Vê-lo na Cinemateca, é fundamental, mas não chega.

Os pedidos de empréstimo de cópias são mais a nível nacional ou internacional? Digo isto porque o documento de 2013 aponta 136 cópias emprestadas, mas os empréstimos a entidades estrangeiras representam uma percentagem menor nesse conjunto, não é?Os pedidos das entidades estrangeiras são, em 99%, relativos ao nosso património nacional.

Sim, mas qual é a dimensão desses pedidos? Tem a ver com a difusão do cinema português lá fora?É por fogachos. Por exemplo, tive uma revoa-da de pedidos da cópia da Visita ou Memórias e Confissões, do Manoel de Oliveira, por razões óbvias. O Manoel de Oliveira foi, de longe, o cineasta mais conhecido internacionalmente e, a partir do momento em que o filme foi di-vulgado, houve muitos pedidos e ele continua a circular, também em colaboração com a família. Obviamente que a obra do Manoel de Oliveira é um caso muito particular e, agora que é uma obra fechada, continua a ser muito solicitada em retrospetivas. A história do cinema português é hoje, em muitas zonas do mundo, bastante esquecida. Isso não é só em relação ao cinema portu-guês, é um fenómeno mais geral. Suponho que estamos de acordo em que, atualmente, a própria distribuição é muito menos diversificada do que era. Nós víamos mais cinema europeu. No tempo da Censura, em Lisboa, o cinema europeu tinha imensa importância, apesar de haver muita coisa que não chegava cá. A seguir ao 25 de Abril, a diversidade era enorme. Agora, não vemos quase nada do cinema espanhol, do cinema

europeu, em geral, ou da América Latina.neste momento, a hegemonia do cinema americano é quase absoluta.Isso vai criando um rasto negativo, porque as obras e os nomes começam a desaparecer da memória. Se me pergunta se a Cinemateca pode ter aí um papel, acho que sim, mas, vamos ser pragmá-ticos, isso não dependerá só de nós.

E em relação aos países de língua portuguesa?Existe muito pouco. Há um diálogo grande ao nível do património e da conservação, que cresceu muito com Moçambique. Lá, não há uma cinemateca autónoma, mas há um instituto de cinema, que inclui essa função, e tivemos um projeto de cooperação que, na altura, funcionou muito bem, para ajudar a reanimar o arquivo do INAC [Instituto Nacional de Audiovisual e Cinema]. Mas é precisa continuação e ainda há dificuldades locais muito grandes, tal como em Angola, em que há uma cinema-teca autónoma, mas que tem uma grande fraqueza estrutural. Na única vez em que houve um congresso da FIAF em Lisboa, em 1989, realizámos, como evento paralelo, o primeiro encontro das cinematecas dos países de língua portuguesa. Havia um programa que assentava numa linha dou-trinária do conceito do património duplo: os filmes da época colonial são assumidos como património dos dois países e daí deri-vava uma série de consequências ao nível da conservação, difusão, etc. Vamos ser claros: quase toda essa agenda está por concretizar. É verdade que, nestes últimos anos, nós próprios temos tido mais dificuldade em desenvolver ações de cooperação porque nos temos recentrado nas prioridades internas…

O Brasil manifesta algum interesse em nós, solicita a Cinemateca? Há um diálogo fácil, conhecemo-nos bem, há grande proximidade entre as pessoas, mas não há assim tanto trabalho em conjunto. No caso do Brasil, há uma relação histórica com duas cinematecas, a Cinemateca do Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, e a Cinemateca Brasileira, em São Paulo, que é o grande centro de conservação no Brasil. Costumo dizer que nós subimos e descemos

temporal das imagens. Um filme não é uma ordem aleatória que se pode começar a ver pelo fim, está pensado como uma imagem que vem depois de outra e depois de outra... Com os Lumière, era só um plano, mas vinha uma coisa a seguir a outra e a outra, e há uma clara noção embrionariamente narrativa nos filmes dos Lumière, que se desenvolve do princípio até ao fim do plano e que, depois, a partir do multiplano, é evidente. Para mim, faz parte da identidade do cinema que há uma cumplicidade com o espectador, que vê aquela imagem por aquela ordem do princí-pio até ao fim. A partir do momento em que o espectador entra a meio ou vê o fim antes do princípio, estamos noutra ordem de coisas. A instalação é feita para esse outro desafio. O grande desafio está nos criadores que estão a dar o salto noutra direção.

no que respeita à difusão do cinema portu-guês, qual é o trabalho da Cinemateca na relação com outros organismos, nacionais e internacionais? Como é que a Cinemateca

sentação da realidade, só há representação da representação, porque cada representa-ção da realidade tem, primeiro, de ser feita de acordo com padrões estabelecidos pela tecnologia de representação anterior. Isto é muito concreto na questão do digital.

A “sujidade” é inerente ao material analógico, o digital às vezes imita isso.A sujidade é uma perversão lógica, porque o nosso olhar está a mudar. Eu estou sempre a repetir uma frase da Margue-rite Yourcenar em relação às estátuas da Antiguidade, que diz que a maior transformação que as estátuas tiveram foi a transformação do gosto daqueles que olharam para elas; face a essa, todas as outras são pequenas. O nosso gosto, a nossa maneira de olhar para uma imagem, está a mudar; portanto, o desafio que temos em relação às novas gerações é criar um gosto de ver, de perceber e de sentir, lá voltamos à questão essencial da sala, mostrar os clássicos, os grandes filmes da época analógica como eles eram, incluindo aquilo a que hoje se chama limitações, que podem ser o suporte de uma grandeza. Há uma pedagogia a fazer.

Estas alterações tecnológicas têm efeitos divergentes. Penso que, hoje, o cinema se situa entre dois territórios antagónicos: por um lado, as mudanças vão diluindo a fronteira entre o cinema e o audiovisual, o que pode ser preocupante; por outro lado, o digital trouxe também um diálogo mais rico e profundo entre o cinema e as outras artes contemporâneas, como a videoarte e as artes plásticas. Creio que este diálogo frutuoso entre o cinema e as outras artes contemporâneas não tem estado muito presente na atividade das cinematecas. Estou a pensar em projetos que cineastas como Akerman, Varda ou Godard criaram para museus de arte contemporânea e em objetos que outros artistas, não cineastas, criam e que podem ser exibidos numa sala de cinema. Este é um diálogo muito inte-ressante e que também já está a provocar alterações no modo de fazer e de ver o cinema. A Cinemateca tem algo a dizer sobre isso? Tem condições para integrar estas questões na sua programação?

O que lhe posso dizer é que, hoje, a Cine-mateca tem de ser um espaço em que se equacione essa questão e, para isso, tem de fazer experiências. Se me disser que faz sentido, por exemplo, que os espaços das cinematecas se vão, eles próprios, transfor-mando no sentido de albergar, pelo menos, parcialmente certo tipo de experiências desse género, nós ensaiamos isso com a sala a que chamamos “6 vezes 2”, através da pro-jeção videográfica e digital, mas não temos estrutura para fazer esse tipo de instalações de uma forma completa. Começando pelo fim, a Cinemateca deve ser o lugar onde essa discussão exista, não apenas com sessões públicas em que isso é discutido, mas em que acontecem, pontualmente, experiências dessas, o que não significa que veja a Cinemateca como algo que acumula, em pé de igualdade, a sala de cinema tradicional com a sala museográfica, para instalações.Para além da questão da sala, há, para mim, uma coisa identitária no cinema que é, desde o Edison e dos irmãos Lumière, a ordem

josé Manuel costa

O nosso esforço tem de começar por poten-ciar conhecimento nas cinematecas. É um esforço que não pode ser unilateral, tem a ver com a receção nas outras cinematecas

João Bénard da Costa. © Cinemateca Portuguesa-

-Museu do Cinema

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João Bénard da Costa, em vários volumes. Temos editado pouco, mas é uma área que estou absolutamente determinado a incen-tivar. Temos duas frentes, alguns catálogos de cinema português, os últimos foram o do António Macedo e o do Cunha Telles. Estamos a preparar algumas obras, em jeito de homenagens, ao Henrique Espírito Santo e um caderno dedicado ao Alberto Seixas Santos. E vamos editar o João Bénard, que é coisa para vários anos, a partir das folhas, que é o coração da sua produção. Já saíram muitos volumes das crónicas nos jornais, mas a matriz da sua escrita está nas folhas da Gulbenkian e da Cinemateca. Vamos publicá-las, incluindo textos saídos em folhas e em catálogos. Só não publicamos os textos dos catálogos Gulbenkian porque esses continuam disponíveis. É uma obra gigantesca.

E mantém a ideia de uma revista de história e museologia do cinema?Ia-lhe falar disso porque lançámos o projeto da revista, ainda não conseguimos fazê-la, mas não desisti dela. É uma revista de história e museologia do cinema, feita para ter uma relação com a programação da Cinemateca, mas não só. A ideia é editar quatro volumes por ano e é um complemen-to do jornal mensal, mas de carácter mais ensaístico, que vai extravasar o âmbito da programação, porque será uma forma de divulgação do nosso imenso património bibliográfico, textos originais do cinema, alguns editados há muitos anos e esqueci-dos, outros inéditos, vai ter uma componen-te de reflexão sobre a história das cinema-tecas e os seus desafios atuais. Precisamos de trazer para Portugal estes debates de que aqui falámos, que se passam no meio das cinematecas, mas que, muitas vezes, não têm um fórum próprio de discussão em Portugal. É também, obviamente e sempre, uma maneira de recuperar coisas da história do cinema português, a história oral, etc. Há ainda outros prolongamentos da edição bibliográfica, editar não apenas originais, mas algumas traduções de livros impor-tantes da bibliografia internacional do cinema, da historiografia, isso dependerá das condições que tivermos. Fora do âmbito bibliográfico, haverá a atividade da edição

DVD, seja em coedição ou em edição própria.

O Jornal Português também foi em coedição?Não, é uma edição só da Cinemateca. Houve uma parceria para a divulgação. A coedição é canalizada para a grande fic-ção portuguesa, como está a acontecer com o Paulo Rocha. Os restauros de Os Verdes Anos e Mudar de Vida, que utilizaram tec-nologia digital, mantendo o mais possível a natureza da imagem das obras, foram feitos com o apoio precioso do Pedro Costa, que já tinha começado a fazer isso com o próprio Paulo Rocha e que supervisionou tudo até ao fim. Conseguimos fazer uma obra de que nos orgulhamos, em coedição com a Midas. É um programa que vai continuar. Continuará a edição de algumas obras do período do Estado Novo, mas a próxima linha será uma edição da Cinemateca em parceria institucional com o Museu de Etnologia, uma linha de filmes etnográficos.

Margot Dias em Moçambique?Sim, são filmes muito importantes do ponto de vista etnográfico feitos com o Jorge Dias principalmente junto dos macondes, em Moçambique, é um trabalho muito impor-tante do ponto de vista científico. Queremos editar também as célebres ima-gens do Ruy Cinatti em Timor, documentos cinematográficos em que ele guardou a memória do território, das casas, das pessoas e que não foi pensado como uma obra montada, mas como um legado para as gerações futuras. E vamos editar ainda a ficção muda portuguesa.

Para além de um outro orçamento, de que é que a Cinemateca precisa?A Cinemateca precisa de facto de um outro orçamento, porque está a viver, desde há dois ou três anos, com um corte orçamental de 40% em relação à década anterior. Estou a englobar tudo, não só o orçamento corrente, mas também o PIDDAC [Programa de Investimentos e Despesas de Desenvol-vimento da Administração Central], aquele milhão de euros que, em média, recebíamos. Há uma grande escassez orçamental, mas há algo mais. A Cinemateca é um organismo

pequeno, que se tornou ainda mais pequeno, como todos os organismos do Estado que tiveram de encolher. Todo o pessoal que saiu não foi substituído e a Cinemateca está reduzida ao osso. Nós cumprimos com aquilo a que chamo o arco do património, prospetamos, conservamos, restauramos, catalogamos, exibimos, editamos…. Os organismos não podem viver sem renovação. Desapareceram pessoas com grande experiência e não entraram outras. Um arquivo é uma coisa viva, precisa de experiência, do conhecimento das pessoas que estão cá há muitos anos, e precisa de sangue novo. Precisamos de gerir de uma forma mais solta, as condições de renovação do pessoal do Estado são muito limitadas. Temos sectores fundamentais que estão completamente ameaçados, como o labora-tório de restauro. A falta de maleabilidade administrativa é devastadoramente bloque-adora. Assim, não seria possível continuar a cumprir o que se fez nas últimas décadas e acrescentar as adaptações indispensáveis. Lisboa teve uma Cinemateca ao nível das melhores no mundo, estou a dizê-lo em homenagem àqueles que vieram antes de mim. A Cinemateca criou um padrão, mas, para estarmos à altura desse padrão, é indispensável uma renovação constante.

verdadeiro momento de compreensão de uma obra é aquele em que a vemos numa sala, em boas condições de projeção, em concentração, do princípio ao fim, e no momento em que sentimos a obra. Quando eu sinto uma profunda emoção a ver uma obra, é porque a percebi. E essa emoção só pode surgir, e esse é o meu pressuposto, se calhar geracional, se a vir em sala. Se a vir aos bochechos na internet, não é possível envolver-me emocionalmente com o filme. A sala é o lugar na ponta oposta do espectro do investigador que está a trabalhar no seu computador. O trabalho em sala é absolu-tamente identitário e incontornável, é um dos mais nobres desafios das cinematecas. Dir-me-á: mas o novo cinema já não vai depender tanto da sala? Se calhar, não. Mas algum dele também já não terá sido feito a pensar nisso.

Vamos aos projetos editoriais da Cine-mateca, que publicou agora o Jornal Português, um trabalho excelente. Sei que há outros projetos, como a obra do Paulo Rocha. Como é que as coisas estão? O projeto editorial que está para arrancar a todo o momento são os textos de cinema do

em colinas suaves, o Brasil cresce e entra em crise em montanha-russa. Há dois ou três anos, estive na Cinemateca Brasileira e via-a com pujança, com uma intensidade de trabalho brutal. Logo a seguir, houve uma crise enorme, a substituição radical dos dirigentes, uma alteração estrutural do funcionamento, e entraram outra vez em fase de crise. Há uma continuidade através da FIAF [Federação Internacional de Arqui-vos de Filmes], mas em geral, nos países de língua portuguesa, há muito por fazer.Voltando ao seu repto de pensar a sala, também considero fundamental manter essa experiência. Estamos a trabalhar no reforço da identidade da nossa sala mais pequena, para a qual estamos a criar uma programação específica. Neste caso, tentamos ir ao encon-tro de outra grande mudança, a mudança dos espectadores. Todo o trabalho de programa-ção é, por inerência, um trabalho pedagógico e, hoje, há o desafio da contextualização. Acho que se sente isso no dia a dia. Há muita gente que atualmente procura não só a obra, mas também a conversa sobre ela, e nós achamos que devemos responder a isso.

Os espectadores da Cinemateca pedem isso…Sim, esta série nova das “Histórias do Cine-ma” (cinco dias com um grande investigador a falar sobre um grande autor) tem provado isso. É um conceito misto de conferência, debate e exibição, não é só uma pequena apresentação. É uma conferência com peso cumulativo ao longo de uma semana sobre um autor e tem uma grande resposta pública. Comparando com a minha própria geração, quando comecei a ir à Cinemateca e a ver os grandes ciclos da Gulbenkian, descobria obras sobre as quais já tinha lido imenso, que nunca tinha podido ver.O primeiro filme do Eisenstein que vi foi na sala da minha casa, numa cópia em 8 mm de O Couraçado Potemkine, comprada em Paris e trazida pelo João Soares. Foi a ele que fiquei a dever isso. Era uma redução enorme, não víamos quase nada, mas, ao mesmo tempo, “víamos tudo”. Quando vi o primeiro filme do Eisenstein, sabia de cor todos os títulos dele, lia livros, decorava fotogramas. A primeira vez que vi A Paixão de Joana d’Arc, já tinha lido imenso sobre o filme, hoje é

exatamente o contrário. Atualmente, um jo-vem que se interesse por cinema facilmente descobre o Eisenstein todo na internet e tem acesso a grande parte da história do cinema. Só que essa facilidade criou um fenómeno oposto, que é a necessidade de um guia de navegação. Esse guia existiu para mim naturalmente: quando comecei a ver o Dreyer, sabia onde é que ele se encaixava na história do cinema.

As pessoas mais velhas, da minha idade e da sua geração, tiveram o privilégio de seguir a maior parte da história do cinema em tempo real, à medida que ela avançava…Exatamente, e ela avançava muito ainda. Considero isso um ponto fundamental. Nos anos 60, que são anos decisivos para a minha formação, eu procurava conhecer os clássicos, mas o cinema novo que chegava às salas era impressionante.

Antes de começarmos a ver o cinema moderno, já conhecíamos os clássicos. Agora, não.Hoje, há a necessidade de contextualização, mas que não se perca a noção de que o

Jornal Português, 1938-1951. © Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

josé Manuel costa

Os organismos não podem viver sem renovação (...)Um arquivo é uma coisa viva, precisa de experiência, do conhecimento das pessoas que estão cá há muitos anos e precisa de sangue novo

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Os filmes não têm a ver com os espectadores que fazem, mas com os traços que deixam – à conversa com Paulo BrancoMargarida cardoso

Quando saíste de Portugal em 71, saíste por alguma razão ideológi-ca, política?

Em 71, eu tinha 21 anos, estava a acabar um curso superior e tinha a perceção nítida de que vivíamos fora de tudo. Fui para Lon-dres, primeiro, e, mais tarde, para Paris.

Já tinhas uma ligação com o cinema português?Tinha uma ligação muito efémera, mas que me tinha despertado uma enorme curiosidade cinéfila. Tinha conhecido o António-Pedro Vasconcelos, depois assisti à rodagem do Perdido por Cem e cruzei--me com alguns dos grandes realizadores portugueses, como Paulo Rocha e o próprio Oliveira, mas de uma maneira completa-mente diletante. Era um observador desses personagens que me fascinavam e, a partir daí, despertei para o cinema. Quando fui para Londres, via dois ou três filmes por dia, sempre com a ideia de ir para Paris. Na altura, era extre-mamente difícil sobreviver em Paris porque a emigração estava fechada, mas, em 1973, decidi mesmo ir. Londres também não era o que é agora, era uma cidade muito menos interessante do que Paris. É preciso não esquecermos que 1968 não estava longe.

Mas já ias à procura de alguma relação mais específica com o cinema?

Não sabia o que queria, tinha uma paixão por Paris. Tive a sorte de conhecer muita gente, grandes artistas portugueses que estavam no exílio, como o Carlos Cobra, e depois, através deles, o Jorge Martins e muitos outros, mas também alguns jornalis-tas, como o José Gabriel Viegas. O cinema atravessou-se um bocado como um acaso. Foi o cinema, como poderia ter sido outra coisa. A cinefilia começou a ser extremamente importante para mim, mas não só, eu lia muito. A grande vantagem do cinema é que, através das outras artes, descobrimos o cinema e, através do cinema, descobrimos as outras artes, e foi isso que me seduziu. O resto é fruto de acasos ligados com a minha vida pessoal. Comecei por ajudar na programação das salas do Frédéric Mitterrand e, depois, a “inventar” as semanas dos Cahiers du Ciné-ma com o Serge Daney, ao mesmo tempo que trabalhava no ateliê do Carlos Cobra. Posteriormente, houve aquela “loucura” de decidir ter uma sala em Paris, mesmo sem ter nenhuns meios, e, a partir daí, fazer um trabalho de relação diferente com o cinema: numa cidade onde praticamente se via tudo, ou se dizia que se via tudo, tentar procurar algo de original para uma sala de cinema. Em termos artísticos e mediáticos, consegui notoriedade porque, de certa maneira, essa sala (Action-République) passou a ser uma referência durante alguns anos em Paris e levou-me a conhecer muitos dos realizadores com quem trabalhei, depois, como produtor. Em termos financeiros, isso é outra história...

Foi aí que também começaste a estrear filmes portugueses?Já conhecia o António Reis – o primeiro filme português que estreei foi o Trás-os--Montes do António Reis e da Margarida Cordeiro; a seguir, Amor de Perdição, que foi o primeiro contacto sério com o Manoel de Oliveira. Foi também aí que estreei os filmes A Hipótese do Quadro Roubado, o Torre Bela, os filmes de Johan van der Keuken, que era completamente desconhecido em Paris mas que, depois, se transformou numa referên-cia. Conheci ainda pessoas como o Truffaut, o Roland Barthes, o Deleuze, o Foucault. Já

conhecia o Werner Schroeter do tempo do Mitterrand, conheci o Fassbinder, o Daniel Schmidt, o Philippe Garrel, o Micou, o Jean Eustache, com quem tive grandes conversas, e o Rivette. A partir de certa altura, aquilo transformou-se num sítio de encontros, de descobertas, de lançamentos de filmes.

Quando estreaste o Trás-os-Montes, em 1978, qual era a noção que as pessoas tinham do cinema português?Na altura, havia um vago conhecimento do Oliveira. O Serge Denay conhecia bastante bem o Oliveira, era o único, e os outros cineastas portugueses eram completamente desconhecidos. O cinema português era totalmente desconhecido na altura, não só em França, mas praticamente em todo o lado. Penso que a estreia do Trás-os-Montes foi uma espécie de primeiro grande choque. Ainda por cima, consegui textos inéditos do Joris Ivens e do Jean Rouch, e o filme estreou com um texto de cada um deles a apoiar. O Amor de Perdição foi, depois, um outro choque, um pequeno sismo que abriu mui-tas vagas que apoiaram o cinema português.

nessa altura, já eras produtor? Como é que começa a tua longa relação com o Oliveira?Em 1979, o Cunha Telles desafiou-me para ser produtor. Eu nem sabia o que era isso. De repente, por questões também familiares, vim para Portugal. Depois de ter produzido o Oxalá, o Oliveira veio ter comigo e desafiou-me para produzir o que seria O Negro e o Preto, de Vicente Sanches, que depois não se pôde fazer por questões de direitos. Como o Vicente Sanches não cedeu os direitos, adaptámos o Fanny Owen da Agustina em Francisca.

no início dos anos 1980, na altura em que estreaste com regularidade uma série de filmes portugueses, houve um boom de interesse crítico sobre o nosso cinema. Achas que foi nessa altura que, identitariamente, começou a existir o que, hoje, chamamos cinema português? Houve duas coisas importantes: o Francisca, que foi referenciado, na altura, como o grande filme do ano, e o filme Oxalá tinha

Paulo Branco. @ Augusto Brázio

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Tudo foi fácil e o contrário. Foram lutas tremendas durante anos, sobretudo cá em Portugal. Quando foi o Le Soulier de Satin, foi um escândalo; toda a gente, mesmo os grandes amigos dele, recusaram-lhe apoios. O Manoel queria não só fazê-lo, como achava, como eu, que poderia ser uma obra excecional – como é – e, sobretudo, que abria outras perspetivas nas cooperações internacionais em termos de cofinancia-mento, mas foi uma luta tremenda.

Quem impulsionou a produção do filme, quem deu o primeiro passo foi o Estado francês?Foi. Fora isso, eram aqueles lugares-comuns que as pessoas diziam sobre o Oliveira e que durante anos se mantiveram, havia muitos anticorpos… Mas, como o Manoel nos surpreendia a cada filme, eles eram desmen-tidos em cada filme que o Manoel fazia. Isso é que era impressionante, era a grande força do Manoel. Eu só estava para aproveitar essa força e tratar que ele continuasse.

O Manoel de Oliveira realiza, nos anos seguintes, uma sequência de filmes que têm bastante sucesso em França, por vezes mais do que em Portugal, compa-rativamente...

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sMargarida cardoso paulo branco

estado em competição em Veneza; era a primeira vez que estava numa competição, num grande festival. Depois, o Francisca e o Conversa Acabada foram para a Quinzena dos Realizadores em 1981-82 e começou aí, realmente, o boom do cinema português. É preciso não esquecer que outros filmes tam-bém apareceram nessa altura, como, por exemplo, o Cerromaior do Luís Filipe Rocha. Depois, também algo que foi extremamente importante e que passou desapercebido: a vitória de O Bobo no Festival de Locarno.Nesse mesmo ano, estavam lá o Sokurov e o Edward Yang, e quem ganhou foi O Bobo. Infelizmente, em termos internacionais, não foi explorado como deveria. Essa é um pouco a minha diferença: os festivais, para mim, já nessa altura eram um pouco um trampolim para, posteriormente, estrear os filmes comercialmente, para poder fazê-los existir, para poder, inclusive, continuar a trabalhar com os realizadores. A coleção de festivais não me interessa. Com Francisca, a minha preocupação foi a estreia em Paris e em Portugal, onde foi um sucesso muito grande. Depois, o filme foi para Nova Iorque. Pouco a pouco, a minha perceção é que os filmes não se acabavam: o filme estava feito, produzido, mas aí começava o trabalho, quase mais importan-te, que era aproveitar o trabalho fantástico desses realizadores e dá-los a conhecer. Tudo se encadeia, o meu trabalho com outros realizadores, como o Wim Wenders. Tudo era uma invenção permanente, que fez com que o lançamento do Pedro Costa também acontecesse: O Sangue e Casa de Lava (foi aí que começou a coisa mesmo à séria) estrearam em vários países. Depois, o Pedro seguiu a sua via e desenvolveu-a.

A tua relação de trabalho com o Oliveira foi longa, produtiva e bem-sucedida. O que havia nessa relação que resultava tão bem? Porque eu não me metia no trabalho dele, e ele não se metia no meu. Cada um sabia exatamente o que tinha de fazer, cada um tinha uma enorme atenção ao outro. Foi re-almente uma confiança mútua inacreditável e de aprendizagem da minha parte. Havia ainda aquela sensação de estarmos sempre num work in progress. Não havia dificul-dades que nos parassem, e foram muitas.

Mas cá também. É preciso não esquecer que o Francisca teve mais de 90.000 especta-dores, e o Non andou por volta dos 100.000 na altura, cá em Portugal. As pessoas esqueceram-se de que houve grandes êxitos do Manoel em Portugal. O Palavra e Utopia teve mais de 25.000 pessoas em Portugal. Foi a minha grande surpresa. Eu julgava que seria difícil por causa do Vieira, dos filmes históricos, mas o filme foi um verdadeiro sucesso em Portu-gal. O Vale Abraão também correu muito bem. Depois, houve o grande êxito, em termos de espectadores internacionais, o Je Rentre à la Maison. Não há nenhum filme português que se compare. Em França, teve 300.000 espectadores e, a seguir, estreou em praticamente todo o mundo. Mas a importância dos filmes não tem, diretamente, só a ver com os espectadores que os veem. Os espectadores do Francisca em Paris nada têm a ver com a importância que o filme ganhou posteriormente na própria carreira do Manoel de Oliveira. Entre esses espectadores, estavam todos os grandes nomes do cinema, e foi isso que levou o Oliveira a continuar a filmar.

Hoje é difícil, ou mesmo impossível, contabilizar o número de espectadores, não é?Agora é impossível e os filmes não têm a ver com isso, têm a ver com os traços que eles deixam. Hoje, tudo se mede pelas audiências. No outro dia, tive uma conversa com o Pascal Quignard, um escritor francês que trabalhava na Gallimard, e falávamos de Maurice Blanchot, um grande escritor francês com quem, ele sabe, eu tinha uma ligação e perguntou-me: “Sabes quantos livros vendo no mundo inteiro do Maurice Blanchot? As tiragens são de 3000 exempla-res”. E a importância do Blanchot é enorme. As pessoas têm pouca noção…

As tuas estratégias de distribuição e também de produção nunca passaram muito pelo Brasil. Porquê?Eu tenho uma relação distante com o Brasil porque, feliz ou infelizmente, não posso estar em todo lado. Estou um pouco mais concentrado na Europa, e atravessar o Atlântico é mais difícil para mim. Agora

é mais fácil do que antigamente. Eu vivi as minhas atividades de uma maneira muito artesanal, por isso tenho de estar sempre muito ligado a tudo o que se faz no dia a dia. Quando me ausentava para países longínquos, sem portáteis, era às vezes aterrador o que se passava e que eu não po-dia resolver, porque isto aqui é um pouco a teoria do caos; por vezes, há pequenas coisas que podem criar grandes terramo-tos. Agora é diferente, mas a relação com o Brasil tem exatamente o mesmo tipo de problemas que havia até aqui, ou seja, um grande domínio do cinema americano e muito pouco espaço para o resto. Além disso, o célebre cliché de que eles não percebem o português é uma situação que dificilmente posso entender. Da minha parte, houve uma certa distân-cia, inclusive relativamente aos próprios festivais. Havia uma participação nos festivais, mas depois não tinha continuida-de na estreia comercial de filmes e comecei a “fartar-me”. E começou a ser uma exigência minha: se quisessem ter os filmes nos festivais, tinham de ter a distribuição. Os festivais tornaram-se numa espécie de uma feira em que se servem dos filmes, mas a maior parte não serve os filmes. Neste momento, se querem ver os filmes, têm de pagar, ou então, como a maior parte dos organizadores são também distribuidores, têm de os adquirir para os distribuir. Tive uma ótima relação com o Brasil aquando da filmagem da parte brasileira de Palavra e Utopia. Também produzi a Suzana de Moraes, filha de Vinicius de Moraes; tenho muitos amigos brasileiros, realizadores e outros, mas profissionalmente e, mesmo em termos de divulgação do cinema português, acho que não somos ainda tratados com a consideração que merecemos e julgo que o nosso cinema é muito melhor do que o cinema brasileiro.

Há muitos países, não só na Europa, que, tal como nós, produzem poucos filmes e com financiamentos mínimos, mas que conseguem sempre ter um ou dois filmes por ano, de muita qualidade e não necessariamente comercias, com distri-buição internacional e muita visibilidade.

O que é que nos tem afastado dessa possibilidade?O nosso risco, neste momento, é termos dois tipos de linhas com que não me identi-fico. Felizmente, neste momento há muitos produtores e muitos cineastas. As coisas não são nada como eram há 20 ou 30 anos, em que eu tinha um papel um bocado chave, mesmo demasiado, no cinema português (nunca quis ter, mas, por questões diversas, acabei por ter). Agora, felizmente, há muito maior diversidade, mas há duas linhas: uma é a linha do sucesso do público a todo o custo, como Os Maias, que é tudo menos cinema, mas que pode acabar por ter 500 ou 600 mil espectadores; a segunda é o aspeto da guetificação de um determinado tipo de cinema, que é mais um cinema de quase-ar-te no sentido de afirmação artística, quase para instalação. Acho que tem toda a razão de existir, mas eu, como produtor, não sinto que tenha lugar nesse tipo de cinema, nesse objeto. Acho que existem por si próprios, e os próprios artistas são muito melhores do que eu para fazerem a sua própria carreira com esses filmes. Não há aqui julgamento negativo, nem positivo, nem estético, mas são obras que existem por elas próprias.

Cada um sabia exatamente o que tinha de fazer, cada um tinha uma enorme atenção ao outro. Foi realmente uma confiança mútua inacreditável e de aprendizagem da minha parte

Agora é diferente, mas a relação com o Brasil tem exatamente o mesmo tipo de problemas que havia até aqui, ou seja, um grande domínio do cinema americano e muito pouco espaço para o resto

Muitas delas afirmam-se internacionalmen-te, têm mercados completamente diferentes daqueles que uma obra de ficção pode chamar, por mais experimental que seja, mas mais tradicional (não se pode chamar aos filmes de César [João César Monteiro] filmes tradicionais, pois, mesmo quando desconstroem narrativas, há qualquer coisa de arte cinematográfica). Estes filmes estão mais na confluência de um determinado tipo de artes que corresponde a um dos grandes desenvolvimentos internacionais. E nós, nesse aspeto, temos alguns represen-tantes extremamente fortes, extremamente bons, mas aí o meu papel é nulo, não existe e nem pode existir. Acho que faltam grandes filmes narrativos. Falta-nos isso.

Achas que nos radicalizámos nesses extremos por alguma razão?Não sei, acho que nos radicalizámos porque as pessoas interpretaram mal a força dos grandes cineastas como alguns dos que produzi. E, por outro lado, também não é de um dia para outro que aparecem um João César Monteiro e um Manoel de Oliveira. Mas penso que nos falta esse cinema narrativo. E, mesmo quando vejo as curtas-metragens, não encontro muitas pessoas muito interessadas nisso. É o que me preocupa.

Acho que têm medo… É muito mais arriscado porque os julga-mentos podem ser mais dramáticos. Fiz um projeto com muito poucos meios e de que gosto muito: o projeto do João Guerra. O filme correu muito mal na estreia em Portu-gal e ele nunca mais conseguiu fazer nada. Porquê? Porque houve um grande snobismo da crítica e, por outro lado, não consegui pô-lo aqui em Portugal com público. Como produtor, é um dos meus falhanços.

