EDITORIAL OCORREIO deste mês está gordinho! Mas não é … · e convoca a pensar a psicanálise...

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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 108, nov. 2002 EDITORIAL O CORREIO deste mês está gordinho! Mas não é caso de dieta! É que dele consta a atualização das atividades de ensino em anda- mento, as agendadas para o mês e uma consistente seção temática. Também queremos render homenagem a nosso poeta maior, Carlos Drumond de Andrade, pelos cem anos de seu nascimento (quando é que nasce um poeta? Com seu primeiro poema ou com seu primeiro leitor?), através do escrito de Mário Fleig, que confronta o fazer do analista e o do poeta. As utopias estão fora de moda; caíram em descrédito, produzem des- confiança no ressabiado sujeito contemporâneo (ainda se usa ressabiado?), que foi perdendo a estabilidade das referências da tradição ou dos ideais coletivos. Outra discussão que parece antiga é a função social da arte. Estaría- mos nos perguntando qual sua utilidade? Porém, tanto as utopias quanto a arte continuam a se produzir, indi- cando, com essa insistência, que dão conta de algo da ordem do necessá- rio, e que não encontra outro lugar para representar-se. E é justamente isso que nos interessa, sua função interpretativa de nosso tempo e de seu anexo mal-estar. Todo ato criativo contém uma utopia, uma aposta no não realizado nos diz Edson de Souza, pois retira o sujeito da indiferenciação do senso comum que o pasteuriza para o campo do desejo, podendo constituir-se, segundo ele, numa formação do inconsciente. Em que medida esse significante, que surge no século XVI, pode nos fazer pensar sobre o lugar da Psicanálise hoje? É o que nos interroga Ana de Azevedo, seu artigo provoca e convoca a pensar a psicanálise enquanto utópica, idealizada, fora/acima do mundo, imune ao mal-estar ou como atópica, no incômodo fora-de-lugar em relação a outras áreas do conhecimento com status garantido. Tânia Rivera vem nos lembrar o breve e rumoroso namoro entre o surrealismo e a psicanálise, e seu desfecho desencantado, já que entre a utopia surrealista e a utopia psicanalítica há uma dissonância radical quanto à sua possibilidade de realização. A arte como o avesso do sintoma é o tema de Valadares, bem como o de Santos, ao comentar a obra da escultora Helena Bernardes, que bus-

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1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 108, nov. 2002

EDITORIAL

OCORREIO deste mês está gordinho! Mas não é caso de dieta! Éque dele consta a atualização das atividades de ensino em anda-mento, as agendadas para o mês e uma consistente seção temática.

Também queremos render homenagem a nosso poeta maior, Carlos Drumondde Andrade, pelos cem anos de seu nascimento (quando é que nasce umpoeta? Com seu primeiro poema ou com seu primeiro leitor?), através doescrito de Mário Fleig, que confronta o fazer do analista e o do poeta.

As utopias estão fora de moda; caíram em descrédito, produzem des-confiança no ressabiado sujeito contemporâneo (ainda se usa ressabiado?),que foi perdendo a estabilidade das referências da tradição ou dos ideaiscoletivos.

Outra discussão que parece antiga é a função social da arte. Estaría-mos nos perguntando qual sua utilidade?

Porém, tanto as utopias quanto a arte continuam a se produzir, indi-cando, com essa insistência, que dão conta de algo da ordem do necessá-rio, e que não encontra outro lugar para representar-se. E é justamente issoque nos interessa, sua função interpretativa de nosso tempo e de seu anexomal-estar.

Todo ato criativo contém uma utopia, uma aposta no não realizadonos diz Edson de Souza, pois retira o sujeito da indiferenciação do sensocomum que o pasteuriza para o campo do desejo, podendo constituir-se,segundo ele, numa formação do inconsciente. Em que medida essesignificante, que surge no século XVI, pode nos fazer pensar sobre o lugar daPsicanálise hoje? É o que nos interroga Ana de Azevedo, seu artigo provocae convoca a pensar a psicanálise enquanto utópica, idealizada, fora/acimado mundo, imune ao mal-estar ou como atópica, no incômodo fora-de-lugarem relação a outras áreas do conhecimento com status garantido.

Tânia Rivera vem nos lembrar o breve e rumoroso namoro entre osurrealismo e a psicanálise, e seu desfecho desencantado, já que entre autopia surrealista e a utopia psicanalítica há uma dissonância radical quantoà sua possibilidade de realização.

A arte como o avesso do sintoma é o tema de Valadares, bem comoo de Santos, ao comentar a obra da escultora Helena Bernardes, que bus-

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NOTÍCIAS

PROPOSTAS PARA O QUADRO DE ENSINO 2003

Informamos que estamos recebendo as propostas dos GRUPOS eCARTÉIS, que desejarem integrar o QUADRO DE ENSINO da APPOA em2003.

Os associados interessados, devem encaminhar suas propostas pore-mail, para a APPOA, A/C de LIGIA VICTORA, até o dia 30 de novembro.

As propostas devem conter:

– título do grupo ou do cartel;– nome do coordenador do ensino (no caso de cartel: nome de um associadopara contato);– tema a ser abordado (com breve argumento);– frequência (semanal, quinzenal, mensal...);– dia e horário propostos;– data de início (em 2003);– se é continuação de grupo já existente na APPOA;– caso não ocorra na sede da APPOA, favor informar.

QUADRO DE ENSINO 2002 – ATUALIZADO

Atualmente, encontram-se em funcionamento na APPOA os seguin-tes seminários e grupos:

SEMINÁRIOS

PASSAGENS – SUJEITO E CULTURA A PARTIR DE FREUD, LACAN EBENJAMIN. Coordenação de Ana Maria Medeiros da Costa, Edson L.A. de Sousae Lúcia Serrano Pereira. Mensal, segunda-feira, às 20h45min.

MOMENTOS CRUCIAIS DA CLÍNICA: OS TEMPOS LÓGICOS DE UMA ANÁ-LISE. Coordenação de Alfredo Jerusalinsky. Quinzenal, quarta-feira, às 20h30min.

cou deslocar o foco do objeto (em sua utilidade) para o seu exercício inau-gurador de novos laços sociais. A procura de um artista, Cildo Meireles, é ofio condutor da pergunta de Elida Tessler sobre o lugar do objeto de arte esobre o ato de busca do artista.

Utopia e distopia na literatura brasileira de Sueli Barros Cassal eImpasse e hesitação na poesia brasileira contemporânea de Manoel Ricardode Lima, completam o quadro da discussão proposta por este número doCORREIO, desde a visão da Literatura e sua marca utópica na alma brasilei-ra.

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

A TOPOLOGIA DO OBJETO NA PSICANÁLISE. Coordenação de LigiaVíctora. Quinzenal, sexta-feira, às 18h15min.

A CLÍNICA DA NEUROSE: FANTASIA E SINTOMA. Coordenação de MárioFleig. Quinzenal, quarta-feira às 19h30min. Em Caxias do Sul.

PSICOSSOMÁTICA: INTERDISCIPLINA E TRANSDICIPLINA. Coordena-ção de Jaime Betts. Mensal, sábado às 10h. Em Novo Hamburgo.

GRUPOS TEMÁTICOS

DIAGNÓSTICO DA ESTRUTURAÇÃO SUBJETIVA EM SEUS PRIMÓRDIOS.Coordenação de Sílvia Molina. Quinzenal, segunda-feira, às 20h.

ESTUDOS SOBRE A ADOÇÃO. Coordenção de Sílvia Molina. Quinzenal,segunda-feira, às 20h.

REFLEXÕES CLÍNICAS. Coordenação de Carlos Kessler. Quinzenal, se-gunda-feira, às 21h.

PSICANÁLISE E CULTURA. Coordenação de Carlos Kessler. Quinzenal,terça-feira, às 21h.

ÉDIPO E FUNÇÃO PATERNA. Coordenação de Roséli Cabistani. Quinze-nal, quarta-feira, às 20h45min.

CLÍNICA PSICANALÍTICA: ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAIS. Coor-denação de Carmen Backes. Quinzenal, sexta-feira, às 14h45min.

PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO: ARTICULAÇÕES ENTRE PULSÃO E TRANS-FERÊNCIA. Coordenação de Marianne Montenegro Stolzmann e Simone MoschenRickes. Quinzenal, sexta-feira, 16h.

ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA PSICANÁLISE. Coordenaçãode Sívia Carcuchinski Teixeira. Quinzenal, segunda-feira, às 18h. Em São Gabriel.

PSICOSES NA INFÂNCIA. Coordenção de Ieda Prates da Silva. Quinze-nal, segunda-feira, às 19h. Em Novo Hamburgo.

ADOLESCÊNCIA, INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS E ESPAÇO URBANO. Co-ordenação de Ângela Lângaro Becker. Mensal, sexta-feira, 16h. Reinício: 08/11/02em Porto Alegre e Quinzenal, sexta-feira, às 16h, próximos encontros: 22/11 e 13/12. Em Novo Hamburgo.

GRUPOS TEXTUAIS

SEMINÁRIO O SINTHOMA, DE JACQUES LACAN. Coordenação de MariaAuxiliadora Sudbrack. Semanal, sexta-feira, às 14h.

MOMENTO DE LER. Coordenação de Maria Auxiliadora Sudbrack. Sema-nal, sexta-feira, às 16h.

NÚCLEOS DE ESTUDOS

NÚCLEO DA PSICOSE. Reuniões mensais, segunda-feira, às 21h. Abertoaos interessados. Mais informações na secretaria da APPOA.

NÚCLEO DAS TOXICOMANIAS. Reuniões mensais, sábado às 10h. Aber-to aos interessados. Mais informações na secretaria da APPOA.

CARTÉIS

A DIREÇÃO DO TRATAMENTO PSICANALÍTICO. Cartel preparatório dajornada de maio/2003). Reuniões quinzenais, quinta-feira, às 21h. Aberto aosinteressados. Mais informações na secretaria da APPOA.

CARTEL DO INTERIOR. Reuniões bimensais. Integrado por associadosresidentes não só no interior do estado, mas também em Santa Catarina e emPorto Alegre. Aberto aos interessados. Mais informações na secretaria da APPOA.

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ESTRUTURAS CLÍNICAS. Atualmente dedica-se à leitura do Seminário “AIdentificação” de Jacques Lacan. Reuniões semanais, quarta-feira, às 9h. Abertoaos interessados. Mais informações na secretaria da APPOA.

CARTEL DE TRADUÇÃO DO SEMINÁRIO DE J. Lacan – O OBJETO DAPSICANÁLISE. Reuniões quinzenais, sexta-feira, às 18h. Contatos com LigiaVíctora. Aberto para “franco-lusofônicos”

CARTEL DAS PSICOSES. Reuniões quinzenais, quinta-feira, às19h.

A ÉTICA PSICANALÍTICA NAS INSTITUIÇÕES. Quinzenal, 15h30min. En-contros na Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS. Responsáveis LucianeLoss Jardim, Marcia Goidanich e Ubirajara Cardoso.

PSICANÁLISE DA INFÂNCIA. Quinzenal, segunda-feira, 19h30min às21h30min. Responsável: Ieda Prates. Em Novo Hamburgo.

PERCURSO DE ESCOLA

TURMA V – Em andamento (sexto semestre – “Temas cruciais da Psica-nálise – História e formação”).

TURMA VI – Em andamento (segundo semestre – “Édipo e castração”).

TURMA VII – INSCRIÇÕES ABERTAS.

SELEÇÃO PARA NOVA TURMAPERCURSO DE ESCOLA 2003

O Percurso de Escola faz parte do quadro de ensino da APPOA,desde 1994, como um lugar possível de desdobramento das perguntas que oencontro com a Psicanálise coloca a cada um. Esta proposta inscreve-secomo um espaço de estudo sistemático dos textos fundamentais de Freud eLacan, bem como das disciplinas que com eles dialogaram no transcurso daconstituição e consolidação da Psicanálise, quais sejam, Lingüística, Antro-pologia, Filosofia e Artes em geral. O Percurso de Escola destina-se àque-les que se sintam concernidos pela Psicanálise e pelas questões que elasuscita.

O trabalho se desenvolve em torno dos seguintes eixos temáticos: oInconsciente, Édipo e Castração, Narcisismo e Identificação, o Sintoma, aTransferência e Temas Cruciais da Psicanálise, História e Formação.

Esses eixos temáticos são trabalhados ao longo do Percurso, sendodesdobrados nas perspectivas das obras de Freud e Lacan, em textos clíni-cos (casos ou textos concernentes à clínica) e ensino contextual (Antropolo-gia, Lingüística, Filosofia, Estética, Literatura, Topologia e outros).

VII TURMAInício: março 2003Duração: 3 anosEncontros: segundas e terças-feiras, das 19h30min às 22h30minPeríodo de Inscrições: 04/11 a 13/12/02Valor da Inscrição: R$35,00Local: Sede da Associação Psicanalítica de Porto Alegre

INFORMAÇÕES: APPOAFone: 3333.2140 Fax: 3333.7922Site: www.appoa.com.brE-mail: [email protected]

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

Na discussão do Cartel levantou-se a questão de que mesmo a pro-posta lacaniana corre o risco de cair numa burocratização. Por exemplo, aformação de cartéis pode enrijecer-se numa cristalização onde as consignasde Lacan sejam tomadas mais como um modelo especular de cartel, do quecomo uma estrutura viva, que tem de ser recriada em cada instituição analítica.

Na APPOA, a proposta de cartéis leva em conta o engajamento decada um numa transferência de trabalho, mas não está atrelada ao formatoquatro +1. Na nossa experiência no Cartel do Interior, nos momentos deimpasse, convidamos outros colegas da Associação que vieram trabalharconosco numa posição de alteridade, o que permitiu ao cartel avançar. Talmodo de trabalho pode ser pensado como produzindo efeitos de “+1”, embo-ra não seja naquela formatação original.

Também foi muito lembrado o quanto a formação analítica é perma-nente e que não está garantida por nenhuma nomeação. A instituição psica-nalítica faz suporte à formação, na medida em que possibilita e estimula acirculação da palavra, o comprometimento e a responsabilidade de cada um,assim como tem a função de reconhecimento da trajetória singular de cadaum de seus membros.

Foi muito interessante a presença de Maria Ângela Brasil na reunião,pois os colegas tiveram a oportunidade de esclarecer muitas dúvidas e mitosacerca da inserção institucional e em relação às nomeações na APPOA.

Nosso próximo encontro será dia 09/11/02, Sábado, às 9h30min, quan-do debateremos sobre as relações do sujeito com a instituição analítica e,em particular, a questão do passe, a partir das considerações de Chemamano último capítulo de seu livro: “Elementos Lacanianos para uma Psicanáliseno Cotidiano” (recém publicado pela CMC Editora). A colega Ieda Prates daSilva se responsabilizará por abrir os trabalhos, trazendo as principais contri-buições deste texto (Cap.VIII) para discussão no cartel.

Contamos com a leitura e a participação dos integrantes do Cartel doInterior e demais interessados.

Coordenação do Cartel

CARTEL DO INTERIOR

No dia 06 de setembro tivemos mais uma reunião do Cartel do Interiorem torno da temática da Formação Analítica e da Transmissão da Psicaná-lise. O texto trabalhado neste encontro foi o livro de Moustapha Safouan:Jacques Lacan e a questão da formação dos analistas. Para abrir a discus-são, Clara von Hohendorff trouxe suas reflexões iniciais acerca do livro. Apre-sentamos aqui alguns pontos de articulação entre essa leitura e a discussãoque se seguiu no cartel.