Qual achas que era o papel da crítica e como é que a vês hoje?Agora, não vale nada! Antigamente, valia. As coisas mudaram radicalmente. Eu não sei até que ponto, se tivéssemos as grandes plumes como havia na altura, desde o Daney a outros, a influência deles seria agora a que era antigamente. Neste momento, a manei-

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ra e os espaços onde se fala de cinema não têm nada a ver com o que era antigamente; havia uma espécie de cátedra que desapa-receu. O problema da crítica é que voltou a ser impressionista e sem ideias. São raras as críticas que tu dizes que te despertam, como vias antigamente, para alguma coisa que tu próprio não conseguiste ver.Não há uma ideia, não há nada. Dizem gosto ou não gosto. Ora, um crítico tem de ser muito mais do que isso, tem de ir muito mais longe. Inclusivamente, para nos abrir a nós próprios, por vezes, os olhos para situações e obras a que estamos ligados, com as quais temos uma relação diferente, em que nos falta a distância para com elas. E a crítica devia estar aqui para isso, mas não existe, e não é só cá.

Achas que deixou de se dar importância ao espaço da crítica?Esse espaço diluiu-se pela própria evolução que existe neste momento nos meios de co-municação: não há espaço nos jornais, não há programas culturais, nem nas televisões, nem nas rádios. E há um completo desco-nhecimento do que é a história do cinema.

gamente, o produtor era sinónimo de risco, de certa “loucura”. Agora, é o contrário: se há um produtor que arrisca qualquer coisa, é logo posto na lista negra e posto de parte. Como jogar com isso?Tenho prazer em produzir um filme “experimental” com 15 milhões de euros, como o Cosmopolis do David Cronenberg, e ter conseguido não só produzi-lo, ou seja, ser eu o iniciador, fazê-lo existir e ter neste momento o controlo do filme. E, ao mesmo tempo, fazer dois filmes, como fiz há muito pouco tempo: um com o Saboga, sem financiamento nem nada; e outro, em França, com um jovem ator a quem foram recusados completamente todos os financiamentos, apesar de ter uma história fortíssima. Mas fizemos o filme com 150.000 euros, e o filme está a ter, agora, um reconhecimento enorme. Tanto com uma coisa como com a outra, o meu prazer é sempre o mesmo. Tive a sorte de, durante muitos anos, acom-panhar a obra e trabalhar com o Oliveira, com o César, com o Ruiz, com o próprio Alain Tanner, com quem fiz sete filmes; acompanhar o próprio José Álvaro, que foi uma pena ter desaparecido tão rapidamente. Agora, estou um bocado em luto dessa fase, mas, ao mesmo tempo, ainda com paixão e entusiasmo para continuar de outra maneira.

Achas que os paradigmas mudaram mais na distribuição do que na produção?Mudaram em tudo.

E estamos numa fase muito confusa?Muito. Eu penso que as lógicas da distribui-ção e da exibição mudaram muito. O impacto dos filmes não era diretamente proporcional ao êxito dos filmes; por outro lado, a crítica tinha uma exigência que deixou de ter.

Criava um peso à volta dos filmes...Agora, não. Em termos de produção, teoricamente, é muito mais fácil agora do que era antes, há muito mais fontes de financiamento. Mas quem é exigente e quem quer realmente continuar numa linha “inconfortável” não tem muito mais possibilidades do que tinha antigamente. Continuamos na mesma. Temos de con-

tinuar a jogar e a tentar. Em França, isso também se nota muito.

Mas, em França, não houve uma diminui-ção dos espectadores nas salas, como houve cá e de forma tão radical? Não houve, mas é preciso ver a que filmes é que eles vão assistir. Mudou o paradigma dos filmes. Dou um exemplo: antigamente, um filme do Téchiné tinha um milhão de espectadores, agora tem 200.000. E qualquer cinema um pouco mais sério em França, se tiver mais de 200.000 espectadores, já é uma loucura. O que é que há? As comédias estúpidas, os filmes americanos e os filmes tipo Fast and Furious. É a mesma coisa, aqui. Um filme do Almodóvar, antigamente, tinha 150.000 espectadores, agora, para ter 20.000, vê-se aflito. Por isso é que os números enganam e acabam por dar cabo disto tudo. Na literatura, ainda há a humildade de dizer que não é por ter essas tiragens que os livros são bons… No cinema, as coisas são diferentes. Há uma deriva nos próprios festivais. Mudou o tipo de exigência no Festival de Cannes e no Festival de Veneza. Nós, os independentes, já não temos lugar como tínhamos antigamente. Estamos nas secções paralelas. Temos de nos ir reinven-tando todos os dias.

E qual é o futuro do cinema em sala ou das salas de cinema?Penso que as salas nunca desaparecerão. Quer queiramos quer não, é uma visibilidade que é necessária para os filmes. Quando comecei a distribuição em Portugal, nos princípios dos anos 80, decidi ter uma sala porque, um dia, olhei durante duas semanas seguidas para as cartoneiras e só havia filmes americanos das majors. A partir daí, consegui fazer trabalho. Já houve evolução, apesar de tudo. As pessoas esquecem-se, às vezes, de fazer essas comparações. Houve uma grande época nos anos 70, mas nos anos 80 houve uma concentração enorme, de tal maneira que, por exemplo, quem distribuiu o Cyrano de Bergerac fui eu, porque ninguém o quis. Os filmes do Cronenberg só estreavam no King porque não havia mais nenhuma sala para estrear. O próprio Woody Allen só estreava no King. Como é que achas que nós lidamos com a representação de certos traços identitários no cinema em Portugal? Que Portugal se vê nos filmes?Isso é um dos problemas que temos. Os cineastas são preguiçosos e, por vezes, têm uma visão portuguesa que é demasiado restrita. A minha grande

vantagem, o meu luxo, se é que se pode dizer, é ter tido aqueles anos todos de cinefilia. Durante quinze anos, pude ter o prazer de poder ver todos os filmes; não foi só ler o que se dizia dos filmes, foi vê-los todos

Paulo Branco e Raúl Ruiz. @ José Maria Vaz da Silva

Como se pode falar de um filme sem se ter uma noção exata da história do cinema, se esse filme pode ser novo ou não? Ninguém conhece nada, é uma coisa impossível. Na literatura, ninguém se atreve a fazer um comentário sobre um assunto se não tiver toda uma base literária que venha de trás e que se perceba de onde vem a grande literatura para que possa haver algum sentido de relativização no que se refere ao que se lê agora e ao que já leu. No cinema, isso desapareceu completamente.A minha grande vantagem, o meu luxo, se é que se pode dizer, é ter tido aqueles anos todos de cinefilia. Durante quinze anos, pude ter o prazer de poder ver todos os filmes; não foi só ler o que se dizia dos filmes, foi vê-los todos. Isso é um prazer que ainda tenho agora, o de descobrir um filme dos anos 1950, 1940, 1930, coisas que ainda não vi. Agora estou a redescobrir o Anthony Mann, um cineasta extraordinário. Fez coisas que eram o exemplo típico do que os cineastas em Portugal podiam fazer. Mann chegou a fazer três filmes no mesmo ano, em 1958: um é um filme de guerra absolutamente espantoso, numa colina em que se passava tudo em du-zentos metros; outro é um pequeno western, shakespeariano, com dois décors no fundo; e um de grandes espaços onde se percebe que eram projetos ambiciosos, mas em que há aproveitamento dos meios. A importância dos diálogos, do génio cinematográfico, da invenção permanente da mise-en-scène é inacreditável. Coisas que as pessoas deviam ver, porque há essa responsabilidade de se fazer melhor do que se sabe. Nem toda a gente tem de ser um grande cineasta, mas, pelo menos, que haja uma certa honestidade, que é o que cada vez há menos.

Hoje, como produtor, consegues ter uma relação com os realizadores semelhante à que tinhas nos 80 e 90?Tudo mudou a todos os níveis, todo o meio mudou. A minha posição é ser sempre resistente no sentido de reinventar modos de produção, porque, para mim, cada filme é um protótipo, nós somos artesãos. É isso que eu tento ter sempre. Escapar à tendência de utilizar as mesmas regras, as mesmas coisas, e é essa a reinvenção permanente que ainda penso conseguir de vez em quando. Anti-

Há uma deriva nos próprios festivais. Mudou o tipo de exigência no Festival de Cannes e no Festival de Veneza. Nós, os independentes, já não temos lugar como tínhamos antigamente. Estamos nas secções paralelas. Temos de nos ir reinventando todos os dias

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Quando dizes “os cineastas são pregui-çosos”, queres dizer que fazem poucos filmes?Não, são preguiçosos com os temas. Agora, está na moda ir-se buscar um clássico português, adaptá-lo e está feito, um biopic. Eu penso que há uma carência de ficções que tocam as nossas gerações de uma maneira séria, um pouco como existem praticamente por todo o lado. Goste-se ou não se goste, há um determinado tipo de cineastas que sabe falar sobre as gerações existentes. Em França, há muitos: o Téchiné, o Assayas...; há em todos os lados, o Moretti e outros novos em Itália; há depois um de que não gosto muito, o Xavier Dolan no Canadá. Nós ainda não temos um cinema tão forte nesse aspeto. Há um vazio muito grande que poderia ser aproveitado. Há muita coisa na nossa História que tem histórias absolutamente inacreditáveis e ainda não temos meios para nos lançarmos nisso. Podia ser uma coisa extremamente interessante. Um pouco como eu fiz com As Linhas de Wellington, por exemplo, ou como o Oliveira fez com Palavra e Utopia, ou o que tu também fazes através da relação que tens com o colonialismo, com Moçam-bique. Isso é importante. Penso que começa a haver alguns. Mas falta-nos uma ficção mais normal. O problema é que, cada vez que se tenta uma ficção mais normal, cai-se na telenovela.

Porque é que temos este problema? Faltam-nos argumentistas, não os temos. Há muitos filmes em que o argumento só vem estragar. Eu não posso estar a defender argumentistas quando os meus grandes filmes são filmes sem guião: um tinha cinco páginas, outro nem sequer existia, era escrito no dia a dia. Ou os guiões absolutamente incompreensíveis do Oliveira. Estar a falar disso é um pouco estranho, mas a verdade é que, às vezes, falta alguma exigência nisso.

Falta domínio da narrativa. Mas não achas que nós também ainda resistimos um bocado a nos apoderarmos dessas narrativas da História por um certo pudor e culpa histórica? Agora somos pequeni-

nos e as nossas histórias não interessam a ninguém, antes éramos grandes, mas colonialistas e imperialistas...Temos medo de não sermos politicamente corretos e, depois, acaba sempre por correr mal. Nem somos incorretos e somos demasiado corretos. Há qualquer coisa que falta. Às vezes falta talento, mas isso acontece em todo o lado. Só que, quando falta talento num país em que há 200 filmes por ano, há sempre 10 ou 15 que se safam. Faltar talento num país que só tem 10 ou 15 filmes por ano, é grave. Se se produzissem 50 filmes por ano, acho que muito mais talentos apareciam, mas não poderia ser só o ICA, tinha de haver implicações de outras fontes de financiamento.

Achas que o Estado português faz o esforço correto para promover a interna-cionalização do cinema português? Não tem de ser o Estado a fazer. Quando é o Estado a fazer isso, é uma desgraça. O cinema romeno, por exemplo, não foi o Estado. O Estado veio atrás dos cineastas. A internacionalização tem de ser feita com os próprios filmes e por nós, os agentes. Depois, é importante que o Estado perceba que, de vez em quando, é preciso apoiar. Neste momento, até temos uma presença importante. É pena que, há uns anos, já não tenhamos um filme em competição em Cannes. De vez em quando, é muito importante estar num festival desses para chamar, mais uma vez, a atenção. Mesmo assim, nestes últimos quatro anos, relativamente ao que se passou, o cinema ainda foi o menos prejudicado. Foi muito, mas foi dos menos prejudicados. Nos outros domínios da arte, foi um desastre, estes quatro anos foram aterradores.

Sim. Foi um deserto. … a todos os níveis. Acho que, aqui, o problema foi a imposição da mediocridade e que é ela que se deve admirar. Foi o triunfo da mediocridade.

O Lisbon & Estoril Film Festival é um festival que está a ganhar cada vez mais importância. Cruza o cinema com outras artes, especialmente a literatura. não tem mercado, e não pareces muito interessado em ir por esse caminho...Aqui não há lugar para mercado. Os gran-des mercados são os internacionais: Berlim, Cannes, o American Film Market e pouco mais. Nem Locarno, nem Veneza conseguem ser mercados. Não tem sentido estarmos aqui a tentar fazer o que os outros festivais, com muito mais meios, não conseguem. Só quero que o festival seja um espaço onde as pessoas possam descobrir filmes e que haja reflexão através dos cruzamentos de que sempre falo para as pessoas também perceberem que a fruição da arte só existe se houver uma verdadeira discussão e reflexão sobre o que se viu e como se viu. O prazer vem daí, não é só consumir.

Goste-se ou não se goste, há um determinado tipo de cineastas que sabe falar sobre as gerações existentes. (...) Nós ainda não temos um cinema tão forte nesse aspeto. Há um vazio muito grande que poderia ser aproveitado. Há muita coisa na nossa História que tem histórias absolutamente inacreditáveis

As Linhas de Wellington (2012). Fotografia: José Maria Vaz da Silva. Cortesia: Paulo Branco

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Diálogo dos mortos e dos vivos – para Pedro Costa, perguntas sombrias com respostas ilustresnicole brenez

num belo artigo dedicado a Land of Pharaohs [Terra de Faraós] de Howard Hawks, escreveu o seguinte: “The pressure of Time and Death expressed in the shot and in the film explodes in our faces. It is like an open wound that keeps tearing wide, a wound that was already there from the start, that won’t be healing anytime soon. Like scars that remain on the surface of the skin, as carvings on a stone.” 1 Parece--me que os seus filmes se confrontam sempre com a manifestação de um sofri-mento abismal, simultaneamente íntimo e coletivo, imediato e imemorial. Sempre que descubro um dos seus novos filmes, vem-me à mente a pergunta com que Theodor Adorno conclui a sua Teoria Estéti-ca (1970): “Mas que seria da arte, enquanto escrita da História, se se desembaraçasse da memória do sofrimento acumulado?” Também subscreve essa pergunta?O sofrimento humano confronta-nos com o imperativo. O sofrimento não compreende o regateio, não compreende qualquer lógica além da ditada pela sua própria natureza. A lógica do sofrimento é a lógica da realidade. O combate com e segundo o sofrimento, seja este presente ou passado, individual ou coletivo, requer uma concretização real. Por este mesmo motivo, exige, além de simples projetos simbólicos, uma lógica de eficácia, uma lógica de ação. Será o cinema capaz de mais do que apontar o sofrimento? Agora, nós, que, em maior ou menor grau, nos libertámos das ideologias, já não pressenti-mos, já não profetizamos, já não pregamos, mas vemos. Eu diria que o cinema, quando

cumpre a sua missão, lança ao sofrimento concreto um desafio sem palavras.

Ao confrontar-se com a presença real (“a presença bárbara”, como escreveu Jean Epstein), o seu trabalho assumiu responsabilidades singulares no que respeita à aparição dos fenómenos. O seu estilo monumentaliza e confere um caráter epifânico a cada um dos seus mo-tivos. Quais são, para si, as responsabili-dades do cineasta relativamente àqueles que lhe confiam as suas aparências?Toda e qualquer quotidianidade, toda e qualquer imagem da vida futura empalidece perante um ser vivo. A vida é uma vibração de possibilidades. A partir do momento em que penetra neste núcleo vibrante, neste eletrão mágico, o cinema pode associar a vida a algo livre, mostra-se capaz de assumir as suas próprias responsabilidades, mas também pode mover-se em torno deste núcleo da presença real sem nunca o atin-gir, pode preferir vaguear sem tréguas por caminhos que conduzem ao mau infinito do amanhã. Nesta caminhada errática, também existe respeito, à semelhança da teologia negativa que inspirava Dreyer ou Bresson.

A sua obra desenvolve uma nova forma de cinema político que, tal como o de Jean-Luc Godard, o de Jean-Marie Straub ou o de Danièle Huillet, pressupõe começar pela refundação dos princípios figurativos. Gostaria de expor-nos alguns desses princípios? O cinema, tal como o compreendi e vivi até ao momento, é a procura deliberada dos as-petos mais malditos, decadentes e violentos da própria existência. Através das experiên-cias que adquiri nos meus percursos pelas cidades, pelos seus baldios ou pelas ilhas, aprendi a considerar a história escondida do cinema. Qual é a dose de verdade que um espírito pode suportar, qual é a dose de verdade que ele pode arriscar? Eis o que, para mim, se tornou o critério, o princípio. Para tal, há que considerar não só como necessários, mas também como desejáveis, os aspetos negados da existência. A Huma-nidade é constituída por um extravagante repositório de experiências, um imenso

laboratório onde, em todos os tempos, algumas coisas tiveram êxito e muitas outras fracassaram, um enorme excedente de falhanços e erros. A Humanidade é um campo de escombros… O cinema consiste em percorrer esse campo, absorvendo altas doses de poeira.

A Revolução portuguesa e as emoções antagonistas que ela suscitou, em si e em Ventura – que se terão, sem dúvida, cru-zado nessa época, sem se conhecerem, você, um jovem inebriado de liberdade, ele, muito angustiado com o novo estado de coisas –, constituem, conforme expli-cou, uma das fontes de Cavalo Dinheiro (2014). Que pensa dos filmes revolucioná-rios ativistas portugueses da década de 1970, como As Armas e o Povo (coletivo, 1975) e Deus, Pátria, Autoridade de Rui Simões (1975), ou dos filmes do Grupo Zero como, por exemplo, Assim Começa Uma Cooperativa (1976), A Luta do Povo (1977) ou A Lei da Terra (1977)? Para si, constituem pontos de referência ou, pelo contrário, contraexemplos estilísticos?A força e a profundidade desses filmes resi-diam na ideia de um conhecimento inter-veniente, eficaz e rico em resultados. Esta inovação, sem negar o cinema clássico, veio indicar o sentido de uma reorientação geral das aspirações da arte. Mas, naturalmente, os filmes não podem, por si sós, resolver os problemas políticos e sociais com que se de-param. Este é, provavelmente, o obstáculo com que se defrontaram os filmes da década de 1970: admitiram reduzir-se, a si mesmos, ao nível de meros meios ao serviço das lutas, integrando, aceitando e valorizando as suas próprias limitações. É uma espécie de magnífica abnegação à qual não me sinto autorizado. Nos meus filmes, trabalho de modo a que o mundo fale por mil sinais.

Para si, que conseguiu dar uma dimensão infinita a um local (Fontainhas, Tarrafal), a ideia de nação tem algum significado? Qual é sua relação com Portugal?Portugal move-se, já desde há muito, com uma tensão torturante que cresce ano após ano, como que arrastado para uma catástro-fe. Inquieto, violento, precipitado, como um rio que quer acabar, que quer desaparecer,

Rodagem do filme Cavalo Dinheiro (2014), Pedro Costa. © Marta Mateus

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que já não procura o seu rumo, que teme retomar o seu rumo... Que fazer senão mergulhar nele, mantendo os olhos bem abertos, como os amantes em A Atalante?

Em França, é frequente estabelecermos um paralelo entre, por um lado, Henri Langlois e a Nouvelle Vague e, por outro, João Bénard da Costa e você mesmo. Este paralelo não simétrico parece-lhe justo e poderá dizer-nos alguma coisa sobre a sua aprendizagem cinéfila?A grande arte – um conceito que reina hoje em dia – pressupõe a total autonomia do artista, mas não só, como nos ensinaram Henri Langlois e os seus homólogos (Iris Barry, nos Estados Unidos, Maria Adriana Prolo, em Itália, João Bénard da Costa, em Portugal, etc.). Os artistas do Renasci-mento tinham de obedecer aos príncipes e senhores da época e aos financiadores privados, conforme testemunham os per-cursos de Haydn, Mozart ou Hindemith,

pedro costa

afastado como incerto, duvidoso, difícil e que, talvez, fosse o mais valioso... Ela abraça o longínquo. Nenhum filme chega intacto às salas de cinema. Então, a instalação propor-ciona-nos uma forma de libertação para os nossos arrependimentos cinematográficos.

na sua magnífica edição de Casa de Lava – Caderno2, vemos que sublinhou uma frase de Jean-Luc Godard extraída de um artigo publicado em 19803: “Os filmes ajudam-me a viver. Penso que haverá poucos cineastas que façam filmes como remédios, como elixires. Contudo, é assim que o público os utiliza. Mas há uma tendência para fornecer remédios em contradição com a doença, já que não existe sistema capaz de restabelecer um

pouco de justiça.” Os seus filmes ajudam--no a viver, no mesmo sentido de Jean--Luc Godard? Para repor alguma justiça no mundo? Para além de o inspirarem, tal como acontecia com John Ford ou Yasujiro Ozu, há filmes que, aos seus olhos, se tenham mostrado à altura dos desafios da vida? Não, isso é, felizmente, impossível, porque a vida também nos opõe a sua máxima hostilidade.

Nota: Substituímos as palavras de Pedro Costa pela memória daquelas que inspi-raram o nosso questionamento: Friedrich Nietzsche, Fragmentos Póstumos, 1887-1888; Friedrich Nietzsche, Fragmentos Póstumos, 1888-1889; Jan Patočka, Liberdade e Sacrifí-

cio: Escritos políticos, 1934-1977; Jan Patočka, Ensaios Heréticos, 1975; e Paul Feyerabend, Adeus à Razão, 1987. Esperamos que o conjunto proporcione uma visão prismática de uma das obras cinematográficas mais exigentes e mais radicais da história.

Cavalo Dinheiro (2014), Pedro Costa. © Sociedade Óptica Técnica – OPTEC

Casa de Lava – Caderno (2013), Pedro Costa. © Pierre Von Kleist Editions

notas1. “A pressão de Tempo e Morte expressa na cena e no filme explode nas nossas caras. É como uma ferida aberta que vai aumentando, uma ferida que já existia desde o início e que não irá sarar tão depressa. Como cicatrizes que ficam na superfície da pele, como marcas numa pedra.” Howard Hawks, coordenado por João Bénard da Costa, Lisboa: Cinemateca Portuguesa/Fundação Calouste Gulbenkian, 1990.2. Pedro Costa, Casa de Lava – Caderno, edições Pierre von Kleist, 2013.3. Jean-Luc Godard, “Travail-amour-cinéma”, Le Nouvel Observateur, 20 de outubro de 1980.

que compuseram Gebrauchsmusik (música utilitária), o que de forma alguma os impe-diu de produzir grandes obras. Mallarmé gostava das obras encomendadas, e Godard realizou admiráveis filmes institucionais. Se Langlois e outros quiseram tudo conser-var, tudo mostrar, tudo confrontar, foi para preservar a amplitude do leque de posições práticas e éticas de entre as quais podíamos escolher, quer nos pudessem inspirar ou, pelo contrário, repugnar: desde a posição mais subordinada, o trabalho encomen-dado, até à mais independente, radical e quotidianidade experimental. E foi isso, de facto, que nos ajudou, nas gerações seguintes, a encontrar o nosso próprio modus operandi e os recursos para a nossa sobrevivência.

A sua obra consiste em filmes, mas também, desde 2001, em instalações que realiza com frequência (sempre?) a partir de rushes ou de cenas das

suas curtas e longas-metragens, como Minino Macho, Minino Fêmea na Bienal de Arte Contemporânea de Lyon, e a partir de rushes de No Quarto da Vanda (2000) e, depois, Benfica, Colina do Sol e Pontinha, Fontainhas, Casal da Boba, etc. Esta outra utilização das imagens já faz, agora, parte do seu horizonte, logo durante as filmagens? Para si, é tranqui-lizador saber que, mesmo que um filme não possa refletir tudo o que se oferece in situ, poderá encontrar outra forma de descrever e mostrar fora de uma duração linear? Por outras palavras, as suas instalações podem ser consideradas como um desenvolvimento contínuo da filmagem?A instalação permite-nos escapar à fata-lidade do desfile linear que caracteriza o cinema, permite-nos escapar ao consumo imediato da projeção tradicional, permite--nos reintegrar na economia geral de um trabalho aquilo que, no filme, teve de ser

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nicole brenez pedro costa

Mínimo Macho, Mínimo Fêmea (2010), Pedro Costa. © ilmin Museum of Art, Seul. Fotografia: nathing Studio

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Vai e vem – a internacionalização do

cinema portuguêspaulo cunha

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odesejo de internacionalização nasceu com o próprio cinema português. Desde Aurélio da

Paz dos Reis, o “pai” do cinema portu- guês, a internacionalização tem sido uma vontade, uma ambição ou uma neces- sidade para o cinema português, tanto para a sua expansão como para a sua sobrevivência. O objetivo deste breve texto é fazer uma panorâmica retrospetiva sobre as principais estratégias de internacionalização tentadas ao longo da história do cinema português, propondo

uma reflexão sobre os diferentes contextos em que foram esboçadas.

AuRÉLiO E A inViCTA: DO PORTO PARA O MunDO

Aurélio da Paz dos Reis foi o primeiro português a tentar obter sucesso cinematográfico fora de

Portugal, mais concretamente em terras brasileiras. Como acredita Manuel Félix Ribeiro (1983: 16), o Brasil seria mesmo o

objetivo inicial do empreendedor portuense: “Seria de estranhar que tão grande esforço, persistência e valor económico, pois a iniciativa deveria ser largamente dispendiosa para o tempo, tivesse sido levada a efeito para a exclusiva realização de uma meia dúzia de espetáculos no País. O seu intento fora certamente outro – a miragem de um entusiástico e compensador negócio no Brasil deveria tornar-se, como o demonstra o cartaz contendo já os escudos dos dois países, o motivo principal dessa iniciativa.”

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depois, Paz dos Reis já estava de regresso a Portugal (ibidem).

Vinte anos mais tarde, também no Porto, o cinema português tentaria novamente a estratégia da internacionalização. As origens da Invicta Film remontam a 1910, mas só depois de 1918 é que a pequena firma produtora de filmes de atualidades e industriais se transformaria no maior projeto de produção cinematográfica contínua até então. A estratégia passava pela transformação da Quinta da Prelada no maior estúdio de cinema português e pela contratação de vários técnicos estran-geiros, nomeadamente Georges Pallu, um experiente realizador francês que fizera

carreira nas importantes firmas Film d’Art e Pathé Frères.

Apesar da presença de vários técnicos estrangeiros, a divisa publicitária da Invicta Film não deixava dúvidas: “Roman-ce Português – Filme Português – Cenas Portuguesas – Artistas Portugueses”. As sucessivas adaptações cinematográficas de Frei Bonifácio (1918), A Rosa do Adro (1919), Os Fidalgos da Casa Mourisca (1920), Amor de Perdição (1921) e O Primo Basílio (1923) materializavam uma estratégia de internacionalização da produtora portuense que apostava no compromisso entre o exotismo e o regionalismo dos romances oitocentistas portugueses e o género do film d’art francês. Ao contrário do sucesso alcançado por vários filmes de atualidades, nomeadamente Naufrágio do Veronese (1912), a falta da distribuição internacional revelar-se-ia fatal na estratégia da Invicta: pensada sobretudo para o público estrangeiro, os filmes aca-baram por circular pouco no país e menos ainda na Europa, onde a concorrência era forte e a qualidade técnica e artística era mais reconhecida.

O Brasil e as comunidades portuguesas dos Estados Unidos foram os mercados que, tentados como recurso, ainda deram algum retorno, graças às parcerias com empresas portuguesas com interesses nesses países, mas isso seria insuficiente para garantir a viabilidade do projeto (ibidem: 134). Nos dois casos, a diáspora portuguesa demonstrava que poderia ser um mercado com potencial para comple-mentar um mercado interno insuficiente para uma produção cinematográfica contínua e exigente do ponto de vista técnico e artístico.

Perto da falência, a Invicta Film ainda ponderou apostar o seu destino numa parceria com Virgínia de Castro e Almeida, uma escritora portuguesa radicada em Paris convertida em produtora de cinema (fun-dara, um ano antes, em Lisboa, a Fortuna Films) com fortes aspirações. Confiante nas suas relações com “companhias inglesas,

francesas e belgas”, a empreendedora acre-ditava que o seu arrojado projeto conquis-taria “os mercados de Portugal, Espanha, Brasil e talvez uma percentagem noutros” (ibidem: 131).

Tal como a Invicta, também Virgínia de Castro e Almeida não teria sucesso na sua estratégia de escoamento dos filmes produzidos em Portugal para o mercado europeu. O diagnóstico dos dois projetos foi realista – a pequena dimensão do mercado cinematográfico português não permitia investimentos numa estrutura industrial de produção contínua –, mas a estratégia de internacionalização falhara no principal mercado de escoamento, o europeu. Em contrapartida, as comunidades de portugueses espalhados pelo mundo, particularmente no Brasil, pareciam dar respostas promissoras.

DuRAnTE O ESTADO nOVO: A “iRMAnDADE iBÉRiCA” E A “PROJEçãO ATLânTiCA”

A inda que o lema “orgulhosamente sós” fosse um dos postulados salazaristas, o Estado Novo

sempre procurou aliados internacionais que legitimassem a sua ideologia no exterior. Próximos ideologicamente, o Brasil do Estado Novo de Getúlio Vargas e a Espanha do generalíssimo Franco foram os principais aliados internacionais do regime ditatorial de Salazar, alianças que também se fizeram notar nas políticas culturais e nas cinematográficas.

Após esses primeiros resultados positivos verificados na receção a filmes portugueses no Brasil no início da década de 30 – Ver e Amar (1930, Chianca de Garcia), A Severa

A 15 de janeiro de 1897, apenas dois meses depois das primeiras exibições realizadas no Porto, Paz dos Reis faz a sua estreia brasi-leira no Teatro Lucinda, do Rio de Janeiro. As intenções do promotor estão explicita-mente declaradas na publicidade ao evento: “Surprehendente Collecção de Quadros reproduzindo Scenas e Epizodios da Vida Portugueza, Vistas de Portugal e muitas outras de grande e actual interesse.” A co-munidade portuguesa do Brasil, “sedenta da presença de motivos pátrios”, seria o público privilegiado para o Kinetographo Portuguez de Paz dos Reis. Sem grande sucesso, e mes-mo com direito a severas críticas a propósito de insuficiências técnicas, as apresentações concluíram-se a 20 de janeiro e, quatro dias

(1931, Leitão de Barros) e A Canção de Lisboa (1933, Cottinelli Telmo) –, o Brasil foi declaradamente o destino privilegiado para as obras cinematográficas de “interesse nacional” que obedeciam às diretivas do regime no sentido de tentar “nacionalizar” a população das comunidades portuguesas no estrangeiro. A sua boa receção no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo, levaria mesmo alguns dos protagonistas destes filmes – Dina Teresa, Beatriz Costa, Vasco Santana e António Silva – a tornarem--se “ídolos popularíssimos” junto da comuni-dade de portugueses radicados no Brasil.

As Pupilas do Senhor Reitor (1935) e Bocage (1936), ambos de Leitão de Barros, ainda repetiriam – e ultrapassariam mesmo – o sucesso comercial em terras brasileiras, mas, passada a “euforia” inicial, o mercado brasileiro foi deixando de estar recetivo

Cartaz de Kinetographo Portuguez. Ribeiro, 1983: 15. Coleção Cinemateca Portuguesa--Museu do Cinema

António Ferro pronun-ciando o seu discurso

durante a distribuição de prémios literários

de 1936. identificados no álbum: Dr. Francisco

Henriques de Góis; Dr. António Carneiro

Pacheco; e António Ferro. imagem cedida

pelo AnTT

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para os filmes portugueses, à medida que as expectativas dos “colonos” pelas imagens de Portugal se transformam em desilusão perante a constatação do atraso estrutural português. Face a este problema, começa-ram a ouvir-se vozes a apelar aos “senhores produtores e realizadores de Portugal” que “em Portugal se realize e no Brasil se exiba a mais eficaz propaganda da nossa Pátria” e, quanto a “filmes para nosso próprio ridículo, mais vale que não atravessem o Atlântico”.

Para António Ferro, uma das prioridades do cinema português seria servir o público português, mas um “público português” que não se esgotava na Metrópole, englobando também todos os portugueses das possessões ultramarinas e todos os portugueses espalha-dos pelo mundo, em particular no Brasil. Um dos melhores exemplos das obras considera-das “exportáveis” pelo regime foi A Revolução de Maio (1937), filme de propaganda do e ao

Estado Novo realizado por António Lopes Ribeiro. Num texto publicado na revista Cinéfilo (5.6.1937), o próprio realizador defi-nia como um dos “quatro pontos cardeais” do seu filme “servir o público português” numa conceção mais alargada, incluindo “o público português de Portugal, do Brasil, das Possessões Ultramarinas, da Europa, da América e da África” que “reclama filmes falados em língua portuguesa”.

No final dos anos 40, Leitão de Barros idealizou aquele que seria o mais ambicio-nado projeto de coprodução luso-brasileira: Vendaval Maravilhoso (1949). Reunindo um importante conjunto de apoios financeiros e logísticos tanto em Portugal como no Brasil, Leitão de Barros pretendia imortalizar na tela a história do poeta brasileiro Castro Alves (1847-1871), uma figura central da luta antiesclavagista no Brasil. Depois de longos meses de rodagem nos estúdios da Tobis e da Lisboa Filme, o realizador rumou ao Brasil

para rodar diversas sequências em cenários naturais no Recife e na Bahia, e nos estúdios brasileiros de Niterói e da Cinédia.