Neste texto, publicado quase em seguida à dissolução da EscolaFreudiana de Paris, Safouan propõem-se a “examinar a questão da formaçãodo analista em suas relações com as formas institucionais que ela motiva, talqual ela se apresenta antes de Lacan e com ele” (SAFOUAN, 1985, p.13).

A história da psicanálise nos conta que antes de Lacan, e mesmodepois, com ele, a formação analítica está alicerçada em três eixos: análisepessoal, estudo teórico e supervisão. Contudo, a forma como Lacan abordacada eixo é muito diferente daquela proposta originalmente pelo InstitutoPsicanalítico de Berlim, na década de 20, e que continua em uso nas insti-tuições filiadas à IPA.

Tal proposta se fundamenta numa estrutura institucional burocráticabaseada na hierarquia e na estratificação, com o estabelecimento de crité-rios normativizantes para o candidato, principalmente no que se refere àanálise didática e ao seu ingresso no estudo teórico. A prática lacaniana deformação coloca a análise didática como efeito de um processo de análisee não como ponto de partida. É só ao término que se poderá dizer se produ-ziu-se ali um analista ou não. Com relação ao ensino, Lacan propõe a estru-tura de cartel, como uma forma de estudo que engaje o sujeito numa trans-ferência de trabalho.

Safouan aponta o dilema inerente à formação: ...“de um lado, a psica-nálise parece rebelde à institucionalização, de outro, como o tornar-se analistaé um assunto que envolve o concurso de vários pessoas, sem institucionalizaçãonão há analista, por conseguinte, também não há análise” (1985, p.38).

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

O OBJETO DA PSICANÁLISESEMINÁRIO DE VERÃO DA

ASSOCIAÇÃO LACANIANA INTERNACIONAL

O que é um objeto? Conforme um dicionário1, “tudo o que se oferece àvista, ao sentido; matéria; coisa”. E o tal objeto a, o que é? Seria tambémum “ser material” – seria “real”? Ou seria algo que tem a ver com o “não-ser”?O Seminário O objeto da psicanálise, proferido por Lacan entre 1965 e 1966,ocupava-se da formalização da psicanálise e, para tanto, da definição de seuobjeto. Teria a psicanálise o estatuto de uma verdadeira ciência? Caso afir-mativo: que linguagem formal a escreveria? A filosofia? A lógica? A topologia?A matemática?

Na trilha destas questões, realizou-se em Paris, de 29 de agosto a 01de setembro/2002, mais um seminário de verão da Association LacanienneInternational, o primeiro desde a mudança de nome da antiga AssociationFreudienne International.

O chamado Séminaire d’été, reuniu, então, cerca de trezentas pesso-as, no Auditório do Marché Saint-Germain, no sexto arrondissement de Pa-ris. Foram cinqüenta e sete trabalhos inscritos para os quatro dias de deba-tes, durante os quais o objeto da psicanálise foi analisado profundamente.

No primeiro espaço para debates (não houve uma abertura oficial docolóquio), Charles Melman justificou a mudança de apelação da associação,lembrando que Lacan, quando questionado se era lacaniano, teria respondi-do algo como: – “Eu sou freudiano. Cabe aos meus seguidores seremlacanianos, se assim acharem por bem.”

Topologia, filosofia e psicanálise foram discutidas a fundo por psicana-listas conhecidos – como Christiane Lacôte, Roland Chemama, Marc Darmon,Jean-Jacques Tyszler, Jean Brini, Claude Landman, Marcel Czermak, ClaudeDorgeuille, Jean-Paul Hiltenbrand, só para citar alguns – bem como por filó-sofos e matemáticos. O texto de Pascal conhecido como A aposta e o

1 Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Ed. RBS Jornal. Porto Alegre: 1995.

APPOA NA FEIRA DO LIVRO

Neste ano, como tradicionalmente acontece, a APPOA estará pre-sente na Feira do Livro de Porto Alegre. Dentre a programação de atividadesda Feira, a tarde dos dias 06 e 16 de novembro foram especialmente reserva-das para o debate da produção mais recente de alguns de nossos colegas,seguida da sessão de autógrafos.

PROGRAMAÇÃO

Dia 06/11 – quarta-feira18h – Sessão de autógrafos do livro Seminários espetaculares, editado emparceria pela APPOA, Governo do Estado do RS e Corag.Local: Auditório do Memorial do Rio Grande do Sul – Praça da Alfândega(antiga sede dos Correios).

Dia 16/11 – sábado14h30min – Debate sobre “Injúria”, com a presença do autor Luís Fernandode Oliveira e dos mediadores Abrão Slavutsky e Enéas de Souza;16h30min – Debate sobre “Cinismo, canalhice e ironia”, com a presença doautor Ricardo Goldenberg e do mediador Robson Pereira;Local: Centro Santander Cultural, sala Leste.

18h – Sessão de autógrafos das seguintes publicações:Injúria – a pulsão na ponta da língua, de Luís Fernando de Oliveira. Ed. Unijuí.No círculo cínico – ou caro Lacan, por que negar a psicanálise aos cana-lhas?, de Ricardo Goldenberg. Ed. Relume Dumará.Seminários II, de Alfredo Jerusalinsky. Publicação do Lugar de Vida/USP.Revista da APPOA – Psicopatologia do espaço e outras fronteiras. Publica-ção da APPOA.Local: Pavilhão de autógrafos.

Comissão de Publicações

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

14h - O Desenvolvimento no Laço Fusional: o começo da articulação da imageme do esquema corporal, ponto de partida da instrumentalização - Relato Audio-visualPalestrantes: Silvia E. Molina, Ângela Gonzales e Suzana Lodetti.

16h - Enquanto o futuro não vem: clínica interdisciplinar com bebês.Palestrante: Julieta Jerusalinsky

LOCALParthenon Beverly HillsRua Ramiro Barcelos, 1373 – Rio BrancoInformações e Inscrições:Centro Lydia CoriatFone/Fax: (51)3311.0091 e 3311.2243

LANÇAMENTO

Após o evento acontecerá o lançamento do livro:“Enquanto o Futuro Não Vem”, de Julieta JerusalinskyLocal: Centro Lydia CoriatRua: André Puente, 415Horário: 18h30min

quadro Las Meninas, de Velasquez, foram abordados sob diferentes pris-mas, deixando evidente que uma releitura do Grafo, à luz do plano-projetivo,proposta por Lacan nesse seminário, revela sua estrutura topológica e per-mite-nos lidar logicamente com nosso inapreensível objeto de desejo – e deestudo.

Durante o Colóquio, em reuniões realizadas à noite, na nova sede daA.L.I. – um endereço elegante à rua de Lille, número 25 (vizinha ao antigogabinete de Lacan) – a APPOA participou de discussões sobre a traduçãopara o português do Seminário “O objeto da Psicanálise”, que vem sendorealizada pelo Cartel de tradução da APPOA, em um esforço conjunto, comcolegas da A.L.I., do Tempo Freudiano (Rio de Janeiro) e do Centro de Estu-dos Freudianos de Recife.

Ligia Gomes Victora

XX JORNADA – CENTRO LYDIA CORIATO DESENVOLVIMENTO DO BEBÊ NO LAÇO PARENTAL

O Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e o Centro de Estudos PauloCésar D’Avila Brandão promovem um espaço de interlocução com a apre-sentação de um conjunto de temas que entrelaçam o desenvolvimento dobebê e da criança pequena a sua constituição subjetiva.

PROGRAMA

Data: 30/11/20028h30min - Inscrição9h - Filiação e Inclusão Social do bebê e da criança pequena.Palestrantes: Ivone Montenegro Alves e Rejane Farias10h30min - A inauguração do desenvolvimento na matriz simbólica - RelatoAudio-visualPalestrantes: Silvia E. Molina, Ângela Gonzales e Suzana Lodetti.

FESTA DA APPOA

No dia 30 de novembro, sábado, estaremos realizando nossa festa defim de ano. Queremos confraternizar por mais um ano de trabalho com muitaanimação!

A festa será na sede da APPOA às 21h.Venha comemorar conosco!

Comissão de Eventos

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

sa chegou à concepção de um narcisismo fundamental, modulado sobre aprevalência do registro especular. Este mestre incontestado da prosa brasi-leira, articulando os planos individual e histórico, fez suas criaturas viver adoença específica de uma cultura de origem colonial desvelando as determi-nações subjetivas das quais ela é a fonte.

Nós consagramos esta jornada de estudo à análise da fisiologia e dapatologia do especular na obra machadiana. Ela poderá interessar tanto aque-les que estão concernidos pela clínica analítica como aqueles que são inter-pelados pela história e literatura brasileira.ResponsablesMaria Roneide Cardoso-Gil, Roland Chemama

9h30 / 12h30

Modérateur: Angela Jesuino-Ferretto

« Père contre mère »: la terreur esclavagiste dans un conte de Machado de AssisLuiz Felipe de AlencastroDiscutant : Maria Roneide Cardoso-Gil

« Père contre mère » - quand l’autre n’est pas un semblableRobson de Freiras PereiraDiscutant : Ana Maria Medeiros da Costa

Un narrateur incertain: entre l’étrange et le familierLucia Serrano-PereiraDiscutant : Christiane Lacôte

14h30 / 17h30

Modérateur: Bernard Vandermersch

Singularités du double au Brésil – Machado de AssisJosé Antonio Pasta Jr.

MACHADO EM PARIS

Reproduzimos a seguir o programa da jornada sobre a obra de Macha-do de Assis que acontecerá em Paris, no próximo dia primeiro de dezembro.Na ocasião, além da presença de especialistas na obra machadiana e histo-riadores do Brasil, alguns colegas da APPOA estarão contribuindo com seutrabalho.

JOURNÉES DE L’ASSOCIATION LACANIENNE INTERNATIONALELEITURAS BRASILEIRAS

Le cartel psychanalytique franco-brésilien organiseDimanche 1er décembre 2002

de 9h30 à 12h30 et de 14h30 à 17h30A l’Association lacanienne internationale

25, rue de Lille, 75007 ParisTél: 01 42 60 14 43

A CLÍNICA DO ESPECULAR NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS

O que é da representação do desdobramento especular na narrativaliterária? Freud interessou-se particularmente pela evolução da tema do du-plo (O estranho, 1919). Ele destacou, a partir da obra de Otto Rank (1914),duas funções do duplo: em um tempo precoce de segurança contra o desa-parecimento do eu e, com o desenvolvimento do eu, do anunciador inquietan-te da morte. Como isto que assegura a sobrevivência pode vir a anunciar amorte? Problemática bem ilustrada pela clínica do especular, destacado so-bretudo pelo ensino de Jaques Lacan.

O escritor brasileiro Machado de Assis1 (1839-1908) concebeu magis-tralmente uma galeria de personagens onde a construção metódica e rigoro-

1Suggestions bibliographiques : Le philosophe et le chien Quincas Borba, Paris, Métailie,1997.Dom Casmurro. Paris, Métailie, 1983. Esaü et Jacob , Paris, Métailie, 1985. L’Aliéniste, Paris,Métailié, 1995. Les contes Le miroir et Des bras extraits de La montre en or, Paris, Métailié/Unesco, 1987, ainsi que le conte Pai contra mãe, non traduit en français.

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A UTOPIA E A FUNÇÃO SOCIAL DA ARTE

As construções utópicas sempre foram a matéria prima tanto no cam-po da arte quanto no da psicanálise. Poder confrontar uma forma, umpensamento, um sintoma com seus limites, abre a trilha para que o

desejo possa ser reconhecido em sua função de desequilibrar o eixo dodiscurso. Este é movido, muitas vezes, pelo que Lacan denomina no Semi-nário A Ética da Psicanálise como a tirania da memória. Dela vem umacompulsão à repetição, produzindo grandes obstáculos à imaginação,recobrindo nosso futuro com o murmúrio das formas cansadas, estagnadase conservadoras.

Se alguns discursos contemporâneos conseguiram algum êxito nadesqualificação da utopia, isso certamente é fruto do equívoco de tomá-laesvaziada de sua função crítica. Ora, a utopia sempre teve, na história, odesafio de interpretar o seu tempo, na medida em que as formas ideaisprocuravam apontar para o “em falta” na vida, abrindo, portanto, lugares parao desejo. Isso é o essencial. A “Utopia” construída por Thomas Morus, porexemplo, estava ali não para nos transportarmos para uma ilha em um nãolugar qualquer, mas para permitir uma viagem para dentro da história dopresente. Por isso, a utopia efetivamente pode ser pensada como formaçãodo inconsciente, pois funciona enquanto interrupção de uma série significante.Não poderíamos encontrar aqui pistas relevantes desse diálogo, principal-mente quando Lacan propõe pensar o inconsciente como da ordem do nãorealizado? Como lembra Fredric Jamenson, o valor epistemológico da utopiaestá nas paredes que ela nos permite perceber em torno de nossas mentese nos limites invisíveis que nos possibilita detectar no atoleiro de nossasimaginações.

Por isso falar em “utopia e a função social da arte” implica necessa-riamente nos debruçarmos sobre o conceito de ato: o analítico e o criativo.É interessante lembrar que Lacan inicia seu seminário O Ato Analítico dis-correndo sobre o ato na poesia. Ato implica, portanto, colocar em cenanovas formas. Reunimos, neste número do Correio da APPOA, um diálogoque acreditamos ser cada vez mais promissor entre psicanálise, artes visu-ais e literatura.

Edson Luiz André de Sousa

CONVERGÊNCIA EM MILÃO

Nos próximos dias 23 e 24 de novembro a Comissão de Enlace Geral– CEG – da Convergência – Movimento Lacaniano por uma PsicanáliseFreudiana – estará reunida em Milão, Itália. O encontro congrega delegadosde todas as instituições que convocam o movimento e acontece anualmentena América ou Europa, tendo por objetivo avaliar as iniciativas tomadas emagosto do ano passado em Recife/PE e discutir os rumos da Convergência.

Entre os pontos da pauta, além da entrada de novas instituições, es-tarão em discussão os preparativos para o próximo Congresso que tem datamarcada para maio de 2004, no Rio de Janeiro.

SEÇÃO TEMÁTICA

Discutant: Stéphane ThibiergeModalités du double machadien : qu’en est-il de l’agressivité?Maria Roneide Cardoso-Gil

ParenthèsesRoland Chemama

Droit d’entrée:40 Euros individuel20 Euros étudiant, sur présentation de la carte universitaire

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Nesse momento, a arte, como um fazer, uma produção humana sem-pre renovada, desde a expressão até a transformação, e passando conti-nuadamente pelo sensível, pelo vivo da compreensão (Holanda, 1977; Tassinari2001) é, em si mesma, o lugar dos sujeitos, de uma nova utopia de presen-ça, de presente, com memórias e convívio, e ainda com sonhos, isto é, coma possibilidade de futuro. Falo agora, de uma poesia, uma produção nãodelegada às telas midiáticas, meios imediatos, fins disfarçados, camufla-dos, quando vidas são transformadas, sem se transformarem. Arte aqui,seria um fazer, um presente que é dádiva viva.

Antonin Artaud tinha um carinho especial pelo teatro – mas desenha-va e pintava, e tinha trabalhos reconhecidos, também nas artes plásticas –achava estar lá, no teatro a dicção mais completa da arte, e que a arte estásempre, a dizer alguma coisa, “com as formas que nos rodeiam”, e não paraverificar teorias, (Thevenin, 2000), sobretudo as teorias pret-à-porter, comoas atuais. A arte, para este homem, Artaud, é lugar do dizer. A expressãopara ele é o que importa. Para Hortênsia de Holanda, a própria saúde vemcomo expressão de vida. A repetição, a morte ou a pobreza de espírito, é opróprio mal estar da cultura (Freud, 1930).