Ao contrário das elevadas expectativas, o filme foi um fracasso comercial tanto em Portugal como no Brasil, precipitou o fim da carreira cinematográfica de Leitão de Barros e terá enterrado, por várias déca-das, o projeto de criação de um mercado cinematográfico lusofalante. Apesar de partilhar uma mesma língua com o Brasil – mas um vocabulário e uma pronúncia muito distantes –, o cinema português há muito deixara de colher sucesso em terras brasileiras.

Estas iniciativas integram o que Carla Ribeiro (2014) designa por “cruzada da lusitanidade”, um projeto de política cultural externa pensado por António Ferro. Em 1942, na sequência de uma viagem pelo Brasil e pela América do Sul realizada meses antes, o responsável do Secretariado da Propaganda Nacional concebera o “Plano de uma campanha de propaganda em toda a América e no Brasil em particular”, um documento interno dirigido ao próprio Sa-lazar e que pretendia garantir a “definitiva

projeção atlântica” de Portugal. Englobando três ministérios (Educação Nacional, Econo-mia e Negócios Estrangeiros), para além do SPN, o plano propunha uma aproximação a diversos países latino-americanos – Argen-tina, Uruguai, Paraguai, Peru, Colômbia e México –, mas elegia o Brasil e os Estados Unidos da América como os parceiros privilegiados.

Como sublinha Carla Ribeiro (ibidem), a possibilidade de criar um espaço de influ-ência cultural latino-americana a partir dos antigos colonizadores estava presente em diversas narrativas, nomeadamente cine-matográficas: de visita a Lisboa em finais de 1940, o cineasta Jean Renoir propôs a criação de uma União do Cinema Latino (“O grande realizador francês Jean Renoir está em Lisboa”, Animatógrafo, 2.12.1940: 4); também o produtor e realizador António Lopes Ribeiro, num relatório de 1941 intitu-lado “Colocação de filmes portugueses em Espanha e no Brasil”, procurou promover um projeto para estabelecer uma indústria de filmes nacionais para um mercado que integrasse Espanha, o Brasil e toda a América Latina (Ribeiro, 2014).

E o cinema seria um eixo fundamental do plano de Ferro: primeiro, para combater a hegemonia e a influência do cinema norte-americano junto do público português e, depois, para divulgar a mensagem do Estado Novo pelo mundo, introduzindo no estrangeiro “o cinema português (quando este for apresentável) em bases comerciais, porque são também as melhores, para uma propaganda eficaz” (António Ferro, apud Ribeiro, 2014).

Simultaneamente a esta “cruzada da lusitanidade” em terras brasileiras e apesar de todas as desconfianças históricas que afastavam Portugal e Espanha, António Ferro foi também trabalhando num projeto de “irmandade ibérica” que seria benéfico aos cinemas dos dois países.

Assim, entre 1945 e 1951, estrearam nas salas de cinema portuguesas doze filmes produzidos em regime de coprodução entre empresas portuguesas e espanholas. Estes

números são ainda mais significativos se se atender ao facto de que essas coproduções correspondem a, aproximadamente, 30 por cento das 44 longas-metragens de produção cinematográfica portuguesa que estreou nas salas portuguesas nesse mesmo período.

O período áureo da colaboração cinema-tográfica entre portugueses e espanhóis aconteceu na primeira metade da década de 1940. E não foi certamente estranha a esta colaboração a aproximação política entre os dois Estados ibéricos promovida por Salazar e Franco, que teve a sua maior mediatização com a assinatura do Pacto Ibérico, em março de 1939.

O modelo de coprodução não era uniforme, prevendo diversas modalidades ou métodos: filmes dirigidos por realizador português em estúdios espanhóis, ou dirigidos por realizador espanhol em estúdios portugue-ses; filmes com duas versões dirigidas por dois realizadores com os mesmos atores e técnicos, ou com atores e técnicos diferen-tes; filmes com equipas mistas de produção rodados entre Portugal e Espanha.

O envolvimento nestas produções de nomes maiores das duas cinematografias, como os realizadores Leitão de Barros, Arthur Duarte, Ladislao Vajda e Rafael Gil, os atores António Vilar, João Villaret, Julia Lajos e Ana Maria Campoy, ou os técnicos Heinrich Gartner, Jaime Mendes, Aquilino Mendes e Felipe Sáenz, são bem representa-tivos do investimento feito pelos produtores envolvidos nestes projetos cinematográficos.

Do lado português, o grande entusiasta desta cooperação começou por ser Luís Dias Amado, o coprodutor de Inês de Castro. Quando surgiu este projeto, não existia qualquer convénio oficial entre os dois países para uma política cinematográfica de colaboração, mas a obra de Leitão de Barros beneficiou de largos apoios das entidades oficiais portuguesas e espanholas. Em entrevista ao Diário Popular (11.12.1944), o próprio Leitão de Barros definiria em breves palavras quais eram os objetivos desta colaboração: “Tanto Portugal como Espanha ganham com a iniciativa de fazer filmes

Cartaz do filme Inês de Castro (1945), Leitão

de Barros. Coleção Cinemateca Portuguesa-

-Museu do Cinema

O modelo de coprodução não era uniforme, prevendo diversas modalidades ou métodos: filmes dirigidos por realizador português em estúdios espanhóis, ou dirigidos por realizador espanhol em estúdios portugueses

E o cinema seria um eixo fundamental do plano de Ferro: primeiro, para combater a hegemonia e a influência do cinema norte-americano junto do público português e, depois, para divulgar a mensagem do Estado Novo pelo mundo

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destinados aos dois mercados de antemão garantidos e que constituem o todo penin-sular. O cinema em português ligado a um filme em espanhol é o vínculo mais seguro, mais rápido e mais eficaz para manter esse contacto antigo da Península Ibérica com a América Latina.”

As expectativas para esta iniciativa eram tais que o produtor anunciava, ainda durante a rodagem de Inês de Castro, um plano de trabalho bastante ambicioso para os anos seguintes: “Se as coisas correrem bem, propo-mo-nos continuar esta colaboração, dando aos dois mercados um mínimo de 10 filmes por ano em colaboração e com a intervenção de artistas e técnicos dos dois países.”

O relativo sucesso de Inês de Castro nos dois mercados favoreceu o surgimento de filmes de outras produtoras portuguesas – Lisboa Filme, Doperfilme, Aníbal Contreiras – que procuravam conquistar o mercado de exibição ibérico e, em última instância, o mercado da América Latina. Destas produções, apenas duas tiveram algum reconhecimento da crítica do país vizinho: Inês de Castro foi declarado filme de interesse nacional pelo Governo espanhol e vencedor do prémio para melhor filme do ano, e Rainha Santa representou Espanha no festival de Veneza em 1947. Em Portugal, a generalidade das coproduções com Espanha teve carreiras comerciais algo discretas e a crítica nacional não lhes foi particularmen-te entusiasta.

Como Luís de Pina sublinha, este modelo de coprodução nunca terá colhido grande entu-siasmo por parte de António Ferro, adepto de um “conceito fechado de produção portuguesa”. De resto, seria essa a política definida pela célebre “Lei de protecção do cinema nacional” de 1948, onde a categoria “filme português” era definida por um con-junto de condições exclusivas: “a) Ser falado em língua portuguesa; b) Ser produzido em estúdios e laboratórios pertencentes ao Estado ou a empresas portuguesas instala-das em território português; c) Ser represen-tativo do espírito português, quer traduza a psicologia, os costumes, as tradições, a história, a alma colectiva do povo, quer se

inspire nos grandes da vida e da cultura universais.” Para além de excluir a maioria das coproduções do financiamento público, a mesma lei levantava alguns obstáculos à participação de técnicos estrangeiros em fil-mes portugueses: “A concessão de licenças para a colaboração de técnicos estrangeiros nos filmes portugueses fica dependente do parecer favorável do Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI), só sendo de admitir elementos de comprovada competência.”

MuDAR DE ViDA: A EuROPA E O CinEMA MODERnO

na década de 1960, a afirmação do Novo Cinema português pressupôs uma rutura radical

com todo o passado cinematográfico português, poupando apenas alguns nomes à mediocridade dominante, concretamente Manoel de Oliveira e Manuel Guimarães, dois exemplos de uma ética singular e de um percurso marginal. Mas, esteticamente, as referências desta geração eram quase exclusivamente estrangeiras. Assumindo essa rutura com todo o passado, criticando ainda a forte dependência do velho cinema de áreas do entretenimento com poucas afinidades com a estética cinematográfica, nomeadamente o teatro de revista ou o designado nacional-cançonetismo, a nova geração de aspirantes a cineastas afirmava--se, nas palavras de João César Monteiro (O Tempo e o Modo, 3.4.1969: 407), como a “primeira geração de cineastas cultos existentes em Portugal”.

Essa supostamente inédita cultura cinéfila dependia de dois fatores determinantes: o contacto com os principais textos cinema-tográficos produzidos em toda a Europa, através da leitura de revistas de referência como as francesas Cahiers du Cinéma e Positif ou as italianas Bianco & Nero e Cinema Nuovo; os cursos de formação e estágios no estrangeiro de vários aspirantes a cineastas, promovidos pelo Fundo do Cinema Nacional, a partir de 1959, e pela Fundação Calouste Gulbenkian, a partir de 1961 (Cunha, 2009: 204-209).

Paulo Rocha considerou mesmo a experiên-cia europeia como estruturante da cultura cinéfila desta geração, sobretudo a influência das correntes de renovação das principais cinematografias europeias, onde aprenderam a entender o cinema como uma experiência artística e estética (Monteiro, 2000: 312).

Em 1964, o sociólogo português Adérito Se-das Nunes não tinha dúvidas em concluir que a “modernização” cultural e sociológi-ca que a sociedade portuguesa então vivia se devia, em grande medida, à crescente abertura às influências exteriores, sobretu-do à europeia: “acesso à visão, e mesmo à vivência imaginária, de outras sociedades, outras condições de vida, outras formas de pensar e agir” (Nunes, 2000: 50).

No caso particular dos jovens cinéfilos, a importação de “estímulos, imagens, oportunidades, solicitações e concepções”

foi fundamental para que que os “horizon-tes mentais” e o “campo social de referência dos seus comportamentos, ideias, aspirações e decisões” se abrissem a “uma nova dimensão” e assumissem “novos elementos e perspectivas” (ibidem: 51), nomeadamente a materialização de uma oposição fílmica que, em termos escritos, já vinha sendo di-vulgada desde a década de 1950. O contacto com cinematografias estrangeiras, desde as obras clássicas aos movimentos de rutura, forneceu aos cinéfilos mais inconformados com o cinema português uma base de com-paração onde estes reviam as suas objeções culturais e estéticas (Cunha, 2009: 217).

A campanha publicitária ao filme Os Verdes Anos (1963) é um excelente exemplo dessa

rutura com o passado e esse desejo de filiação numa matriz moderna europeia: “Porque está mais perto esteticamente dos modernos filmes italianos e franceses do que do cinema português habitual” (Diário de Lisboa, 28.12.1963: 3); “Gente nova, sem passado e sem responsabilidade na produção nacional. E que tem do cinema uma visão universal, que lhe advém do longo contacto com os estúdios parisienses” (Diário de Lisboa, 29.11.1963: 6).

Ironicamente, parece ter sido o fracasso comercial das primeiras propostas fílmicas a ter convencido a generalidade dos cineastas de que a sua existência teria de ser garantida à margem das leis do mer-cado. Esta consciência de uma posição de

Anúncio ao filme Os Verdes Anos, in Diário de Lisboa – Lisboa. A.43, n.º 14 712 (28 nov. 1963), p. 3. BnP: J. 4349 M.

Anúncio ao filme Os Verdes Anos, in Diário de Lisboa – Lisboa. A.43, n.º 14 713 (29 nov. 1963), p. 6. BnP: J. 4349 M.

Paulo Rocha considerou mesmo a experiência europeia como estruturante da cultura cinéfila desta geração, sobretudo a influência das corren-tes de renovação das principais cinema-tografias europeias, onde aprenderam a entender o cinema como uma experiência artística e estética

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marginalidade perante o mercado cinema-tográfico potenciou uma prática fílmica mais voltada para o radicalismo e para o experimentalismo.

Gradualmente, o Novo Cinema português operou uma mudança de paradigma no nosso cinema ao propor uma rutura com os projetos anteriores de um cinema nacional para um público português (ou lusofalante, no caso das colónias

fílmicas do Novo Cinema português refletem as influências das novas vagas e da cinefilia moderna. Segundo testemu-nhos dos próprios realizadores, os filmes estariam mais próximos de um público cinéfilo internacional do que do público português, porque esses filmes desafiavam o cânone dominante norte-americano e usavam referências cinéfilas e estéticas que o público português desconhecia ou desvalorizava.

nomeadamente António da Cunha Telles. Dos filmes que integram o corpus do Novo Cinema português, foram diversos os selecionados ou premiados em diversos certames cinematográficos internacionais: Veneza, Berlim, Cannes, Siena, Locarno, Valladolid, Lecce, Biarritz, Manheim, San Remo, Leipzig, Lille e Sitges (Cunha, 2012).

Progressivamente, a nova geração de cineas-tas passou a ter outro público de referência

Cartaz do filme Fintar o Destino (1997), Fernando Vendrell. Coleção Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

ultramarinas e da comunidade de portugueses e lusodescendentes no Brasil) e uma aproximação estética ao cinema moderno das novas vagas europeias e ao seu crescente circuito de divulgação que passava pelos festivais de cinema e pela exibição em contextos culturais.

O imperativo da internacionalização deixou de ter motivações meramente comerciais, financeiras, políticas ou ideológicas, passando a ser necessário por razões estéticas e cinéfilas. Sem perderem as referências sociológicas e culturais da sociedade portuguesa, as propostas

Inspirados pelo inesperado e relativo sucesso crítico internacional de Manoel de Oliveira na década anterior, os jovens cineastas portugueses começam a apostar na participação em festivais de cinema internacionais, em géneros marginais e específicos, como o cinema publicitário, turístico, religioso ou industrial, e valori-zam esse circuito pela sua importância na afirmação e no reconhecimento internacio-nais. A participação de filmes portugueses em festivais de cinema, geridos pelo próprio SNI, demonstra que, na década de 60, surgiu uma nova estratégia de promoção internacional tentada por jovens produtores,

que não o português. As boas receções internacionais de alguns filmes dos anos 60 parecem tê-los convencido a apostarem definitivamente na internacio-nalização dos seus filmes. Ao contrário do grande público português, que estava condicionado por décadas de censura cinematográfica e de isolamento cultural sentenciados pela ditadura salazarista, os jovens cineastas portugueses acreditavam que o público cinéfilo internacional estaria preparado para receber e aceitar as novas propostas fílmicas, viabilizando, financeira e esteticamente, o Novo Cinema português.

Cristóvão Colombo – O Enigma (2007), Manoel de Oliveira. © Filmes do Tejo

DE BRAGAnçA A PARiS: PARA uM CinEMA TRAnSnACiOnAL

A s políticas culturais públicas desenvolvidas no pós-25 de abril promoveram e consolidaram esse

gradual processo de internacionalização dos modos de produção para o cinema português, desde a produção à circulação, parecendo oferecer garantias para romper com as limitações do mercado interno e respeitar as novas orientações da diplomacia portuguesa de aproximação ao espaço europeu.

Assim, nos anos a seguir à Revolução de abril, foram assinados diversos acordos bilaterais de cooperação cultural e cine-matográfica com países até então pouco aliados, nomeadamente países da então chamada esfera de influência socialista: Roménia, Jugoslávia, URSS, Senegal, Bulgária, Checoslováquia (todos em 1976), Líbia (1977), Venezuela, Argentina (ambos em 1979), Grécia (1980), Iraque, Kuwait, Congo, Costa do Marfim (todos em 1984) e Tailândia (1985).

Entretanto, em 1981, a par destes novos parceiros, Portugal estabeleceria protocolos de cooperação que pretendia consolidar relações com dois dos seus parceiros mais históricos e estratégicos: França e Brasil. Se os acordos com os novos parceiros acima referidos foram fugazes ou efémeros, as relações com estes dois países revelar-se-iam cruciais para as estratégias de internaciona-lização do cinema português.

A fortalecer a aposta na linha “europeia”, em 1989 eram assinados acordos de cooperação com a Espanha e a Alemanha, ainda em vigor, mas seria a França o alfa e o ómega do cinema português nas décadas seguintes. A influência francesa foi tal que, em meados dos anos 80, perante um crucial impasse nas políticas públicas de apoio à produção cinematográfica, o então Ministério da Cultura e da Coordenação Científica, titulado por Francisco Lucas Pires, resumiria as duas principais ten-dências com uma expressão fortemente estigmatizada que ficaria célebre: “a infeliz metáfora dos ‘filmes para Bragança ou

dos filmes para Paris’” (Costa, 1991: 28). A depreciativa designação “filmes para Bragança” referia-se às obras com uma preocupação mais comercial e popular, destinadas a agradar ao grande público nacional, enquanto os “filmes para Paris” seriam as obras com preocupações estéticas e artísticas mais elaboradas, usando-se a capital francesa como referência cultural e artística de um património cinematográfico supranacional.

Em 1982-83, o produtor Paulo Branco garantiria importantes apoios estrangeiros (França e Itália) para Manoel de Oliveira realizar os documentários Lisboa Cultural (1983) e Nice – À Propos de Jean Vigo, obras que reforçavam o prestígio internacional do realizador. O prestígio internacional cultiva-

A estratégia das copro-duções com parceiros internacionais e a entrada no circuito dos festivais de cinema de renome internacional haveriam de nortear definitivamente a car-reira de Oliveira sob a produção de Branco

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Espanha) e As Mil e Uma Noites (coprodução de Portugal, França, Alemanha e Suíça), ou João Pedro Rodrigues em O Ornitólogo (coprodução de Portugal, França e Brasil).

Se, até há poucos anos, Manoel de Oliveira, João César Monteiro ou António Reis eram reconhecidos internacionalmente como “cineastas portugueses”, hoje o paradigma alterou-se significativamente e cineastas como Pedro Costa, João Pedro Rodrigues ou Miguel Gomes são vistos internacionalmente, nos circuitos dos festivais de cinema de autor, como “autores globais”. Naturalmente, estes cineastas não deixam de ser portugueses, mas esta categoria funcionará agora, sobretudo, como uma identificação geográfica, não mais como uma matriz estética comum, como aconteceu no caso da Escola portuguesa.

Consequentemente, os universos de referên-cia destes cineastas, pelos quais são reco-nhecidos criticamente no circuito cinéfilo internacional, não são agora as referências eminentemente nacionais (literárias, culturais ou mesmo cinematográficas),

mas outras mais globalizadas: a política dos autores em Costa, o film noir e o melodrama em Rodrigues ou o cinema clássico america-no em Gomes. Portanto, como sugere Iván Villarmea Álvarez (2016: 116), deixou de fazer sentido “continuar a pensar o cinema português a partir da diferença, como uma entidade autónoma e isolada que fica à margem destes processos globais”. Ainda assim, mesmo adotando o modo de produção transnacional, os filmes de cineastas portu-gueses continuam, na sua generalidade, a refletir sobre questões centrais da memória e da identidade coletiva portuguesa (a ditadura salazarista, o passado colonial ou a integração europeia, só para citar alguns exemplos). Esta continua a ser uma singularidade do cinema produzido em Portugal nesse contexto global que o afirma e valoriza.

ALGuMAS COnCLuSõES

Ao longo da sua história, o cinema português foi conhecendo vários projetos que alteravam

do por Paulo Branco, desde 1979, em torno da figura e da obra de Oliveira daria os seus frutos em 1984. Nesse ano, numa estratégia de expansão cultural francófona, o ministro da Cultura francês, Jack Lang, aceitou a proposta de Branco/Oliveira para adaptar ao cinema o clássico Le Soulier de Satin, de Paul Claudel, numa megaprodução com quase sete horas de duração e um orçamento total de 250 mil contos (quando o custo médio de uma produção era de 40 mil). Este projeto de produção europeia reuniu financiamento francês, alemão, suíço e português (IPC e Ministério da Cultura). O Leão de Ouro recebido no Festival de Veneza em 1985 – pelo filme em particular e pela carreira de Oliveira em geral – constituiu o mais importante troféu internacional ganho por um cineasta português.

A estratégia das coproduções com parceiros internacionais e a entrada no circuito dos festivais de cinema de renome internacional haveriam de nortear definitivamente a car-reira de Oliveira sob a produção de Branco. Tornar-se-ia frequente, daí em diante, que os filmes de Oliveira fossem apresentados em diversos festivais de prestígio antes da sua estreia comercial em Portugal. Como afirmou João Bénard da Costa, os sucessivos responsáveis pela pasta da Cultura, “gostas-sem ou não de Oliveira, e a maior parte não gostava, tropeçavam com colegas que só de Oliveira lhes falavam” (Costa, 1998: 70).

De Le Soulier de Satin até Quinto Império – Ontem como Hoje, todos os filmes de Oliveira foram concretizados em regime de copro-dução com capitais franceses, públicos ou privados. Aliás, não é por mero acaso que, dos 25 filmes de Oliveira produzidos por Branco, cinco têm mesmo o título original em língua francesa (Nice – À Propos de Jean Vigo, Le Soulier de Satin, Mon Cas, La Lettre e Je Rentre à la Maison) e oito são falados maioritariamente em língua francesa (os cinco anteriores mais Party, Viagem ao Princípio do Mundo e Um Filme Falado). Para além do financiamento francês, os filmes de Oliveira/Branco beneficiaram também de diversos fundos espanhóis, italianos, suíços, alemães, brasileiros e da própria Comissão Europeia (Fundo Eurimages).

vai e veM – a internacionalização do cineMa português

O modo de produção cinematográfico transnacional promove uma interação entre equipas técnicas e criativas que influencia a forma de produção e circulação dos anteriores “cinemas nacionais”, esbatendo as características mais particulares de cada cinematografia

Naturalmente, a estratégia internacional serviria de modelo a outros cineastas, como João César Monteiro, João Botelho, Pedro Costa, e, sobretudo, Paulo Branco, que estabeleceu uma estrutura de produção luso-francesa que vingou durante mais de três décadas.

Os anos 80 e 90 foram, até então, os mais internacionais do cinema português, duplamente internacionais porque foram os anos de maior divulgação internacional de cineastas portugueses e porque Portugal também se foi tornando, gradualmente, um espaço potenciado por diversos projetos estrangeiros que aqui procuravam condi-ções de rodagem privilegiadas. A entrada na então Comunidade Económica Europeia (CEE), em 1986, e as facilidades oferecidas pela livre-circulação de pessoas e merca-dorias nesse espaço comunitário europeu favoreceram um processo progressivo de internacionalização do cinema português, tanto na participação de técnicos e atores em produções estrangeiras produzidas em Portugal, como na distribuição de filmes portugueses noutros mercados europeus.

Na direção oposta à Europa, do outro lado do Atlântico, estava o Brasil, um país com 200 milhões de falantes da mesma língua. Por outro lado, o Brasil seria ainda, em tese, uma porta de entrada privile-giada para o espaço ibero-americano. Ao abrigo da Cooperação Ibero-Americana, diversos países assinaram, em 1989, um Convénio de Integração Cinematográfica Ibero-Americana. Apesar de ainda não ter formalizado a adesão a este acordo, Portugal tem participado, de forma voluntária, no programa Ibermedia, um fundo de apoio à produção e distribuição de filmes latino-americanos criado em 1997 por ação da Conferência de Autori-dades Audiovisuais e Cinematográficas Ibero-Americanas (CAACI). Além de estimular a coprodução de filmes para cinema e televisão, o Ibermedia conta com linhas de ação para financiar a elaboração de projetos, a distribuição e promoção de filmes e a formação de recursos humanos. Atualmente, há 18 países membros do Ibermedia, programa que, até 2005, tinha

português, procurando nos mercados externos uma forma de viabilização econó-mica e de reconhecimento cultural. Este enorme esforço de integração do cinema feito em Portugal num contexto de produção mais abrangente e global tem promovido uma reconfiguração da forma de fazer e pensar o conceito de “cinema português”. Num contexto de globalização económica, o modo de produção cinematográfico transnacional promove uma interação entre equipas técnicas e criativas que influencia a forma de produção e circulação dos anteriores “cine-mas nacionais”, esbatendo as características mais particulares de cada cinematografia.

Com uma condição crónica de falta de financiamento privado e de financiamento público muito limitado, o cinema português encontrou no sistema de coprodução internacional uma solução para projetos mais ambiciosos em termos orçamentais. Tem sido este o modelo de produção recen-temente adotado por cineastas portugueses, como Miguel Gomes em Tabu (coprodução de Portugal, Alemanha, Brasil, França e

apoiado cerca de 30 filmes com produtores portugueses, dirigidos por realizadores portugueses e estrangeiros.

No geral, a estratégia de internacionalização dominante a partir dos anos 80 seguia um novo paradigma de produção e distribuição, próprio no contexto de globalização e pós--modernidade, que privilegiava um tipo de ci-nema com uma dimensão transnacional que vai diluindo progressivamente a categoria de cinema nacional, influenciado sobretudo pela aproximação estética entre os cineastas portugueses e congéneres estrangeiros, numa lógica de reconhecimento crítico que se pode designar por world cinema ou cinema global. Já no século XXI, este modelo seria determinante no processo de afirmação internacional de cineastas como Pedro Costa, João Pedro Rodrigues ou Miguel Gomes.

Nas últimas quatro décadas de democracia, uma das apostas do Estado português tem passado pela internacionalização do cinema

As Mil e Uma Noites – Arabian Nights (2015), Miguel Gomes. © O Som e a Fúria

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Cinema/História – o cinema como historiador

do século XX portuguêstiago baptista

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nos últimos dez anos, vários filmes portugueses destacaram-se pelo emprego parcial ou total de

imagens de arquivo, isto é, originalmente

produzidas noutro contexto histórico e, hoje, apenas disponíveis em arquivos audiovisuais (de cinema e televisão). É o caso, entre outros filmes, de Kuxa Kanema: O Nascimento do Cinema (Margarida Cardoso, 2003), Natureza Morta (Susana

de Sousa Dias, 2005), Fantasia Lusitana (João Canijo, 2010) ou Linha Vermelha (José Filipe Costa, 2011). Estes filmes têm em comum, ainda, o facto de mobilizarem imagens de arquivo para analisar períodos históricos centrais do

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as prioridades de internacionalização: o projeto virado para o mercado europeu da Invicta Film (1918-24); a vocação “nacional” da “Política do Espírito” de António Ferro (1933-49), que privilegiava o público lusofalante de África e do Brasil; o acordo de coprodução assinado entre o Portugal de Salazar e a Espanha de Franco (1945-51), que visava conquistar o mercado latino-americano; a aproximação à cinefilia europeia e a entrada no circuito internacional de festivais de cinema iniciada no final dos anos 60 dominaria as preocupações internacionalizadoras até aos anos 80, quando a adesão à CEE fortaleceu essa utopia de um mercado cinematográfico europeu; e o projeto de criação de uma comunidade cinematográfica e audiovisual no espaço alargado da América Latina.

Atualmente, em matéria de cooperação cinematográfica, o Estado português mantém ativos apenas oito acordos bilaterais de cooperação: quatro com países lusófonos (Angola, Brasil, Cabo Verde e Moçambique) e os outros quatro com países europeus (França, Espanha, Alemanha e Itália). Esta contabilidade é expressiva das prioridades portuguesas no que à internacionalização diz respeito: de um lado, razões económicas e estéticas

justificam uma proximidade ao mercado europeu do cinema de autor; do outro, razões políticas e culturais sustentam uma aposta cada vez mais sólida e persistente na criação de um espaço lusófono, com potencial expansão para o mercado ibero-americano.

Em suma, as estratégias de internacionaliza-ção, ou a falta delas, foram sempre motiva-das ou orientadas por diretivas económicas, ideológicas e culturais que, sendo transver-sais aos contextos e momentos da história do século XX português, sempre estiveram, na sua generalidade, muito condicionadas ou dependentes da iniciativa pública e das políticas culturais definidas pelo Estado português. Em termos gerais, o cinema produzido em Portugal na atualidade deriva de um lento processo de internacionalização dos modos de produção que remonta aos anos 60 e a um modelo de financiamento público que apostou no reconhecimento artístico e crítico internacional como forma de o afastar das leis do mercado e o tratar antes como bem cultural e não como um produto comercial. Nesse movimento, vários cineastas portugueses afastaram-se do clássico paradigma “nacional”, que vigorou durante o século XX, e aproximam--se e interagem com uma matriz estética e cinéfila globalizada.

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De um lado, razões económicas e estéticas justificam uma proximidade ao mercado europeu do cinema de autor; do outro, razões políticas e culturais sustentam uma aposta cada vez mais sólida e persistente na criação de um espaço lusófono com potencial expansão para o mercado ibero-americano

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século XX português, como a ditadura salazarista ou o PREC (Processo Revolucionário em Curso).

No entanto, a utilização de imagens de arquivo não é feita com o objetivo de ilustrar argumentos historiográficos previamente definidos. Estas obras podem ser descritas como filmes de apropriação, uma vez que transformam o contexto de uso e o significado das imagens de arquivo para sugerir uma interpretação alternativa do passado (Baron, 2014). Mas os filmes de apropriação não se limitam a potenciar o chamado “efeito de arquivo”, isto é, a impressão de experimentar diretamente o passado através de imagens cinema-tográficas. Neles, a mobilização destas imagens nunca é dissociada do emprego de estratégias formais que, por um lado, sublinham a sua dimensão material e, por outro, chamam a atenção para os processos semióticos que lhes dão sentido. Os filmes de apropriação possuem, pois, a capacidade de proporcionar ao espectador uma expe-riência mediada do passado, isto é, em que se torna claro o carácter construído não só da imagem cinematográfica, mas também do próprio conhecimento histórico sobre o passado tal como é mediado pelo cinema. Deste modo, torna-se possível estabelecer

um paralelismo entre a desconstrução da imagem cinematográfica preconizada pelos filmes de apropriação e a desnaturalização das narrativas historiográficas defendida, entre outros, por Hayden White através do conceito de meta-história1.

Neste sentido, este artigo sugere que os filmes de Cardoso, Sousa Dias, Canijo e Costa devem ser vistos não só como uma reflexão crítica sobre o papel do cinema naqueles períodos históricos, mas também como uma forma de pensar e de escrever a História que se aproxima e, talvez, dilate mesmo as práticas historiográficas mais convencionais.

MAiS iMAGEnS, nOVAS FERRAMEnTAS

Apesar da sua importância e da sua relativa visibilidade mediática, os filmes acima citados não foram

pioneiros no uso de imagens de arquivo, muito menos para interrogar o salazarismo ou o PREC. Entre os primeiros exemplos, contam-se as obras de Rui Simões, Deus, Pátria, Autoridade (1975) e Bom Povo Português (1980), ou ainda Colonia e Vilões (1977), de Leonel Brito. Realizados no imediato pós-revolução, estes três filmes

incluem imagens produzidas durante o Estado Novo, algumas oriundas de filmes produzidos direta ou indiretamente pelo regime. Tirando partido de um acesso inédito aos arquivos da RTP e da Cinemateca Portuguesa, Simões e Brito procediam às primeiras tentativas de reorganizar as representações audiovisuais do país avançadas pela ditadura. Bom Povo Português trabalha no mesmo sentido, apesar de se concentrar no recente mas importante conjunto de imagens produzidas durante o PREC.

O acesso condicionado aos arquivos e a situação patrimonial das suas coleções fíl-micas, bem como as dificuldades inerentes ao processo de duplicação fotoquímica das imagens (complexo, oneroso e demorado), limitaram o âmbito destes primeiros filmes com imagens de arquivo e determinaram em grande medida as suas estratégias retóricas e formais. De modo geral, as imagens de arquivo são usadas nos filmes de Simões como ilustração de um argu-mento previamente definido e comunicado pela locução em off. Também é frequente a compilação sequencial de excertos com a sua banda de som original, exercício mais tautológico do que argumentativo, que trai um certo fascínio pelo arquivo e

pelo estatuto documental das imagens, apresentando-as como se fossem uma representação unívoca e transparente do passado histórico.

Nos filmes de apropriação mais recentes, estas questões são problematizadas graças à diversidade, progressiva sofisticação e crescente pendor crítico das estratégias formais neles empregues. Esta mudança pode ser atribuível a vários fatores concor-rentes, entre os quais se podem salientar o trabalho dos arquivos, a disponibilidade de ferramentas digitais de visionamento, montagem e circulação de imagens, a adoção de novas perspetivas historiográficas e o desenvolvimento do campo dos estudos fílmicos em Portugal.

O trabalho dos arquivos audiovisuais traduziu-se em processos de prospeção e conservação que multiplicaram conside-ravelmente o número de obras acessíveis pelo público. Em Portugal, estes processos produziram efeitos após a abertura do Arquivo Nacional das Imagens em Movi-mento (ANIM, o centro de conservação da Cinemateca Portuguesa, no final dos anos 1990) e a recuperação do arquivo histórico da RTP (em meados de 2000).

Tal como sucedeu noutros países, verificou--se uma influência recíproca entre a disponibilização de mais imagens e o aumento da pressão pública para melhorar e dilatar as suas condições de visionamento e reutilização. Refletindo sobre o arranque deste movimento, José Manuel Costa, atual diretor da Cinemateca, escreveu, em 2005, que “[s]e, de repente, o mundo deixou de ser indiferente a esta massa de imagens, não é menos certo que os próprios arquivos foram alterando a sua relação com elas, tanto ao nível da sua disponibilização pública como do trabalho de releitura delas, e que os dois fenómenos acabaram por exercer influência mútua”2.

Assim, e não obstante a capacidade de res-posta dos arquivos e as barreiras impostas ao livre acesso e reutilização dessas imagens por questões de conservação e direitos de autor, Costa sugeria que se podia falar do

Por outro lado, os equipamentos e as ferra-mentas de visionamento e montagem digital vieram estimular ainda mais a reutilização desta “massa de imagens” de arquivo, tornan-do consideravelmente mais fácil ver, montar, distribuir e exibir imagens cinematográficas. Da pesquisa à montagem e à projeção, todas as etapas do trabalho sobre imagens de arquivo foram agilizadas pelo uso de tecno-logias digitais que facilitam a visualização, cópia, apropriação, partilha e recirculação de mais imagens em menos tempo junto de muito mais espectadores. Com efeito, se os filmes de Rui Simões, acima citados, tiveram processos de produção longos e circuitos de exibição muito limitados, o mesmo não se pode dizer de filmes como Natureza Morta e 48 de Susana de Sousa Dias ou, em particular, de Fantasia Lusitana, de João Canijo, que estreou em várias salas de cinema, beneficiou de uma alargada cobertura mediática, venceu vários prémios em festivais de cinema por-tugueses e internacionais e foi, entretanto, editado em DVD.

Como o trabalho de Susana de Sousa Dias em Natureza Morta deixará claro, o recurso a sistemas de montagem não-linear trouxe ainda outros benefícios, como o reforço do carácter gestual da montagem5. A manipulação intensiva das imagens em ambiente digital assenta na variação dos parâmetros convencionais de reprodução e inteligibilidade da imagem cinematográfica. A alteração da velocidade, da direção da reprodução, dos valores de cor e contraste, ou do enquadramento das imagens, revela sentidos que permaneceriam escondidos no visionamento em projeção e relações inespe-radas entre planos do mesmo filme, ou até mesmo de filmes diferentes. As deslocações e justaposições de sons e imagem encoraja-das pela montagem digital expõem também a dimensão material de qualquer filme, abrindo vias de reflexão sobre a natureza e o trajeto histórico dos elementos que o constituem (da rodagem ao arquivo, do negativo à cópia preservada) e, ainda, sobre os mecanismos fundamentais de produção de sentido no cinema. Construídos sobre a prática intensiva do gesto de montagem (digital), os filmes com imagens de arquivo encontrarão, por isso, a sua estrutura final

As deslocações e justaposições de sons e imagem encorajadas pela montagem digital expõem também a dimensão material de qualquer filme, abrindo vias de reflexão sobre a natureza e o trajeto histórico dos elementos que o constituem (da rodagem ao arquivo, do negativo à cópia preservada) e, ainda, sobre os mecanismos fundamentais de produção de sentido no cinema

desenvolvimento de um verdadeiro “merca-do do património” cinematográfico que era, simultaneamente, o resultado e a condição do trabalho dos arquivos e da sua relação com o público3. No mesmo ano, Fernando Alexandre, subdiretor do Arquivo da RTP, ia ao encontro desta ideia, admitindo que “o arquivo não é um depósito, e a RTP Memória está a potenciar esta recuperação de património”4.

O centro de conservação da Cinemateca, AniM, inaugurado em 1996. Fotografia: Luís Pavão. © Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

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das estruturas partidárias de resistência política que se lhe opuseram, abrindo-se, por exemplo, à história oral e às histórias de vida de pessoas comuns.

A chegada do PREC ao mundo académico é mais recente e beneficiou igualmente desta renovação das perspetivas historiográficas que, além de ultrapassarem a história políti-ca e institucional, transformam os equi-líbrios em relações dinâmicas e prestam maior atenção às práticas do quotidiano e aos modos de representação do mundo. Tal como no caso dos novos estudos sobre o Estado Novo, as perspetivas historiográficas mais recentes sobre o PREC demonstram maior abertura ao campo das manifesta-ções culturais, que já não são entendidas como autónomas em relação ao campo político.

Para além desta renovação historiográfica, a produção de filmes com imagens de arquivo também beneficiou e foi encorajada pela

consolidação do campo dos estudos fílmicos e, em particular, do desenvolvimento dos estudos sobre a história do cinema português. Tendo tido lugar, no plano internacional, entre os anos 1970 e 1980, em Portugal, a entrada dos estudos fílmicos na universidade remonta aos anos 1990 e 2000. A partir da década de 2000, assiste-se à criação de várias disciplinas e dos primeiros cursos universitários, à multiplicação de projetos de investigação de mestrado e dou-toramento e ao aparecimento das primeiras conferências e revistas especializadas. A criação de uma associação de investigadores da imagem em movimento, em 2010, veio apenas confirmar a existência de um campo de estudos autónomo, com um objeto de estudo e métodos de análise distintos, mas porventura ainda desenquadrado institucio-nalmente8.

Tal como no caso internacional, o processo de autonomização e legitimação dos estudos fílmicos em Portugal dependeu da apropria-ção de métodos tomados de empréstimo de outras áreas do saber como a semiologia, a psicanálise, as teorias da comunicação e a própria história. Se, num primeiro momento, os estudos fílmicos se definiram através de um método da análise textual que examinava as características formais da imagem cinematográfica em detrimento das suas circunstâncias de produção e receção, o “regresso à história” que marcou a década de 1980, motivado em grande medida pela já referida disponibilidade de uma avalancha de novas imagens preservadas pelos arquivos audiovisuais, permitiu reorientar a disciplina para uma conceção da obra fílmica enquanto produto de um contexto histórico, cultural e socioeconómico.

Após um período inicial marcado por obras de síntese cujas perspetivas eram herdeiras da tradição da crítica cinéfila e estavam, por isso, sobretudo atentas à evolução estética do cinema português, os anos 2000 ficaram marcados pela multiplicação de trabalhos académicos, muitos deles feitos no contexto de departamentos de História que privilegiaram o estudo das relações entre cinema e política9. A obra coletiva O Cinema sob o Olhar de Salazar, organizada por Luís

Reis Torgal10, tem um lugar pioneiro nesta perspetiva, continuada pelos estudos de Maria do Carmo Piçarra11 sobre o cinema de propaganda salazarista. Por seu lado, o trabalho de Paulo Cunha12 sobre os modos de produção do cinema português representa um significativo alargamento metodológico ao desligar a história do cinema português dos ciclos da história política de Portugal a que era tradicional-mente associada. Atualmente, uma grande diversidade de investigações publicadas em contexto académico continua a reforçar a importância da História (como método e como área de conhecimento) nos estudos fílmicos em Portugal.

CinEMA/HiSTÓRiA

Se, como vimos, a História se abriu ao cinema e o cinema à História, a premissa desta aproximação foi a

existência de diferenças fundamentais entre ambos. No entanto, a recente multiplicação de imagens de arquivo parece não apenas refletir, mas também catalisar, uma transformação decisiva na relação entre história e cinema.

Cinema e História foram pensados, tradicio-nalmente, como duas realidades distintas, separadas entre si por uma relação sujeito/ /objeto13. De um lado, teríamos a História como objeto do cinema, matéria-prima da representação dos modos de vida, das paisagens sociais e geográficas de determina-da época – o terreno dos “filmes históricos” ou, melhor, de “reconstituição histórica”; do outro, teríamos o cinema como objeto da História, analisado como produto de uma indústria de entretenimento e obra de arte, com formas e convenções que mudaram ao longo do século XX – o terreno da “história do cinema”.

Esta distinção foi questionada por Marc Ferro há quarenta anos. Segundo Ferro14, o cinema já é História, isto é, não se limita a ilustrá-la, mas é também o seu agente. Per-mite uma “contra-análise da sociedade”15 que parte das imagens, não para confirmar as fontes escritas habitualmente usadas

O processo de autono-mização e legitimação dos estudos fílmicos em Portugal foi um processo que depen-deu da apropriação de métodos tomados de empréstimo de outras áreas do saber como a semiologia, a psicanálise, as teorias da comunicação e a própria história

pelos historiadores, mas para estender a sua análise “àquilo que não aconteceu”, ou seja, “às crenças, às intenções, à imagi-nação humana”16, inaugurando assim um entendimento do cinema como modo de representação, intencional ou inconsciente, do mundo. Esta ideia tinha raízes profun-das. O conceito de “inconsciente ótico” de Walter Benjamin já atribuíra à imagem fotográfica a capacidade de representar mais do que a perceção humana conseguia apreender de uma determinada realidade histórica. Ideia semelhante foi sugerida por Siegfried Kracauer17 quando traçou um paralelo, tanto estético como intelectual, entre História e cinema, imaginando a História como um filme gigante capaz de representar a passagem do tempo de todos os pontos de vista. Mais recentemente, Antoine de Baecque, com a noção de “formas cinematográficas da História”18, também sugeriu que alguns mecanismos fílmicos podiam, em dado momento histórico, ser especialmente reveladores da contemporaneidade.

A relevância do cinema como forma de representação cultural da realidade, ultrapas-sando o registo do factual e do visível, levou alguns autores a sugerir, na esteira de Ferro, que a imagem cinematográfica permitiria aos historiadores “alargar o seu campo de investigação e renovar a sua capacidade nar-rativa para se aproximarem melhor da reali-dade passada”19. Com efeito, Hayden White, por exemplo, apontou a tradição modernista, que tem na montagem cinematográfica uma das operações formais mais importantes,

A relevância do cinema como forma de representação cultural da realidade, ultrapassando o registo do factual e do visível, levou alguns autores a sugerir, na esteira de Ferro, que a imagem cinematográfica permitiria aos historiadores “alargar o seu campo de investigação e renovar a sua capacidade narrativa para se aproximarem melhor da realidade passada”

durante este processo de experimentação e de confronto com as matérias, as formas e os sentidos das imagens originais.

HiSTÓRiA E ESTuDOS FíLMiCOS

A os fatores que encorajaram o uso de imagens de arquivo – e, em particular, sobre os períodos

do Estado Novo e do PREC –, devemos acrescentar a multiplicação de trabalhos historiográficos sobre estes mesmos períodos e a crescente autonomia do campo dos estudos fílmicos.

Se o Estado Novo se encontra consolidado como objeto de estudo académico a partir, pelo menos, dos trabalhos do historiador Fernando Rosas desde os anos 19806, a legitimação do PREC enquanto tema histo-riográfico é relativamente mais recente. No caso do Estado Novo, para lá do seu estudo no contexto académico, em disciplinas de cursos de História, no âmbito de projetos de investigação ou da publicação científica de livros ou artigos em revistas especializadas, verificou-se nos últimos dez anos uma expansão também extra-académica do interesse sobre este período. Refiro-me ao surto editorial de obras de divulgação e de biografias políticas, fruto tanto do alarga-mento do próprio mercado de edição, como da persistência de um senso comum que alimenta o chamado “mercado do saudo-sismo”. Estas obras sugeriram não apenas determinado conjunto de interpretações sobre o salazarismo, mas também uma certa representação da história que privilegia as instituições estatais, o registo político, os grandes protagonistas e as dicotomias estanques entre poderosos e oprimidos.

As perspetivas historiográficas mais recentes dilatam as interpretações estri-tamente político-institucionais do Estado Novo, inscrevendo-o antes no processo de formação do Estado moderno centralizado7, sublinhando as adaptações e resistências às suas estruturas de dominação política, cultural e social, e alargando a escala e os métodos de análise para incluir indivíduos desenquadrados quer do Estado, quer

Fantasia Lusitana (2010), João Canijo.

© Periferia Filmes

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como método ideal para os historiadores que desejassem analisar os grandes eventos que marcaram o século XX20. Jacques Revel, por seu lado, viu uma prefiguração do método da micro-história no trabalho do fotógrafo de Blow-up (Michelangelo Antonioni, 1966), cujas ampliações sucessivas da imagem tornavam visíveis novos detalhes e, desse modo, abriam interpretações da realidade novas e inesperadas21.

Mas a questão não se reduz à possibilidade de encontrar no cinema o exemplo ou a inspiração para novos métodos historio-gráficos. Como defendeu Arlette Farge, a imagem cinematográfica tem a capacidade de dar forma à realidade histórica de modos que a historiografia tradicional, escrita, não pode: “A narrativa histórica tem dificuldades consideráveis na articulação de personagem, evento e arquivo com o mundo maior, isto é, o singular com o coletivo. O cinema, pelo contrário, consegue fazer isto com relativa facilidade.”22 Segundo a mesma historiadora, o emprego combinado de certas técnicas cinematográficas pode, em determinadas circunstâncias, operar uma multiplicação de perspetivas que define o cinema como, por um lado, uma “forma de experimentação com a história” e, por outro, uma “narrativa histórica abrangente”23 tal como o historia-dor nunca conseguiria escrevê-la.

No resto deste texto, procurarei apontar quatro exemplos da fertilidade metodoló-gica oferecida pelo filme de apropriação para reescrever a história do século XX português, prolongando – ou mesmo con-correndo com – o trabalho historiográfico. Estas análises não têm a ambição de esgotar este assunto, mas apresentam-se apenas como tentativa de mapear um conjunto de questões que acredito não terem reunido, até agora, a atenção que merecem.

KUxA KANEMA: A DiMEnSãO MATERiAL DO CinEMA

Kuxa Kanema: O Nascimento do Cinema (2003), de Margarida Cardoso, tem como objeto o Jornal

de Actualidades homónimo, produzido

pelo Estado moçambicano no período imediatamente após a independência da antiga colónia portuguesa. Com o subtítulo O Nascimento do Cinema, o documentário de Cardoso sublinha a importância fundadora desta e de outras produções do Instituto Nacional de Cinema (INC) na história do cinema moçambicano. Mas a importância destas imagens ultrapassa o âmbito meramente cinematográfico. Como Cardoso frisará, as produções do INC tiveram um papel relevante, pelas circunstâncias históricas em que foram realizadas, no nascimento de um novo país. O confronto com a situação política e a situação patrimonial da produção fílmica do INC será decisivo no sentido em que constitui não só o testemunho daquele momento histórico fundador, mas também a medida do fracasso de um projeto político.

A dimensão material das imagens de arquivo ocupará, assim, um papel central no filme de Cardoso. Segundo a realiza-dora, este filme foi motivado não só pela descoberta da existência daquelas imagens, mas também pelo choque de conhecer as condições muito deficientes de armazena-mento das mesmas24. Não só as instalações do INC tinham sido recentemente atingidas por um grave incêndio que destruíra uma parte da coleção (sobretudo cópias de distribuição de filmes estrangeiros), mas o desinvestimento estatal sistemático havia também desprovido o Instituto dos recursos humanos especializados (era, então, uma antecâmara da reforma para vários funcio-nários públicos em final de carreira) e dos meios técnicos necessários ao trabalho de conservação cinematográfica (uma ativi-dade onerosa e obrigada a ter continuidade temporal para produzir efeitos duradouros).

Por este motivo, Cardoso incluirá no seu filme não só vários planos que mostravam o estado atual das instalações do INC, mas também sequências que chamavam a atenção do espectador para a natureza material das imagens de arquivo. Estas sequências combinam a reprodução das imagens originais em ecrã inteiro com a filmagem da sua reprodução numa mesa de visionamento, no arquivo do INC.

Os raccords perfeitos entre as duas instân-cias de reprodução das imagens, bem como a continuidade da banda sonora, tornam claro que se trata dos mesmos filmes. A transição do nível semiótico para o material é enfatizada ainda pela presença, no segundo tipo de sequências, dos sons caraterísticos de uma mesa de visionamen-to: o motor elétrico, a película percorrendo os carretos, ou um rolo que chega ao fim. Finalmente, a utilização da mesa de visionamento para parar, recuar e avançar de novo a reprodução dos filmes – usando enquadramentos que mostram não apenas o efeito desta alteração das imagens, mas também o operador humano responsável por esta manipulação – completa uma estratégia retórica em que a apresentação do conteúdo das imagens é indissociada da revelação do seu suporte fílmico e da sua manipulação pela realizadora.

Com efeito, Kuxa Kanema não é constituído exclusivamente por imagens de arquivo. Para além das já referidas sequências rodadas no INC, o filme de Cardoso inclui entrevistas com antigos técnicos e respon-sáveis políticos, bem como a filmagem de fotografias e documentos escritos. Estas sequências contribuem para resgatar um tempo histórico distante – o Moçambique filmado nas atualidades Kuxa Kanema – e contrastá-lo com o presente. Elas ancoram a estrutura do documentário de Cardoso na investigação pessoal da realizadora e, deste modo, tornam incontornáveis as instâncias de mediação do passado através do presente. As entrevistas ilustram bem este ponto. Objeto de grande investimento de produção (através da construção em estúdio de novos espaços ou da sua escolha criteriosa, como o cinema usado para a entrevista do reali-zador José Cardoso) e de uma encenação particularmente cuidada, estas sequências não podem ser reduzidas às informações factuais ali transmitidas. Construídos a partir da escuridão total, estes planos combinam a reprodução de imagens de ar-quivo (numa visionadora ou projetadas nas paredes) com o corpo do entrevistado. Em vários momentos, as silhuetas destes corpos sobrepõem-se às imagens, originando assim uma representação visual da mediação entre

passado e presente motivada por aquele indivíduo, com recurso à sua memória. Em alguns planos, é o próprio corpo da realizadora, parcialmente incluído no enquadramento e bloqueando uma parte do corpo do entrevistado e das imagens atrás dele, que recorda ao espectador que este filme representa, também ele, mais uma instância de mediação do passado, assumi-damente subjetiva. O comentário em off, por uma narradora, desempenha um papel idêntico, relacionando permanentemente passado e presente e, desse modo, tornando incontornável (para o espectador) que esta representação do passado depende de uma interpretação lançada a partir do presente.

A realizadora assume, assim, uma impor-tância central na organização do discurso fílmico, confundindo-se, deliberadamente, tanto com a elocução do comentário verbal, como com as diferentes estratégias de enun-

ciação fílmica. Deste modo, Cardoso chama a atenção do espectador para o carácter construído do ponto de vista sugerido por este documentário. Esta estratégia formal, frequente nos filmes de apropriação, é aqui usada para reforçar as consequências da progressiva invisibilidade do património fílmico moçambicano. Como a sequência final demonstra, através de uma série de planos de televisores ligados em espaços públicos vazios na cidade de Maputo contemporânea, as imagens (de produção estrangeira) atualmente disponíveis no espaço mediático moçambicano privam os cidadãos da sua própria imagem, fazendo esquecer os projetos políticos passados e alimentando um consumismo impossível de satisfazer no presente. O deficiente estado de conservação das imagens de arquivo transforma-se, assim, na metáfora perfeita de um país cujo passado, apesar de ainda não ter desaparecido completamente, “existe sem existir”25.

NATUrEzA MOrTA: AnáLiSE E RESSiGniFiCAçãO DA PROPAGAnDA

Se Kuxa Kanema investigava as relações entre passado e presente a partir da dimensão material das

imagens de arquivo, Natureza Morta vai explorar a sua dimensão semiótica.

Sem comentário em off e constituído exclusi-vamente por filmes de propaganda salazarista (documentários e jornais de atualidades), Natureza Morta emprega várias operações analíticas que tiram partido da tecnologia de edição digital: a alteração da velocidade de reprodução original das imagens de arquivo, mostradas em câmara muito lenta, ou detendo mesmo o seu fluxo em paralíticos; o reenquadramento dos planos para mostrar, de maneira aumentada, um detalhe da imagem; a repetição das mesmas imagens; ou a subs-tituição da banda sonora original por uma partitura musical escrita propositadamente para este filme. Estas operações suspendem o sentido original das imagens e parecem empenhadas em procurar nelas um sentido oculto ou, pelo menos, invisível durante o seu visionamento em condições normais.

O comentário em off, por uma narradora, desempenha um papel idêntico, relacionando permanentemente passado e presente e, desse modo, tornando incontornável (para o espectador) que esta representação do passado depende de uma interpretação lançada a partir do presente

Kuxa Kanema (2003), Margarida Cardoso © Margarida Cardoso

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exemplo arquetípico da desumanização da vítima pelas chamadas “imagens de perpe-tradores”26). A montagem destas sequências de imagens fixas transforma profundamente o sentido dos blocos de imagens que as antecedem ou sucedem. Elas transformam--se num contraponto sistemático das imagens de propaganda do regime, expondo o seu caráter incompleto, encenado e falso. A música original, composta por António de Sousa Dias, reforça a construção de uma relação entre os dois tipos de sequência. Os sons metálicos e os estrondos súbitos e graves, evocadores de um ambiente prisio-nal, ligam o registo da propaganda e o da repressão, constituindo-os assim como duas faces da mesma moeda.

A combinação destas estratégias de análise e de ressignificação desestabiliza de forma assertiva o sentido original das imagens de propaganda. Exemplo disso é, perto do final no filme, a sucessão de três blocos: primeiro, um conjunto de planos de soldados feridos e de corpos mutilados no contexto da guerra colonial; em segundo lugar, o excerto de um documentário sobre a produção de botas militares, consistindo em planos de botas amontoadas às centenas, sem a presença de qualquer corpo humano para as contextualizar; e, finalmente, uma sequência que documenta a chegada de novos recrutas portugueses a uma instalação militar, onde são pesados, os seus corpos depois resumidos a uma pilha de processos individuais. As três sequências são unificadas, mais uma vez, pela nova banda sonora que as liga e pela câmara lenta que as uniformiza. A sua combinação nesta ordem produz novos sentidos, que subvertem ou invertem mesmo os originais: como os reenquadramentos que mostram a expressão de angústia de um mancebo en-quanto é pesado, sentimento esse reforçado pelos corpos chacinados que vimos antes (como se o soldado tivesse acabado de ver o seu futuro); o horror deste destino individu-al exponencialmente aumentado pelo facto de se tratar de um destino coletivo, aqui antecipado pela representação metonímica dos corpos dos soldados, reduzidos a botas ou a processos, como se fossem já esses os únicos vestígios da sua destruição num pro-

cesso desumanizador e de escala industrial como era a guerra.

FANTASIA LUSITANA: inVESTiGAnDO A MAniPuLAçãO CinEMATOGRáFiCA

na sua incursão no filme de apropriação, João Canijo procede igualmente à ressignificação de

imagens de propaganda produzidas pela ditadura salazarista. Fantasia Lusitana combina essas imagens com um novo comentário verbal em off e várias fotografias de época. O novo comentário emprega excertos de memórias de refugiados célebres de passagem por Lisboa durante a Segunda Guerra Mundial: Erika Mann, Alfred Döblin e Antoine de Saint-Exupéry. Apostos a jornais de atualidades e documentários de propaganda do regime português, estes textos transformam profundamente o sentido das imagens. As festividades da Grande Exposição do Mundo Português (1940) tornam-se uma negação surrealista e pueril dos horrores de uma guerra global; as ruas e os cafés apinhados de refugiados estrangeiros deixam de confirmar as vantagens da neutralidade

tão propagandeada pelo regime para representar antes a situação precária de famílias inteiras sem qualquer apoio do Estado e sujeitas, frequentemente, à exploração sem escrúpulos dos comerciantes e hoteleiros lisboetas.

Esta estratégia de ressignificação é especial-mente relevante não apenas para desmontar a versão da realidade sugerida pelas imagens de propaganda do regime, mas também para perceber alguns dos mecanismos de constru-ção cinematográfica dessa mesma realidade.

Uma parte muito importante de Fantasia Lusitana retoma notícias do Jornal Por-tuguês, série de atualidades produzida pela SPAC (Sociedade Portuguesa de Actualidades Cinematográficas) entre 1938 e 1951, sob a supervisão técnica de António Lopes Ribeiro, para o regime salazarista. Vários estudos sobre o Jornal Português identificaram o condicionamento do sentido das imagens pelo comentário verbal em off como a principal estratégia retórica deste instrumento de propaganda27. A palavra apresenta uma interpretação das imagens, contrariando muito frequentemente o que as imagens mostram. É pelo mesmo motivo,

também, que os poucos exemplos de uso de som direto são quase exclusivamente reservados a discursos de Salazar. A “voz” da população portuguesa é resumida a um aplauso coletivo, indistinto e desindividua-lizado, tal como a sua imagem é remetida, muitas vezes, aos contracampos e planos de reação que procuram demonstrar a adesão à imagem – isto é, à autoridade – dos líderes políticos mostrados nos planos imediata-mente anteriores.

Ao utilizar, também ele, a autoridade do comentário verbal e a sua capacidade de afirmar o contrário do que mostram as imagens, Canijo está, por isso, a virar a principal estratégia retórica do cinema de propaganda salazarista contra si mesma. Deste modo, Fantasia Lusitana oferece mais do que uma lição sobre o cinema de propaganda. A apropriação e a ressigni-ficação de imagens de arquivo mostram, mais uma vez, a centralidade do ato de manipulação enquanto princípio elementar da montagem cinematográfica. Este poder de manipular a realidade não é, assim, um elemento desvirtuador do cinema mas, pelo contrário, o princípio através do qual ele afirma o seu poder sobre a realidade,

Natureza Morta (2005), Susana de Sousa Dias © Susana de Sousa Dias

Fantasia Lusitana (2010), João Canijo. © Periferia Filmes

A repetição de uma sequência com um novo reenquadramento retira, por exemplo, toda a aparente espontaneidade do que parecia ser uma brincadeira de rapazes negros divertindo-se diante de soldados portugueses, revelando antes um evento totalmente encenado e crianças lançando olhares tensos, senão mesmo aterrorizados, ora para a câmara, ora para o espaço fora de campo. Assim dissecada, a imagem de propaganda volta-se contra si mesma, mos-trando, afinal, o contrário do que parecia afirmar – e que certamente continuaria a afirmar num contexto de visionamento normal. É o caso, também, das várias sequências das manifestações organizadas pelo regime salazarista no Terreiro do Paço, em Lisboa. Através da reformulação do enquadramento e da duração dos planos, Sousa Dias transforma os breves planos gerais de multidões em longos grandes planos de rostos individualizados. Através deste procedimento, a realizadora inverte a tendência do cinema de propaganda salazarista para transformar os corpos individuais em massas anónimas.

Outras operações formais procedem a uma ressignificação ativa do sentido das ima-gens, mais do que à procura ou revelação de um sentido oculto, preexistente. É neste sentido, creio, que deve ser entendido o recurso aos álbuns fotográficos de presos políticos detidos, interrogados e torturados pela PIDE, a polícia política da Ditadura. (Estas imagens são, em si mesmas, uma forma de violência sobre os retratados,

As três sequências são unificadas, mais uma vez, pela nova banda sonora que as liga e pela câmara lenta que as uniformiza. A sua combinação nesta ordem produz novos sentidos, que subvertem ou invertem mesmo os originais: como os reenquadramentos que mostram a expressão de angústia de um mancebo enquanto é pesado

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de maneira transversal aos regimes políticos que dele façam instrumento de afirmação ideológica. Semelhante intuição pode ser encontrada nas palavras de Margarida Cardoso quando afirmou que a sua intenção inicial de contrastar, em Kuxa Kanema, a estética e a retórica dos documentários e das atualidades portuguesas do período colonial com as de Moçambique independente foram frustradas pela constatação da enorme semelhança entre as obras produzidas antes ou depois de 197528.

Se a manipulação da realidade é inerente a qualquer ato de montagem cinematográ-fica, parece mais interessante distinguir entre os filmes que camuflam ou eviden-ciam este processo do que distinguir entre o que é ou não um filme de propaganda. Ao colocar o uso reflexivo da montagem no centro das suas estratégias retóricas, Fantasia Lusitana não se limita a substituir uma versão do passado por outra. Este filme convida o espectador a uma reflexão epistemológica sobre a construção da imagem cinematográfica e, desse modo, sobre o caráter construído do conheci-mento histórico por ela possibilitado. Por outras palavras, ao fazer depender a sua investigação dos usos históricos do cinema de uma investigação das próprias condições da representação cinematográfica, estes filmes de apropriação configuram-se como uma forma de discurso historiográfico que leva em conta as suas próprias condições de possibilidade.

LINHA VErMELHA: uMA EnCEnAçãO ABERTA DO PASSADO

em Linha Vermelha, José Filipe Costa leva esta questão mais longe. Integrado numa investigação de

doutoramento sobre o filme Torre Bela (1976), de Thomas Harlan, Linha Vermelha não é uma reflexão sobre as mediações cinematográficas da História apenas porque é um filme sobre outro filme. É-o, sobretudo, pela maneira como encena as condições de possibilidade da representação cinematográfica. Tanto como o Torre Bela

de Harlan, a encenação e a representação cinematográficas são assunto de Linha Vermelha e é por isso que a presença autoral do seu realizador, José Filipe Costa, ocupa um lugar de destaque no filme – seja literalmente, através do comentário verbal da sua autoria que escutamos em off, seja através dos vários atos de enunciação fílmica que tornam essa presença óbvia ao longo de Linha Vermelha.

Uma cena, em particular, torna evidente esta dupla presença autoral. Trata-se da cena em que o realizador assume o seu papel de encenador da realidade pró-fílmica para, tal como Harlan, organizar uma cena para nós – espectadores. Nesta cena, Costa mostra o trabalho de preparação de filmagem de um objeto retirado da herdade da Torre Bela durante a ocupação. A preparação que nor-malmente antecede a rodagem de um plano constitui, agora, o seu centro: são visíveis os técnicos que afinam os projetores de luz e as várias tentativas que, progressivamente, retiram o objeto da escuridão até o iluminar completamente. Quando a preparação termina e o objeto parece preparado para ser filmado, o plano de Costa chega ao fim. Durante esta cena, o comentário verbal em off do realizador português enfatiza o carácter construído da cena, estabelecendo explicitamente um paralelismo entre esta tarefa e o trabalho de Harlan durante a rodagem do seu Torre Bela, em 1975.

Nesta cena em particular, o comentário verbal e a explicitação do dispositivo cinematográfico desnudam a presença de um enunciador forte, isto é, a presença de uma inteligência organizadora desta representação cinematográfica. Isto não significa, porém, que essa presença dependa exclusivamente da presença do comentário verbal, nem que o realizador adquira, deste modo, uma posição de monopólio perante a produção de sentido29. Se olharmos esta cena em contexto, notaremos que José Filipe Costa acompanha a construção “da sua cena” e o privilégio “da sua voz” com várias outras cenas (de diferentes filmes) e várias outras vozes (escritas ou orais).

Depois de uma sequência do filme Torre Bela de Thomas Harlan, vemos uma sequên-cia filmada hoje por José Filipe Costa que combina o som em off de uma entrevista ao realizador alemão sobre, primeiro, imagens atuais dos muros da herdade da Torre Bela e, depois, sobre planos das bobinas do filme de Harlan que Costa manipula numa mesa de visionamento; seguem-se a cena construída por Costa, uma entrevista a um cooperante francês filmada por Costa e imagens de outro filme da época30, a preto e branco, primeiro com comentário verbal em off de Costa e, logo depois, com o som direto de uma entrevista a um trabalhador da Torre Bela.

Tanto ou mais que o comentário verbal de José Filipe Costa e a explicitação da sua capacidade de, tal como Harlan, “construir uma cena”, a montagem de todos estes diferentes tipos de plano, com diferentes narradores e diferentes temporalidades, expõe a presença do autor por detrás do narrador, isto é, do realizador por detrás do filme. No entanto, não se trata de um realizador que impõe autoritariamente ao espectador o sentido do filme, mas antes de um realizador confrontado com as dúvidas e as escolhas que presidem à organização de qualquer filme. A combinação das estratégias retóricas de Linha Vermelha contribui, deste modo, menos para impor um sentido ao espectador do que para lhe comunicar a contingência e a subjetividade do ponto de vista do realizador. A existência de um enunciador forte contribui, pois, para problematizar a autoridade do seu discurso (cinematográfico).

José Filipe Costa é, assim, tal como o histo-riador que Jacques Rancière surpreende no gabinete do rei em Os Nomes da História, o realizador que nos surpreende no interior do filme, o realizador que se encena e que segura na mão todos os planos de todos os filmes de que se faz o seu próprio filme31. Costa é, também, o realizador que nos fala na primeira pessoa e no presente, recla-mando assim o terreno do discurso, isto é, da construção historiográfica que explicita o ato de enunciação como produto de um tempo e de um autor, em detrimento do da narrativa, uma construção do passado aparentemente objetificada e sem autor. A distinção entre discurso e narrativa que Rancière retoma de Émile Benveniste32 é fundadora, também ela, da teoria da enunciação cinematográfica. Mas a enun-ciação cinematográfica é ou parece sempre ser impessoal33 (Metz 1991) porque, se é fácil atribuir autoria a um comentário verbal, já é mais difícil para o espectador localizar o sujeito que enunciou aquele texto audiovisu-al. Afinal, quem diz este enquadramento? E quem diz aquele corte?