O modelo não está, para o artista, para ser repetido, mas para, atra-vés dele, ser dito algo da vida, “uma certa soma de humanidades do artista,através de cores e dos traços”... dos restos, rastros de recordação, comodisse Freud. Nos sestros, esses rastros ficam coagulados e, assim, nãoapontam sentidos, enquanto no traço do artista, há uma transmissão “sejade uma maturidade da arte ou uma secreta palpitação da vida de um mode-lo”. E todos nós podemos sentir palpitar em nós, muito tempo depois dafeitura da obra, emoções de sempre, pois, para a verdadeira arte, o modernocontém sempre algo de clássico, e o clássico trará sempre consigo o revo-lucionário, como nos ensinou Argan. Esse palpitar se derramará, seja noquadro do teatro, seja da tela, um lugar de encontros, como em uma praçapública, para todos nós.

O trabalho escrito das revistas, ditas de ciência, não tem permitidomais o novo. Aí os objetos devem ser, a priori, nomeados.

A ARTE É UM ESPAÇO DE INVENÇÕES, DE VIDA A PROCURAR PELO AVESSO DO SINTOMA

Jorge de Campos Valadares1

Aciência parece estar a pedir uma moratória, como têm ressaltadovários autores, (Caporali,1999. Enrique Leff 2002). Está pedindo umtempo. Os dispositivos devem ceder algum lugar às disposições.

Não é possível mais uma reflexão infinita, um experimentar ilimitado a trans-formarem o instrumento em razão, em medida primeira da vida. O que temacontecido é que as próprias vidas se transformaram em instrumento. Instru-mento de produzir imagens, de produzir sestros, manhas e tiques a serem,em si, aparências, faz-de-conta, semblants, sintomas, uma meia vida (Naipul)ou um meio de vida, mesmos, clones, um vazio. Somos, agora, o desenvol-vimento de meios a serem um fim para uns, mas que, para a própria socieda-de e seus sujeitos, tem sido um desgaste, como na biotecnologia avançada,nos laboratórios de farmacologia avançada, nas “media” avançadas. Na pró-pria Saúde Coletiva – que no pensamento pré-psicanalítico ainda é SaúdePública, um objeto no mínimo estranho – o fazer pelos sujeitos já se confun-de com um fazer pela máquina administrativa.

Aparece uma nova comunicação “em tempo real”, sem proximidade e,portanto, sem distância, (Valadares et alii, 2002) ou seja, um tempo de repe-tição, do mesmo, sem invenção, onde as coisas são aquilo a dever tomar olugar do calor de nosso afeto, e passa a ser nosso próprio sangue coaguladona imagem vinda de fora. A luz natural é retirada e colocada outra, artificial,como nos shoppings, para, impedindo se diferenciar dia e noite, não se per-ceber que a vida está a passar, a correr, e, então, nesse tempo sem tempo,o prazer também, tresloucadamente, deve vir de fora, com essa luminosidadefrenética e falsa. É nesse sentido que Milton Santos (1999) dizia que “a forçados fracos é seu tempo lento”.

1 Psicanalista, professor da Fundação Oswaldo Cruz/RJ. Membro do Círculo Psicanalítico doRio de Janeiro.

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pre-ocupações (Concern, Winnicott). Esse ponto de inflexão, entretanto,embora sendo o gerador de nossa “sença” – nossa forma de ser no mundo aqual inclui um sentir esse mundo – pode não ser aquilo sobre o que, para ogrupo no seio do qual convivemos, ou para nós mesmos, seja convenienteagir ou mesmo pensar, em determinado momento.

Por outro lado, o mundo conta com um visível e um invisível, um eoutro se situando mutuamente (M.Ponty). O observador deve “se tocar”, “comouma mão que toca a outra, no momento mesmo em que esta outra apalpa ascoisas”. É como se a pessoa que escolhe a coisa a ser considerada, umavez que depende da percepção, somente pode perceber, se conhecer o per-cebido, se co-nascer com o percebido, isto é, se degustar o momento emque se percebe, e ao mesmo tempo poder expressar esse conhecimento. Édesse acolhimento do e pelo mundo sempre nascente quotidianamente quese ocupa o artista. Ele está em traje de gala onde aparece o visceral. Porquea percepção é também uma festa íntima: sou eu que acaricio minha mão quetoca o mundo. Eu, nesse lugar sempre nascente, estou a encaminhar algode mim para o mundo, como antes meus pais me puxavam pela mão. Há,pois, aí uma continuidade quando me toco apoiado por outros “toques” –ligados ao ideal – e uma descontinuidade, quando tomo a mim a iniciativa etambém o gesto de me tocar.

Há, pois, uma pessoa humana que percebe e as coisas do mundo aserem percebidas, como entidades autônomas e, a percepção, como algoterceiro, a decidir sobre quando os dois – as coisas e os sujeitos – existem.E o que merece o nome de percepção se dá numa situação em que osujeito e as coisas têm acesso, ao mesmo tempo, ao mundo em uma ação,um acontecimento.

As coisas, entretanto, existem, lá onde estão, se pensarmos etica-mente, independentes do que possamos delas pensar. Um exemplo cotidia-no nosso, no Brasil, é a fome de quase um terço da população, a existirindependente das nossas percepções. O mundo interno nosso pode trans-formar a realidade em um fato impensado. “Que comam brioche”, como dis-se a malfadada rainha, Maria Antonieta.

As assemblages, os rejuntamentos vindos de uma “revolução molecular”(Guatari, 1981), onde o novo aparece pela mão trêmula a nos levar por cami-nhos mal encontrados, ora com lembranças, ora com tentativas. Como narepresentação do teatro, por exemplo, onde o ator recebe seu nome na cul-tura porque encontra um jeito, algo titubeante, um pequeno tremor – masque pode causar algo inesquecível – ou um trejeito de dizer a mensagem doautor – e também a sua e a da platéia – através da ação modelar do persona-gem. Aí e no quadro, no caso do artista plástico, rejuntando “espírito e sensibi-lidade” o artista tem necessidade de expressar-se, como uma necessidade deviver e de mostrar sua visão carregada de vida e vitalidade. Não se trata dereproduzir a realidade, como em um reality-show, porque sua visão o faz ver,mas o que ele vê não confirma sua visão, “e então precisa deformar o que vê”.

Giulio Carlo Argan, talvez o maior historiador da arte do século XX,Prefeito de Roma, senador italiano, com uma vida ligada à universidade eraum homem que conhecia o lugar prático da arte na Vida. Conhecia comonenhum outro o que foi o Renascimento. Para ele, em sua teoria da perspec-tiva, vinda de Brunelleschi e Alberti, a visão não é um fenômeno ligado à óticae à física. É um ato da mente. É lugar de formações e deformações.

Há, hoje, uma necessidade de se localizar o que tem valor e mereçaser considerado em uma reflexão e deva estar a produzir as ações. Quais ostemas que seriam centrais para a nossa vida, nesse mundo de velocidades ede excesso de informações?

A psicologia da atenção que, por volta de 1910, mereceu todo o cuida-do de Freud, foi por ele logo depois abandonada, em favor de estudos sobrea atenção flutuante e com a associação livre.

Sabemos que aquilo que deve merecer nosso cuidado maior fica pro-tegido de nós mesmos no inconsciente, e que pode se manifestar no impen-sado... em atos imprevisíveis. E, para nos aproximarmos desse impensado,devemos efetuar um trabalho: nos deixarmos levar por temas, de início, pen-sados como não tendo nenhuma importância. Entretanto, com tudo aquiloque vai, aos poucos, chegando a nossas cogitações, podemos, dentro deum certo tempo, atingir um ponto de inflexão, no mais profundo de nossas

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comum onde seríamos “com-juntamente”, em uma constelação (Zusammenhang),em que não nos anteciparíamos nem nos atrasaríamos nos acontecimentosdo convívio, como se dá no observador, sonhado por Velasquez, na sua infi-nita obra, “As Meninas”.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAARGAN, Giulio Carlo, 1999. Clássico Anticlássico. Companhia das Letras. São

Paulo.BATELLA, Juva. 2002. “Uma vida pela metade”. In Ideias, Jornal do Brasil, 3 de

agosto.CAPORALI, Renato. 1999. Ética & Educação. Gryphus. Rio de Janeiro.LEFF, Henrique. 2002. “Conferência no II Seminário Nacional sobre Saúde e

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Co. Ltd.. Londres .GUATTARI, Felix. 1981. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo.

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Ministério da Saúde (DNES) em parceria com o Ministério da Educação(PREMEN).

LIMA, Silvana Mendes. 2002. Modos de subjetivação na condição de aprendiz: umaanálise de perspectivas educativas no âmbito do trabalho, da arte, e da saúde.Tese de doutoramento apresentado à Escola Nacional de Saúde Pública. Fiocruz.

MERLEAU PONTY, Maurice. 1964. O Visível e o Invisível. Perspectiva. São Paulo.SANTOS, Milton. 1996. Metrópole: A força dos fracos é seu tempo lento, in Técni-

ca Espaço Tempo. Globalização e meio técnico-científico informacional.Huicitec. São Paulo.

TASSINARI Alberto. 2001. O espaço moderno. Cosac & Naify. São Paulo.THEVENIN, Paule. 1986. “La recherche d’un monde perdu”. In Thevenin, P. e

Derrida, J . Antonin Artaud. Dessins et Portraits. Gallimard. Paris.VALADARES, Jorge de Campos et alii. 2002. “Proximidade e Distância Necessá-

rias ao Convívio e à Diversidade”. Anais do II Seminário sobre Saúde e Ambi-ente no Processo de Desenvolvimento. Fiocruz. Rio de Janeiro.

Por isso, podemos dizer que há o olhar e a visão. E podemos estarpróximos ou distantes das coisas que olhamos, se juntamos ou não, osdois. Inicialmente, sabemos que não há uma garantia de que a coisa olhadaseja vista. Não se trata de uma função da física, da ótica, onde estudamosidealmente, às vezes com o rigor da ciência, que um raio de luz incidindosobre o olho produz um percurso e deixa esse fato gravado na retina, regis-trando o objeto iluminado por ele. Há mais, as questões ligadas ao “lugar” doobservador, ao seu horizonte, seu ponto de vista, suas capacidade de estabele-cer proporções – função central da perspectiva – de proporcionar, de se propor-cionar, sua profundidade, e, por isso, já sabemos que perspectiva é mais doque ótica (Argan). A profundidade, na arte, é uma questão de um jogo de ver oque nos é mostrado ao mesmo tempo em que nos tocamos com esta visibilida-de. Aí podemos ver, ao olharmos, pois somos juntamente com um outro.

O sujeito em situ-ação de desamparo (Hilfilosigkeit), quando abando-nado, quando em desespero, mais visivelmente personificado no jovem delin-qüente e traficante de drogas, deve matar, indiferentemente de quem seja oalvo: é luta por sobrevida, quase como o faria um “ser de natureza”. Lei éapenas a de uma “cadeia alimentar”, isto é, algo do campo da necessidade.No caso da arte, no limite, o campo em questão já é o do desejo, como nofilme “ A mulher do atirador de facas”; o marido atira, propositalmente nela,“procurando não acertar” (Lima 2002).

Há um espaço na cultura onde olhar e visão nos convocam, nos pro-porcionam uma utopia do encontro do homem e com o mundo. Esse espaçoé o espaço da arte. Com ela, podemos imaginar uma ética onde, para além(Jenseits), no reverso de uma estética do horror, fatos, como a fome, pos-sam ser trazidos, dizemos em outra “perspéctica”: proporcionadas em umlugar, por onde o impensado, um dia, possa se saciar em banquete e, ondeo ideal, sendo o laço fraterno, é o convivido a aparecer como a maior dádiva.

Trata-se, pois, de uma geografia onde o cenário utópico, do qual fala-mos, não permitiria “passagem ao ato”, fuga para frente que elimina o outro,pois aquele cenário é lugar onde todos podem ser sujeitos e onde a própriavida humana pode ser uma manifestação da arte. Teríamos o fato quotidiano

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aproprio. Walter Benjamin sublinha esse impasse quando faz referência àsformas alienadas de estar na cultura. “Nem sempre eles são ignorantes ouinexperientes. Muitas vezes, podemos afirmar o oposto: eles “devoraram”tudo, a “cultura” e os “homens”, e ficaram saciados e exaustos”2.

Podemos imaginar o quanto o estado de exaustão abre caminho paraa pasteurização do gosto, impondo ao sujeito os ideais que deve aderir sequer ser minimamente recompensado com uma tímida sensação de confor-to. Com o enfraquecimento dos laços de sua história e identidade, fica adisposição do mercado que não se esquece de cobrar de cada um, com osjuros da própria vida, as promessas em que se engajou. Paradoxalmente, énão pagando esta dívida que podemos restaurar nosso crédito com o futuro.

Se por um lado é fundamental resgatarmos, na arqueologia de nossasorigens uma identidade, mesmo incipiente, mas que nos informe de algunstraços de nossa herança , por outro, devemos nos apressar em dizer que elanão é suficiente. É preciso confrontá-la com uma alteridade que a instigue,que a transforme, que a questione. O confronto com a diversidade é funda-mental para interpelar as compulsões conservadoras do “si mesmo” e abrirbrechas na identidade. Nesse ponto, o desenho mais claro é de uma zonade fronteira que nos mostra o quanto nos apropriamos de um sentido essen-cial quando pisamos na terra do outro. Por isso Heidegger insistia em dizerque uma fronteira não é o ponto onde algo termina mas, como os gregosreconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazerpresente.

Pensar em produção cultural em nossa contemporaneidade implica,necessariamente, questionar o clássico isomorfismo entre espaço, lugar ecultura. Quando falamos em culturas nacionais, estamos apagando algu-mas fronteiras que, mesmo minoritárias, não se reconhecem na hegemoniado conceito. Muitos pensadores tem ultimamente trabalhado nessa direção.

2 BENJAMIN, Walter. “Experiência e Pobreza” in: Obras Escolhidas, Vol. 1, São Paulo,Brasiliense, 1994, p.118

AS UTOPIAS COMO ÂNCORAS SIMBÓLICAS1

Edson Luiz André de Sousa

“O distanciamento é um fator de aproximação”Karl Kraus

Num estado de dispersão de idéias que conduz a uma anestesia davida, o sujeito contemporâneo imediatamente se confronta com umasensação de abandono e de fracasso. Na medida em que ele não

pode nada enunciar legitimamente em seu nome próprio, descobre-se es-trangeiro em sua terra natal e, desesperadamente, tenta conter seu tédio edesânimo com algum artifício que restitua a sensação, mesmo incipiente, deestar contido em algum lugar. A teoria dos conjuntos que anima a lógica domercado, princípio motor de nosso tempo, já é conhecida de todos: consu-mo, logo sou. Apropriar-se do objeto confere ao sujeito um ar de superiorida-de e de consistência, mesmo que para isto tenha que fechar os olhos para oimenso vazio que anima sua existência.

Esse objeto pode ter muitas faces: do carro novo ao city tour da via-gem de férias, do fast food ao novo software, do reality show às produçõesculturais. Um mergulho na cultura não é suficiente como garantia contra atentação de se fartar no buffet livre do mercado de idéias. Talvez aqui tenhasentido uma dietética que possa nos garantir alguns princípios morais e nosproteger de uma obesidade precoce que nos imobiliza. Nosso tempo criouum novo tipo de anestesia dos sentidos pelo excesso de estímulos e, maisdo que isso, pelo imperativo que impõe um consumo a qualquer preço. Per-cebemos aí que o essencial é o estilo de “relação” (quando há uma) e , nãosimplesmente, uma confiança cega no valor intrínseco do objeto do qual me

1 Publicado originalmente no Caderno de Cultura do Jornal Zero Hora do dia 16/03/2002.

SOUSA, E. L. A. DE As utopias como âncoras...