É um lugar-comum da teoria de cinema dizer-se que o cinema clássico narrativo se fundou sobre esta invisibilidade do sujeito

Linha Vermelha (2011), José Filipe Costa. © Terratreme e José Filipe Costa

No entanto, não se trata de um realizador que impõe autoritariamente ao espectador o sentido do filme, mas antes de um realizador confrontado com as dúvidas e as escolhas que presidem à organização de qualquer filme

da enunciação, enquanto o moderno se fundou sobre as estratégias de revelação do realizador enquanto autor do enunciado fílmico. Se assim for, a estratégia retórica de José Filipe Costa constrói-se sobre uma acumulação de atos de enunciação que re-velam a presença do realizador. No entanto, a maneira como Costa escolhe revelar a sua presença reflete sucessivamente vários pontos de vista – o de Costa, o de Harlan, o dos técnicos do filme de Harlan, o das pessoas filmadas por Harlan –, sem, contu-

Linha Vermelha (2011), José Filipe Costa. © Terratreme e José Filipe Costa

do, optar por um deles, ou optar impor-se a todos eles. A voz e o ponto de vista de Costa coexistem com outras vozes e outros pontos de vista; o discurso desta presença autoral resiste a qualquer fechamento que lhe dê a primazia sobre as outras vozes e os outros pontos de vista. Quando, no final desta sequência, Costa pergunta “afinal a verdade não é uma só, pois não?”, ficamos, pois, na dúvida sobre se se trata de uma acusação lançada contra a versão da história apresen-tada por Harlan ou, mais genericamente, da constatação de que a representação de um processo revolucionário como o que teve lugar na herdade da Torre Bela deve esforçar-se por combater qualquer tipo de fechamento de sentido34.

COnCLuSãO

os filmes de apropriação têm como marca constitutiva um discurso construído sobre a acumulação

ostensiva de marcas de enunciação. A presença destas marcas revela, por um lado, a natureza material e arbitrária do sentido cinematográfico, assegurando assim uma apreciação permanente do duplo papel do cinema enquanto representação e agente da história; por outro lado, a presença de imagens de diferentes proveniências multiplica o número de enunciadores e de perspetivas sobre a realidade, contribuindo assim para sabotar deliberadamente a posição de autoridade do próprio realizador e a homogeneidade do seu discurso.

Este tipo de abordagem parece especial-mente adequado em qualquer análise, seja cinematográfica ou historiográfica, do salazarismo e do PREC. No caso da dita-dura, uma vez que a esmagadora maioria das imagens disponíveis foi produzida pela máquina de propaganda do regime, impõe--se uma heurística rigorosa que desconstrua o propósito original destes filmes, mas que, ao mesmo tempo, evite a armadilha de imaginar a suposta univocidade dos seus efeitos sobre os espectadores. Já no caso do período revolucionário, torna-se necessário abraçar, mais do que temer, o grande número de imagens disponíveis, por mais

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O CinEMA E O TEMPO

É conhecida a utilização que o cinema faz do passado como matéria filmável, tendo sido, na

fase pioneira, um dos principais recursos para a afirmação estética da imagem

em movimento, mas à qual acresceram também razões económicas derivadas da constatação do interesse que as temáticas históricas suscitavam no público espetador. Hoje, apesar de o cinema já não precisar da História para se afirmar como arte, continua a ser válida a importância temática

O Império na memória do cinema – uma permanência sem abril

(1940-2015) jorge seabra

notas1. Baron (2014): 173.2. Costa (2005): 64-65.3. Costa (2005): 65.4. Real (2005).5. Grant (2014): 53.6. Ver, por exemplo, Rosas (1986).7. Domingos e Pereira (2010).8. AIM – Associação de Investigadores da Imagem em Movimento.9. Para o caso da história das histórias do cinema português, ver Cunha (2016).10. Torgal, org. (2000).11. Piçarra (2006, 2011 e 2015).12. Cunha (2014).13. Rancière (1998).14. Ferro (1993). Publicado originalmente em 1976.15. Ferro (1993): 31 ss.16. Ferro (1993): 40.17. Kracauer (1969).18. De Baecque (2012).19. De Baecque (2012): 13.20. White (1996).21. Revel, cit. in De Baecque (2012): 13.22. Farge (2000): 40-41.23. Farge (2000): 41.24. Vieira (2013).25. Expressão usada pela produtora Isabel da Nóbrega no seu depoimento filmado.26. Hirsh (2012).27. Ver Piçarra (2006) e Braga (2005).28. Vieira (2013).29. Ver, sobre o papel do comentário verbal na construção da subjetividade cinematográfica, Rascaroli (2009).30. Cooperativa Agrícola da Torre Bela (Luís Galvão Teles, 1975).31. Rancière (1992): 92.32. Benveniste (1972).33. Metz (1991).34. Esta secção retoma parte do meu artigo “Como representar a revolução? Comentário da escultura

Monumento ao 25 de Abril, de João Cutileiro, e do filme Linha Vermelha, de José Filipe Costa”, Baptista (2015).35. Agradeço os comentários de Paulo Cunha a uma versão anterior deste texto.

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filmografiaKuxa Kanema: O Nascimento do Cinema [longa--metragem], Real. Margarida Cardoso. Filmes do Tejo/Lapsus/Dérives/RTP/ARTE/RTBF, Portugal/ /França, 2003. 52 mins. Natureza Morta [longa-metragem], Real. Susana de Sousa Dias. AMIP/KINTOP/ARTE France/La Lucarne, Portugal/França, 2005. 72 mins.Fantasia Lusitana [longa-metragem], Real. João Canijo. Periferia Filmes, Portugal, 2010. 67 mins.Linha Vermelha [longa-metragem], Real. José Filipe Costa. Terratreme Filmes, Portugal, 2011. 82 mins.

Chaimite (1953), Jorge Brum do Canto. Coleção Cinemateca

Portuguesa-Museu do Cinema. Mouzinho aprisiona Gungunhana,

assumindo-se como herói épico--trágico, empunhando a espada que

simboliza a sua determinação, a autori-dade colonial e a assunção do destino

coletivo, ideias que servem para Jorge Brum do Canto definir no protagonista

o caráter mobilizador do império.

heterogéneas e contraditórias que possam parecer, de modo a resistir impor a este período um fechamento interpretativo que seria contrário à multiplicação de vozes e à indecisão que o caraterizou.

Os filmes de apropriação vão, também, ao encontro de práticas historiográficas que, como vimos, acolhem as representações culturais, ultrapassam o estrito campo da história política e institucional, questionam a perspetiva biográfica dos grandes atores

políticos e investigam as formas de resis-tência individual às máquinas estatais de dominação política, social e cultural. Coin-cidindo com o momento em que os arquivos audiovisuais disponibilizam mais imagens e as ferramentas digitais permitem um novo uso e entendimento dessas mesmas imagens de arquivo, o cinema constitui-se assim como um terreno privilegiado do alargamento não apenas temático, mas também metodológico destas novas práticas historiográficas.

A importância dos filmes de Cardoso, Sousa Dias, Canijo e Costa é, por isso, dupla: estes filmes não só oferecem uma representação alternativa do passado, mas também empregam estratégias formais que recordam permanentemente o espectador da natureza construída dessa mesma representação, acentuando a subjetividade da memória e do próprio processo de construção histórica. Nestes filmes, em suma, o cinema é menos uma “fonte” do que um “historiador”35.

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e económica que o tempo pretérito tem na generalidade das cinematografias, sendo por isso comum encontrarmos obras deste tipo no currículo dos realizadores.

Um dos aspetos caraterísticos destas narrativas é a sua relação com o tempo em que são produzidas, através de elementos formais e temáticos, marcas que acres-centam à faceta estética e económica dos filmes uma outra perspetiva sobre os usos do passado, que diz respeito à dimensão subjetiva com que os temas são abordados, podendo abrir-se, agora do ponto de vista do investigador, novos e interessantes motivos de pesquisa sobre a forma como o passado tem sido cinematograficamente perceciona-do ao longo do tempo.

Intimamente relacionado com a sobredeter-minação que a contemporaneidade exerce neste ato criativo, está também o dina-mismo com que o passado é interpretado, onde nem sempre os exercícios miméticos são os mais frequentes; pelo contrário, é regular a utilização pretextual do passado para discursar sobre o presente, a propósito de paralelismos existentes entre o tempo da história e o tempo em que a obra é concebida.

Por outro lado, a recorrência à evocação histórica nas narrativas fílmicas e, nestas, a insistência em determinados assuntos como que revelam uma necessidade de interrogar o passado, ideias que não se situam no âm-bito do discurso científico, mas no campo estrito que compete ao cineasta que, como cidadão e intelectual, produz criativamente sobre inquietações pessoais ou sociais. Nesse exercício, do qual resultam obras que transportam uma memória do tempo em que foram concebidas, com a particulari-dade de serem reflexões pessoais deixadas por personalidades com visibilidade social e cultural, é possível pesquisar a evolução das perceções sobre o destino coletivo.

Finalmente, este uso regular do passado pelo cinema é uma evidência da importân-cia que tem nos coletivos sociais, porque as escolhas temáticas não obedecem apenas a critérios económicos ou estéticos, mas

também a necessidades de outra ordem, onde a subjetividade da criação artística é preponderante. O encontro com o passado serve para as sociedades se situarem dentro de uma globalidade temporal e referencial, proporcionando um permanente futuro ao passado, cujos contornos vão sendo definidos pelas caraterísticas que a diacro-nia da evolução social vai desenvolvendo, completando assim um círculo essencial para a dinâmica das identidades através do cruzamento destas várias dimensões temporais.

Deste modo, o uso cinematográfico do passado deve ser cruzado com os domínios da produção de memória, que é aquilo que o cineasta faz ao realizar uma obra de evocação histórica, e esta, por sua vez, inserida no conjunto dos filmes produzidos sobre o mesmo assunto, permite-nos efetuar aproximações à memória coletiva existente sobre o tema, sendo ainda possível deduzir elementos e relações sobre a evolução da consciência coletiva e da identidade nacional. Ou seja, memória fílmica e memória coletiva são conceitos que podem ser cruzados simultaneamente, numa equação onde passado, presente e futuro convivem, porque o fundamental é termos como critério orientador a atribuição de importância àquilo que dura no tempo.

O tema do Império Colonial Português (1415-1974), desde que foi cinematografi-camente concebido, pela primeira vez, em 1940 através do Feitiço do Império (António Lopes Ribeiro), é um exemplo flagrante deste uso criativo do passado pelo cinema português. Tem sido um dos assuntos mais insistentemente abordados pela ficção nacional, apresentando uma média esta-tística que supera uma obra por ano, desde aquela data inicial até aos tempos atuais, numa permanência que apresenta mais obras depois da revolução de 25 de abril de 1974, tema a que estão associados realizado-res como António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros, Jorge Brum do Canto, Paulo Rocha, Manoel de Oliveira, João Botelho, Marga-rida Cardoso, Joaquim Leitão ou Miguel Gomes, para citar apenas alguns dos mais conhecidos.

Neste texto, necessariamente sintético, propomo-nos apresentar algumas ideias globais sobre a abordagem que a ficção cinematográfica tem feito ao tema, baseando-nos em investigação já concluída ou em curso e que, pela argumentação apresentada, entendemos definir como O Império na memória do cinema.

O iMPÉRiO EnTRE A LuZ E A SOMBRA

Como tema cinematográfico, o Império Colonial Português tem sido representado através de

duas grandes perspetivas, duravelmente permanentes desde 1940, que poderão ser designadas através da antinomia luz- -sombra, aparentemente correspondentes a impérios antagónicos. Por vezes, temos usado a metáfora Uma África, Dois Impérios, acrescentando o continente africano à referida dualidade luz-sombra, porque a esmagadora maioria das narrativas tem África como espaço diegético ou como referente condicionador da ação.

É sobre estes dois tipos de Império, o luminoso e o sombrio, que gostaríamos de centrar a nossa atenção, devido à pertinên-cia simbólica que os conceitos apresentam na ficção até agora produzida. Pela perspe-

Ramos) e Paiva Couceiro (Jorge Brum do Canto); apresentando-se sempre indiferen-tes ao perigo que correm, são impulsivos na tomada de decisões, orientam-se sempre pelo cumprimento da lei colonial instituída, personificando em simultâneo o destino coletivo colonial em vigor durante a Monar-quia Constitucional e particularmente no Estado Novo. Em Camões (Leitão de Barros, 1946), Luís Vaz (António Vilar) perde uma das vistas em nome da bandeira pela qual está a lutar, significando com o ato que o corpo é menos importante que o símbolo pátrio que consegue erguer. Em Vinte e Nove Irmãos (Augusto Fraga, 1965), Ilídio (José de Castro) relata, depois da chegada da sua comissão militar na guerra colonial, a ascensão gloriosa ao Monte da Pedra Verde para nele colocar a bandeira depois do dever cumprido. Em Brandos Costumes (Alberto Seixas Santos, 1974), existe um episódio durante o qual assistimos à leitura de uma carta pela irmã mais velha (Isabel de Castro), enviada pelo namorado na guerra colonial, onde este lhe relata o prazer da vida de aventura. Em Non, ou a Vã Glória de Mandar (Manoel de Oliveira, 1990), o soldado Salvador (Miguel Guilherme)

assume estar na guerra colonial em nome do patriotismo. No mesmo sentido dos perfis anteriores, podemos ainda referir Forza Leal (Adriano Luz), em A Costa dos Murmúrios (Margarida Cardoso, 2004), que, por entre a sua frieza e a sua violência sádica, age epicamente em nome de uma lei instituída que não questiona e que pretende fazer cumprir sem hesitações.

A luminosidade do Império também é visível em obras que expressam uma visão paradisíaca sobre os territórios ultramarinos, onde a harmonia entre colonos e colonizados, ou o enaltecimento do desenvolvimento da terra, são ideias veiculadas em várias narrativas. O Feitiço do Império (Ribeiro, 1940) deve, naturalmente, ser aqui referido, pelo enaltecimento que lhe está subjacente, nomeadamente a obra civilizacional realizada e a evolução daí decorrente para todos os agentes envolvidos. Chaimite, a Queda do Império Vátua (Canto, 1953) aponta no mesmo sentido, enaltecen-do o poder transformador e construtor dos portugueses, valorizando a terra agricultada em benefício de todos.

Refira-se igualmente o exemplo de O Zé do Burro (Eurico Ferreira, 1971), que constitui uma obra interessante a vários níveis. Produzida em plena fase da guerra colonial por uma produtora moçambicana, constitui, num momento de aparente declínio do desígnio colonial, uma defesa dos valores do colonialismo, expressão que surge da comunidade então residente na província. O paraíso rural é uma das ideias fortes da narrativa. Zé (José Bandeira) vem da Metrópole tomar posse de umas terras que adquiriu no Norte de Moçambique, quando percebe que a propriedade confina com uma zona onde está sediado um foco da guerrilha. Persistente, não desiste e, através do trabalho agrícola e do ensino do cultivo da terra aos naturais que ali residem, consegue desmobilizar todos os guerrilheiros que veem na sua proposta uma via mais rápida para os seus problemas de sobrevivência que a solução defendida pelo líder da guerrilha, que também acaba por se converter, no final, às ideias do protagonista.

A recorrência à evocação histórica nas narrativas fílmicas e, nestas, a insistência em determinados assuntos como que revelam uma necessidade de interrogar o passado

tiva globalizante que possibilitam, relativa-mente ao que tem sido produzido, deteta-se uma transversalidade comum à filmografia, identifica-se um olhar que procura esta-belecer uma linha condutora em todo o conjunto e, dessa forma, apresenta-se uma perspetiva que não tem por centro o que distingue as obras, mas o que as aproxima. Este caráter luminoso ou sombrio será, por sua vez, aferido através de três conceitos analíticos, os heróis das narrativas, as colónias e o regresso do Império, instru-mentos que serão aplicados a um conjunto de ficções pertencentes às duas tipologias, de forma que sejam produzidas conclusões baseadas num critério de sistematicidade e constância.

O iMPÉRiO LuMinOSO

Conceptualmente, este tipo de Império apresenta-se como um desiderato nobre, algo pelo qual

vale a pena lutar, eventualmente dar a vida, onde colonizar significa ser proativo no desenvolvimento do território e dos seus habitantes e, quando o regresso do Império se verifica, os retornados vêm mais fortes e instruídos que aquando da sua partida para o Ultramar.

Essa luminosidade poderá ser observada através do perfil de heroicidade de alguns protagonistas que apresentam caraterísticas de raiz épico-trágica, segundo a terminolo-gia desenvolvida por Marc Augé. A tipologia épica define-se em personagens que lutam em nome da lei, da ordem, personificam o destino coletivo e o gosto pelas viagens e pela vida de aventuras; por sua vez, a faceta trágica apresenta duas caraterísticas de con-duta essenciais – a menorização dos riscos e a impulsividade na tomada de decisões.

São muitos os exemplos onde podemos encontrar esta caraterização. Jorge Brum do Canto realizou, em 1953, uma obra icónica para o Estado Novo, Chaimite, a Queda do Império Vátua, na qual o perfil de duas personagens militares personifica exemplarmente esta dupla caraterização, no caso Mouzinho de Albuquerque (Jacinto

O Império luminoso apresenta-se como força mobilizadora da ação, ganhando preponderância personagens de raiz épico-trágica que entendem o Ultramar como causa vital, onde a vida assume um caráter irrelevante

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No mesmo sentido, podem ainda ser apon-tados três exemplos, todos surgidos depois de 1974. Primeiro, Amor e Dedinhos de Pé (Luís Filipe Rocha, 1992) onde o realizador nos apresenta uma história amorosa que se situa em Macau nos inícios do século XX, entre Victorina Vidal (Ana Torrent) e Francisco Frontaria (Joaquim de Almeida), através da qual podemos verificar, no-meadamente na reconstituição epocal da sociedade macaense dos inícios do século, a coexistência pacífica entre a comunidade portuguesa e a comunidade oriental. Ex-pressando a mesma ideia da obra anterior, podemos referir Ilhéu de Contenda (Leão Lopes, 1995), agora recriando a convivência pacífica entre portugueses e cabo-verdianos em 1964, já em pleno período da guerra colonial, obra que tem ainda a curiosidade de ter sido realizada por um cabo-verdiano. O último exemplo que gostaríamos de referir é Tabu (Miguel Gomes, 2012), uma narrativa que gira em torno de uma história amorosa vivida por uma idosa durante a juventude no Monte Tabu, em Moçambique. O tempo da narrativa é

organizado de forma regressiva, partindo da atualidade lisboeta, depressiva e triste de Aurora (Laura Soveral), para, depois da sua morte, irmos à descoberta da sua vida sentimental no passado em África. Deste percurso temporal, aquilo que verificamos é a identificação de dois períodos distintos, um infeliz, atual, com ligações ao Portugal contemporâneo, e outro feliz, passado, e vivido no tempo colonial.

Por outro lado, podemos identificar nos filmes sobre o regresso referências que se enquadram na perspetiva luminosa do Império. No período anterior a 1974, ao con-trário do que seria expectável, encontramos apenas uma obra que apresenta um regresso feliz, facto estranho tendo em conta a importância ideológica que o Império tinha para o Estado Novo. Trata-se de Vinte e Nove Irmãos (Augusto Fraga, 1965), na qual podemos acompanhar o regresso de Ilídio da guerra colonial e onde há um episódio no qual fica subjacente a evolução adquirida pela experiência de guerra. Estando toda a comunidade perante a iminência da morte

por afogamento de uma menina que caíra num tanque, Ilídio é o único que reage con-tra a passividade geral, tentando reanimar a pequena e conseguindo-o ao fim de algum tempo, depois de usar algumas técnicas que aprendera na guerra. Ou seja, não tivessem sido a sua saída da aldeia e a experiência de guerra, a sua reação seria igualmente passiva, idêntica à dos restantes elementos, como se nada houvesse a fazer senão aceitar a fatalidade. O padre da aldeia agradece-lhe incisivamente, abraçando-o, dizendo-lhe que valera a pena tudo quanto passara, ao que Ilídio responde que fora uma coisa que aprendera e que, às vezes, valia a pena.

Concluindo, o Império luminoso apresenta--se como força mobilizadora da ação, ganhando preponderância personagens de raiz épico-trágica que entendem o Ultramar como causa vital, onde a vida assume um caráter irrelevante, constituindo-se como um espaço de oportunidades e desenvol-vimento, tanto para colonos como para colonizados, em que a tónica dominante é o convívio pacífico e harmonioso. O espaço ultramarino contribui, assim, para o desenvolvimento pessoal daqueles que para ele partiram, permitindo-lhes aprendi-zagens que os tornam mais competentes na luta pela vida.

O iMPÉRiO SOMBRiO

Ao lado das narrativas luminosas, surgem outras onde o Império se apresenta sombrio, com

caraterísticas estruturalmente diferentes daquele, nas quais os territórios de além--mar deixam de funcionar como força mobilizadora ou como causa pela qual vale a pena lutar, para se apresentarem como motivo profundo e longínquo de infortúnios vários.

No lugar do herói épico-trágico vai surgir o romanesco, cujo perfil, também na esteira de Marc Augé, apresenta caraterísticas que o identificam com o comum dos mortais. Com as suas angústias pessoais, sente o peso da separação e da mobilização para a guerra, é herói pela capacidade em assumir as suas

fragilidades humanas, não se distinguindo pela coragem incomum ou pela irrelevância da vida, e é precisamente a sua natureza comum e humana que o particulariza.

Antes de 1974, este perfil começa a emergir em Chaimite (Canto, 1953), através de Caldas Xavier (Augusto de Figueiredo), quando sente que a vida lhe começa a fugir e emergem as preocupações com a família que deixa desamparada. Este é o perfil que se torna dominante com a implantação da guerra colonial, onde as angústias perante a eventual mobilização são regulares, como João (João Mota) apresenta em O Mal-Amado (Fernando Matos Silva, 1973), e que Ilídio relata em Vinte e Nove Irmãos (Fraga, 1965), demonstrando o stress de guerra que sentiu nos combates. Esta abordagem vai continuar a ser explorada na ficção que surge depois de 1974. Em Um Adeus Português (João Botelho, 1985), uma das temáticas centrais é a narrativa do furriel Augusto sobre a perda e a reflexão da família acerca da dor a ela associada, que co-meça com o próprio, quando, longe dos seus, mas ainda vivo, como que se vai despedindo e esperando pelo momento em que a guerra irá consumar a separação definitiva. Outro caso será o do alferes Cabrita (Luís Miguel Cintra), em Non, ou a Vã Glória de Mandar (Oliveira, 1992), que expressa a insensatez que a guerra constitui quando aliada à luta pelo poder, ou, mais recentemente, o alferes Gaio (Marco d’Almeida), em 2013 (Joaquim Leitão, 2006), porque, não obstante o cum-primento integral, corajoso e digno dos seus deveres de militar em situação de combate, é uma personagem que transporta angústias motivadas pela separação daqueles a quem mais quer e por estar a cumprir o serviço militar sem convicção.

Ao contrário da visão paradisíaca anterior-mente referida sobre os territórios ultra-marinos, as narrativas do Império sombrio apresentam novas perspetivas sobre os agentes coloniais, onde globalmente emergem a incomodidade e o remorso, situações que, em alguns casos, anunciam o discurso pós-colonial ainda durante a fase colonial. Primeiro, no lugar do colono proativo, interessado no desenvolvimento dos territórios, que aspira à melhoria da

As narrativas do Império sombrio apresentam novas perspetivas sobre os agentes coloniais, onde globalmente emergem a incomodidade e o remorso, situações que, em alguns casos, anunciam o discurso pós-colonial ainda durante a fase colonial

sua condição e da daqueles que o rodeiam, emergem perfis onde é dominante a regressão civilizacional justificada pelo contacto com os africanos, como é o caso de Bernardo Costa (Vasco Santana), em O Costa de África (João Mendes, 1954), que se apresenta numa visita temporária à Metrópole com hábitos pouco civilizados, a rondar a boçalidade, concebendo a mulher como um bem material descartável. Na mesma linha, temos também a emergência do colono corrupto, como Pais dos Santos (Pedro Pinheiro), em Malteses, Burgueses e às Vezes… (Artur Semedo, 1973), que apro-veita a posição privilegiada de que usufrui, através das suas empresas angolanas, para se dedicar a negócios ilícitos, ao mesmo tempo que desenvolve hipocritamente uma imagem social de benfeitor, atos que pratica perante a inconsciência dos naturais da terra.

Em paralelo com esta faceta negra com que algumas narrativas caraterizam os colonos e a colonização, emergem outras que anunciam novas perspetivas sobre a relação colonial, mas onde a visão crítica e sombria

Ilhéu de Contenda (1995), Leão Lopes. Coleção Cinemateca Portuguesa--Museu do Cinema. A casa a que Eusébio decide regressar, situada em ilhéu de Contenda, que fora dos pais e de outros antepassados seus, é assumida como espaço refe-rencial de valores e felicidade, que o protagonista procura após o processo de desagregação familiar que vivera na sequência da morte da mãe. Essa busca de harmonia significa retornar às raizes cabo-verdianas, para junto de quem o fez feliz. O império assume-se assim como lugar de reequilíbrio, no qual fica subjacente a paz que sente por estar entre os naturais da terra.

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sombrio que surgem antes da deflagração da guerra colonial, como vimos através de Chaimite (Jorge Brum do Canto, 1953) e O Costa de África (Mendes, 1954), perdurando e intensificando-se depois do início do conflito armado, sendo, depois de 25 de abril de 1974, o tema que mais narrativas proporcionou.

Em segundo lugar, tendo em conta apenas o regime de Salazar e Caetano, é simplista efetuarmos uma dicotomização entre ficções favoráveis e ficções contrárias ao Estado Novo, ou seja, não é linear que as “obras luminosas” apresentem uma perspe-tiva positiva sobre o Estado Novo e, por sua vez, que as de sentido oposto funcionem como opositoras à política colonial do re-gime. O que é frequente é apresentarem-se polissémicas na significação, não obstante poderem ser dominantemente favoráveis ou contrárias ao regime. Exemplifiquemos. Chaimite e O Costa de África não são obras opositoras ao regime, pelo contrário, e, no entanto, ambas integram caraterísticas sombrias. Em sentido oposto, apesar de Brandos Costumes ser uma obra crítica em relação ao regime, tem elementos onde está subjacente o otimismo sobre o Império. Ou seja, sem negar a tendência global que cada obra sugere, em muitas delas verifica-se alguma preocupação em recriar a realidade de forma plural. Porém, o que já não oferece dúvidas é que a existência desta dupla visão sobre o Império demonstra que os cineastas, não obstante os instrumentos de propa-ganda utilizados pelo regime, produziram visões diferentes daquelas de que o poder instituído gostaria, tendo impedido a sua exibição através das autoridades inspetivas, facto que também não abrangeu todas as situações contrárias à linha política domi-nante, cujo exemplo mais flagrante é Mudar de Vida, que foi aceite pelas autoridades para maiores de 18 anos sem qualquer corte.

A última nota que gostaríamos de salientar é a persistência temporal desta visão sobre o Império, antes e depois de 1974, e o facto de a revolução que ditou a queda do regime de Salazar e Caetano não ter efetuado qualquer tipo de interrupção na produção ficcional so-bre o assunto. A média estatística de uma obra por ano desde 1940 é, nesse aspeto, um facto

continua presente, defendendo uma genuína multirracialidade sem finalidades político--ideológicas, como é o caso da afirmação feita por um estudante em Nojo aos Cães, uma obra experimental que António de Macedo realizou em 1970, ou ainda, na mesma linha de assunção de um discurso pós-colonial, Índia (António Faria, 1972), que encena situações de relacionamento amoroso que vão para além do discurso meramente político e inconsequente sobre a multirracia-lidade defendido pelo Estado Novo.

Finalmente, as narrativas sombrias sobre o regresso criam situações onde o retorno não é um ato gerador de felicidade, o que se veri-fica em vários filmes anteriores à revolução de 1974, nomeadamente Vinte e Nove Irmãos e Brandos Costumes, mas particularmente em Mudar de Vida (Paulo Rocha, 1966). Adelino (Geraldo Del Rey), regressado de Angola e da guerra colonial, vê-se obrigado a mudar de profissão porque vem com uma incapacidade física que o torna inapto para a dura faina das companhas da pesca marí-tima e, em simultâneo, tem de desistir do amor de Júlia (Maria Barroso), que deixou antes de partir, apesar da manutenção do laço afetivo entre ambos. Ou seja, o que a narrativa veicula no seu lastro mais pro-fundo é o condicionamento que o Império exerceu sobre a vida individual das perso-nagens, que não existiria se não se tivesse verificado a imposição da partida de um dos elementos para lutar por um desígnio que não sentia como seu, verificando-se uma acusação latente que recai sobre o Império e as opções relativamente a ele tomadas pelo poder dominante, que têm como resultado a desestruturação pessoal e familiar.

Depois do 25 de abril, esta tendência man-tém-se, sendo particularmente significativo referir dois filmes, Inferno (Joaquim Leitão, 1999) e Os Imortais (António-Pedro Vascon-celos, 2003), abordando ambos situações do regresso de militares que cumpriram o serviço militar na guerra colonial, tendo como tema fundamental os desequilíbrios psicológicos gerados em consequência de situações de stress pós-traumático, derivando em comportamentos suicidários e violentos. Deste modo, a visão que as narrativas do

Império sombrio nos deixam apresenta globalmente uma ideia latente de acusação sobre o Império, sendo este apontado como razão profunda de angústias pessoais e fa-miliares, em relação ao qual as personagens sentem um peso e têm deveres a cumprir, não se vislumbrando já a motivação dos protagonistas do Império luminoso. O espaço ultramarino é também o território da aquisição de hábitos pouco polidos, violentos e próximos da rudeza ou, por outro lado, são regiões onde grassam o oportu-nismo e a corrupção. Finalmente, quando o regresso se verifica, encontramos o desequilíbrio psicológico, a desestruturação pessoal e social, como se as personagens se encontrassem perdidas, ficando latente, em muitos casos, uma acusação sobre as opções políticas desenvolvidas pelo Estado Novo.

POR uM nOVO DiSCuRSO SOBRE O iMPÉRiO nA MEMÓRiA DO CinEMA

A finalizar, deixamos algumas notas que nos parecem importantes no sentido de proporcionar um novo

tipo de abordagem à memória que a ficção cinematográfica produziu entre 1940 e 2015 sobre o Império Colonial, atendendo ao confronto aqui efetuado entre narrativas luminosas e narrativas sombrias.

Em primeiro lugar, verifica-se uma coexis-tência temporal entre as duas visões sobre o Império. Aprioristicamente, admitir-se-ia o raciocínio de que o Império luminoso seria dominante até ao início da guerra colonial (1961), verificando-se, por razões justifi-cadas pelo conflito, o seu declínio desde então. Porém, este raciocínio não é validado pela ficção produzida. Se a primeira ficção surge logo em 1940 com o Feitiço do Império (Ribeiro, 1940), Vinte e Nove Irmãos (1965) e O Zé do Burro (1971) situam-se já depois do início do conflito, e, mais significativo ainda, a existência de narrativas do género persiste para além de 1974, como vimos através de Amor e Dedinhos de Pé (Luís Filipe Rocha, 1992), Ilhéu de Contenda (Leão Lopes, 1964) e Tabu (Miguel Gomes, 2012). Por outro lado, o mesmo raciocínio deverá ser aplicado às narrativas sobre o Império

Um Adeus Português (1985), João Botelho. Coleção Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema.Momento anterior à morte do furriel Augusto. Até aí acompanhamos as suas angústias, de guerra e separação da família, e, anos depois, continua- mos a testemunhar a dor que os familiares não conseguem ultrapassar pela perda. De novo, o império a funcionar como sombra aprisionante, desestruturando pessoas e famílias.

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Ou seja, o Império integrou o território português entre 1415 e 1974, perdura no cinema de ficção desde 1940, com a média estatística de uma obra por ano, permanên-cia que nos permite concluir ser um passado que continua presente e que terá futuro, a avaliar pela tendência anterior. Essa longe-vidade, se é demonstrativa de que o “tema Império” não tem sido indiferente para as várias gerações que sobre ele têm debruçado um olhar criativo, que por isso mesmo é parte integrante das nossas caraterísticas coletivas, a permanência da dupla visão lu-minosa e sombria deverá também significar que a análise do investigador não poderá ser feita por reação, nomeadamente em relação aos 48 anos de vida coletiva impostos pelo Estado Novo, mas tendo em conta a realidade e a importância multissecular que constituem 600 anos (1415-2015) de convívio com a ideia de Império na nossa memória e consciência coletivas.

filmografiaBARROS, Leitão de (1946), Camões. Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, António Lopes Ribeiro.BOTELHO, João (1985), Um Adeus Português, João Botelho.CANTO, Jorge Brum do (1953), Chaimite, a Queda do Império Vátua, CINAL.CARDOSO, Margarida (2004), A Costa dos Murmú-rios, Filmes do Tejo/Les Films de l’Après-Midi.FARIA, António (1972), Índia, António Faria.FERREIRA, Eurico (1971), O Zé do Burro, FILMLAB.FRAGA, Augusto (1965), Vinte e Nove Irmãos, Manuel Queiroz/CINEDEX.GOMES, Miguel (2012), Tabu, O Som e a Fúria.LEITÃO, Joaquim (1999), Inferno, MGN/SIC.LEITÃO, Joaquim (2006), 2013, Tino Navarro.LOPES, Leão (1995), Ilhéu de Contenda, Vermédia//RTP/MBSA/Saga Film/Instituto Cabo-Verdiano de Cinema.

MACEDO, António de (1970), Nojo aos Cães, António de Macedo.MENDES, João (1954), O Costa de África, Felipe de Solms/Ricardo Malheiro.OLIVEIRA, Manoel de (1990), Non, ou a Vã Glória de Mandar, Madragoa Filmes/Tornasol Films/ /Gemini Films/SGGC Films.RIBEIRO, António Lopes (1940), Feitiço do Império, Agência Geral das Colónias.ROCHA, Luís Filipe (1991), Amor e Dedinhos de Pé, MGN/Ou Mun Filmes/RTP.ROCHA, Paulo (1966), Mudar de Vida, Produções Cunha Telles. SANTOS, Alberto Seixas (1974), Brandos Costumes, Centro Português de Cinema. SILVA, Fernando Matos (1973), O Mal-Amado, Centro Português de Cinema.VASCONCELOS, António-Pedro (2003), Os Imortais, RTP/LUSOMUNDO/FADO FILMES.

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incontornavelmente significativo, revelador de uma “persistência sem abril”, ou seja, abril de 1974; ao contrário de significar uma rutura com o passado, representou a necessidade de continuar a refletir sobre o significado do Império na nossa memória coletiva.

Concluindo, esta dupla interpretação que propusemos como processo de reflexão global sobre a memória do cinema acerca do Império demonstra também aquilo que dissemos inicialmente. Sendo um assunto que é tratado pela ficção cinematográfica há 75 anos (1940-2015), com a regularidade produtiva e temática que evidenciámos, parece-nos que o que deve ser relevado é que o tema tem interessado insistentemente um conjunto de realizadores bastante sig-nificativo, o que parece ser uma evidência da importância coletiva que tem, indepen-dentemente das opiniões veiculadas, dos tempos e dos contextos político-culturais.

Mudar de Vida (1966), Paulo Rocha © Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema. A partida para a guerra colonial, para defender um desígnio que não era de Adelino, provocou a impossibilidade de prosseguir a relação amorosa com Júlia, não obstante a manutenção do laço afetivo entre ambos. O império é assumido na narrativa como o motivo causador de infortúnios pessoais e familiares do protagonista.

Cinema Império – propaganda e censura

no Estado NovoMaria do carMo piçarra

Foi a propaganda a levar a câmara de filmar para as ex-colónias portuguesas. Logo em 1909, Ernesto

de Albuquerque filma, em S. Tomé, A Cultura do Cacau, do qual subsiste uma sequência de um minuto. O filme é uma

resposta a acusações da empresa Cadbury relativas à existência de trabalho forçado nas ilhas sob a Linha do Equador. É, porém, uma exceção que confirma a regra: a Primeira República não se interessou muito pelo cinema. Se usou o potencial

propagandista do cinema, foi para fomentar a unidade nacional em torno da participação na Grande Guerra, motivada, entre outras causas, pela ameaça, real, de o Reino Unido e a Alemanha virem a repartir as então colónias portuguesas. A criação,

História. Potencialidades e limites dos documentários históricos, Dissertação de doutoramento, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa.SEABRA, Jorge (2014), África Nossa. O impé- rio colonial na ficção cinematográfica portu- guesa, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra.SEABRA, Jorge (2014), Cinema. Tempo, memória, análise, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra.SEABRA, Jorge (2016), “Filme colonial. Conceptualização e discursividade”, 7.º Simpósio Internacional de Cinemas em Português, Rio de Janeiro (no prelo).SEABRA, Jorge (2016), O Cinema no Discurso do Poder. Dicionário sobre legislação cinematográfica portuguesa (1896-1974), Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra (no prelo).

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O Império integrou o território português entre 1415 e 1974, perdura no cinema de ficção desde 1940, com a média estatística de uma obra por ano, permanência que nos permite concluir ser um passado que conti-nua presente

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Albuquerque, é um elogio da obra militar portuguesa, do trabalho dos colonos e faz um retrato menos paternalista dos negros africanos do que o Feitiço fizera. Manteve--se escassa, porém, a produção de propa-ganda colonial de longa-metragem ficcional. Predominaram os documentários e as atualidades cinematográficas que visaram, sobretudo, dar conta do progresso técnico e económico nas ex-colónias, mas com irregularidade e dependendo quase sempre de apostas pontuais na produção sistemá-tica de filmes ou da iniciativa de privados. Neste último caso, registe-se a iniciativa de Felipe de Solms e Ricardo Malheiro que, em 1949, viajaram até Moçambique e Angola para angariarem o interesse de empresas, organismos estatais e missões religiosas na realização de documentários de propaganda. Decorrente disso, a AGC promoveu, a partir de 1950, a projeção dos documentários produzidos em Angola e Moçambique por Solms e Malheiro, com o apoio financeiro de Câmaras Municipais, Juntas de Exportação de Angola e Moçam-

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por Norton de Matos, da Secção Fotográfica e Cinematográfica do Exército, em 12 de janeiro de 1917, concentrou os recursos do Estado para o uso do cinema.

Passar-se-ão vinte anos até uma câmara de filmar enviada pelo Estado português regressar a S. Tomé, com a Brigada Cinematográfica Portuguesa, dirigida por Fernandes Thomaz, que, em 1929, filma a longa-metragem Uma Visita às Propriedades da Sociedade Agricola Valle Flôr, Limitada na Ilha de S. Thomé. Filma-se também, com realização de Augusto Seara, São Tomé Agrícola e Industrial.

Estes títulos, que atestam a importância da propaganda económica relativa às colónias, integram já a produção promovida pela ditadura militar chegada ao poder em 1926, enquanto define uma política colonial – o que é feito previamente à Constituição que, em 1933, legitima o Estado Novo –, consubstanciada no Ato Colonial. O novo regime ainda está a organizar as finanças quando determina a participação nas grandes exposições coloniais europeias: Exposição Ibero-Americana de Sevilha (1929), Exposição Internacional e Colonial de Antuérpia (1930) e Exposição Colonial de Paris (1931). Na primeira iniciativa estatal concertada para produzir filmes sobre as colónias africanas, o agente geral das colónias, Armando Cortesão, encomendou filmes sobre os territórios a três equipas de cineastas. A produção beneficiou do apoio de empresas privadas e da administração local1. Em causa estiveram o reconheci-mento internacional do movimento de maio de 1926 e o estatuto de Portugal entre as potências coloniais.

Previamente, porém, à encomenda estatal de filmes para a participação em exposições, e além de A Cultura do Cacau, que filmes coloniais foram feitos? Poucos, documentais e sobretudo de propaganda, embora deva assinalar-se a atividade de Manuel Antunes Amor, amador que filmou as únicas obras feitas – hoje desaparecidas – na “Ásia portuguesa” até meados do século XX. Não se conhecem, porém, quaisquer filmes coloniais realizados na segunda década do

século XX. Além das imagens sobreviventes do filme feito em S. Tomé, o filme mais antigo da coleção colonial da Cinemateca é de 1923, Angola – Exposição Provincial, Agrícola, Industrial e Pecuária.

É sabido como a instrumentalização do cinema pelo Estado Novo foi feita através do financiamento direto de obras de propa-ganda e orientação ideológica da produção cinematográfica, formatada pela “política do Espírito”, implementada por António Ferro após a criação do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) em 19332. No período anterior, em que a propaganda não serve uma ideologia, ainda por definir, mas já cumpre um papel na projeção da nação, os “documentários” são pouco mais do que documentos que fixam aspetos da realidade. É nesta qualidade de documentos, porém, que melhor desvendam aspetos etnográfi-cos, da vida religiosa, sobre o casamento e mesmo sobre as atividades económicas, sem a formatação ideológica que virão a ter, quando se tornam objeto de orientação através do financiamento ou passam a ser condicionados diretamente pela Censura. A propaganda visada pela Agência Geral das Colónias (AGC) através desta primeira missão cinematográfica foi posta em causa por motivos imputados aos realizadores. Tal não obsta a que o Estado adira à prática do momento, copiando outros impérios: trazer o “outro” para exposição, em autênticos zoos humanos, na Metrópole. Em 1931, no âmbito de uma feira industrial em Lisboa, instala-se uma aldeia indígena no recinto, com as res-petivas palhotas, famílias, animais domés-ticos, artesãos, provenientes da Guiné. Dois filmes registam o acontecimento: África em Lisboa – Exposição dos Indígenas da Guiné na Grande Exposição Industrial Portuguesa e Guiné – Aldeia Indígena em Lisboa. Em 1933, a vinda a Portugal de uma companhia indígena de Angola ficou também registada em 1.ª Companhia de Infantaria Indígena de de Angola em Lisboa. Na primeira exposição colonial, que aconteceu no Porto em 1934, Aníbal Contreiras foi encarregue de filmar Primeira Exposição Colonial Portuguesa e Cor-tejo Colonial do Porto que fixam, igualmente, a exibição de “nativos” no evento.

Após a criação do SPN, os filmes coloniais eclipsaram-se, durante algum tempo, dos cinemas nacionais. Só quando a Missão Cinegráfica às Colónias de África foi criada, em 1937, pelo Ministério das Colónias, visando a produção de filmes que propagan-deassem o esforço colonizador e o nível de desenvolvimento supostamente alcançado, se contrariou o vazio. Durante a missão, além do registo da visita presidencial de 1938 às colónias, filmam-se exteriores para Feitiço do Império. Resultarão ainda vários docu-mentários, estreados ao longo da década de 40: Guiné, Berço do Império (1940), Aspectos de Moçambique e S. Tomé e Príncipe (1941), Angola, Uma Nova Lusitânia e Gentes Que Nós Civilizámos (1944), As Ilhas Crioulas de Cabo Verde (1945) e Guiné Portuguesa (1946).

Avalie-se a importância desta produção colonial no âmbito da propaganda estatal por via da reflexão, feita em 1944, do agente geral das colónias, Júlio Cayolla – que, posteriormente, foi o delegado do SNI na supervisão da produção de Chaimite, apoiado pelo Fundo do Cinema Nacional

(FCN). Elogiando o suposto desenvolvi-mento empreendido após o Ato Colonial, sustenta que é justo que se deseje mais (Cayolla, 1944, pp. 34-35). Pede, entre outras propostas, que “a propaganda pelo cinema, [seja feita] quer com filmes de fundo evocando grandes figuras da nossa história, quer com pequenos documentários em que se veja o actual desenvolvimento das nossas colónias”. Preconiza-se, pois, a continuidade do investimento dos documentários de propaganda económica, a par de uma produção ficcional de que Chaimite é a ilustração justa.

A visão de Cayolla “fez escola”, portanto, até o Novo Cinema impor novos temas e um novo olhar sobre os territórios. Apesar da realização de um filme ficcional que mais não é do que um mau “safari cinema-tográfico”, Chikwembo! Sortilégio Africano (Carlos Marques, 1953), o grande filme do regime pós-Feitiço do Império é Chaimite (Brum do Canto, 1953), que enaltece as figuras de Paiva Couceiro e Mouzinho de

bique, Serviços de Instrução Pública de Angola e Associação dos Produtores de Sisal de Moçambique.

QuEiXA DAS ALMAS CEnSuRADAS

em simultâneo com a Constituição Portuguesa de 1933, foi publicado o Decreto n.º 22 469, que instaurou

a Censura Prévia. Se o artigo 8.º da Constituição, no n.º 4, estabelecia “a liberdade de pensamento sob qualquer forma”, previa, porém, no n.º 20, que “leis especiais regularão o exercício da liberdade de pensamento”. O artigo 3.º esclarecia a função da Censura: “impedir a perversão da opinião pública na sua função de força social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de todos os factores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem comum, e a evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade”.

Estes títulos, que atestam a importância da propaganda económica relativa às colónias, integram já a produção promovida pela Ditadura militar chegada ao poder em 1926, enquanto define uma política colonial (...) consubstanciada no Ato Colonial

Manuel Faria de Almeida e Augusto Cabrita na rodagem de Catembe (1965). © Colecção Manuel Faria de Almeida

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Apesar de a Censura Prévia aos espetáculos cinematográficos se ter iniciado em 1927, “só” em 1944 foi criada a Comissão de Censura aos Espetáculos. No que respeita ao cinema, a articulação entre o Fundo do Cinema Nacional (FCN), através da atribuição de apoios à produção cinemato-gráfica, e a Comissão de Censura garantiu a conformidade e a adequação dos espetácu-los a uma moral estrita que, vaga na lei, não só foi sendo adaptada e reavaliada, como extravasou os limites definidos pelo Estado por via das “leituras” dos funcionários – o que era a verdade, a justiça, a moral, etc., era determinado pelos censores.

As diretivas para a censura ao cinema estão resumidas, em grande parte, no art.º 133.º, Decreto 13 564, publicado logo em 19273. “É rigorosamente interdita a exibição de fi-tas perniciosas para a educação do povo, de incitamento ao crime, atentatórias da moral e do regime político e social vigorantes e designadamente as que apresentarem (...) maus tratos a mulheres; torturas a homens e animais; personagens nuas; bailes lascivos; operações cirúrgicas; execuções capitais; casas de prostituição; assassínios; roubo por arrombamento ou violação de domicílio, em que, pelos pormenores apresentados, se possa avaliar dos meios empregados para co-meter tal delito; a glorificação do crime por meio de letreiros ou efeitos fotográficos.”

Para executar as diretivas, no entanto, cada censor usava as suas referências pessoais para interpretações mais ou menos estritas das orientações do Estado4. Essa subjetivi-dade teve implicações na censura feita aos filmes. Quanto aos filmes sobre as colónias, acresceu que, antes de serem submetidos à Comissão de Censura, passaram, após o caso Catembe, a ser alvo de censura preliminar, e sem qualquer enquadramento normativo, pe-los funcionários do Ministério do Ultramar.

A revisão constitucional de 1951, resultante da necessidade de o regime responder à emergência do anticolonialismo, implica o abandono dos conceitos de Império e de Colónia. A mudança, consagrada na Lei Orgânica do Ultramar de 1953, reflete um princípio integracionista e reforça a unidade

do território metropolitano e ultramarino. Ao conceito de Império sucede o de Nação pluricontinental em que todos os territórios são Portugal. Sarmento Rodrigues, ministro das Colónias desde 1950, aciona a reforma administrativa e não descura a reforma ideológica do modelo político colonial. Este assimila então – adaptando-o e despojando--o da componente sexual – o lusotropicalis-mo, teoria do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre sobre um multiculturalismo assente num denominador comum: a especificidade da adaptação do português e da sua cultura a ambientes tropicais. Porém, as apregoadas multiculturalidade e multirracialidade da Nação, que também se pretendem projetar no cinema, confrontam-se com o zelo dos burocratas da Censura. Estes garantem que os filmes de autor só mostrem imagens “convenientes” de convivência racial.

Quando, em 1965, Catembe – 7 Dias em Louren-ço Marques, de Manuel Faria de Almeida, previamente ainda ao exame pela Comissão de Censura, foi alvo de 103 cortes impostos pelo Ministério do Ultramar, cria-se um preceden-te: este organismo político ganha o poder de definir o que pode ser filmado nas colónias.

É certo que, após a reforma constitucional, a rodagem de Chaimite, apoiada pelo FCN e ilustrando o programa de Cayolla enquanto agente das Colónias, fora escrutinada com rigor. O processo, controlado por Cayolla com funções novas, como delegado do SNI, está documentado5. Chikwembo, filme co-mercial promovido como o “primeiro filme português integralmente rodado em África”, fora, por sua vez, amputado em cerca de dez minutos pela censura a diálogos com ex-pressões de amor violento e desejo por uma mulher como “Luiza andava-me no sangue como um veneno implacável” e “Matar! Matar era a única solução (…)”. Porém, não houve aqui desvio à norma censória. Esse deu-se quando um cineclubista e cineasta amador nascido em Lourenço Marques, Manuel Faria de Almeida, quis mostrar o quotidiano da capital de Moçambique (Piçarra, 2015: 222):

“Na verdade, eu sabia que a ideia que em Portugal se fazia de Moçambique era a dos pretos com bandeiras na mão, em alas, deixando passar o Presidente da República vestido de branco, brindado por papeli-nhos multicolores atirados das varandas. Ninguém sabia como as pessoas ali viviam, que pessoas, como pensavam elas, como se divertiam e quais os seus problemas. Era isto que eu queria mostrar, e pensava que as entidades oficiais tinham percebido a intenção.”

O FiLME DE AuTOR COMO CORPO DE DELiTO

nascido em Lourenço Marques, Faria de Almeida estudou cinema na London School of Film

Technique com um apoio do FCN. Estava a estagiar no Institut des Hautes Études Cinématographiques quando António da Cunha Telles – com as Produções Cunha Telles (1962-67) no ativo – lhe enviou um telegrama: “Mil parabéns. Ganhámos Catembe.”

A “declaração de intenções” que consta no pedido de apoio financeiro ao FCN para a realização da primeira longa-metragem

de Faria de Almeida, um documentário ficcional, descreve o projeto em termos que o enquadram na desejada promoção cinematográfica do portuguesismo, mas ressalvando uma perspetiva autoral:

“Filme essencialmente poético (na acção e na imagem), com pouco diálogo, onde sobressai a beleza de Lourenço Marques (rica ou pobre, feliz ou triste), e a comunhão de pretos e brancos no mesmo portugue-sismo – revelado em cada imagem, em cada pormenor, sem, no entanto, tocar as raias da propaganda. Garantimos que o portuguesismo aparecerá, nitidamente, em todo o filme, mas não faremos dele (que é poético e verdadeiro) um filme panfletário e, consequentemente, inútil e prejudicial à realidade nacional.”

Que fatores se conjugaram para que o Con-selho do Cinema apoiasse a obra? A credibi-lidade de Cunha Telles; a condição de Faria de Almeida como bem-sucedido bolseiro do FCN – obtivera a melhor classificação de sempre na escola em Londres – e o desígnio de incrementar a produção cinematográfica sobre o “Ultramar”.

Contornando várias dificuldades, o filme faz-se e, em 19 de março de 1965, o repre-

sentante do Ministério do Ultramar aponta--lhe várias objeções. O secretário-geral da Informação, Moreira Baptista, recusou-se a pagar o subsídio sem que o Ministério do Ultramar se pronunciasse. Catembe foi, então, sujeito à censura do agente geral do Ultramar, Leonel Banha da Silva. Num ofício deste, lê-se:

“A convivência racial é um tema franca-mente mal explorado. Não se poderá dizer que haja, a este respeito, imagens ‘muito convenientes’ mas também se desapro-veita a oportunidade de mostrar imagens ‘convenientes’, aliás, relativamente fáceis de recolher (as escolas, liceus e actividades desportivas permitem, sempre, óptimas imagens quanto a este aspecto).

Referem-se, porém, por parecerem de algu-ma inconveniência, os seguintes aspetos:

a) está dado, com demasiada nitidez, o contraste entre o ‘domingo’ (o filme é repartido pelos sete dias da semana) – em que se demonstram o descanso e prazeres de ‘brancos’ – e a ‘segunda-feira’ que começa por mostrar o trabalho quase só de ‘pretos’. A demasiada nitidez deste contraste pode ser ‘amaciada’ com uma simples alteração de montagem (...).

b) Cenas finais passadas em ‘cabarets’, embora mostrando ‘brancos’ e ‘pretos’, parecem igualmente inconvenientes pois não se afigura que reflictam o melhor tipo de relações que podem estabelecer-se.

c) O contraste entre a ‘opulência’ da cidade e a ‘pobreza’ de Catembe também deveria ser atenuado pelo texto – e não é. (...)”

Foram feitos cortes em 103 planos; 19 minu-tos do filme foram destruídos – um record mundial que o Guinness Book fixou. Faria de Almeida teve de remontar Catembe pois os cortes destruíram o sentido de sequências in-teiras. A primeira versão do filme, impossível de recuperar dada a destruição dos negativos a que foi sujeita – e que Faria de Almeida iludiu, em parte, guardando 11 minutos da película positivada –, foi remontada, resul-tando numa segunda versão, de 45 minutos, que a Comissão de Censura proibiu depois.

A censura e a proibição de Catembe não puseram em causa a ideia, de Pina, de se usar o cinema para promover o conheci-mento das colónias. Entre dezembro de 1965 e março de 1966, realizou-se um ciclo com filmes de temática ultramarina – mostrados quinzenalmente no Palácio Foz – incluído no programa da Comissão Ultramarina da

“A convivência racial é um tema francamente mal explorado. Não se poderá dizer que haja, a este respeito, imagens ‘muito conve-nientes’ mas também se desaproveita a oportunidade de mostrar imagens ‘convenientes’”

Joaquim Lopes Barbosa a filmar em Deixem--me ao Menos Subir às Palmeiras... (1972). © Colecção Joaquim Lopes Barbosa

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Liga dos Antigos Graduados da Mocidade Portuguesa, concebido por Pina (1966)6. Em O Ultramar e o Cinema, Pina, um insuspeito homem do regime, enunciou algumas con-clusões, ponto de partida para um colóquio realizado em abril de 1966:

“(…) De um modo geral, os documentários sobre o Ultramar reflectem um tom imediato de propaganda ou publicidade, ficando-se na superfície da vida ultramarina e servindo-se de textos literários quase sempre enfáticos, retóricos e sem valor cinematográfico. São filmes de ‘bilhete postal’, preocupados com as belas imagens e com uma visão apressada das coisas ultramarinas;

– A produção de filmes no Ultramar é escassa e sem a qualidade exigida (...), em que as próprias actualidades cinematográ-ficas ali produzidas poucas vezes reflectem o interesse da vida ultramarina portuguesa (Actualidades de Angola e Actualidades de Moçambique e Visor Moçambicano);

– A informação visual do Ultramar através dos jornais de actualidades metropolitanas nem sempre corresponde a uma autêntica documentação dos acontecimentos e factos mais significativos (...).”

Note-se ainda como Pina se refere a Catem-be – apesar de Faria de Almeida ter sido notificado, em fevereiro, pela Comissão de Censura, da proibição do filme. Escreveu:

“O cinema de fundo português só raras vezes conseguiu dar-nos uma visão estetica-mente válida e culturalmente séria da vida ultramarina, ficando-se fora desses casos no mero atractivo espectacular. Referimo-nos, mesmo tendo em conta defeitos artísticos, técnicos e erros de perspectiva, a Feitiço do Império, Chaimite e Catembe.

Catembe propôs-se ser um documentário ficcional composto por três histórias: a primeira relativa à cidade e seu urbanismo; a segunda, ‘uma reportagem de pesquisa, uma tentativa de conhecimento das pessoas, do seu modo de pensar, da atmosfera que torna típica a cidade de Lourenço Marques’, e a terceira, uma história poética de amor.”

O Ministério do Ultramar obrigou a supri-mir toda a parte ficcional, quis atenuar o contraste entre a pobreza de uns e a riqueza de outros. Finalmente, a Comissão de Censura proibiu a reportagem de pesquisa. O que fica, como lhe chama José de Matos--Cruz, é “o esqueleto invertebrado dum filme que se persegue... É enfim, raivosamente,

um desejo de cinema” (1985: 120).

Se Catembe era um desejo de cinema aponta-do ao olhar da Metrópole, outro caso, o de Deixem-me ao Menos Subir às Palmei-ras..., traduzia um desejo e o incitamento à revolta por via de um filme dirigido ao público negro. Também cineclubista, mas do Porto, Lopes Barbosa mudou-se, em 1969, para Luanda onde começou a fazer cinema amador. Instalou-se depois em Moçambique, como operador da produtora Filmlab.

Em Cinema Novo Português 1960-74, Matos--Cruz escreve que Deixem-me ao Menos Subir às Palmeiras…, único filme de ficção de Lopes Barbosa, surgiu da sua vontade de “transpor para o cinema uma temática e uma estética africanas”. “Monangamba”, do poeta angolano António Jacinto, que des-creve as duras condições de vida dos negros contratados, inspirou-o. Em Moçambique, a esta influência acrescentou-se a de “Dina”, publicado em Nós Matámos o Cão Tinhoso, de Luís Bernardo Honwana.

Por altura da realização, Lopes Barbosa deu a sua definição de cinema à revista Plateia, publicada em Lisboa a 8 de fevereiro de 1972, e algumas das sequências do filme ilustram a intenção declarada do autor:

“A 7.ª Arte é uma forma de expressão das realidades concretas, que sinto, e deviam chegar a todos, como uma espécie de murro no estômago. Actualmente, a definição que dou ao cinema é a de que deve ser uma frente de guerrilha, actuando o mais positivamente possível, contra os tabus, as morais duvidosas e os lugares-comuns bafientos e anacrónicos.”

No filme, como no livro de Honwana, mostra-se como, numa machamba, um capataz submete os contratados a trabalhos de cultivo que culminam, frequentemente, no colapso dos mais fracos. Um dia, o capataz viola Maria, filha de Madala. Incitado à revolta, Madala não só não reage, como aceita beber de uma garrafa de vinho oferecida, como reparação, pelo capataz. Sucumbe, porém, ao sofrimento físico e emocional, o que provoca a revolta dos outros trabalhadores.

As filmagens foram vigiadas pela Direção--Geral de Segurança (DGS), por quase todos os intervenientes serem negros, facto insólito no cinema português. Malangatana Valente – preso em 1966 por alegadas ligações à Frelimo – foi chamado à DGS e interrogado sobre o filme. O apoio do pintor “(...) foi decisivo para angariar todas as vontades pela parte do elenco negro e para a sua adesão ao filme. Através do seu empe-nho, tive a participação de actores, músicos, poetas e gente anónima (...), que deu o seu contributo desinteressado para que a sua realização fosse possível”7.

Lopes Barbosa assume que o filme se des-tinava ao público africano, ignorado pelos

produtores. Facilidade de compreensão e autenticidade eram os dois propósitos visa-dos quando escolheu o ronga como língua das personagens negras. Só nas sequências que retratam o poder colonial a língua é o inglês – o fazendeiro e a família falam inglês –, um expediente usado na monta-gem. Pretendia-se que a Censura não visasse a obra como uma crítica ao colonialismo português, sem que, com isso, se perdesse a ligação da mesma à realidade africana.

O realizador assume que, sem a revolta que introduziu no enredo, não fazia sentido a realização do filme: era a “actualização do momento histórico que se vivia na época e que Honwana deixara omisso”.

Quando o filme foi proibido – proibição informal, após o produtor Courinha Ramos mostrar a obra aos responsáveis locais pela Censura –, Lopes Barbosa foi despedido da Somar Filmes; em 1973, e temendo pela sua segurança, saiu de Moçambique. O filme es-treou no cinema S. Miguel, em Moçambique, ainda antes da independência, mas não teve estreia comercial em Portugal. O momento cinematográfico (e político) que se viveu nos anos seguintes à revolução não terá favoreci-do o interesse pelo filme, que só foi exibido na Cinemateca Portuguesa em 1985.

Deixem-me ao Menos Subir às Palmeiras... mostrou que o trabalho forçado continuava, muito depois do fim do Estatuto do Indigenato ou das culturas obrigatórias e que a teoria lusotropical de Gilberto Freyre, usada pelo regime para afirmar a multiculturalidade e a multirracialidade do “Portugal de Minho a Timor”, era pouco mais que um “fado tropical”. Revolucionários, antes do 25 de abril de

1974, insuficientemente revolucionários, depois. Casos de censura a “almas jovens” que nunca mais assinaram uma obra de fic-ção. Que não-lugar ocuparam estes filmes na história do cinema português durante décadas? O cinema só existe quando se projeta. Remeter a existência destes filmes para o arquivo – onde a degradação do ne-gativo e das cópias, únicas, foi prosseguin-do – fez parte de uma “política da memó-ria” que estamos a superar. O dispositivo de contrapor às imagens colocadas em campo, pela propaganda, o não-mostrado através do contracampo, revelado pelo cinema de autor no âmbito do Novo Cinema, que a Censura transformou num imenso fora de campo, revela hoje imagens fulgurantes do “homem (e da mulher) imaginado(a)” pelo cinema colonial do Estado Novo, mas também por um cinema militante, feito no contexto dos movimentos de libertação, que urge mostrar e questionar. Em causa está a compreensão de como é que o cinema foi determinado pelas políticas coloniais e como é que estas foram projetadas pelo cinema. É preciso olhar também, no âmbito dos projetos de criação de cinematografias nacionais dos países africanos de língua portuguesa, que representações foram dis-postas em contracampo às representações do colonialismo português? E, atualmente, como é que o cinema de autor e outras práticas artísticas que usam a imagem em movimento estão – ou não – a descolonizar o imaginário? O acesso, centralizado ainda em Portugal, ao acervo de filmes relativos ao colonialismo tem de ser, hoje, pensado como parte de um processo de conheci-mento dos países de língua portuguesa.

Joaquim Lopes Barbosa a filmar em Deixem--me ao Menos Subir às Palmeiras... (1972). © Colecção Joaquim Lopes Barbosa

notas1. Estão preservados: Costumes Primitivos dos Indí-genas em Moçambique (1929), Festejos em Lourenço Marques pela Passagem dos Territórios do Niassa para a Posse do Estado (1929), Guiné – Aspectos Industriais e Agricultura (1929), São Tomé Agrícola e Industrial (1929), Estradas e Paisagens de Angola (1929), Quedas do Dala (1930), Aspectos do Rio Quanza. Quedas do Lucala (1930), Planalto de Huíla (1931), Acção Colo-nizadora dos Portugueses (1932), De Lisboa a Luanda (1932), O Deserto de Angola (1932), Pesca da Baleia em Angola (1932) e Fazenda Açucareira “Tentativa” (1932), De Lisboa a São Tomé (1933). Alguns destes filmes e outros, mencionados, podem ser vistos em http://

www.cinemateca.pt/cinemateca-digital.aspx.2. Transfigurado em Secretariado Nacional da Informação (SNI) em 1944.3. Em 1959, o decreto foi reformulado (Decreto 42 660), mas, dado o primeiro ser mais descritivo, evidências apontam para a manutenção do de 1927 como referência normativa para os censores cinematográficos.4. A subjetividade das avaliações da Comissão de Censura foi reconhecida, em 1971, pelo então presidente, António Caetano de Carvalho: “(...) É evidente que, nas decisões tomadas por cada um, pesam sempre factores como a idade, a formação, a maneira de viver, a formação espiritual, as

predilecções, etc. Há, portanto, uma larga dose de subjectivismo nas decisões tomadas pela Comissão.”5. SNI, IGAC, cx. 674, proc. 27. Disponibilizado para consulta pública a partir de 2006.6. No catálogo publicado, as páginas não estão numeradas.7. Entrevista à autora, em agosto de 2010.

bibliografiaCAYOLLA, Júlio (1944), “A propaganda colonial como elemento de formação duma consciência impe-rial”, Boletim Geral das Colónias, n.º 228 – XX, 184; Cinema Novo Português 1960/1974 (1985), Lisboa, Cinemateca Portuguesa.

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filipa césar Transmission from The LiberaTed Zones

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Um filme não é uma telenovelajoão lopes

É bem verdade que o cinema por-tuguês e a crítica de cinema em Portugal possuem uma história

paralela, recheada de cumplicidades e equí-vocos. Como qualquer história do género, importa acrescentar. Afinal de contas, uma parte significativa da energia da geração do Cinema Novo confunde-se com uma prática de intervenção crítica de vários dos

seus protagonistas (Alberto Seixas Santos, António-Pedro Vasconcelos, etc.) que, desse modo, confirmavam também a sua filiação simbólica nos valores, efémeros mas essenciais, da Nova Vaga francesa.Podemos até considerar que o impacto de alguns títulos marcantes do Cinema Novo, como O Cerco (1970), de António da Cunha Telles, ou Uma Abelha na Chuva (1972), de Fernando Lopes, se confunde com o enquadramento desenhado pelos pensamentos críticos que acompanharam os respetivos lançamentos, independen-temente dos valores estatísticos das suas carreiras comerciais. Consolidou-se, então, uma base crítica que, com intervenções mais inspiradas ou menos elaboradas (não é isso que está em causa), foi capaz de gerar importantes espaços de reflexão

sobre o cinema e a partir do cinema. Num certo sentido, tudo isso terá desembocado no período efémero da revista Cinéfilo, em 1973-74, sob a direção de Fernando Lopes, tristemente desaparecida nas convulsões laborais e políticas do pós-25 de abril. Aliás, tudo isso passou também pela criação do Centro Português de Cinema e pelo valor simbólico do seu apoio a Manoel de Oliveira, permitindo-lhe realizar O Passado e o Presente (1972), na altura por muitos encarado como uma “derradeira” oportuni-dade para o cineasta que não assinava uma longa-metragem desde Acto da Primavera (1963).Se evoco, ainda que de modo esquemático, tais memórias, não é por mero impulso nos-tálgico. Acontece que, quando transpomos para 2016 as certezas e as dúvidas herdadas

v o z e S C r í t i C A S O Cerco (1970), António da Cunha Telles.