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missão de arrancar os sujeitos do pântano do senso comum, que institui ossentidos aos quais deveríamos nos curvar. A utopia tem aqui uma função deconvite à imaginação. Ela permite que os sujeitos possam fazer dos espa-ços que vivem um lugar. Abre, portanto, lugares para imagens possíveis.Todo ato criativo traz em si uma utopia. O sentido da utopia não seria, numprimeiro momento, de ir em direção ao real, mas, sobretudo, contra o real.Normalmente, pensa-se em utopia como algo fora da realidade, ilusão, eva-são, fantasia, delírio, projetos vazios. Essa forma de utopia funcionaria noclássico vetor presente – futuro. Seu horizonte seria sempre de buscar tor-nar-se real. Se ficamos restritos a essa perspectiva, tais formas utópicasperdem sua força. Como propõe Roger Dadoun5 podemos inverter o sentidodo vetor e pensar a utopia como um movimento que vai do futuro ao passado,numa correnteza contra a realidade. A utopia adquire, aqui, sua virtude decrítica social.

Trata-se, por conseguinte, de imagens que podem funcionar comoâncoras simbólicas fundando lugares. Essa voz da imaginação, que tantodeveríamos esperar dos intelectuais, se consolida quando estes se compro-metem, com sua obra, no debate dos valores do seu tempo. A cultura fazlaço social e por isso não pode se tornar território privativo de poucos e zonarestrita de especialistas nem sempre dispostos a lutar pelo bem comum eque facilmente esquecem a dimensão política de uma produção. Se pensar-mos a cultura como viagem, como sugere James Clifford, percebemos queela cria novos territórios de circulação e de vidas possíveis. Ela tem que,necessariamente, estar presente em qualquer política de inclusão social.

Torna-se cada vez mais necessária uma utopia que cumpra a funçãode despertar e que possa combater as múltiplas faces da violência a qualestamos confrontados: a violência do dogmatismo, a violência da hegemoniadas formas do senso comum que impedem o aparecimento do novo,anestesiando as singularidades, a violência das discussões políticas vaziasde atitudes.

5 BARBANTI, Roberto (org.). “L’art au Xxe siècle et l’utopie”, Paris, L’Harmattan, 2000.

Um deles, Homi Bhabha, chega a dizer que “o que é teoricamente inovador epoliticamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de sub-jetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou proces-sos que são produzidos na articulação de diferenças culturais”3.

Esse cruzamento de territórios, embora seja aparentemente consen-sual, revela também seus impasses, principalmente a voracidade de certasformas que não toleram o que é destoante. São múltiplas as formas de ex-clusão que desautorizam qualquer esforço de mudança do laço social. Mes-mo os grupos aparentemente coesos e “harmônicos” sabem desse perigo ese protegem a sete chaves. Qual é o ponto de silêncio em um determinadogrupo? Ora, o que liga um coletivo é certamente sua linguagem, sua história,seus rituais, mas sobretudo os limites de sua linguagem. Daniel Sibony, noseu magnífico ensaio sobre o racismo4, nos mostra que é em torno desseponto de silêncio que trabalha a função de exclusão: se um membro dogrupo evoca um ponto de silêncio, ele corre o risco de exclusão. O grupoprecisa dessa função para assegurar a sua existência, o que faz que o mes-mo seja um conjunto de pessoas decididas a se calarem sobre a mesmacoisa, a proteger esta coisa e a proteger-se dela. Percebemos aí uma formade existência que se apoia sobre a exclusão. Ora, vemos aqui a importânciade abordar esse fantasma que procura controlar a identidade de um coletivo.Estaríamos nós a altura de intervir nesse ponto com nossas idéias e nossasações?

Vivemos, em nossos dias, o impasse do descrédito atribuído à funçãodas utopias. Não podemos esquecer que a utopia sempre teve na história dahumanidade uma função de crítica social funcionando muito mais como umconvite a não tomar como definitivas, ireverssíveis e naturais as formas devida que se apresentam. Nesse sentido, ela poderia cumprir a importante

3 BHABHA, Homi. O local da cultura. Belho Horizonte, Editora UFMG, 1998, p.204 SIBONY, Daniel. O “racismo” ou o ódio identitário”, Paris, Christian Bourgois, 1997.

SOUSA, E. L. A. DE As utopias como âncoras...

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cados indicados acima, tópos tem um sentido especial em termos retóricos,dizendo respeito a categorias, a temáticas ou elementos comuns de umargumento. Aristóteles nos diz, na Retórica: “tópicos específicos têm origemem proposições que são peculiares a cada espécie ou gênero [génos] decoisas” (Ret., 1358a21-22).

As tópicas freudianas já dão notícia, antes de Lacan nos introduzir àtopologia, da importância das duas vertentes significantes do tópos grego.Inconsciente, pré-consciente e consciente; id, ego e super-ego, além delugares, de regiões psíquicas, são elementos, tópicos comuns à concei-tualização do aparelho psíquico “peculiar a [esse] gênero” de ciência a queFreud deu origem – a psicanálise. Sobretudo, tais elementos e lugares defi-nem-se por sua natureza relacional e dinâmica, diluindo, assim, qualquerconcepção meramente física, anatômica e estanque da estrutura psíquica.Algo que estava em um determinado lugar (no inconsciente), por exemplo,pode vir a se deslocar para outro lugar (e.g., pré-consciente)3, para não men-cionar as intersecções entre as duas tópicas, como trabalha Freud, por exem-plo, em “O eu e o isso” (1923b). Em suma, são relações que vão constituirestes tópoi privilegiados da psicanálise, os quais, dada sua lógica específi-ca, diversa da lógica clássica, requerem igualmente uma outra lógica discursivaque possa conceitualizá-las. “Adaequatio rei et intellectus”4, inclusive o pró-prio intelecto, lembra Lacan, a partir da máxima de São Tomás de Aquino.

No fundamento conceitual do aparelho psíquico e, portanto, da psica-nálise, temos inscrito seu caráter topo-lógico, ou seja, seu caráter de mobi-lidade, que poderá ser pensado, mais tarde, com Lacan, em termos de seusmovimentos de torção, de rotação, de translação e de enodamento. Valeinsistir no afastamento de tal lógica dos princípios de identidade e de não-contradição, basilares à lógica clássica.

3 Diga-se, nesse sentido, que tópos, em um sentido metafórico, refere-se a uma “abertura”,abertura essa da qual podemos nos apropriar para pensar na abertura do inconsciente...4 A acepção filosófica de “adequação”, fornecida pelo Dicionário Houaiss, traduz bem aquestão contida nesta máxima: “critério de verdade baseado na busca de conformidade,identidade, semelhança entre um conhecimento e um objeto que lhe corresponde no mundoconcreto; ajustamento entre o intelecto e a realidade material”.

ENTRE LUGARES:ESPECULAÇÕES SOBRE UTOPIA E PSICANÁLISE

Ana Vicentini de Azevedo1

Na tentativa de pensar possíveis articulações a respeito de utopia epsicanálise, encontro instigantes dados na etimologia. Utopia noschega do grego, com uma marca clara de negação: oú (prefixo de

negação) + tópos (região, lugar, posição, dentre outros). Através da media-ção latina (que transforma o oú grego em u), o humanista inglês, ThomasMore, cunha o neologismo “utopia” para nomear uma ilha, localizada em umnão-lugar, que serve de título à sua obra, publicada em latim, em 15162, eque vem a ser conhecida por Utopia. Nas línguas modernas, o termo utopiapassa a significar “qualquer descrição imaginativa de uma sociedade ide-al...”, ou ainda, “projeto de natureza irrealizável...; quimera ou fantasia”, comonos diz o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001). A natureza ima-ginária da utopia também está presente nas acepções do termo em outrosidiomas: “um lugar ou estado de coisas imaginário e perfeito”, define o OxfordEnglish Dictionary (1991); “vida política ou social que não toma em conta arealidade”, aponta o Petit Robert (1994), para a língua francesa, definindo oadjetivo utópico como sinônimo de imaginário.

Em face do que a psicanálise nos ensina sobre a importância da his-tória do significante, bem como do vínculo, historicamente marcado, entreutopia, ideal e imaginário, proponho deixar de lado o prefixo de negatividadedo termo u-topia e olhar mais de perto o significante tópos. Além dos signifi-

1 Psicanalista, professora do Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas(CEPPAC), Universidade de Brasília, Ph.D. em Literatura Comparada pela City University ofNew York.2 O original latino intitula-se De optimo Reipublicae statu, deque nova insula Utopia, ondepode-se ver que o tema da utopia remonta a Platão, ainda que, a partir de More, haja umatradição de ficções e tratados sobre essa questão.

AZEVEDO, A. V. DE Entre lugares...

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institucionais) entre analistas. Refiro-me a uma visão (ou prática pessoal e/ou institucional) da psicanálise como um lugar fora (imune ou acima) do mal-estar da cultura e, nesse sentido, atópico. Porém, justamente por essa pre-tensão a belas almas, acaba-se por circunscrever a psicanálise à geografiada ilha “Utopia”, de More, por encerrá-la em um espaço projetivo de eus-ideais que se entralham em disputas imaginárias. Uma das conseqüênciasnefastas de tal projeto nos é explicitada por um outro sentido de atopia, qualseja, um fora de lugar, ou, em outros termos, uma foraclusão da psicanálise.Cabe interrogar, a esse respeito, se a vertiginosa apropriação do significante“psicanálise”, por parte de grupos evangélicos, não encontrou terreno fértildado este tipo de “atopia”...9

Entre utopias e atopias, o desafio me parece ser o de pensar e sus-tentar a psicanálise entre lugares. Uma posição que tem seu fundamento naprática clínica, que se dá entre analista e analisante (e não em uma “duplaanalítica”), indicando a presença de um terceiro termo/lugar – o inconscien-te, como nos demonstrou Freud, por exemplo, em “Construções em Análi-se” (1937d). No âmbito da instituição, este entre leva ao afastamento deuma visão da instituição como um terceiro (A) encarnado, fonte de garantiase de saber. No campo das disciplinas do conhecimento, particularmente noâmbito social da universidade, à psicanálise caberia um entre-disciplinas,indo muito além de sua circunscrição atual aos institutos de psicologia.

“In media res” (em meio à coisa), recomendava Horácio aos que que-riam conselhos sobre como começar a construir uma narrativa. Ou comotambém anunciava a ária de Verdi: “la donna è móbile”. Tal como “la donna”,o fim de análise nos remete a uma lógica do não-todo, da contingência, doin-constante movimento. É nesse diapasão que me parece possível pensar epraticar a psicanálise, mantendo sua singularidade em meio, entre os tópoida cultura.

9 Obviamente tal atopia não é suficiente para explicar as razões desta apropriação.

Se a Utopia de More é um lugar em um não-lugar (a place nowhere),sob a visada da psicanálise, tal lugar – ideal, perfeito – localiza-se, por exce-lência, no espaço do imaginário. Examinar Utopia à luz deste tópos pode serum espaço rico para explorar possíveis aportes da psicanálise para a ques-tão da utopia no âmbito dos laços sociais. Entretanto, meu interesse, aqui,é inverso: em que medida esse significante, que surge no século XVI5, podenos fazer pensar sobre o lugar da psicanálise hoje?

Tendo em mente a topo-lógica que marca os fundamentos da psicaná-lise, como indico acima, essa transborda o projeto de uma utopia6, fazendo-nos pensar, num segundo momento, em uma atopia, como sugeriu recente-mente uma colega7. Novamente na esteira da etimologia, atopia indica umfora de caminho, fora de lugar. Ao invés do lugar idílico da utopia, a atopiaremete a um lugar foracluído, ainda que também comporte os sentidos de“absurdo”, de “singularidade”, de “natureza extraordinária”.

Pensar o lugar da psicanálise sob a ótica da atopia, especialmente àluz desses sentidos, é provocador. “Estranho, absurdo, extra-ordinário” sãoatributos (ou tópoi) comuns à experiência do inconsciente e, portanto, atribu-tos comum e historicamente associados à psicanálise, que marcam suatrajetória “contra-coerente”8, atópica, enquanto fora do caminho seguido porvários campos do conhecimento e da vida social.

Sob a ótica de tal natureza singular, atópica, também podemos perce-ber um outro sentido da atopia, presente não somente na etimologia, comotambém nas práticas institucionais e nas relações sociais (visto que

5 Em língua portuguesa, seu primeiro uso data do século XVII, conforme o Dicionário Houaissda Língua Portuguesa.6 Apesar de se poder ouvir ressonâncias utópicas em expressões como “polis analítica” e“sociedade psicanalítica”.7 Sugestão feita por Vânia Otero durante o debate que se seguiu à palestra de Doris Rinaldi,sobre “Ética e Política: Questões para a Psicanálise Hoje”, ministrada na Universidade deBrasília, em 22/08/2002.8 O termo é de Mieke Bal, que assim qualifica um tipo de leitura que privilegia o que outrasdeixaram de fora. A leitura contra-coerente “relaciona tudo a que é negado importância aosmotivos para tal denegação” (cf. Death and Dissymetry: The Politics of Coherence in theBook of Judges. Chicago: The University of Chicago Press, 1988, p.17).

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poesia. A poesia teria o poder de transformar o mundo ao reconciliar sonho erealidade em uma espécie de surrealidade, como ele afirma em seu primeiroManifesto do Surrealismo4. A utopia surrealista está embebida de psicanáli-se e adota Freud como uma espécie de “santo padroeiro”, como afirma anosdepois, ironicamente, o psicanalista5. O surrealismo se apropria da psicaná-lise de maneira a dela construir uma versão idealizada, inventando uma psi-canálise utópica na qual a doutrina freudiana só se reconhece com uma boadose de estranheza. Pois a psicanálise não acredita na união entre o desejoe as restrições que contra ele se erguem, ela vê, no conflito, uma situaçãoinsuperável, uma condição verdadeiramente estrutural ao psiquismo. A in-tenção sintética e totalizante de Breton, gritante na metáfora dos VasosComunicantes que dá título a um de seus livros, choca-se, como nota J.-B.Pontalis, com a visão irremediavelmente analítica de Freud, que sempre serefere a dualidades inconciliáveis6. Entre o homem e a cultura sempre haverámal-estar, e a sonhada união entre desejo e realidade constituirá sempreuma utopia. À pergunta de Breton em seu primeiro Manifesto: “o sonho nãopode ser também aplicado à resolução das questões fundamentais da vida?”7,Freud provavelmente daria uma resposta negativa. Nem mesmo um longotrabalho analítico seria capaz de assegurar, para ele, uma expressão libertáriado inconsciente.

Era inevitável, portanto, que Breton se decepcionasse com Freud aovisitá-lo em 1921. A imagem de um psicanalista pequeno-burguês conscien-ciosamente atendendo seus pacientes não condiz com o poder revolucioná-rio que a psicanálise e seu fundador encarnavam para o escritor. Freud selimita a afirmar laconicamente a Breton, nesse encontro, que “é bom podercontar com os jovens”, e parece de fato não entender o que quer o surrealismo,

UMA PSICANÁLISE PARA SALVAR O MUNDODESENCONTROS ENTRE SURREALISMO E PSICANÁLISE

Tania Rivera1

Entre arte e psicanálise, sabemos que vários encontros vêm se dando, des-de o início do século XX. A arte moderna é contemporânea à invençãofreudiana do inconsciente: na mesma época em que Cézanne questionava aposição do olho ordenador das leis da perspectiva e desestabilizava o espa-ço da obra de arte, Freud destituía o eu da posição de senhor em sua própriacasa e atraía a atenção do mundo para o sonho, para o lapso, para o esque-cimento. A psicanálise se aproxima da arte desde o início, com textos deFreud sobre o teatro, sobre o escritor criativo, e suas marcantes referênciasa Édipo Rei já em A Interpretação dos Sonhos2. Muitos artistas, emcontrapartida, cedo se interessam pela psicanálise Max Ernst, por exem-plo, declarava que a leitura de Freud havia sido fundamental para seu traba-lho3. Mas se arte e psicanálise se atraíram e se atraem até hoje, o encontroentre as duas será sempre manco, faltoso; jamais serão protagonistas deuma união feliz, sem arestas ou confrontos. Um exemplo paradigmático dodescompasso que persiste entre os dois domínios pode ser dado pelodesencontro entre Freud e o escritor francês André Breton.