Coleção Cinemateca Portuguesa-Museu do

Cinema

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desse passado, o menos que se pode dizer é que não há maneira de encontrar qualquer equivalência estrutural, muito menos prática, no exercício da crítica de cinema. A fragilização da imprensa escrita (e o facto de termos passado a usar a expressão “im-prensa escrita” é bem revelador das nossas carências e derrotas) tem sido acompanhadado metódico e cruel triunfo de formas de intervenção em que a irresponsabilidade intelectual ou a miséria moral passaram a ser protegidas pela designação pueril,

as formas de pensamento crítico. Trata-se, isso sim, de compreender que o culto da provocação e do insulto, ou “apenas” de um narcisismo ignorante, passou a ser um fator de bloqueio a qualquer modelo de pensamento, esgotando-se, com inusitada satisfação, no número de polegares que consegue levantar nos circuitos “sociais” em rede.Tudo isto, convém não ignorá-lo, num contexto em que deixámos de ter uma massa consistente de consumidores de filmes (portugueses ou não). E não só, repare-se, porque os números correntes de frequência das salas, mesmo com uma ligeira subida em 2015, correspondem a cerca de um quarto ou um quinto desses mesmos números referentes às décadas de 60 ou 70 (a baixa foi de 60/70 milhões de espectadores/ano para cerca de 12/15 milhões), mas também porque, no plano simbólico, o facto-cinema perdeu o poder aglutinador das imagens e dos seus imagi-nários, substituído que foi pela omnipre-

Uma Abelha na Chuva (1971), Fernando Lopes. Coleção Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

sença anódina da televisão, cada vez mais sancionada, repetida e fragmentada através de dispositivos específicos da comunicação em rede.Não tenhamos ilusões: a crítica de cinema sempre foi, e sempre continuará a ser, uma prática minoritária. Mas uma coisa era, por exemplo, como aconteceu em meados dos anos 70, entrar num debate sobre os méritos que aproximavam ou separavam um Steven Spielberg e um George Lucas, outra, bem diferente, é lidar com uma massa de espectadores que a própria desagregação do parque tradicional das salas escuras empurrou para a condição rotineira e “obrigatória” de espectadores de telenovelas – todos os dias, em horário nobre. Que, em tal contexto, o cinema persista e, mais do que isso, continue a haver cidadãos seduzidos pelo cinema, eis o pequeno milagre. Em tal contexto de calamidade cultural, o trabalho da crítica é, a meu ver, um detalhe importante – mas não passa de um detalhe.

pomposa e agressiva, de “redes sociais”.O assunto é grave, não só porque, como é óbvio, excede o espaço específico da crítica e do próprio cinema – é uma cultura sem pensamento nem memória que se consagra em tais práticas –, mas também porque importa não enfrentar os maniqueísmos do presente gerando outros. Não se trata, de facto, de demonizar as matrizes da Net, muito menos de ignorar as admiráveis possibilidades de intervenção e circulação que as plataformas virtuais abriram a todas

Crítica e cinefilia – dos Cahiers amarelos à nova democracia digitalluÍs Mendonça

o facto de ser um dos fundadores e editores do site de cinema À pala de Walsh tem-me permitido sentir

o pulso dos tempos no que diz respeito à evolução da crítica e da cinefilia. Na própria génese dessa comunidade de jovens críticos e cineastas, está uma tentativa de conciliar o passado com o presente. Desde o começo que eu e os meus colegas definimos como prioritário o regresso a uma relação de gran-de proximidade, muito “velha guarda”, entre as pessoas envolvidas. No entanto, não fomos insensíveis ao poder que a Internet tem de desfazer fronteiras e disseminar o conhecimento. O que é, hoje, uma comu-nidade virtualmente infinita com fome do desconhecido era, ontem, aquilo que Louis Skorecki chora na sua série de filmes Les Cinéphiles, isto é, um fenómeno geogra-ficamente limitado, de bairro ou de café, e culturalmente circunscrito ao que as salas programavam e as revistas reportavam. Apesar de não haver nada de programático nesse sentido, a verdade é que, muito natu-ralmente, o cinema que fala a nossa língua passou a ocupar um lugar relevante na programação do site. Em vez de nos afastar do entorno, pelo contrário, a importância conferida ao cinema português contribuiu para que chegássemos, muito “glocalmente”, a essa tal audiência multinacional que tem a cinefilia como credo.

O Passado e o Presente (1972), Manoel de Oliveira. Coleção Cinemateca Portuguesa--Museu do Cinema

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O crítico cinéfilo é alguém que precisa de dar um sentido ao seu amor pelo cinema. E o resultado desse sentimento é, por norma, a necessidade de gerar uma comu-nidade. Esta comunidade pode ser uma equipa de rodagem que produza um filme, uma redação que componha uma revista ou um jornal, uma equipa de programa-dores que abra uma sala de cinema, não importa onde e como. Ver e criticar não como ações egoístas, inconsequentes, mas como uma atividade criadora, um modo apaixonado de partilha. A este propósito, importa citar Godard, que nunca separou

É famosa a distinção que Henri Langlois, o mítico fundador da Cinemateca Francesa, fazia entre o que definia como cinéphage e cinéphile: o primeiro é um colecionador acéfalo de filmes e de dados relacionados com o universo da Sétima Arte; o segundo é, pelo contrário, alguém que tem o cinema como uma forma de compreender a vida. “Amar o cinema é amar a vida, olhar verdadeiramente para esta janela sobre o universo”, explica Langlois no documen-tário Le Fantôme d’Henri Langlois. Por isso, em vez de se remeter à reunião acrítica de dados, o cinéfilo é alguém que vive através das imagens. E, quando digo vive, digo pensa e ama. Nem todos os críticos são cinéfilos, mas a aceção de crítica que mais se aproxima do ato criador deverá contem-plar a de cinefilia. Jean Douchet, um dos filhos mais brilhantes do efervescente contexto da cinefilia france-sa dos anos 50 e 60, define a crítica como um “ato de amor”. É importante sublinhar aqui as palavras “ato” e “amor”. No seu mais fa-moso texto, L’Art d’Aimer, escreve: “O próprio facto de sentir profundamente uma obra e, depois, propagar o seu entusiasmo constitui uma ação crítica, mesmo que ela seja apenas oral.”1 O sublinhado a itálico é meu e serve para, desde já, associar a paixão cinéfila com a crítica, e esta, desfazendo algumas ideias feitas, com uma forma de “ação”. Não estamos longe daquela que é, quanto a mim, a principal lição que se pode retirar do exemplo dado pela história dos “jovens turcos” dos Cahiers du Cinéma amarelos, que antes de, como se costuma dizer, “passarem à prática” ou “se porem em ação”, viveram intensamente o cinema através da adulação cinéfila aos seus autores que tinha lugar nos cafés, nos cineclubes e, “viveiro de todos os grupúsculos cinéfilos”!2, na Cinemateca Francesa. O equívoco permanece, mesmo quando é sabido que, de todas estas escolas cinéfilas e críticas, saíram os principais obreiros do cinema moderno, entre eles Jean-Luc Godard, François Truffaut, Éric Rohmer e Jacques Rivette.

as águas entre as funções de realizador e de crítico: “Escrever já era uma maneira de fazer filmes (...). Como crítico, eu tinha-me como cineasta. Hoje, ainda me penso como crítico (...).”3

Enquanto parte de uma comunidade crítica que não pensa de modo compartimentado, encaro as possibilidades abertas pela nova democracia digital como incentivos a este re-gresso à matriz cinéfila dos Cahiers amarelos. Se, na geração Cahiers, eram os cineclubes e a Cinemateca, na nova democracia digital são os fóruns de partilha de filmes (em ficheiros torrent ou em streaming); se outrora,

notas1. Douchet (2003): 23.2. Idem: 11.3. Godard (1986): 59.4. Entrevista consultável em: http://www.apaladewalsh.com/2013/11/mark-cousins-a-historia-convencional-do-cinema-e-racista-e-sexista/.

bibliografiaDOUCHET, Jean (2003), L’Art d’Aimer (2003), Paris, Cahiers du Cinéma (2.ª ed.).FREY, Mattias e SAYAD, Cecilia (2015), Film Criticism in the Digital Age, Nova Jérsia e Londres, Rutgers University Press (1.ª ed.).GODARD, Jean-Luc (1986), “Jean-Luc Godard: ‘From Critic to Filmmaker’: Godard in interview (extracts)”, in HILLIER, Jim, Cahiers du Cinéma: 1960-1968: New Wave, New Cinema, Reevaluating Hollywood, Cambridge, Harvard University Press (1.ª ed.).SHAMBU, Girish, The New Cinephilia (2015), Montreal, Caboose (1.ª ed.).

nesses tempos áureos do amor cinéfilo, eram as revistas e fanzines cinéfilas, hoje são os sites, blogues e tumblrs; se antes se colecio-navam postais e recortes de jornal com as estrelas favoritas, hoje reúnem-se imagens gif que redimem o movimento e o sentido de duração próprios do cinema. Todas estas ferramentas vêm também trazer uma outra “intensidade de luz” a cinematografias menos conhecidas, onde se inclui, destaca-damente, a portuguesa. O sonho clássico do cinéfilo realiza-se neste aspeto: o cinema de todo o mundo à distância de um clique.Ao mesmo tempo, hoje prolifera a forma do ensaio audiovisual digital. Mark Cousins, realizador do documentário The Story of Film: An Odyssey, falou-me em entrevista para o À pala de Walsh sobre as virtualidades inerentes à possibilidade, que hoje assiste à crítica, de pôr o cinema a ensinar cinema: “(...) é isso que nós, críticos, queremos: ser-mos o mais intelectual, criativa e poetica-mente livres que possamos ser”4. Esta maior abertura da crítica põe em andamento uma práxis contida em potência nos escritos dos primeiros cinéfilos da geração Cahiers ama-relos: não tanto que, para se fazer cinema, se tenha de trocar a máquina de escrever pela máquina de filmar, mas com vista a que a máquina de escrever devenha finalmente máquina de filmar. De facto, o processo criativo não é uma rua de sentido único.

cólico, que já antecipava o conflito social e pós-colonial refletido no cinema português contemporâneo e que tanto nos encanta. Então, com entusiasmo, pedimos Mudar de Vida e Os Verdes Anos à Cinemateca Portuguesa, para os apresentarmos na nossa secção Clássicos Restaurados.Em maio do ano passado, no Festival de Cannes, estrearam-se as três partes de As Mil e Uma Noites. O filme foi uma das sensações do Festival, programado na Quinzena dos Realizadores e não na competição oficial. (…) Fascina-nos o cinema do Miguel Gomes. Essa tensão entre falar sobre o mundo e contá-lo de maneira bela com todas as ferramentas da ficção; esse talento do inesperado, do espirituoso, do sagaz. Aí mesmo em Cannes, convidá-mos o Miguel Gomes e o Luís Urbano (…) para uma retrospetiva completa no México. Sucede, ademais, que João Nicolau filmou John From, um filme tão fresco, tão nítido, que encaixava perfeitamente na nossa competição internacional. (…)Pois bem, podem estar certos de que a nossa intenção nesta edição do Festival não é sinalizar Portugal. A coincidência de dar este destaque a Portugal resultou do natural exercício de pesquisa, da busca, que requer a programação, apaixonante de per si, e verão como é emocionante” (Eva Sangiorgi, Diario, FICUNAM 2016).

Razões porventura diferentes das consta-tadas pelos programadores do FICUNAM, mas semelhantes na coincidência do foco de interesse, terão tido os diversos progra-madores da Berlinale ao selecionarem, em 2016 , um número importante de filmes portugueses (8) para as várias secções do festival, destacando-se aqui uma longa--metragem na competição (Cartas da Guerra, de Ivo Ferreira) e duas curtas-metragens na competição (Balada de Um Batráquio, de Leonor Teles, Urso de Ouro, e Freud and Friends, de Gabriel Abrantes.Não podemos deixar de constatar que a trajetória de sucesso dos nossos filmes

Cinema português – como aproveitar as oportunidades de internacionali-zação?luÍs urbano

Porque será que o nosso cinema é tão reconhecido além-fronteiras? Não me proponho aprofundar em

demasia sobre as razões disto, mas acho ilustrativo o texto de apresentação da edição deste ano do FICUNAM (Festival Internacional de Cinema da Universidade Nacional Autónoma de México), da autoria de Eva Sangiorgi, curadora e diretora do Festival, no qual esclarece o público do festival que o protagonismo dado a Portugal pelo festival “não foi de propósito”. Assim, com a devida autorização da autora, aqui vai um excerto:

“Não foi de propósito. (…) Inauguramos o Festival com um voto de amor à vida e ao cinema, presente que o mestre Manoel de Oliveira deixou com Visita ou Memórias e Confissões (…). Pareceu-nos também que a introdução mais ajustada para este filme do mestre seria acompanhá-lo da estupenda curta-metragem de Manoel Mozos, A Glória de Fazer Cinema em Portugal, um filme tremendamente irónico e brincalhão e, ao mesmo tempo, uma despedida de realizador para realizador, inspirada pelo mesmo amor ao ofício e à causa do Cinema.Na sua visita, no ano passado, Pedro Costa falou-nos das cópias recentemente restau-radas (…) de dois filmes de Paulo Rocha. Talvez não se conheça o suficiente do legado daquele Cinema Novo, elegante e melan-

Capa de Cahiers du Cinéma, n.º 133, 1962.

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não é circunstancial ao exemplo de Berlim e do México e, concretamente, a este arranque de ano. Ela vem de trás e tenderá a continuar caso não se alterem as regras que enquadram a atribuição dos apoios públicos ao Cinema. Portugal é um país pequeno e, por isso, desenvolveu um cinema que custa pouco dinheiro e que não está, nem poderá estar, assente numa lógica industrial. Temos um mercado muito pequeno que não tem, nem nunca terá, dimensão para sustentar uma in-dústria de cinema (ideia mirífica que, por vezes, assalta o espírito de alguns decisores políticos e protagonistas deste sector). Esquecendo essa ideia, temos de usufruir dos privilégios de ser pequenos e poder fazer um cinema livre das formatações de uma indústria, até porque, constatamos, este cinema funciona. A forma criativa, singular e livre como fazemos cinema é a nossa grande vantagem. É o olhar livre que os nossos criadores têm sobre a

sua contemporaneidade que suscita um enorme interesse internacional no Cinema português.Temos que saber aproveitar isto e apostar na internacionalização, através da coprodução com países europeus e com o Brasil. Nos últimos anos, os filmes portugueses que mais se internacionalizaram foram realizados no âmbito de coproduções internacionais; os filmes de Manoel de Oliveira, do Pedro Costa, do Miguel Gomes e do João Pedro Rodrigues são exemplo disso. Tabu, de Miguel Gomes, foi coproduzido com três países (Alemanha, Brasil e França) e teve, desde a fase de projeto, um distribuidor internacional. A coprodução possibilitou financiar o orçamento (1,5 milhões de euros) do filme em cerca de 50%. O filme esteve na competição de Berlim em 2012, ganhou dois prémios e foi vendido para mais de 45 países,o que possibilitou que o filme tenha sido visto por mais de 600

mil pessoas nas suas exibições em sala de cinema. Um filme que a indústria mundial rotulou de “arte e ensaio” ou “art house”, Tabu continua ainda hoje a ser exibido em festivais e a multiplicar a sua difusão em televisão, plataformas digitais e home video, um pouco por todo o mundo. Teve o sucesso que teve e, logo a seguir, o realizador trabalhou a trilogia As Mil e Uma Noites, uma coprodução com três países (França, Alemanha e Suíça), com um orçamento de 3,9 milhões de euros, financiado em 70% por investimento estrangeiro. Acresce ainda o mais recente, Cartas da Guerra, do Ivo Ferreira, que também chegou à competição de Berlim com uma coprodução que se concretizou na fase de pós-produção. São prova de que é possível internacionalizar o cinema português a partir das características que lhe são intrínsecas: um cinema de autor. É preciso também que o país saiba aproveitar o sucesso internacional que o

cinema português está a ter. A montante do processo, há que reforçar os mecanismos de fomento da coprodução, atualizando e modernizando os acordos bilaterais de coprodução que existem com outros países, estabelecendo acordos com outros países (Suíça, por exemplo) e ter uma postura mais dinâmica nas estruturas internacionais, como o Eurimages do Conselho da Europa e o programa Ibermedia. Têm de se rever e melhorar vários aspetos dos programas de apoio

à distribuição internacional de filmes portugueses. Por exemplo, implementar uma linha direta de apoio a distribuidores internacionais, à semelhança do que acontece em França e no Brasil, torna mais atrativo o envolvimento dos vendedores internacionais.Estrategicamente, o país deveria articular melhor a política de internacionalização da cultura com a política de negócios estran-geiros e de exportações. Veja-se o alcance que o cinema português tem no estrangeiro

e como nessa “boleia” se pode articular de forma sóbria e eficaz um conjunto de ações de promoção da nossa cultura e da nossa língua, atraindo aqui, também, o investimento das nossas indústrias expor-tadoras, por exemplo. Não se justificarão já, em alguns países, iniciativas regulares de promoção da nosso cinema como um festival de cinema português? Isto dá uma imagem forte do país, que produzirá seguramente benefícios e não será assim tão dispendioso.

Cartas da Guerra (2016), ivo M. Ferreira. © O Som e a Fúria

Tabu (2012), Miguel Gomes. © O Som e a Fúria

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vale Abraão (1993) de Manoel de Oliveira foi o primeiro filme português que vi, na derradeira

noite da sua breve e exclusiva exibição em solo norte-americano, numa sala de cinema em Manhattan que, aliás, fechou as portas, passado pouco tempo. As memórias mais fortes que retenho deste filme, ainda tão significativo para mim, coincidem com a lembrança do meu entusiasmo ao descobrir um mundo novo – um cinema impossível de comparar com qualquer outro que conhecera até então. Vale Abraão foi um dos primeiros filmes a inspirar-me verdadeiramente como cinéfilo, a despertar dentro de mim o desejo ardente de explorar o vasto terreno do cinema que se abria de modo dramático diante de mim e a ver o máximo possível. Mas essa excitação foi ensombrada por uma tristeza incrédula ao descobrir, pouco tempo depois, que o berço deste cinema, onde prometera a mim próprio voltar, encerrara repentinamente. À medida que avaliava o quanto já tinha perdido de cinema, sentia-me tomado por uma ansiedade melancólica, simbolizada pelo cinema encerrado. Quantas exibições fugidias de filmes raros já me tinham escapado? Quantas salas lendárias de cinema que eu jamais visitara tinham encerrado? Tão pouco eu sabia, tão pouco eu tinha vivido. Foi então que descobri algo em que ainda hoje acredito, que a cinefilia

é uma vocação marcada, simultaneamente, pela melancolia e pelo êxtase, tanto uma espécie de mágoa quanto um abraço alegre e festivo do mundo que existe dentro e fora da tela de cinema. Em retrospetiva, compreendo que muitas das qualidades que me suscitaram mais admiração no filme de Oliveira são partilha-das, não só pelas suas obras maiores, mas também pelos mais importantes filmes e cineastas portugueses. De facto, creio que Vale Abraão cristaliza num único filme a

notável singularidade do moderno cinema português e que as abordagens inovadoras em termos de imagem e narrativa ancoradas nos filmes de Oliveira se refletem nas principais obras do cinema português até aos nossos dias. Vou, portanto, citar três das mais proeminentes qualidades consignadas no notável filme de Oliveira:

uma radical equação do cinema com as outras artes Embora Vale Abraão esteja repleto de referências claras à pintura ocidental – de Cézanne a Vuillard e a Bruegel –, é essencialmente a Literatura que Oliveira envolve num diálogo extenso e fascinante, através da introdução de um narrador em voz-off, presença destacada mas ainda assim profundamente envolvida, por vezes ambígua, e ainda através do pedido do

Lições do cinema português

haden guest

Vale Abraão (1993), Manoel de Oliveira. © Lusomundo

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manoel de Oliveira foi uma das fi-guras mais brilhantes da cultura portuguesa e do cinema mundial,

mantendo-se ativo até ao último momento. Ele costumava brincar acerca da sua longe-vidade, que lhe permitiu realizar mais de 60 filmes: “Deus esqueceu-se de mim.” Não parece coincidência que tenha encerrado a sua obra fiel à ironia que caracteriza os seus filmes com o projeto de filmar A Igreja do Diabo, baseado em Machado de Assis. Em dezembro de 2014, mês do seu último aniversário, lançou o derradeiro filme que realizara, em cadeira de rodas, em frente à sua casa, O Velho do Restelo (2014). No próprio dia do aniversário fora, mais uma vez, homenageado pela sua obra e pela sua carreira “fora do comum” com as insígnias de Grande Oficial da Legião de Honra, a mais alta condecoração da República Francesa. Muito admirado em França mas também no Brasil, recebeu inúmeros prémios pelo conjunto da sua extensa obra: na Bienal de Veneza em 2004, no Festival de Cannes em 2008 e na Berlinale em 2009, entre inúmeros outros palmarés. Oliveira será lembrado como o “mestre” do cinema português, apelido carinhoso,mas também de um respeito temoroso. perante a sua cinematografia indisciplinar, heterodoxa, esteticamente desafiadora e politicamente inquieta. Dedicou a sua vida aos grandes temas de Portugal e da Humanidade, interrogando mitos, tiranias e paradoxos. No primeiro e curto documentário Douro, Faina Fluvial (1931), aplaudido pela imprensa internacional e vaiado pela nacional – seu fado ao longo de quase toda a carreira –, já demonstrava uma sensibilidade particular para as contradições da condição humana. O olhar acerca do descompasso entre tradição e industrialização na sua cidade natal, o Porto, por meio de uma montagem eiseinsteiniana, revelava uma atenção incomum para o lado humano, conjugando uma linguagem modernista com uma preocupação perene. O escrutínio dos jogos de poder (desde Aniki-Bóbó, 1942, até a O Quinto Império,

2004), das hipocrisias humanas, sobretudo da alta burguesia portuguesa (desde O Pas-sado e o Presente, 1972, até Singularidades de Uma Rapariga Loura, 2009), de um mundo abandonando os valores cristãos (desde Acto da Primavera, 1963, até Espelho Mágico, 2005), da glorificação da história colonial (a partir de Le Soulier de Satin, 1985, até O Velho do Restelo, 2014), das ambiguidades da alma humana e suas obsessões com o outro (desde Francisca, 1981, até O Estranho Caso de Angélica, 2010) eram as suas preocupações principais. A investigação da condição humana através dos conceitos-chave da ética cristã – o pecado e a redenção – e o desenvolvimento de uma estética que questiona a capacidade do cinema de representar qualquer verdade levaram Manoel de Oliveira a incorporar problemas nacionais relacionados com o autoritarismo, antes e depois da ditadura salazarista. Dedicou-se, mais tarde, a questões supranacionais, nomeadamente depois da adesão económica de Portugal à Comunidade Europeia, através de uma postura crítica perante o seu imperialismo. Inquietações transnacionais surgiram por meio do questionamento da vã glória de

mandar do Império português, mas também – e de forma controversa – no destaque da importância dos seus Descobrimentos e do seu legado supostamente humanista. Foi politicamente atento ao comentar, em diversos filmes, a globalização e a nova ordem que dela resultou. No entanto, os mais extraordinários filmes de Oliveira são cer-tamente aqueles nos quais o cineasta segue sem preocupações geopolíticas o seu método universalista, que surge da tentativa de equacionar o pecado e a redenção do homem no mundo moderno, seja no seu próprio país ou, de forma mais particular, no Porto e na região do Douro, seja de forma mais alegóri-ca e abstrata no contexto mundial. O cineasta demorou a conquistar a continui-dade e a complexidade da sua obra, tanto na produção quanto no interesse público. De facto, deu admirável visibilidade ao cinema português a nível internacional através dos inúmeros prêmios que ganhou desde os anos setenta. Quando completou 100 anos de idade, começou a receber, finalmente, a atenção nacional merecida. Devido à Ditadura, Oliveira esteve longos períodos sem filmar, entre 1942 e 1956 e, no-vamente, entre 1965 e 1972. A partir de 1979, realizou um filme por ano. Os períodos de reflexão fizeram dele um dos cineastas mais conscientes do seu ofício, um profundo pen-sador acerca da arte de filmar – feito este que merecerá ainda muitos estudos. Isto resultou em estéticas que não devem ser confundidas com um estilo específico. De facto, em cada filme, ele procurava uma solução diferente, mesmo que os famosos planos longos e fixos, a relação intrínseca entre ator e personagem e o forte diálogo com todas as artes – música, pintura, escultura e, sobretudo, literatura – sejam frequentes. As adaptações literárias e de biografias dos grandes vultos da literatura portuguesa – Eça de Queirós, Padre António Vieira, José Régio, Camilo Castelo Branco e Agustina Bessa-Luís – são comentários eruditos e inventivos acerca do papel da cultura e da condição humana. Com a sua morte, ao lado de Camões e Fernando Pessoa, foi preenchida mais uma vaga no panteão da cultura nacional e mundial.

O cineasta indisciplinar

de Deuscarolin overhoff ferreira

Lisbon Story (1994), Wim Wenders. © Paulo Branco e Leopardo Filmes

realizador a Agustina Bessa-Luís para fazer uma adaptação livre de Flaubert para que, então, ele conseguisse transformar em filme a visão da escritora. Uma visão dupla que é, em simultâneo, incisivamente feminista e, à maneira de Oliveira, politicamente mordaz mas cuidadosamente obscura. Essa ambi-guidade conduz à segunda qualidade.

uma forma subversiva de crítica política Vale Abraão deleita-se na beleza e na sensualidade que impregnam todo o filme – as paisagens luxuriantes e os diálogos lentos e sinuosos, as texturas e os aromas das salas repletas de sol, os adereços dourados de riqueza e poder, o brilho assombroso no olhar da protagonista, Leonor Silveira. Todavia, muito subtilmente, o filme consegue manter esta beleza a uma distân-cia crítica, como se se tratasse de uma força estranha, até anormal, que, de algum modo, se vira contra a suave assimetria que é típica da Natureza. À semelhança das vinhas circundantes, também o estrato social há muito dominante, nutrido por anos de salazarismo, cresceu torcido e absorvido em si próprio, incapaz de provar mais do que os frutos das suas próprias terras.

um fascínio pela história e pela mitologia portuguesas A evocação do plano bíblico no título de Vale Abraão aponta imediatamente para uma radical exploração de Oliveira rela-

tivamente aos grandes temas da história portuguesa, através da complexidade da lente refrativa do mito e da lenda. Há uma atração constante de Oliveira por temas essencialmente portugueses – desde o colonialismo e a Inquisição à vinicultura e a escritores como Camilo Castelo Branco e José Régio. A tentativa de Oliveira consiste em mergulhar profundamente nessas experiências históricas, nessas memórias e fantasias partilhadas e profundamente enraizadas na psique portuguesa. Assim, os seus filmes evocam repetidamente a ceguei-ra teimosa e a chama trémula da devoção religiosa, o sonho vanglorioso do Império, a utopia falsa e decadente, com as mãos manchadas de sangue e a sombra espessa de uma culpa cada vez mais obscura.Como diretor do Harvard Film Archive e curador do programa da sua cinemateca, tenho conseguido desenvolver a minha ainda fervorosa paixão pelo cinema portu-guês através da organização de retrospetivas anuais de grandes cineastas, desde Oliveira (durante o seu 100.º aniversário) e João César Monteiro a Pedro Costa, passando por cineastas mais jovens, como Miguel Gomes, João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Matta, os quais, à semelhança de Costa, visitaram Harvard para apresentar e debater a sua obra. As qualidades acima enumeradas, que identifiquei em Vale Abraão, são adotadas e desenvolvidas por estes cineastas que partilham uma outra

qualidade importante – um conhecimento profundo e penetrante da história do cine-ma, uma consciência cinéfila que anima os filmes de Costa com os fantasmas de John Ford e Raoul Walsh, em que as sombras de Fantomas se fundem com o cinema noturno de Rodrigues, e injeta uma irreverência excêntrica (mais Jerry Lewis e Keaton do que Chaplin ou Jacques Tati), seja nos filmes de João César Monteiro ou nos de Miguel Gomes. Recentemente, tive a oportunidade de organizar em cocuradoria um ciclo de doze sessões de programas para o Museu Gulbenkian em Lisboa, que se traduziram numa série de conversas de fim de semana entre cineastas portugueses e cineastas consagrados de todo o mundo. Esses diálogos foram esclarecedores pelo facto de, gradualmente, me terem revelado a árvore de família mais alargada que liga entre si os realizadores portugueses – na maioria das vezes, com um parentesco mais distante do que direto – enquanto artistas que exploram temas afins, mas através de meios radicalmente diferentes. Podemos argumentar que esta unidade maravilho-samente desconexa constitui o ponto mais forte do cinema português. E aqui vejo confirmadas, uma vez mais, as revelações descobertas em Vale Abraão, de Oliveira, a minha primeira viagem ao vasto continente traçado pela imaginação cinematográfica de Portugal.

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nando Silva (a viver, na altura, em Portugal e no Brasil). Este filme é, pois, a primeira longa-metragem de ficção depois destes anos de estiagem na produção cinematográ-fica moçambicana. Ela tem por base uma coprodução com a Cinemate Moçambique (locadora de equipamentos de iluminação e serviços de apoio à produção), que havia acabado de se instalar em Moçambique. A partir dessa altura e uma vez recuperada alguma capacidade técnica (gerador, equipamento de iluminação e maquinaria, acessórios, etc.) e de algum trabalho de formação que permitiu o surgimento de um pequeno grupo de novos técnicos (uma vez que parte dos técnicos existentes já estava empregada em outras atividades e/ou com outras fontes de rendimento), recomeça uma produção mais regular de cinema, com a realização de coproduções entre Portugal e Moçambique.Estas produções foram sempre patrocinadas a partir de projetos financiados por Portugal através do fundo de apoio à produção com os PALOP, mas também de auxílios diretos recebidos pelos realizadores portugueses que optaram por desenvolver esses projetos em Moçambique. Foi assim que alguns realizadores moçambicanos viram os seus projetos tornar-se realidade. Por outro lado, vários técnicos puderam encontrar um espa-ço para aplicarem a sua arte e desenvolve-rem a sua capacidade. O apoio do Instituto

à produção, os orçamentos não chegam para as necessidades. Estes processos de produção, num país que ainda não tem todas as condições para a rodagem de grandes produções, obrigam sempre à inovação e ao desenvolvimento de soluções “locais” para problemas com a decoração, figurinos, maquilhagem, iluminação, efeitos especiais e visuais, por exemplo. A busca destas soluções desenvolve na equipa um sentimento especial e uma relação que vai sempre para além do processo de produção, constituindo-se a partir daí fortes ligações entre os técnicos e os atores, entre a equipa de produção e a comunidade onde o filme é rodado. Estas relações perduram no tempo e transformam-se em verdadeiros corredores culturais, ligando pessoas e países, tornando todos os intervenientes em verdadeiros embaixadores culturais. O investimento que Portugal faz nestas coproduções deixa muito mais frutos do que apenas um filme. Produzem amizades, trocas, amor, retraem barreiras, formam técnicos e abrem portas. Precisamos de conseguir que também produzam receita e promovam estrelas e valores nacionais. Precisamos de desenvolver, em simultâneo, um sistema de distribuição e de marketing para que possamos, assim, fechar esta cadeia de valor e, um dia, transformar esta experiência numa verdadeira indústria cultural.