Breton era estudante de psiquiatria quando se inteirou do método daassociação livre. Poucos anos depois, ele põe em prática, com PhilippeSoupault, a escrita automática, que consistia em escrever tudo o que lheviesse à cabeça. Outros procedimentos de criação serão, em seguida,adotados pelo grupo que se reúne em torno deles, explorando o princípio deacoplamento ao acaso de palavras e imagens capaz, para Breton, de gerar a

1 Psicanalista, professora da Universidade de Brasília e Doutora em Psicologia pela UniversitéCatholique de Louvain, Bélgica. esta texto se desenvolve a partir de idéias expostas no livroArte e Psicanálise, Jorge Zahar, 2002.2 Cf. o capítulo V de “A Interpretação dos Sonhos”, in Edição Standard Brasileira das ObrasPsicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. IV, Rio de Janeiro, Imago, 1974.3 Cf. Bischoff, U., Max Ernst (1891-1976). Para Além da Pintura, Colônia, Taschen, 1993.

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4 Cf. Breton, A., “Manifesto do Surrealismo”, in Manifestos do Surrealismo, Rio de Janeiro,Nau, 2001.5 Em carta a Stephan Zweig, in Freud, S. & Zweig, S., Correspondance, Paris, Payot &Rivages, 1995, p. 128.6 Cf. Pontalis, J.-B., “Os Vasos Não-comunicantes”, in Perder de Vista. Da Fantasia deRecuperação do Objeto Perdido, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1991.7 Breton, A., op. cit., p. 26.

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cia o reino do imaginário; isso não significa, contudo, que nele se estaria asalvo das limitações, mas, muito pelo contrário, que é justamente a impossi-bilidade que o caracteriza, e é nisso, precisamente que ele se aproxima deuma utopia, em sua etimologia grega ou – (prefixo de negação) topos, umtopos que se define negativamente. Não há lugar para o desejo senão esteem que ele se choca com sua impossibilidade, e neste não-lugar a ilusãoconstrói então um país perfeito.

A negatividade delimitando um lugar é justamente o que Lacan ressal-tará, algumas décadas depois, com das Ding. A Coisa, o objeto primordial,está desde sempre inacessível, e é por sua ausência que ela delimita umlugar vazio em torno do qual vai girar o objeto da pulsão. Assim a sublimaçãoconsiste, no célebre enunciado de 1960, em elevar “um objeto à dignidade daCoisa”11. Esse seria o projeto propriamente utópico: o de pôr um objeto umobjeto qualquer em uma posição elevada, socialmente valorizada, que, con-tudo, é lugar nenhum, que é o local da ausência, onde se inscreve a Coisadesde sempre subtraída.

Entre a utopia surrealista com suas reverberações políticas, além deestéticas, e a utopia em que a psicanálise circunscreve o fazer artístico, há,sem dúvida, uma dissonância, visto que a primeira é positiva, assumindo edefendendo a possibilidade de sua realização, enquanto a segunda ressaltaa sua impossibilidade, sua falta de lugar, sua negatividade. Mas a sublima-ção carrega esses dois pólos, ela cava um espaço vazio e convida a que eleseja preenchido, como a feitura de um vaso permite figurar. Esse utensílio queindica com certeza, quando encontrado em escavações, a presença do ho-mem, é um objeto que, como nota Lacan ainda no seminário sobre a ética dapsicanálise, define-se como delimitando um vazio, e tal vazio, ao se formar,abre, no mesmo golpe, a possibilidade de ser preenchido com alguma coisa.

Em torno desse vazio a criação artística dá repetidamente forma àutopia de reencontrar a Coisa. O fazer psicanalítico, por sua vez, não cessade repetidamente tramar-se em volta do objeto perdido, refazendo sua au-sência.

como lhe declara explicitamente em correspondência de 19328. O psicana-lista não “entendia” e não gostava da arte moderna, chegando algumas ve-zes a ser impiedoso a seu respeito, como quando afirma a Pfister que osexpres-sionistas não merecem ser qualificados de artistas. Assim, Freudprefere se referir em seus trabalhos a obras clássicas de Michelangelo, Leo-nardo da Vinci e Shakespeare, apesar de exercer influência nos movimentosartísticos de sua época e manter algum contato pessoal com escritorescomo Stephan Zweig, Romain Roland ou Rainer-Maria Rilke.

Mas além de um mal-entendido, a versão idealizada de psicanáliseem torno da qual o surrealismo se constrói não revelaria uma operação pró-pria à arte, e que podemos formular como uma espécie de distorção em dire-ção a uma utopia? Freud ele mesmo afirma, em “O Interesse da Psicanálise”,que a arte formaria uma espécie de “reino intermediário” entre a realidade quese põe ao desejo e o mundo imaginário que o realizaria9. Para o psicanalista, oartista é um homem que, como todo neurótico, se rebela contra a realidade quese opõe à satisfação de seus desejos; graças a seu talento, porém, ele encon-tra, na criação, um desvio que lhe permite reconciliar-se com a realidade. Eleaspira a uma espécie de autoliberação, e, através de sua obra, outros po-dem alcançar tal liberação. Essas idéias mostram que a teoria freudianapartilha com as vanguardas de seu tempo um certo tom libertário e idealizadoquanto à arte e aos artistas, apesar do próprio Freud denunciar a arte comouma das ilusões caras à civilização. Aliás, a ilusão é vista por ele não comoum demérito, mas como fundamental à arte, na medida em que ela é, comoconsta em “O Mal-Estar na Civilização”, psiquicamente eficiente10.

O artista, segundo a própria formulação freudiana, é um fazedor deutopia na medida em que ele se rebela contra a realidade que barra a satis-fação pulsional e aponta para outro lugar, fictício como a ilha de ThomasMorus, onde o desejo estaria em casa. Tal lugar é ilusório, ele é por excelên-

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8 Cf. as cartas trocadas entre o psicanalista e o poeta em Freud, S., Oeuvres Complètes , vol.XIX, Paris, P.U.F., 1995.9 Cf. Freud, S., “O Interesse Científico da Psicanálise” (1913), in Edição Standard Brasileiradas Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. VIII, Rio de Janeiro, Imago,1974.10 Cf. Freud, S., “O Mal-estar na Civilização”, in op. cit., vol. XXI, p. 93.

11As duas citações de Lacan estão em O Seminário, livro 7, A Ética da Psicanálise, Rio deJaneiro, Jorge Zahar, 1988, p. 140-141.

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senso de impasse e as hesitações – e até os deslocamentos –, que são mui-tas vezes provocados pela manutenção do comum nas unidades de relação dapoesia brasileira contemporânea: com o seu tempo, com a busca de lugar – deum locus (digamos assim) –, e, mais adiante, também com a crítica (porqueesta, quase sempre, muito mais vezes, não consegue acompanhar o poema) ecom ela própria. E ainda, é esta mesma manutenção do comum que dá para apoesia contemporânea um lugar, por mais aparente que seja, e que é tambéma sustentação do seu desejo de ter um locus evidente, claro: como quemolha do exterior para uma janela aberta ou para uma janela cerrada.

Ampliando um pouco, há ainda um senso estreito de vinculação, qua-se sempre raso, um apontamento para atribuir ao poema uma nomeação,um sentido imediato, como talvez dizê-lo, por exemplo, pós-moderno ape-nas porque está sendo produzido nesta época. Isso pode provocar a questãoda necessidade de construção desse locus: 1) Sabê-lo ausente e manter ocomum pode ser não se dar conta dos impasses e das hesitações e apenasprovocar uma prospecção para o antes (o problema trazido de Barthes). 2) Eainda, como é possível pensar essa produção mais ou menos dentro desseduplo movimento se ao mesmo tempo ela não é estanque, se ela também émovimento constante?

Assim, entender também que ambos os movimentos são pensadosnuma cautela do provisório para o olhar e para a interlocução, que provávelseja a maneira possível, hoje, para um leitor que tome como objeto maior desuas circunstâncias os autores vivos e as obras em curso. Algo como proporpara a poesia um movimento intenso de geração de significados, como seuma re-politização da forma, como um bloqueio ao consumo passivo da pa-lavra (numa tentativa de re-territorializar o leitor deslocando-o de seu lugarfixo, propondo até um lugar, mas mais inseguro). E assim, resumindo e re-contextualizando o que disse Esteban Pujals Gesali3 quando tratava de ou-tro tema poético, mas passeava por este problema: pensar o poema como umatranscendência da uni-direcionalidade autoritária do discurso. Como uma tenta-

3 GESALI, Esteban Pujals. Arquitextura: a língua da recente poesia nos EUA , em RevistaInimigo Rumor, n.11. Rio de Janeiro/Lisboa: 7Letras/Cotovia e Angelus Novus; 2001.

IMPASSE E HESITAÇÃO NA POESIABRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

Manoel Ricardo de Lima1

“O dente do tempo rói o ser das coisas.”João Guimarães Rosa

Roland Barthes, em “A Câmara Clara”, bonito ensaio escrito em 1979,comenta, a certa altura, acerca de um desejo de habitação. Diz queeste desejo é fantasmático e preso a uma espécie de vidência que o

leva para adiante, para um certo tempo utópico e que também o reporta paratrás, para não sei onde de mim mesmo. De fato, um duplo movimento, comoafirma no texto, e como lembra que aparece em Baudelaire, e, obviamente,não só nos poemas que cita (Vida Anterior, Convite à Viagem), mas emalguns outros, como também no muito bonito As Janelas, do que cito umfragmento: “Quem olha do exterior para uma janela aberta nunca vê tantascoisas como quem olha para uma janela cerrada. Não existe objeto maisprofundo, mais deslumbrante, do que uma janela alumiada por uma candeia.O que se pode ver à luz do Sol é sempre menos interessante do que o que sepassa atrás dum vidro. Nesse buraco negro ou luminoso vive a vida, sofre avida”2.

Este pequeno problema disposto por Barthes, que já aparecia emBaudelaire, para tratar de algumas questões suas que passam pela fotogra-fia e por sua relação com ela, pode ser tomado emprestado para pensarsobre a produção da poesia brasileira contemporânea. É quase notório o

1 Professor de Literatura e Semiótica na Universidade de Fortaleza, UNIFOR. Articulista deLiteratura do jornal O Povo. Autor de Embrulho (7Letras, RJ, 2000), Falas Inacabadas –objetos e um poema, com Elida Tessler (Tomo Editorial, RS, 2000) e Entre Percurso eVanguarda – alguma poesia de P. Leminski (Annablume, SP, 2002).2 BAUDELAIRE, Charles. As janelas , em O Spleen de Paris. Trad. de Antonio PinheiroGuimarães. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.

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tição. A maior parte da poesia brasileira contemporânea de fato é a mesmacoisa. O tema das grandes cidades e seu desamparo social, por exemplo, éo mais apresentado. Erguido pela incongruência do convívio, pela miséria,pelo esgotamento, por uma certa impaciência e pela falta do justo, fazemdele o signo mais marcado por uma poesia erigida ainda fragilmente diantedas enormes impossibilidades e gigantescos desvios que estas cidadesimpõem. Chamo-as de cidades-vintém6.

E se tomamos isso como princípio comum da poesia brasileira con-temporânea, os desvios provocados pela cidade – em nosso caso, brasileiro,estas cidades demasiado empobrecidas de matéria, logo de alma –, as per-cepções dela, num sujeito e numa poética que perdem o controle, sedesumanizam, se desvinculam, procuram se redescobrir como desabitados,mínimos pontos de um sem lugar é ou seria o caminho mais evidente. Mascomo variantes, há poemas que tentam trazer de volta, carregam em si, umaternura para atribuir a essas cidades, no caso específico desse tema, um“locus”, uma possibilidade, um desejo de habitação. Da mesma forma, queleva a poesia adiante, para um certo tempo utópico; também a reporta paratrás, para o não sei onde dela mesmo.

Recentemente, três livros de poemas, todos publicados em 2002, cha-maram atenção com várias perspectivas e dados que podem ser acrescidosa este movimento: Hoje como ontem ao meio dia7, de Heitor Ferraz; NovoEndereço8, de Fabio Weintraub e Objetos9, de Carlos Augusto Lima. Abaixo,um poema de cada livro, de cada autor citado, respectivamente:

ESPELHO

Antes de sairconheço o itinerário que a cada manhã repitoque todas as manhãs refaço

6 Expressão criada pelo autor.7 FERRAZ, Heitor. Hoje como ontem ao meio dia. Rio de Janeiro: 7Letras, 2002.8 WEINTRAUB, Fabio. Novo Endereço. Coleção Janela do Caos. São Paulo: Nankin Editorial,2002.9 LIMA, Carlos Augusto Lima. Objetos. Coleção Cacto. Santo André, SP: Alpharrabio Edi-ções, 2002.

tiva de não reduzir as línguas aos valores mais simples, nem o poema a um atode revelação de um fragmento da vida interior ou ‘privada’ de seu autor e nemsubordinar a língua a uma realidade entendida como anterior, clara. Para quea poesia não seja pensada, vista, como uma arte de manutenção de formas,como pensavam T.S. Eliot, W.H. Auden ou Robert Frost (ou Jorge de Lima ouGuilherme de Almeida, no Brasil), mas uma arte de criar formas. Partir, de fato,para alguma radicalidade serena: “Não falamos para que me entendas mas simporque me entendes”. Gesali continua dizendo, para exemplo nosso aqui:

“(...) a etiqueta da pós-modernidade não seria hoje esta ‘necessidade’se a modernidade tivesse sido utilizada para designar os verdadeiros moder-nos (e talvez apenas eles – grifo meu): Stein, Duchamp, Klebnikov,Kruchonnyck, Tzara, Zukofsky, condenados hoje a uma proto-pós-modernidade que não pode mais ser paradoxal”4.

Acrescento aí, no Brasil, algo de nosso Modernismo, mais maduro emais convicto dos revezes, do impasse e da hesitação, para citar comoexemplos de nossas mais intensas referências desses movimentos de gera-ção de significados: João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes, CarlosDrummond de Andrade, Haroldo de Campos e, bem de levezinho, mais umou outro. Enfim, “poetas propensos à recusa de formas batidas e com sen-sos vivos para pensar a modernidade como liberação”5.

Do que está visto e posto na atual cena da poesia brasileira, esteproblema é uma evidência. Há nela, na cena, uma transposição que se evi-dencia a partir do questionamento de Haroldo de Campos e seu conceito depós-utópico e, ainda, um aprisionamento aos temas comuns na manutençãode algumas formas já re-posicionadas antes por esses poetas modernos,citados anteriormente, e alguns outros. É prudente identificar uma conjun-ção de outros fatores que determinam para esta poesia essa justaposiçãodo impasse e da hesitação, que talvez seja onde reside o maior problemadela para re-posicionar a forma, re-politizar a forma. Porque, a meu ver, énuma espécie de esfacelamento da possibilidade com os temas que se notaa construção de uma linha formal que é determinada e dominada pela repe-

4 Idem a nota anterior.5 BONVICINO, Régis. Lies About the truth, in New American Writing. 2000.

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e na esquina contíguao amolador de facasoferece seus préstimostoda quinta-feira

Já perdi o fio:o rude esmerillambe-me o metalsem fagulha ou grito

CÔMODA

redemoinho dedisputas íntimaspoçoprofundo em segredosrepositóriopalheiro de agulhascaixa falanteem língua de gavetas

resumo:tumba de utensílios

Livros estes em que a marca de um redirecionamento possível tam-bém é evidente (é tentar ver aqui a partir de um só poema). Mas, rapidamen-te, se pensamos em esboçar algum indicativo de leitura para cada um doslivros dentro das questões que interessam aqui, esbarramos neles mesmos.Concentram-se em resvalar paradoxos: o encontro sem ter o que dizer e adespedida em silêncio, conformada. São as coisas da casa sendo deixadasde lado, em estado de abandono, por causa da necessidade da mudança e,ao mesmo tempo, essa mudança provoca a nova janela, a nova paisagemque se configura. Um misto de derrota e prospecção, de perda, de coisasdeixadas, de outras tantas a fazer. Transformar a casa e a cidade quase nu-ma mesma coisa, lugar de paradoxo e desconfiança: os conflitos do tempo,

Um itinerário que o tempo não abordapor este cantoesta margem de calçada

Repito fraturas de cimentodomesticadas pelo sapato

Conheço o itinerárioo rosto por dentro do armário(apenas uma nova mancharevela que outras árvoresnasceram no calçamentoentregues ao acaso)

NOVO ENDEREÇO

Outra janela enquadra a rua:barulho de carros, pessoasNo armário novooutra porta se fechasobre a velha camisa(virei o colarinhoe ele puiu novamente)Sobre o sono leveoutra lâmpada se apagaDe outra maneirasai a água para o copono pires com analgésicoHá uma dor qualquer na novidadeum cheiro ruim misturadoao de tinta nova

Sem dono à vistaum cachorro dorme na calçadaA porta do elevador se abrepara a senhora de maiô e chapéu panamáO zelador bebe durante o expediente

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UTOPIA E DISTOPIA NA LITERATURA BRASILEIRA

Sueli Tomazini Barros Cassal1

O, Wonder!How many goodly creatures are there here!

How beauteous mankind is! O brave new world,That has such people in’t!

Shakespeare, The Tempest, act v, scene I.

Ao lermos o livro O que é Utopia, de Teixeira Coelho (1981) chamou-nos a atenção que, no capítulo dedicado ao Brasil, os únicos regis-tros de utopia literária sejam o poema “Pasárgada”, de Manuel Ban-

deira ou as idéias de Afonso Schmidt, “sobre uma cidade do século XXI(descrita como localizada num certo vale de Zanzalá...)”. Teixeira Coelhoconsidera algumas outras obras como de interesse “quase museológico”.Trata-se, segundo o autor, de um texto de Pedro Fernando de Queirós (1617),de uma crônica de Simão de Vasconcelos (1663) ou do livro de A. Sergipe(Nova Luz sobre o Passado, 1907), interpretação da origem do universo ba-seada em etimologias fantasistas (Martins, 1978, p. 340).

Teixeira Coelho destaca no Brasil práticas utópicas de tipo quiliásticoou milenarista (a “terra sem mal” da cultura guarani), messiânico (Canudos,Mucker, Padre Cícero), e socialista-comunista (Quilombo dos Palmares(1694), Reino Encantado (1838), Colônia Cecília (1890), Colônia Vapa (1930)).

O arqueólogo Arno Kern, em Utopias e Missões Jesuíticas, (1994, p.28) lembra que o Pe. Antonio Vieira, pertencente tanto ao cânone brasileiroquanto ao português, também idealizou uma utopia, de cunho político-religi-oso, na obra intitulada O Quinto Império do Mundo (1665/1667).

1 Licenciada em Letras Modernas, Universidade de Paris VII; doutoranda em Letras/UFRGS.

fixidez e passagem, habitá-lo e/ou visitá-lo. Retirar da casa a justaposiçãodo perene e impor ajustes de uma agoridade (esta sim, perene), de umapresentificação continuada, constante.

A cidade passa a ser vista com uma certa propensão para o terno,como desejo de habitação, assim como é e parece sempre ter sido a casa.Há uma inversão, um vice e versa, um antagonismo gerador de significadosque pode apontar para esta re-politização da forma, talvez não agora, masnum outro momento, posterior, quando o entendimento deste movimento ede tantos outros se fizer ponto de percepção para o que a poesia aindaconsegue propor. A ampliação dela, da cidade, e dele, do desejo de habita-ção, passa a ser a casa para que a roedura do tempo não destrua algunselos desse sujeito que, mesmo muito distraído e extemporâneo a si mesmo,não se perca nos invólucros falseados da cidade. A casa e suas peças decomposição retornam em pequenos inventários de coisas que são construídospara trafegar entre um certo tempo utópico e, para trás, para um não se sabeonde da própria memória poética, da poesia e de cada um de seus autores.São a mobília, as pessoas nela, as paredes, as janelas, o tempo que escor-re a vida, a mesma rua, o mesmo olhar. São temporalidades visitadas, hesi-tações e impasses, desconfianças próprias de uma poesia que quer tornar aexigir como projeto, mesmo isolada e muitas vezes sem se dar conta, apartir de um desejo de habitação, a possibilidade de um lugar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Vamos explicitar nossa tese de que a representação do Brasil naliteratura se faz ora como a “terra sem mal”, ora como um mau lugar. Acredi-tamos que a vertente utópica recobriria o que se convencionou nomear “ufa-nismo”, vocábulo derivado do título do livro de Afonso Celso, Por que meUfano de meu País, publicado em 1900, para comemorar o quarto centenáriodo descobrimento do Brasil. Nesse livro, Afonso Celso exalta o Brasil comoterra superior, inventariando os motivos de nossa superioridade (a grandezaterritorial, a beleza, a riqueza, a amenidade do clima, a ausência de calami-dades, a formação étnica, o caráter nacional, a história). Termina seu livrocom um resumo das grandezas nacionais, que faz eco ao título Diálogo dasGrandezas do Brasil, de Fernandes Brandão, de 1618.

O livro de Afonso Celso nomeou, a posteriori, toda uma tradição ufa-nista que se origina no documento inaugural da literatura brasileira, a Cartade Caminha, de 1500, assim como na obra dos cronistas do século XVI osquais, segundo Antonio Cândido (1974, p. 31), lançaram “os fundamentos deuma literatura de inspiração nativista”, enquanto encobriam um dos maistremendos acontecimentos dos tempos modernos, a invasão, expropriaçãoe genocídio nas terras virgens americanas, e conseqüente transfusão dosangue novo que revitalizaria a Europa e deixaria exangue até hoje o conti-nente americano, que nasce para o ocidente sob a égide da expoliação.Maria do Carmo Campos (1999) em seu ensaio “O Brasil de longe e de perto:as lentes da cor local” lembra que “a imagem do Brasil, composta por muitasmalhas históricas e um tecido de singulares reflexos, vai sendo debuxada àbase de tons do paraíso”, onde se infiltram, insistentemente, “traçosdissonantes”.

A Carta de Caminha, com que Oswald de Andrade dialoga em “Histó-ria do Brasil”, apresenta o autóctone e a terra brasileira de forma positiva.Caminha mostra-se muito impressionado com a nudez dos corpos enfeita-dos de penas e pintados de cores vivas, “dançando e folgando”. Destaca aboa índole, o ar festivo, os corpos “tão limpos e tão gordos e tão formososque não podem ser mais”, mostrando os silvícolas vivendo num mundoparadisíaco, a terra papagalis. Sua visão não é completamente eurocêntrica,

Evidentemente, se nos ativermos a um purismo de gênero literário,não encontraremos nenhuma obra na literatura brasileira que se enquadreplenamente no molde utópico calcado em Thomas More. Entretanto, exami-nando o cânone literário brasileiro desde os seus primórdios, notaremos duascorrentes que ora se cruzam, ora se excluem, configurando um mapeamentoagônico da representação do país, quer como uma utopia, quer como umadistopia.

Queremos destacar, nessa direção, os estudos do pesquisador Fran-cisco Foot Hardman, que estuda a literatura social libertária do início doséculo XX no Brasil. Em seu ensaio “Antigos Modernistas” (1992), Hardmanestende o inventário de Teixeira Coelho, detectando, em grande parte daliteratura brasileira da virada do século XIX , o que ele chama de “verdadeirastradições fundantes do processo da modernidade”, sob dois pólos: o eufóri-co-diurno-iluminista e o melancólico-noturno-romântico. Concentrando-se noestudo da literatura brasileira do período que se convencionou chamar depré-modernista, Hardman destaca algumas obras que se filiaram à utopiaromântica, de cunho messiânico: Ideólogo (1903), de Fábio Luz e Regenera-ção (1904), de Curvelo de Mendonça, dando destaque ao romance Canaã(1902), de Graça Aranha, que exploraria, de forma exemplar, “as relaçõesdialéticas entre ruína e utopia”. O pesquisador acrescenta outro título2, oromance O Reino Encantado, de Arararipe Jr. (1878), sobre movimentomessiânico em Pernambuco em 1836 (os Cabanos). Acrescenta ainda “duasobras raras e tipicamente classificadas no gênero utópico do período: SãoPaulo no Ano 2000; ou Regeneração Acional: Crônica da Sociedade Brasi-leira Futura (1909), de Godofredo Emerson Barnsley; e O Reino de Kiato: noPaís das Verdades (1922), de Rodolfo Teófilo”.

2 Essa pesquisa está em aberto e, certamente, há muitos outros títulos referentes ao tema,que poderiam ser buscados na obra de contistas do final do século XX. Ocorre-nos tambéma ucronia (utopia no tempo) escrita por Menotti del Picchia, A República 3000, livro deantecipação; Quarup, de Antonio Callado ou ainda Utopia Selvagem, de Darcy Ribeiro.

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tão dourados, nem os reflexos noturnos tão brilhantes: as Estrelas são asmais benignas, e se mostram sempre alegres: os horizontes, ou nasça oSol, ou se sepulte, estão sempre claros: as águas, ou se tomem nas fontespelos campos, ou dentro das Povoações nos aquedutos, são as mais puras:é enfim o Brasil Terreal Paraíso descoberto, onde têm nascimento, e cursoos maiores rios; domina salutífero clima; influem benignos Astros, e respi-ram auras suavíssimas, que o fazem fértil e povoado de inúmeros habitadores.[...]” (apud Cândido, 1974, p. 81).

Outro marco nessa linha, já no Romantismo, é o poema “Canção deExílio”, que, como lembra Péricles Eugênio da Silva Ramos, inspirou algu-mas estrofes do Hino Nacional3, e é tema recorrente na poesia brasileira,

Aqui cabe situar José de Alencar e perguntar se ele participa da tradi-ção ufanista, ou se já problematiza a representação de um país ideal, comoquer a pesquisadora Lucia Helena4. O certo é que Alencar procede, no sécu-lo XIX, a uma reabilitação do índio, agora como símbolo do “bom selvagem”e, nas “Notas”, de Ubirajara, critica alguns cronistas que não teriam compre-endido o caráter do silvícola, especialmente seus rituais da antropofagia,comparando os autóctones a cavaleiros medievais:

“As leis da cavalaria, no tempo em que ela floresceu em Europa, nãoexcediam por certo em pundonor e brios à bizarria dos selvagens brasileiros.Jamais o ponto de honra foi respeitado como entre esses bárbaros, que nãoeram menos galhardos e nobres do que esses outros bárbaros, godos eárabes, que fundaram a cavalaria.

3 O poema tem como epígrafe alguns versos da canção de Mignon, de Wilhelm Meister, deGoethe, livro que tem fragmentos utópicos (A Sociedade da Torre): “Kennst du das Land, wodie Citronen blühen./Im dunkeln Laub die Gold-Orangen glühen? .../Kennst du es wohl? —Dahin dahin!/ Moch’ich (...) ziehn.” Conheces o país onde florescem os limoeiros,/Em meioà folhagem escura ardem os pomos de ouro,/Uma brisa suave sopra no céu azul,/E o mirtoe o louro em silêncio crescem?/Não o conheces?/Pois lá, para lá,/Quisera contigo, meu bemamado, ir! (Goethe, 1994, p. 193).4 Segundo Lucia Helena (2000), em O Guarani e Iracema “não nasce uma nação, mas umadanação. São textos que, inscritos numa época da história como progresso, refletem ahistória como catástrofe. Peri e Iracema são heróis míticos mortos, de uma nação órfã.”

portanto, insistindo, várias vezes, que os indígenas são melhores que osconquistadores:

“Eles não lavram nem criam; nem há aqui boi, nem vaca, nem cabra,nem ovelha, nem galinha: nem nenhuma outra alimária que costumada seja aoviver dos homens; nem comem senão desse inhame que aqui há muito; edessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si lançam. E, com tudoisso, andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto, comquanto trigo e legumes comemos. Enquanto ali andaram, este dia, sempredançaram ao som de um tamborim nosso e bailaram com os nossos, de ma-neira que são muito mais nossos amigos que nós seus” (Caminha, 1998, p. 47).

Essa imagem idílica do bom selvagem irá mudar, aos poucos, quandoa relação invasor/invadido se explicita e os índios, relutando em submete-rem-se, aparecem como “cruéis e bestiais” ou ainda como “cavalos”, emManuel da Nóbrega, numa clara alusão à sua irracionalidade (Holanda, 1994,p. 313-314).

Em outro trecho, Caminha descreve a nova terra, dando-lhe as carac-terísticas que são atribuídas ao paraíso: o verde perene, o clima temperado,água e terras férteis:

“... a terra em si é muito boa de ares, tão frios e temperados, como osde Entre-Douro e Minho, porque, neste tempo de agora, assim os acháva-mos como os de lá. Águas são muitas e infindas. De tal maneira é graciosaque, querendo aproveitá-la, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem.”(id. ibid., p. 55).

Hans Staden, que escreveu o primeiro livro sobre o Brasil em 1556, dáuma descrição da sociedade indígena que apresenta algumas semelhançascom as sociedades utópicas: ausência de propriedade da terra e de dinheiro,não-valorização do ouro.

A História da América Portuguesa (1730), de Rocha Pitta, também seinsere nessa corrente. Vejamos um trecho da introdução, que nos dá claraidéia do Brasil visto como o Éden redescoberto:

“Em nenhuma outra Região se mostra o Céu mais sereno, nem ma-druga mais bela a Aurora: o Sol em nenhum outro Hemisfério tem os raios

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com um sinal de mais5 e se insurge contra a leitura romântica do Brasil, vistosob o prisma do Paraíso.

“Até aqui quem nos formou a mentalidade foram uns pobres poetas.Versos e mais versos, com maravilhosas mentiras sobre as nossas coisas.Mais estrelas têm o nosso céu – tolice astronômica. Mais flores têm nossoscampos – tolice botânica. Mais amores nossos corações – tolice sexual.Mais, mais, mais – um mundo de ingênuos. Mais, para esconder a evidênciadum tremendíssimo Menos.

A realidade desmente os poetas. Somos o país menos. Menos tudo.Principalmente menos miolo e menos olhos. Copiamos a avestruz que es-conde a cabeça debaixo da asa para não ver o perigo. Chegamos ao ridículode nos proclamarmos o país mais rico do mundo, quando numa populaçãode 40 milhões temos 30 milhões que vegetam em tal estado de penúria quenem usar sapatos podem. [...]”