Português de Cinema (agora ICA) permitiu também que realizadores portugueses como Fernando Silva, Fernando Vendrel, Margarida Cardoso, José Carlos Oliveira, Teresa Pratas, Miguel Gomes, o angolano Zézé Gâmboa e o guineense Flora Gomes (isto apenas para falar de longas-metragens de ficção) pudessem realizar os seus filmes em Moçambique.Todas estas obras foram estreadas em Moçambique; porém, a sua exibição limitou-se, na estrondosa maioria das vezes, a um número reduzido de sessões na capital, sendo poucas as exceções. Se, por um lado, existe todo este esforço no investimento à produção, quase nenhum, ou nenhum, esforço se verifica na promoção e distribuição dos filmes. Esta situação não é um exclusivo dos PALOP; mesmo em Portugal, muitos dos filmes nacionais que estreiam têm pouca presença nas salas, mesmo quando vendem bilhetes. No que diz respeito à estética e ao modelo de produção destas obras, podemos verificar que cada uma delas é quase um elemento único. As condições em que se rodam são tão díspares que fazem delas quase modelos únicos de produção. Maioritariamente roda-das nas proximidades da cidade de Maputo, onde uma estrutura de apoio é facilmente identificada, algumas são rodadas no interior, onde as dificuldades são imensas. Apesar do esforço feito no investimento

A decisão política da criação do Instituto Nacional de Cinema (INC), tomada pelo primeiro

Governo moçambicano presidido por Samora Machel, transformou Moçambique na ex-colónia portuguesa que mais uso fez do cinema no período pós-independência. Dependendo o INC do Ministério da Infor-mação, a sua principal produção, até 1992, foi o Kuxa-Kanema (um newsreel – Jornal de Actualidades Cinematográfico), rodado em 16mm a preto e branco e exibido em 35mm nas diversas salas de cinema espalhadas pelo país. Este processo de exibição era também apoiado pelo Cinema Móvel, uma Unidade do INC que exibia estes informativos nas zonas mais recônditas do país, sempre acompanhados por equipas de produção que iam recolhendo imagens e histórias de resistência e de vitórias do regime. O INC, para cumprir com estes objetivos de produção, desenvolveu capacidade própria através da formação de técnicos nacionais, juntando alguns cineastas, escritores, fotógrafos e jornalistas que viviam em Moçambique e/ou regressados do exílio a outros sem qualquer experiência de trabalho em cinema e, ainda, a diversos profissionais oriundos de países como Cuba, Jugoslávia e RDA (só para citar alguns como exemplos). Esta experimentação coletiva, motivada pelos princípios de formação do Homem

A coprodução cinematográfica

de língua portuguesa em Moçambique

joão ribeiro

longa-metragem de ficção em regime de coprodução com a Jugoslávia, o filme O Tempo dos Leopardos (1985) realizado por Zdravko Velimirovic. Depois desta expe-riência, o INC produziu ainda a primeira longa-metragem realizada por um mo-çambicano no pós-independência, O Vento Sopra do Norte (1987), do decano do cinema moçambicano, José Cardoso. Fizeram-se também uma coprodução com a França para o filme A Colheita do Diabo (1988), de Licínio Azevedo, e o filme A Criança do Sul (1991), de Sérgio Resende, um telefilme em coprodução com a Inglaterra. O interesse do Estado pelo cinema decaiu com o início do projeto de televisão, a abertura a uma economia de mercado livre, o incêndio nas instalações do INC e a abertura política que permitiu o surgimento do jornalismo independente. Este novo ali-nhamento de interesses e a sucessão destes acontecimentos fizeram cair por completo a produção cinematográfica existente. Durante alguns anos e apesar da produção de alguns documentários comissionados e outros produzidos para diversos canais estrangeiros pelas novas empresas de produção independentes formadas por trabalhadores que saíram do INC por falta de enquadramento e/ou de atividade, não se produziu “cinema”, até que se rodou em Mo-çambique, em 1997, A Tempestade da Terra, uma produção portuguesa realizada por Fer-

João Ribeiro na rodagem do filme O Último Voo do Flamingo (2010). Marracuene, Moçambique

Novo e da promoção dos valores socialistas e da independência, evolui da produção deste Jornal de Actualidades (uma importan-te escola de formação para os técnicos do sector) para a produção de documentários e, mais tarde, para a produção da primeira

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Page 47: Editorial - Instituto Camõescvc.instituto-camoes.pt/dmdocuments/camoes24.pdf · ana paula laborinho Cinema português em perspetiva abÍlio hernandez e Margarida cardoso Diálogo

Rodagem do filme O Último Voo do Flamingo (2010). Marracuene, Moçambique

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notas biográficasresuMos abstracts

Palmeiras..., assumia uma estética e uma temática africanas, propondo-se como filme de incitamento à revolta por parte do público africano ao qual foi dirigido, sem que, no entanto, pudesse ser estreado.

EMPiRE CinEMA – PROPAGAnDA AnD CEnSORSHiP DuRinG THE ESTADO nOVO

Maria do Carmo Piçarra

Propaganda was the reason why a film camera made its way to Portugal’s ex-colonies as early as 1909; however, only the authoritarian Estado Novo regime would be the one to systema-tically invest in film propaganda via cinematographic missions sent to Africa. Documentaries and newsreels showcased the economy of overseas territories, in addition to aspects of culture and lands-cape. From the 1940s onward, fictional, feature-length films attempted to show Feitiço do Império (The Empire’s spell) and, through Chaimite, praise important figures from Portuguese colonial history. If film production conformed to the “política do Espírito” (the regime’s cul-tural policy) via a combination of state funding and the work of the Censorship Committee, the dawn of Portuguese Novo Cinema (New Cinema) provided a new perspective on colonial reality. It did so in such a way that the Overseas Minis-try was asked to have its say on Catembe – Sete Dias na Vida de Lourenço Marques. The 103 cuts made, the film’s re-editing and a sad entry in the Guinness Book of Records made those assembled under the banner of Novo Cinema extra cautious. Meanwhile, a unique work, Deixem-me ao Menos Subir às Palmeiras..., boasted an African theme and aesthetics, inciting its intended African audience to rise up. The film, however, was never released.

TRAnSMiSSiOn FROM THE LiBERATED ZOnES

Filipa César

Transmission from the Liberated Zones é uma experiência que junta documentos

VAi E VEM – A inTERnACiOnALiZA-çãO DO CinEMA PORTuGuÊS

Paulo Cunha

O desejo de internacionalização nasceu com o próprio cinema português. Desde Aurélio da Paz dos Reis, o “pai” do cinema português, a internacionaliza-ção tem sido uma vontade, uma ambição ou uma necessidade para o cinema português, tanto para a sua expansão como para a sua sobrevivência. O objetivo deste breve texto é fazer uma panorâmica retrospetiva das principais es-tratégias de internacionalização tentadas ao longo da história do cinema português, propondo uma reflexão sobre os diferentes contextos em que foram esboçadas.

BACK AnD FORTH – THE inTERnATiO-nALiSATiOn OF PORTuGuESE CinEMA

Paulo Cunha

The seeds of internationalisation can be found in Portuguese cinema itself. Ever since Aurélio da Paz dos Reis, the “godfa-ther” of Portuguese cinema, internationa-lisation has been a desire, an ambition or a necessity for Portuguese cinema, for both its expansion and survival. The aim of this brief text is to give a retrospective overview of the main internationalisation strategies throughout the history of Portuguese cinema, reflecting on the different contexts within which they were formulated.

CinEMA/HiSTÓRiA: O CinEMA COMO HiSTORiADOR DO SÉCuLO XX PORTuGuÊS

Tiago Baptista

Nos últimos dez anos, verificou-se uma multiplicação de filmes portugueses feitos com recurso parcial ou total a imagens de arquivo como, por exemplo, Kuxa Kanema: O Nascimento do Cinema (Margarida Cardoso, 2003), Natureza Morta (Susana de Sousa Dias, 2005), Fantasia Lusitana (João Canijo, 2010) ou Linha Vermelha (José Filipe Costa, 2012).Estes filmes tiram partido da grande

archive footage in the above-mentioned films is not done in order to illustrate previously defined historiographical arguments. On the contrary, the formal strategies of these films expand the me-thods and interpretations of traditional (written) historiography, while offering a critical perspective on the role cinema plays in these historical processes.Using detailed analyses of Cardoso, Sousa Dias, Canijo and Costa’s films, this article suggests that the specific genre of films with archive footage can be seen as an important alternative to historiographical knowledge of the past.

O iMPÉRiO nA MEMÓRiA DO CinEMA – uMA PERMAnÊnCiA SEM ABRiL (1940-2015)

Jorge Seabra

O Império e as suas memórias tem sido um dos temas mais insistentemente abor-dados pela ficção cinematográfica desde 1940, data em que surgiu a primeira obra, estimando-se a produção média de uma longa-metragem por ano nos 75 anos que, entretanto, decorreram até 2015, onde podemos encontrar realizadores clássicos ou atuais do cinema português, como António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros, Jorge Brum do Canto, Manoel de Oliveira, Paulo Rocha, António-Pedro Vasconcelos, João Botelho, Joaquim Leitão, Margarida Cardoso, Miguel Gomes ou Pedro Costa. Este ensaio apresenta uma visão global sobre toda a ficção realizada, optando por destacar o que aproxima a generalidade dos filmes, desenvolvendo para o efeito uma análise transversal, que consiste na leitura, luminosa ou sombria, da memória do Im-pério, concluindo ainda pela necessidade de a investigação filmográfica desenvolver um novo discurso sobre o assunto.

THE EMPiRE in CinEMA PASTAn APRiL-LESS COnSTAnT (1940-2015)

Jorge Seabra

The Empire and its memories has been one of the most popular themes of cinema

fiction since 1940, when the first film was made, with an estimated average of one feature-length film produced annually in the 75 years that have elapsed since. In that period, we find both classic and con-temporary film directors, such as António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros, Jorge Brum do Canto, Manoel de Oliveira, Paulo Rocha, António-Pedro Vasconcelos, João Botelho, Joaquim Leitão, Margarida Cardoso, Miguel Gomes and Pedro Costa.This essay offers an overview of this entire fictional body of work, choosing to highlight what most of it has in common, thus developing a transversal analysis that involves interpreting, be it positively or negatively, the memory of the empire, as well as concluding that there is a need for filmographic research to develop a new discourse on the issue.

CinEMA iMPÉRiO – PROPAGAnDA E CEnSuRA nO ESTADO nOVO

Maria do Carmo Piçarra

Foi a propaganda a levar a câmara de fil-mar para as ex-colónias portuguesas, logo em 1909. Porém, só o Estado Novo veio a investir sistematicamente na propaganda, por via do cinema, através de missões cinematográficas enviadas a África. Docu-mentários e atualidades cinematográficas dedicaram-se a mostrar a economia dos territórios de além-mar e alguns aspetos culturais e da paisagem. A partir da década de 40, uma produção de longas-metragens de ficção quis revelar o Feitiço do Império e, através de Chaimite, enaltecer figuras de relevo da história do colonialismo português. Se a conformação da produção cinematográfica à “política do Espírito” foi feita através dos apoios estatais aos filmes em articulação com a atividade da Comissão de Censura, a alvorada do Novo Cinema português impôs um novo olhar sobre a realidade nas colónias. Fê-lo com tal vibração que o Ministério do Ultramar foi chamado a opinar sobre Catembe – Sete Dias na Vida de Lourenço Marques. Os 103 cortes impostos, a remontagem do filme e um triste recorde do Guiness tornaram os autores congregados pelo Novo Cinema mais cautelosos. Entretanto, uma obra singular, Deixem-me ao Menos Subir às

massa de imagens preservadas e disponi-bilizadas pelos arquivos audiovisuais nos últimos 20 anos, de novas tecnologias de visionamento e montagem digital e de transformações nas interpretações his-toriográficas do salazarismo e do PREC (Processo Revolucionário em Curso). Apesar de todos estes filmes terem sido objeto de várias análises individuais, apre-sentam traços comuns que justificam o interesse de uma abordagem comparativa.Este artigo sugere que, nos filmes acima indicados, a utilização de imagens de ar-quivo não é feita com o objetivo de ilustrar argumentos historiográficos previamente definidos; pelo contrário, as estratégias formais destes filmes dilatam os métodos e as interpretações da historiografia (escrita) tradicional, ao mesmo tempo que ofere-cem uma reflexão crítica sobre o papel do cinema nestes processos históricos.Através de análises detalhadas dos filmes de Cardoso, Sousa Dias, Canijo e Costa, este artigo sugere que o género específico do filme com imagens de arquivo pode ser visto como uma alternativa relevante ao conhecimento historiográfico do passado.

CinEMA/HiSTORY: CinEMA AS HiSTORiAn OF THE PORTuGuESE 20TH CEnTuRY

Tiago Baptista

Over the last ten years, there has been a growing number of Portuguese films that have consisted partially or wholly of archive footage, such as Kuxa Kanema: O Nascimento do Cinema (Margarida Cardoso, 2003), Natureza Morta (Susana de Sousa Dias, 2005), Fantasia Lusitana (João Canijo, 2010), and Linha Vermelha (José Filipe Costa, 2012).These films make use of the mass of images that audio-visual archives have preserved and made available for the last 20 years, new viewing technologies and digital editing, as well as changes in the historio-graphical interpretations of Salazarism and the PREC (Portuguese Ongoing Revolu-tionary Process). Despite all of these films having been subject to different individual analyses, they boast common elements that justify a comparative approach.This article suggests that the use of

Abílio Hernandez(Coimbra, 1941)Professor de Literatura Inglesa e História e Estética do Cinema, disciplina que, em 1987, inaugurou a área de Estudos Fílmicos na Universidade de Coimbra. Licenciado em Filologia Germânica e doutorado com a tese De Ítaca a Dublin: A odisseia da palavra em Ulysses, de James Joyce. Tem publicado sobre Joyce, Rupert Brooke, Wilfred Owen, Neruda, Lorca, Manuel Alegre, Rossellini, o film noir, Pasolini, Resnais, Godard e as relações entre o cinema e a literatura e entre o cinema e a arquitetura.

Desempenhou, entre outras, as seguintes funções: Presidente de Coimbra Capital Nacional da Cultura e Presidente da Associação Portuguesa de Programadores Culturais, Membro da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário do Cinema. Na Universidade de Coimbra, foi Pró-Reitor da Cultura, Diretor do Colégio das Artes, Diretor do Teatro Académico de Gil Vicente e Diretor do Instituto de Estudos Ingleses.

Carolin Overhoff Ferreira(Munique, 1968) É professora adjunta da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) desde 2010. Possui pós-doutoramento sénior pela Universidade de São Paulo. Doutorou-se em Artes Cénicas e apresentou a sua dissertação de mestrado na Universidade Livre de Berlim. Graduou-se em Teatro/Seminário de Cinema e História da Arte pela mesma universidade, cursando na Universidade de Viena (Áustria), Universidade de Bristol (Grã-Bretanha) e na Universidade Humboldt de Berlim (Alemanha). Foi professora adjunta convidada na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, no Porto (2000-2007). Foi ainda professora convidada na Universidade de Coimbra (2006) e na Universidade Livre de Berlim (1999) e docente da Universidade Politécnica de Hannover (1995-1999).

É autora de Cinema Português – Aproxi-mações à sua história e indisciplinaridade

(2013), Identity and Difference – Postcolo-niality and transnationality in Lusophone films (2012), Diálogos Africanos – Um continente no cinema (2012) e Neue Tendenzen der Dramatik Lateinamerikas (1999). Organizou os livros O Cinema Português através dos Seus Filmes (2007 e 2014), Dekalog – On Manoel de Oliveira (2008) e Terra em Transe – Ética e estética no cinema português (2012), Manoel de Oliveira – Novas perspetivas sobre a sua obra (2013) e África – Um continente no cinema (2014).

Escreveu artigos em publicações como Adaptation, Camera Obscura, Concinnitas, Journal of African Cinema, Latin American Theater Review, Music and the Moving Ima-ge, Studies in European Cinema, Third Text e Transnational Cinemas, entre outras.

Filipa César(Porto, 1975) Filipa César nasceu no Porto em 1975, vive e trabalha em Berlim. Vencedora do Prémio BES Photo 2010, Filipa César estudou nas Faculdades de Belas-Artes do Porto e de Lisboa e fez o Mestrado (MA Art in Context) na Universidade de Artes (UDK), Berlim. Entre outros locais, expôs na 8.ª Bienal de Istambul, 2003; Kunsthalle, Viena – Contemporary Art Gallery, Vancouver, 2006; Tate Modern, 2007; St. Gallen Museum, 2007; International Triennale of Contemporary Art, Praga, 2008; SF MOMA, 2009; 12.ª Bienal de Arquitectura de Veneza; Bienal de São Paulo e Manifesta 8, 2010.A sua obra como artista e cineasta reflete as relações entre imagens e movimento e a respetiva receção pelo espectador. Os seus filmes questionam os aspetos ficcionais do género documental e abordam questões políticas implícitas na produção de imagens em movimento, situando-se na ténue linha que separa o cinema narrativo, a crónica documental e o cinema experimental. As instalações de Filipa César sugerem cenários para uma produção concreta de imagens, nas quais o espectador é envolvido como componente performativa, constituída pela presença

e declarações suecos apresentados por um rapaz que a eles teve acesso por um canal de feedback de baixa fidelidade – uma dimensão ótica criada para permitir movimento através do tempo e de encontros entre o tépido e o tropical. Este laboratório parte do conceito de “Zonas Libertadas”, designação usada para descrever zonas libertadas do domínio colonial, organizadas e geridas pelos militantes de guerrilha do PAIGC, na Guiné, durante os 11 anos da Guerra de Libertação, entre 1963 e 1974. Os protagonistas suecos são o diplomata Folke Löfgren, o cineasta Lennart Malmer, a psicóloga e cineasta Ingela Romare e a política Birgitta Dahl, que partilharam experiências vividas nas Zonas Libertadas que visitaram no início dos anos 70. O rapaz afirma que recordar momentos de libertação prepara o caminho para futuras recorrências.

TRAnSMiSSiOn FROM THE LiBERATED ZOnES

Filipa César

Transmission from the Liberated Zones is an experiment which brings together Swedish statements and documents accessed and presented by a boy through a low-fidelity feedback channel – an optical dimension created to move through time and between tepid and tropic encounters. This laboratory departs from the concept of “Liberated Zones”, a designation used to describe areas freed from colonial domination, organized and managed by the guerrilla militants of the PAIGC in Guinea during the 11-year liberation war between 1963-74. The Swedish protagonists are the diplomat Folke Löfgren, filmmaker Lennart Malmer, filmmaker and psychologist Ingela Romare and politician Birgitta Dahl, all of whom shared experiences in the Liberated Zones that they visited in the early 1970s. The boy states that recalling instances of liberation prepares the ground for further recurrences.

Page 49: Editorial - Instituto Camõescvc.instituto-camoes.pt/dmdocuments/camoes24.pdf · ana paula laborinho Cinema português em perspetiva abÍlio hernandez e Margarida cardoso Diálogo

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notas biográficas

e estrangeiros e de coprodução com países da Europa e de África Austral e, também, alguns filmes como produtor executivo e diretor de produção para Angola, Estados Unidos, Inglaterra, Portugal e Suíça. Foi consultor de produção e diretor de produção em três megaproduções norte--americanas rodadas em Moçambique (Ali de Michael Mann, The Interpreter de Sidney Pollack e Blood Diamond de Leonardo DiCaprio).

Na televisão, esteve ligado à gestão e à produção nos maiores canais de TV de Moçambique e, atualmente, trabalha numa operadora internacional de PayTV e prepara a sua próxima longa-metragem Avó Dezanove e o Segredo do Soviético, uma adaptação do livro homónimo do escritor angolano Ondjaki. É membro fundador de várias associações profissionais regionais e nacionais e participa em conferências para a promoção da produção cinematográfica em África e em várias ações de formação dentro e fora de Moçambique.

Jorge Seabra(Aveiro, 1961) É investigador e professor do ensino superior desde 1994, tendo exercido funções na Universidade Católica Por-tuguesa e na Universidade de Coimbra. Doutorou-se em História Contemporâ-nea, especializando-se no domínio dos Estudos Fílmicos, particularmente nos temas colonial e pós-colonial.

É investigador do Centro de Estudos Inter-disciplinares do Século XX da Universi-dade de Coimbra, onde coordena a área temática “O Cinema e o Tempo”, na qual supervisiona quatro linhas de investigação sobre “O filme e o tempo”, “Portugal e o cinema”, “Cinemas em português” e “O cinema e a cidade”. A esta atividade estão associadas a orientação de mestrandos e doutorandos e a organização de eventos científicos nacionais e internacionais, como Coimbra in Motions, sobre a relação entre Coimbra e o cinema, e o Simpósio Internacional de Cinemas em Português.

No âmbito da sua especialização, tem par-ticipado em júris académicos nacionais e

internacionais e realizado conferências em Portugal, Espanha, Itália e Cabo Verde. Tem ainda várias publicações em revistas da especialidade, oito obras em coautoria e três como autor individual – África Nossa. O império colonial na ficção cinematográfica portuguesa (1945-1974) (2.ª ed., 2014), Cinema. Tempo, memória, análise (2014) e, no prelo, O Cinema no Discurso do Poder. Dicionário sobre legislação cinematográfica (1896-1974).

Luís Guilherme Jordão de Mendonça(Lisboa, 1986) É licenciado em Comunicação Social (curso pré-Bolonha) pelo Instituto Supe-rior de Ciências Sociais e Políticas da Uni-versidade Técnica de Lisboa (ISCSP-UTL). É mestre em Ciências da Comunicação sob a orientação do Professor Doutor João Mário Grilo, na especialidade de Cinema e Televisão, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL). Em 2010, iniciou o curso de doutoramento, que já concluiu, com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), na mesma área e na mesma Faculdade, no grupo de investiga-ção Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens – CECL, sob orientação da Professora Doutora Margarida Medeiros.

Organizou vários ciclos de cinema e debates e realizou a curta-metragem Lugar/Vazio em 2010, apresentada no fes-tival Panorama e estreada na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.

Escreve em dois espaços fundados por si: o blogue/newsletter CINEdrio e o site de cinema À pala de Walsh, para o qual tem feito textos críticos, crónicas, traduções, reportagens, eventos, vídeos (com espe-cial destaque para as Conversas à pala) e várias entrevistas (entre os entrevistados, destacam-se Tobe Hooper, Albert Serra, Lisandro Alonso, Mark Cousins e Mark Rappaport).

Entre 1 de setembro e 30 de novembro de 2012, estagiou, por via de concurso público, na área funcional de programação da Cine-mateca Portuguesa – Museu do Cinema, sob orientação de Luís Miguel Oliveira.

Desde a sua fundação, em 2014, é delegado português da Cinema and Moving Image Research Assembly (CAMIRA) e um dos editores do seu blogue CAMeRA.

Luís urbano(águeda, 1968) Fez os estudos superiores em Economia na Universidade Técnica de Lisboa. No período universitário, destacou-se como dirigente associativo.

Com pouca vocação para a política, dedicou a sua atividade, entre 1991 e 1995, à programação de teatro, música, vídeo e cinema, respetivamente, no Gabinete das Festas de Lisboa e no Clube Português de Artes e Ideias.

Em 1996, regressou às origens e fundou em Vila do Conde, com Miguel Dias, Nuno Rodrigues, Rui Maia, Mário Micaelo e Dario Oliveira, a cooperativa de produção cultural Curtas-Metragens, CRL, entidade responsável pela organização do Festival Internacional de Curtas-Metragens de Vila do Conde.

Em 2005, juntou-se a Sandro Aguilar na produtora O Som e a Fúria. Desde aí, produziu várias curtas-metragens e alguns documentários, entre os quais: Ruínas de Manuel Mozos, Terra de Ninguém e Eldorado XXI de Salomé Lamas; e onze filmes de longa-metragem de ficção: Aquele Querido Mês de Agosto, Tabu e a trilogia As Mil e Uma Noites de Miguel Gomes; O Gebo e a Sombra e O Velho do Restelo (c.-m.) de Manoel de Oliveira, Cartas da Guerra de Ivo Ferreira, A Zona de Sandro Aguilar, A Religiosa Portuguesa de Eugène Green, A Espada e a Rosa e John From de João Nicolau, Olmo & Seagull de Petra Costa e Lea Glob e Demain ? de Christine Laurent.

Atualmente tem em produção a longa-metragem de ficção Ramiro de Manuel Mozos e algumas coproduções internacionais, das quais se destacam o filme argentino Zama de Lucrecia Martel e o filme brasileiro Um Animal Amarelo de Felipe Bragança.

Margarida Cardoso (Tomar, 1963)Estudou Imagem e Comunicação Audiovi-sual na Escola António Arroio. Trabalhou vários anos em França e Portugal como fotógrafa e assistente de realização e, em 1995, começou a desenvolver um trabalho cinematográfico entre a ficção e o documentário. Natal 71, Kuxa Kanema, A Costa dos Murmúrios e a sua última longa-metragem, Yvone Kane, têm em comum o interesse pela temática colonial e pós-colonial. Os seus filmes têm apresentações regulares em diferentes mostras e festivais internacionais, como Veneza, Locarno ou Toronto. É professora do curso de Cinema da Universidade Lusófona de Lisboa e coordenadora aca-démica do Mestrado Internacional Doc Nomads. É patrona da Cátedra Margarida Cardoso criada em 2015 na Università degli Studi di Napoli “L’Orientale”.

Realizou, entre outros, os seguintes filmes: Contos Botânicos (documentário pré-produção), 2016; Yvone Kane (longa--metragem de ficção), 2015; Partir do Zero (documentário), 2015; Sob o Olhar Silencioso (documentário pós-produção, 2013); Atlas – filmes espetáculo – Casa da Música, 2013; Licínio de Azevedo, Crónicas de Moçambique (documentário), 2011; O Código da Vida de A. de Montrond (ficção, 2009); Era Preciso Fazer as Coisas (documentário), 2007; A Batalha de Aljubarrota (ficção/instalação), 2007; A Costa dos Murmúrios (longa-metragem de ficção), 2004; Kuxa Kanema – O Nascimento do Cinema (documentário), 2003; Com Quase Nada (documentário), co-realização com Carlos Barroco, 2001; Natal 71 (documentário), 2000; A Terra Vista das Nuvens (documentário ), 1998; Entre Nós (curta-metragem de ficção), 1999; e Dois Dragões (curta-metragem de ficção), 1996.

Maria do Carmo Piçarra(Moura, 1970)Tem um doutoramento em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa, é investigadora de pós-douto-ramento no Centro de Estudos Comuni-cação e Sociedade, na Universidade do

João Lopes(Caldas da Rainha, 1954)Começou a trabalhar em cinema aos 18 anos, como assistente de realização de Eduardo Geada, tendo participado na escrita de dois filmes de Fernando Lopes: Lá Fora (2004) e 98 Octanas (2006). Exerce regularmente a crítica de cinema desde 1973, tendo passado, entre outras publicações, pelas revistas Vida Mundial, Seara Nova e Cinéfilo, e pelos jornais Repú-blica, A Luta e Expresso (onde foi editor da secção de Cultura). Foi diretor editorial da Editorial Notícias. Em teatro, encenou Neil LaBute e David Mamet. Atualmente, colabora no Diário de Notícias, SIC Notícias e Antena 1. É professor da Escola Superior de Teatro e Cinema. Foi responsável pela programação de cinema de Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura.

Escreveu: Teleditadura – Diário de um espectador (Quetzal, 1995) e Poemas de Guerra (Gótica, 2002).

Da sua filmografia, constam as curtas--metragens Biblioteca Apaixonada (1998), Paisagens Intermédias (2002), Porque É Que Eles se Amam? (2007), O Amor É Aquilo? (2007), Ana Moreira em “Transe” (2007), Cimento + Silêncio (2007), Pele (2008), Luís (2012); e a longa-metragem Fernando Lopes Provavelmente (2008).

João Ribeiro(Mocuba/Zambézia – Moçambique, 1962)Trabalha, desde muito novo em fotografia, enquanto o cinema era um divertimento de todos os dias. Formado pela Escola In-ternacional de Cine y TV de San Antonio de los Baños em Cuba (1990), produz a primeira de uma triologia de curtas-me-tragens de ficção baseadas em histórias do escritor moçambicano Mia Couto: Fogata (1992), O Olhar das Estrelas (1997) e Tatana (2002). Em 2010, realiza e produz a sua primeira longa-metragem, O Último Voo do Flamingo, com estreia comercial em sala em seis países e grande repercussão em festivais internacionais, com várias nomeações para prémios.

Tem desenvolvido vários projetos de produção com realizadores moçambicanos

notas biográficas

Minho, e no Centre for Film Aesthetics and Cultures, da Universidade de Reading. Além de investigadora do CEC-FLUL da Universidade de Lisboa, é professora externa convidada no ISCTE-IUL.

Recebeu bolsas de doutoramento e pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT, Portugal) e foi bolseira do Serviço de Belas-Artes da Fundação Calouste Gulbenkian para estudar a propaganda cinematográfica nas atualidades filmadas do Estado Novo.

Entre as suas publicações principais, encontram-se Salazar Vai ao Cinema I e II (2006 e 2011) e Azuis Ultramarinos. Propaganda e censura no cinema do Estado Novo; coordenou ainda a trilogia Angola, o Nascimento de Uma Nação (O Cinema do Império), 2013; O Cinema da Libertação, 2014; e O Cinema da Independência, 2015). É coeditora da ANIKI – Revista Portuguesa da Imagem em Movimento.

nicole Brenez (Paris, 1961)Historiadora, teórica, programadora e professora na Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3.

Especialista das vanguardas, trabalha sobre a história, a cartografia e a taxinomia do cinema político e do cinema experimental.

Tem programado para cinematecas e mu-seus de arte contemporânea, entre os quais a Cinemateca Portuguesa e o Museu de Serralves. Desde 1996, programa as sessões de vanguarda da Cinemateca Francesa.

Em De la Figure en Général et du Corps en Particulier (1998), propõe um método (a análise figural) que consiste, entre outros aspetos, em procurar nos próprios filmes os instrumentos para a sua análise. Outras publicações: Traitement du Lum-penproletariat par le Cinéma d’Avant-Garde (2006), Cinémas d’Avant-Garde (2007), Jean-Luc Godard Théoricien des Images (2015). Coorganizadora, com Isabelle Marinone, de Cinémas Libertaires : Au service des forces de transgression et de

de preocupações sociopolíticas. A imagem emerge da tensão entre memória real e memória cinematográfica.

(Fonte: MNAC/Museu Nacional de Arte Contemporânea)

Haden Guest(Geneva-EuA, 1972)É diretor do Harvard Film Archive, onde tem a curadoria da Cinemateca de Harvard e respetivas coleções de cinema, manuscritos e fotografias. Foi igualmente curador em programações de cinema para o Viennale, Festival de Cinema de Oberhausen e para a Fundação e Museu Calouste Gulbenkian em Lisboa, onde organizou as doze sessões de Diálogos sobre o Cinema: Harvard na Gulbenkian (2013-15).

É responsável pelo programa de preservação do Harvard Film Archive, com especial incidência no cinema independente e avant-garde. A preser-vação do filme A Night of Storytelling de Robert Flaherty, dado como perdido, mas entretanto redescoberto em 2013 na Houghton Library de Harvard, foi um dos seus mais recentes projetos. Docente do Departamento de Estudos Visuais e Ambientais da Universidade de Harvard, leciona cursos sobre a história do cinema e arquivos cinematográficos.

É doutorado em História do Cinema pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Atualmente, dedica-se a escrever uma história crítica do cinema português após a Revolução dos Cravos de 1974. Em 2015, foi galardoado com a Medalha de Mérito Cultural pela Secretaria de Estado da Cultura de Portugal, em reconheci-mento pelo seu trabalho de curadoria e de investigação sobre o cinema português. Foi produtor do filme Songs from the North da realizadora Soon-Mi Yoo, vencedora de grandes prémios, incluindo um Leopardo de Ouro no Festival de Locarno em 2014, o Prémio DocLisboa para a melhor Primeira Obra e o Prémio do Júri no Festival Internacional de Cinema de Buenos Aires.

révolte (2015); organizadora de Biotope de João Tabarra (2015).

Paulo Cunha(Guimarães, 1978)É Doutor em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra e membro do grupo de trabalho Correntes Artísticas e Movimentos Intelectuais do CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra. Leciona na Universidade da Beira Interior e na Escola Superior de Tecnologia de Abrantes. Coordenador editorial da Nós por Cá Todos Bem e do grupo de trabalho História do Cinema Português da AIM.

Tiago Baptista (Lisboa, 1976)Trabalha como conservador e investigador na Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema desde 2002. É docente no programa CIEE da Universidade Nova de Lisboa e na Universidade Católica Portuguesa. É também investigador associado do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da Universida-de Católica Portuguesa, membro fundador e atual presidente da AIM – Associação de Investigadores da Imagem em Movimento e coeditor da ANIKI – Revista Portuguesa da Imagem em Movimento. Tem-se dedicado à história do cinema português, tema sobre o qual escreveu vá-rios artigos em Portugal e no estrangeiro.

É autor de uma dissertação de mestrado em Ciências da Comunicação (Facul-dade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa) intitulada Tipicamente Português: O cinema ficcional mudo em Portugal (2004). Desenvolve atualmente o seu doutoramento na Universidade de Londres sobre a prática do ensaio audiovisual digital.

Entre outros, é autor dos livros A Invenção do Cinema Português (Tinta-da-China, 2008) e Ver Amália: Os filmes de Amália Rodrigues (Tinta-da-China, 2009).

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caMõesREViSTA DE LETRAS E CuLTuRAS LuSÓFOnAS

DiRETORAAna Paula Laborinho

EDiTORAAlexandra Pinho

COORDEnAçãO EDiTORiALMaria João CorreiaJoaquim CaparicaEunice Santos

COnSELHO EDiTORiALAbílio HernandezMargarida Cardoso

TEXTOSAbílio HernandezCarolin Overhoff FerreiraFilipa CésarHaden GuestJoão LopesJoão RibeiroJorge SeabraJosé Manuel CostaLuís de MendonçaLuís UrbanoMargarida CardosoMaria do Carmo PiçarraNicole BrenezPaulo BrancoPaulo CunhaTiago Baptista

DESiGn GRáFiCOvivóeusébio

REViSãOAntónio José Massano

TRADuçãOnotabene (IN)Alliance Française de Lisboa (FR)

PRÉ-iMPRESSãOGráfica Maiadouro, S.A.

iMPRESSãOGráfica Maiadouro, S.A.

TiRAGEM1000 exemplares

DEPÓSiTO LEGAL: 124734/99

iSSn: 0874-3029

AGRADECiMEnTOSAbílio HernandezAna Pinhão MouraAndré PríncipeAntónio SanchesCarlos AntunesFabienne MartinotFátima CorreiaFilipe BranquinhoInês MendesInês ValentimJoão BotelhoJoão PinharandaJoão RibeiroJoão SalavizaJoão TrabuloJoaquim Lopes BarbosaJosé Filipe CostaJosé Manuel OliveiraLeão LopesLuís CorreiaLuís UrbanoManuel Faria de AlmeidaMargarida CardosoMaria João MayerMarta MateusPaulo BrancoPedro CostaRakmat OsmanSusana de Sousa DiasTeresa Borges

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