Hardman cita, de passagem, o caso de Monteiro Lobato, na vertentedo pensamento crítico à ordem dominante. Por nossa parte, pensamos queLobato é um representante do pensamento utópico no Brasil, quer comoprodutor literário, quer como mentalidade utópica. Assim, sua obra apresen-ta o arco – típico do pensamento utópico – que vai do repúdio a uma realida-de (que ele chama de “Jecatatuásia”) à sua contrapartida de redenção (OSítio do Picapau Amarelo).

Acreditamos que a obra predominantemente satírica (a negação doagora), que Lobato parou de escrever no início da década de 20, deu lugar àobra predominantemente utópica (o “ainda-não”), que inicia justamente em1921: José Bento versus Dona Benta. Contrapondo-se às imagens denegatividade de sua obra (o urupê, o carrapato, a lêndea, o chupim, o berne,

5 Haroldo de Campos, já no plano formal, ao estudar a poética de Machado de Assis, Oswaldde Andrade, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos, fala em“arte pobre, tempo de pobreza, poesia menos”. Nessa mesma direção, Hardman (1992, p.301) fala do “verbo prolífero de Castro Alves” e da “palavra estilhaçada” de Sousândrade.

Aí está uma pedra de toque para aferir-se do caráter do selvagembrasileiro, tão deprimido por cronistas e noveleiros, ávidos de inventaremmonstruosidades para impingi-las ao leitor. Nem isso lhes custava; pois araça invasora buscava justificar suas cruezas rebaixando os aborígenes àcondição de feras, que era forçoso montear”. (Alencar, 1999, p. 160)

A linha da utopia/ufanismo culmina com o livro de Afonso Celso, comojá dissemos. Mas, nesse panorama predominantemente edênico do Brasil,insinuam-se notas de degradação. Se a partir do século XX, a linha é franca-mente distópica, a representação de uma país distópico já começa comGregório de Matos, que recupera a tradição satírico-medieval portuguesa,presente em Gil Vicente. A corrente distópica atinge seu auge com LimaBarreto, que construiu, na esteira de Swift, o avesso da utopia, especial-mente em Triste Fim de Policarpo Quaresma, Os Bruzundangas e algunscontos como “O homem que sabia javanês” e “Harakashy e as escolas deJava”.

No ensaio já citado, Maria do Carmo Campos (1999, p. 29-30) desta-ca o movimento utópico/distópico na literatura brasileira: “Mas nem tudo éabundância ou bem-estar no Brasil, bem-estar freqüentemente associado aosol e ao clima temperado. Em Vidas secas, o sol é o cruel avesso da dese-jada sombra. Num dos poemas de A educação pela pedra, João Cabral deMelo Neto desenha um magnífico sol, excesso cuja outra face é a tortura, aprópria inclemência.”

Essa dicotomia na literatura brasileira também é expressa por Hardman(1992, p. 297) que afirma, já agora a propósito de Euclides da Cunha:

“Euclides [...] não viajava sozinho. Toda uma tradição historiográfica ememorialístico-ficcional, de matriz romântica, de alguns de nosso melhoresprosadores, esteve, assim, desde a segunda metade do século passado,inteiramente voltada para o jogo de alternância entre iluminações utópicas edepressões antiutópicas dessa poética das ruínas”.

Depois de Euclides da Cunha e de Lima Barreto, chegamos a MonteiroLobato. Em uma conferência para divulgar o petróleo (1965, p. 36), estenega, com um sinal de menos, toda a tradição que via o Brasil (a “Papuásia”)

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a erva-de-passarinho, o percevejo, o redoleiro, o chapéu-de-sapo, o mata-pau, o Jeca Tatu, parasita infestado de parasitas) podem-se detectar as “ima-gens-desejo” que impulsionam o autor para o que ainda-não-é, na terminolo-gia de Ernst Bloch: algo nuevo, liberdade, porviroscópio, livro, ferro, petróleo,Hércules.

Começando sob o signo negativo do Jeca Tatu, erigido em bodeexpiatório das mazelas brasileiras, e se fechando sob a égide positiva deEmília, a super-heroína, Lobato configura-se como um autêntico utopista,que ergue numa mão o sonho e, na outra, a ferramenta que transformará omundo. Cavando poços de petróleo, escrevendo e imprimindo livro amancheias, tentou, na primeira metade do século XX, instaurar seu sonho: amodernização da sociedade brasileira.

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de risco, que não se ousa transpor. A ocupação se dá normalmente empassagens. São viadutos, pontes, rodoviárias e lugares que se transforma-ram em vias de passagem, como praças e parques. Nesses lugares, quetêm função de ligar partes das cidades, vemos com melhor nitidez o esvazi-amento do espaço público, coletivo.

Parecendo mais uma rede labiríntica do que uma Ágora Grega, nasgrandes cidades contemporâneas as passagens aparecem em primeiro pla-no. A superfície acaba ficando como lugar de transeuntes na cidade quecresce para cima ou para baixo. Jean Chesneaux2 as entende como siste-mas “fora chão”, “onde as singulares posições no espaço concreto tem umaimportância meramente secundária, o ambiente real não representa senãouma baixa prioridade”. Acrescenta que os espaços coletivos existem comoelementos decorativos, esvaziados de vida.

É no lado de dentro de prédios ou subsolos que a vida acontece. Umtanto solitária e com pouca expressão, essa vida “interior” ganha cada vezmais foco, com espaços garantidos nos meios de comunicação de massa,como jornais e televisão3. Ela vende produtos e, de certa forma, garante umaimpressão de que podemos compartilhar algo de nossas vidas simples, denossas relações amorosas, de nossos interesses políticos, coisas que, deoutra forma, fora da televisão, pouco fazemos. Não há espaço.

Se há cada vez mais um apelo ao esvaziamento da rua, à limpezadaquilo que é nossa sujeira, vivemos também uma vontade de saber sobre avida do outro, de participar, de forma ascética, de seu destino. Uma reaçãoum tanto tímida a nossa condição anônima de transeuntes, que não mantémrelação com os espaços que trilhamos diariamente. Tentativa de participar

2 CHESNEAUX, Jean. Modernidade-Mundo. Rio de Janeiro: Vozes, 1996, p. 203 Faço referência aos Reality Shows, aos tantos depoimentos de artistas sobre sua vida“pessoal”, às revistas especializadas em perseguir pessoas “públicas”, todo esse universodo Show Biz que alimenta muitas vidas dentro dos apartamentos. É inevitável também alembrança de “Janela Indiscreta” de Hitchkock que antecipa muito esse fenômeno a queassistimos agora, acrescido de uma coisa que chama “participação do público”.

UTOPUS: FORMAÇÃO E ABERTURA DE ESPAÇOS

Janaina Bechler1

“Viver em uma casa de vidro é uma virtuderevolucionária por excelência. Também isso é embriaguez,

um exibicionismo moral, que nos é extremamente necessário”.Walter Benjamin

A TRANSPARÊNCIA1. Com as mãos unidas frente ao peito, o cristal rola de uma a outra.

Estabelece um tênue espaço de continuidade e logo parece flutuar. Dentrodo cristal, vejo o rosto ágil do artista. Como o espelho dos olhos, quandoaproximo muito só me vejo. É preciso um intervalo para que o Aleph conte-nha o espaço todo. Aí vejo tudo naquele pequeno objeto que o artista mani-pula e me mostra em parte, enquanto gira. Se de perto, só me contém.

O PONTO DE VISTA:2. O negativo não é o lado de dentro. Não está escondido. Escrever o

negativo é inventá-lo. Seus limites, seu corpo. É o limiar da espacialidade. Éa fundação de uma temporalidade. E escrever é sempre um negativo.

Aformação de um pensamento obedece a leis insuspeitáveis. Dessamaneira, alguns materiais atraíram-se para dentro desse texto: umAleph, uma bola de cristal, uma lâmina de vidro. Todos eles referidos

à experiência que me captura nesse momento. Respeitando a sua imposi-ção, deixo que eles participem do meu trajeto. E é caminhando que escrevoum olhar sobre a cidade.

De forma radical, quem faz da rua seu lar apresenta, para quem pas-sa, uma subtração no espaço público. Estabelece zonas de tensão e áreas

1 Mestranda em Psicologia Social e Institucional , Instituto de Psicologia, UFRGS

BECHLER, J. Utopus: formação...

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Um jornal5 é a forma de tornar essas narrativas legitimadas, visíveis. Arua, muitas vezes vista como uma instituição total, local de aprisionamento –nosso olhar para a cidade está realmente fulminante, pode ser, finalmente,transformado em um local passível de se experenciar. De transformar asvivências em experiências compartilháveis. Por que negar o ponto de vista?

Jorge Luis Borges escreveu um Aleph, uma pequena esfera – de nãomais de três centímetros – que conteria todo o espaço. Assim como a eter-nidade contém todo o tempo. Para valer sua descoberta, dizia ele, teria quelocalizar sua existência: na rua tal, na cidade tal, ou então estaria localizadano campo da ficção, do não existente: “No mundo das Mil e Uma Noites,objetos tais como lâmpadas e anéis mágicos são abandonados e não inte-ressam a ninguém; em nosso cético mundo, deve-se classificar qualquerelemento perturbador ou fora de lugar. Portanto, no final de O Aleph, a casae a resplandecente esfera hão de ser destruídas” 6.

Essas zonas de poder localizado – como uma bola-Aleph – nos con-tém e nos fazem ver além da nossa imagem. Resta a pergunta: O que faze-mos, em nossa época, com os tantos Alephs jogados no horizonte da cida-de? Como formamos o espaço?

5 O jornal Boca de Rua é vendido nas ruas da cidade de Porto Alegre e também na livrariaVentura Livros e na livraria da Usina do Gasômetro.6 BORGES, Jorge Luis. O Aleph. São Paulo: Globo, 1995 p.7

um pouco de um exterior duro, feito de pedra e com um horizonte tão desve-lado como escreve Nélson Brissac: “Olhar hoje é um embate com uma su-perfície que não se deixa perpassar. Cidades sem janelas, um horizontecada vez mais espesso e concreto. (...) Tudo é textura: o skyline confunde-se com a calçada; olhar para cima equivale a voltar-se para o chão. A paisa-gem é um muro”4.

E foi um ponto de vista que me atraiu para perto de um grupo demoradores de rua com o qual realizo um trabalho hoje. Um morador da pontesobre o arroio Dilúvio me diz: “ninguém vê um pôr-de-sol como quem tá láembaixo da ponte”. Esse horizonte aberto na confluência entre o arroio e oGuaíba é, em um só tempo, uma negação da cidade e uma abertura deespaço na cidade. Eu, que transito em cima da ponte, passei a olhar deoutra forma para essa transparência de vida, que passa, através dessa fala,a compor o mapa da cidade.

A negação explícita em participar da vida coletiva da cidade de muitosdesses moradores é sensível. Ainda que exista todo tipo de propostas inclu-sivas, governamentais ou não, persiste a resistência. E falo de uma resistên-cia concreta, que envolve seus corpos, um tanto anestesiados pelo cheirinhode loló, que, apesar da febre, do frio e da intempérie, permanecem dormindono chão. Ou nos mocós, que são também, muitas vezes, grandes labirintosdentro da rede de passagens.

Seu trabalho é oferecer um olhar sobre a cidade. De um lugar ondenão estamos sequer distantes. Simplesmente invisibilizamos. Com umacortina muito fina, muito singela, que em alguns momentos voa e que nosdeixa ver que há vida e noutros nos espelha até a cegueira total. Essa funçãode transparência e opacidade, de horizonte e de espelho, traduz para mim aforma como sou afetada por essa movimentação que insiste em enervar acidade, alastrar ou subtrair sua carta.

4 BRISSAC, Nelson Peixoto. Paisagens Urbanas. São Paulo: SENAC/Marca D’Água, 1996.

BECHLER, J. Utopus: formação...

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expõe realmente? Tentarei aclarar este enunciado abstrato. Tratarei de con-figurar com precaução este ‘ponto central’, ainda vago também para mim, afim de que esta intuição não me escape.

Transcrevo, ao longo do texto, alguns fragmentos do diário sensívelque ela fez desta experiência:

“Já havia algum tempo eu alimentava o desejo de ver uma vagaconstruída sobre um campo vago, mas os meios que eu utilizaria para issoem Arroio dos Ratos eram um mistério. Sem planos definidos e decidida apartir do que viesse a encontrar na cidade, levava comigo um projeto apenasesboçado. O resto viria com o tempo”3.

Deixando atrás de si Porto Alegre, uma cidade densamente ocupada,Maria Helena saiu em busca de um “horizonte”. Deparou-se, tão logo desceudo ônibus na rodoviária de Arroio dos Ratos, com uma paisagem plana emarcada por uma imensa zonade coloração distinta do verde da paisagem.O que viria a ser aquela mancha, vislumbrada ao longe? Aos poucos, a pe-quena cidade ia se revelando e certas configurações espaciais encontravamressonância com o pago interior que ela trazia com ela (este vazio ao qualseu olhar era sensível). O contato com a paisagem de Arroio dos Ratoscolocava-a num estado de receptividade – o mesmo que sentimos quandopasseamos e quando nos deixamos penetrar pelos perfumes de um jardim.Não havia ido à cidade fazer turismo, não havia ido encontrar ninguém espe-cialmente, buscava somente ‘exercer’ sua atividade de artista, que consistiaem ‘mapear’ áreas vazias, espaços desocupados. Buscava descentrar a suaexperiência artística fazendo do mundo um grande atelier. O que entra emjogo quando um artista decide trabalhar num campo aberto? O que entra emjogo quando um artista se coloca disponível para acolher o destino traçadonele mesmo?

3 Relato de Maria Helena Bernardes, artista plástica. Desenvolveu juntamente com outrosartistas o Projeto Remetente: uma leitura de artista ( 1998) e trabalha atualmente no ProjetoAreal, concebido juntamente com André Severo. Areal propõe a autonomia do artista, nasdecisão sobre locais e condições de realização dos trabalhos. O projeto reside na aberturaàs proposições de tempo, local, meio e espaço que expandem continuamente a definição dearte, do centro do trabalho artístico para sua exterioridade.

A UTOPIA É UMA LINHA DE HORIZONTE:DESLOCAMENTO DESTE PONTO E O OLHAR DOS INTERSTÍCIOS

Maria Ivone dos Santos1

No início do mês de setembro, a artista plástica Maria Helena Bernardesveio até nossa disciplina de escultura II, no Instituto de Artes daUFRGS, mostrar um trabalho que desenvolveu em Arroio do Ratos.

Discutíamos, entre tantas coisas, projetos de transformação do espaço dacidade, observando de que forma as inscrições artísticas alteravam e propu-nham aos habitantes outras formas de relacionar-se com o espaço público2.

Relato esta história, tentando entrelaçar o fato em questão com oassunto que me proponho discutir dentro do quadro desta publicação: Uto-pia: função social da arte.

A atividade que ela empreendeu na pequena cidade do interior do RioGrande do Sul, conhecida por suas minas de carvão, é inquietante e aomesmo tempo instigante no que tange à idéia de mobilização coletiva.Instigante, porém, é o ‘ponto central’ de seu gesto artístico, em relação como resultado discreto de sua intervenção: um perímetro triangular, construídoem cimento, um piso, localizado no meio de uma área de rejeito das minasde carvão, hoje desativadas. O que acontece quando se desloca um espaçovago de uma cidade para sobrepô-lo à um outro na sua periferia? O que ela

1 Artista plástica, professora de escultura no IA - DAV- UFRGS - Coordenadora do projetoFormas de pensar a Escultura.2 Durante os meses de agosto e parte do mês de setembro de 2002, a área da escultura doInstituto de Artes se reuniu em torno de projetos de intervenções urbanas. Buscamosmapear este assunto, observando e discutindo relações entre arquitetura e a arte, atravésde algumas análises de casos. Iniciamos uma prática de extensão, envolvendo alunos dagraduação das artes plásticas e da arquitetura, artistas externos à universidade e alunos domestrado em Artes Visuais. Escolhemos o Campus Central da Ufrgs, como lugar paraprojetar nossas intervenções. O projeto em andamento tomou o nome de Perdidos noespaço e as atividade desenvolvidas podem ser acompanhadas no site: www.ufrgs.br/artes/escultura/

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sua vaga, disponibilizaram suas máquinas trazendo material e colocando-ono ponto selecionado. Muitas pessoas foram aos poucos colaborando comaquela vontade ‘vaga’, sem questionar o porquê do que estavam fazendo,mas tocados pela vontade de alguém em torno de uma situação dada.

“– Para construir tem que limpar, aplainar. Vou mandar uma máquinaaqui, escolhe o que tu queres. Cem metros quadrados bastam?”6.

Esta movimentação de pessoas foi, aos poucos, formando a constru-ção que primeiro ficou configurada pelo deslocamento de carvão em suasdiversas cores. Mas, durante todo o processo, que durou alguns meses,muitas pessoas da cidade depositavam seus desejos ali, imaginando o queviria a ser aquele espaço. Aos poucos Maria Helena sentiu a necessidade deconstruir a vaga em cimento, encobrindo cuidadosamente o carvão deposita-do no exercício anterior. Conseguiu mobilizar o apoio da prefeitura e do Mu-seu do Carvão. Vieram, então, os técnicos da prefeitura. Fizeram o projetoda vaga, pois para poder construir algo ali, teria que ter um projeto devida-mente registrado. Vieram os operários e reconstruíram com minúcia o mes-mo traçado, guardando o cuidado de manter inclusive a mesma inclinaçãoda vaga de origem. Coisa é que a vaga do lado da rodoviária foi duplicada einstalada numa clareira em campo de rejeito, sinalizada, e, na sua simplici-dade formal desanimadora, foi integrada ao cotidiano da cidade como umadas atrações de uma festa local:

“Haviam limpado todo o terreno e, de fato, o tinham aplainado tam-bém. Estava bonito. Fora colocado um poste de madeira e presa a ele, umaguirlanda de lâmpadas incandescentes que se estendia desde a rua até avaga”7.

Passada a festa,“a vaga” segue ali até hoje em exposição constante.Solta no espaço do campo de rejeito. “Um dia, isto não esteve aí”, pensouMaria Helena quando retornou a Arroio dos Ratos, algum tempo depois de

6 O proprietário diante da sua idéia de trazer dois pedreiros para construir a vaga, tomouiniciativa de lhe propor máquinas e operários..7 Depoimento de Maria Helena.

Retornou várias vezes a Arroio dos Ratos, tentando fazer com queesse estado de receptividade fosse, aos poucos, sinalizando pela sua expe-riência sensível, pelos encontros que faria. Procurando chegar na área quehavia avistado da rodoviária, foi até o limite do asfalto, onde se deparou coma indicação da existência de um Museu do Carvão. Conseguiu chegar numaárea de rejeito da antiga mina de carvão, hoje desativada. Encontrou umantigo mineiro, e essa pessoa afável respondia a suas perguntas cada vezmais precisas, interessada que estava naquela clareira aberta, vazia.

– “Não, eu quero saber o que fazem com esta parte aqui em frente?– circunscrevi o vazio com um gesto – Para que serve hoje?– Ah... Isso aí não é nada... Quero dizer, os caminhões cruzam por aí

para chegar lá. Esta clareira já foi um monte alto de carvão. (...) Hoje isso aínão é mais nada”4.

Seguiu, dia após dia, expondo-se de maneira despojada aos aconte-cimentos. Saiu a procura de outra vaga, que o seu ‘projeto’ inicial havia dese-nhado. Queria deslocá-la até aquela clareira aberta dos campos de rejeito.Encontrou, ao lado da rodoviária, uma área triangular que era um resto detudo, que não tinha outra função que a de espaçar o prédio da rodoviária e oda câmara dos vereadores. “A origem das vagas é um mistério. (...) Suageometria gratuita alçava-se com dignidade, contrastando com a indiferençados passantes para com a laje. Ninguém a percebia ali”5. Mediu-a, e, a partirdaí, desencadeou-se um efeito avalanche, mobilizando um grupo grande depessoas daquela pequena comunidade. O curioso é que tudo vinha: a direto-ra do museu a quem fora explicar sua idéia contatou o proprietário do terrenode rejeito; o proprietário aceitou que ela utilizasse a clareira aberta para aliconstruir sua vaga prontificando-se a aplainar o terreno. Ao vê-la marcando otraçado do perímetro da vaga triangular, selecionada no centro da cidade, ostratoristas que trabalhavam no campo de rejeito vieram auxiliá-la. Ao saberque queria deslocar material de umas pilhas de rejeito para marcar assim a

4 Relato de Maria Helena Bernardes.5 Relato de Maria Helena Bernardes.

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10 Kazimir Malevitch 1878 – 1935, Amsterdam, Stedelijk Museum Amsterdam, 1988, p..188:“Complex presentiment,” (Half figure in Yelow Shirt), 1928-1932..11 Mannheim, em sua Ideologia e utopia ( 1976), citado por Maria das Graças de Souza, Oreal e seu avesso, in Utopia, São Paulo, Editora 34, 2001, p. 21.

Interpreto-os como indivíduos sem uma identidade própria que expõem ape-nas sua aparência externa, deixando-nos inquietos diante do silêncio aterra-dor que nos provocam10.

Acolhi, através do relato deste trabalho de Maria Helena, uma inquie-tação. É a mesma questão que me assoma diante do que seja o ensino daarte, diante de tantas individualidades que buscam no contato coletivo de umgrupo de estudos expor e construir ao mesmo tempo sua presença no mun-do. Vimos como a experiência de todas as pessoas envolvidas na realizaçãodo projeto ‘Vaga’ não estava somente contida na relação delas com o objetocomo arte, mas na prática de convivência entre indivíduos diferentes.

Chego por um imenso desvio ao ponto vislumbrado por mim no iníciodesta reflexão. A atividade artística, ao deslocar o foco do objeto para o seuexercício, pode criar possibilidades inéditas de nos relacionar com o mundo.Neste exercício singular com as pessoas e com as coisas, através de estra-tégias de contato, o artista pode romper esse isolamento (que nos exila emnós mesmos) partilhando espaços jamais antes habitados.

Lembremos que “o estado de espírito utópico é um estado de incon-gruência em relação à realidade”11. O horizonte é uma dobra que se desdobraem outra, e a utopia reside na criação de um mundo ideal, onde o sujeitovislumbra um espaço que nele está, para então desenhar outros espaços. Oprojeto de Maria Helena revela-nos na sua dimensão crítica – eis o pontooculto – a pratica da ‘vontade’. A atividade artística aparece, então, comouma “resistência” face aos atuais determinismos econômicos, culturais epolíticos, que tentam objetivar uma produção subjetiva: a liberdade.

toda aquela atividade. Ficava no ar aquele não entendimento de todos emrelação à função precisa daquela construção. O que era aquilo exatamente?8

Ficava no ar o sentimento vago diante daquele objeto plano e de uma geome-tria inquietante. E como dizer algo em relação à “função social da arte”,naquele contexto, já que aquele gesto individual e ao mesmo tempo conta-giante, não tinha o poder de reunir opiniões unânimes sobre a sua utilidade,contrariando qualquer utopia social.

Lembremos que a utopia para nós, agora, talvez não resida tanto numprojeto social, que busque nos reunir numa unidade perdida, mas em algoque nos permita exercer a capacidade de expressar nossa relação subjetivacom o real.

A história nos mostrou que o atelier aberto que Malevich (o conhecidopintor de um quadro branco sobre fundo branco) e seus companheiros havi-am implementado como um projeto libertador do indivíduo, que era verdadei-ramente uma prática artística revolucionária – criar um mundo novo e esten-der a arte a todas as esferas da vida9, esbarrou com um tipo de projeto pan-fletário e repressor, no qual o poder político determinava o que poderia sermostrado, dando assim regras de direcionamento das sensibilidades pesso-ais em torno de um projeto social. As últimas telas de Malevich mostramfiguras vestidas com geometrias interessantes, mas que não possuem olhospara ver, nem nariz para cheirar, nem boca para falar. São formas coloridas emóveis, desenvolvendo atividades enquadradas cada uma na sua função.

8 Um passante um dia confessou que ele havia pensado que aquilo seria as bases para aconstrução de um entreposto de verduras, pois isto traria muitos benefícios à cidade. Masdurante todo o processo que durou alguns meses, muitas pessoas da cidade depositavamali sua projeções, imaginando o que viria a ser aquele espaço. Outro, disse-lhe que se fosseele, teria colocado a vaga na vertical, assim todos podiam vê-la.9 Malevitch e outros artistas apoiaram a revolução de 1917 na Rússia. Até e desenvolveramuma intensa atividade criadora UNOVIS. Diga-se que toda esta atividade está na basemesma de uma séria de desenvolvimentos posteriores, que foi desenvolvida por artistasrussos em exílio: Kandiski, Tatlin e outros. A partir de 1929, temendo pela segurança de seusescritos e teorias, amigos trataram de enviar ao estrangeiro seus textos. O Instituto Estadualde História da Arte não apreciava as suas pesquisas, impedindo-o da atividade docente.

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AINDA NÃO ESTÁ AQUI O QUE VOCÊ PROCURA

Elida Tessler1

“O artista, como garimpeiro,vive de procurar o que não perdeu”

Cildo Meireles (1977)

Qual é a cara do Brasil?(Celso Viáfora)

O que é que a baiana tem?Que país é este?(Renato Russo)

Que preto, que branco, que índio, o quê?(Arnaldo Antunes)

Como então? Desgarrados da terra?Como assim? Levantados do chão?

Como embaixo dos pés uma terraComo água escorrendo da mão?

Habitar uma lama sem fundo?Como em cama de pó se deitar?Num balanço de rede sem redeVer o mundo de pernas pro ar?

(Chico Buarque – Levantados do chão)

Somos ainda hoje desterrados em nossa terra?(Sergio Buarque de Holanda – Raízes do Brasil)

E quem matou Herzog?(Cildo Meireles)

Hein?(Nei Lisboa)

1 Artista Plástica, professora do Instituto de Artes da UFRGS. Coordena ao lado de JailtonMoreira, o Torreão – espaço de intervenção em arte contemporânea, em Porto Alegre.

A sobra

Homens finalizando

Vaga pronta

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do tipo de guardar jóias ou placas comemorativas. Em sua tampa, está fixa-da uma plaquinha com a inscrição gravada em letras maiúsculas: RESPOS-TA. Abrimos a caixa em busca dela e encontramos outra placa parafusadana superfície interna do estojo: NÃO ESTÁ AQUI O QUE VOCÊ PROCURA.Parece-me que a visualização de tal imagem permitiu-me configurar um pen-samento até então completamente disforme, sem estrutura, em relação aoolhar. No mínimo, três questões saltaram, de imediato, quando do encontrocom este trabalho. A primeira é, evidentemente, aquela que procura o lugar:Onde está o que procuramos? A questão do lugar é sempre essencial para aprodução em artes visuais. Podemos afirmar, inclusive, que arte é a criaçãode lugares. A segunda questão remete diretamente ao objeto: O que é queestamos procurando? O trabalho de Cildo não aponta o objeto, porém, estelogo desenha-se nos olhos do espectador transfigurado em outra indagação:O que você está procurando? Eis o terceiro tópico questionador: E se nãoachamos o que estamos insistentemente a procurar? Temos aqui um outrofoco de interesse, e que é, creio, um elemento norteador para todo artista: aquestão da perda. Podemos pensar a arte como algo ligado à perda do obje-to e à sua reconstituição?

Passados quase trinta anos da proposição de Cildo Meireles, nossaresponsabilidade em pinçar as boas perguntas desse mar de dúvidas acercade nossas origens parece ter aumentado tanto quanto a quantidade de areiano bojo inferior da ampulheta. Vejamos se, seguindo alguns de seus passos,poderemos delinear um fio condutor.

“Fio” é o título de um trabalho de 1990-95 que parece dialogar bemcom “Resposta”. O que é que você procura? Se for uma agulha no palheiro,vale a pena continuar procurando, pois aqui se apresentam 48 fardos defeno, onde se esconde uma agulha de ouro de 18 quilates e, ainda a saber, apalha está amarrada com 100 metros de fio de ouro3. O que adquire impor-

3 O trabalho tem dimensão total de oito metros quadrados e um total de 335 gramas de ouro.

Coloque ainda mais uma interrogação em cada uma dessas pergun-tas e talvez possamos juntos tentar encontrar, no interstício dossinais gráficos, o eco de nossas procuras. Cildo Meireles, artista

brasileiro nascido em 1948, no RJ, acreditou nas suas “Inserções em cir-cuitos ideológicos”, multiplicando informações, opiniões críticas e, sobretu-do, fazendo um levantamento de dúvidas que viviam na sombra e que ali-mentavam-se dela mesma. Se falo de um lado escuro, é justamente paracontrastar com a idéia de que o Brasil é um país tropical, abençoado porDeus e bonito por natureza. As cores e as formas do Brasil poderão aquiadquirir múltiplas tonalidades.

Aliás, quem matou Herzog?“Inserções em Circuitos Ideológicos” é um trabalho de 1970. A per-

gunta acima faz parte do “Projeto-cédula”, das inserções.Entre os objetos de consumo que serviram de suporte para as “Inser-

ções”, de Cildo, está a garrafa de Coca-Cola, que naquela época era de vidro,retornável. As garrafas eram recolhidas pelo artista, que ali imprimia, copian-do a resolução gráfica industrial, textos de sua autoria, para depois reinseri-las no circuito. Dizia estar lançando as garrafas no mar, como os náufragoso faziam para enviar mensagens de socorro. Em uma delas, a pergunta quenos interessa mais no momento: Qual é o lugar do objeto de arte?

Esta questão, assim formulada, não equivale a uma outra, que serepete ao longo do tempo, já cansada: “Qual é o lugar da arte?”. O objeto,aqui, tem história a relatar. Ele faz parte da utopia da inserção do cotidianona arte.

O que é muito instigante é o fato de sabermos de antemão que asrespostas geralmente não estão onde as procuramos. As perguntas, sim,estão em todos os lugares. Essa dedução é muito bem apontada por CildoMeireles, em um trabalho intitulado “Resposta”2. Trata-se de uma caixinha

2 “Resposta” - 1974, 4x10x4 cm. Este trabalho foi apresentado na exposição ImágicaPalavra, realizada no MAC-USP em outubro/novembro 1987.

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quando desejamos reconstituir uma história que por vezes parece não nospertencer. Faltará uma revelação?

Mas o quanto um objeto, uma proposição artística, pode produzir umencadeamento associativo capaz de conduzir uma investigação dentro docampo da arte no Brasil? As perguntas continuam a manifestarem-se volun-tariamente a partir do estojo de Cildo. Outro de seus trabalhos de 1970 temcomo título: “Conhecer pode ser destruir”. Sendo a obra constituída de umafolha de papel cujas dobras foram perfuradas e presas por cadeado, a únicapossibilidade de desvelamento do suposto desenho seria a de uma violaçãoirreversível.

Há outro trabalho de Cildo bastante elucidativo, penso, em relação aoconhecimento e que também diz respeito à cultura dos índios brasileiros. Oque você sabe sobre a presença do fogo nas culturas indígenas? Pois veja-mos se está lá o que estamos procurando: Onde? Relações de espaço etempo, inevitáveis e essenciais vetores de qualquer pensamento em artesvisuais. O lugar instaura a obra. O objeto apresentado é minúsculo. Umpequeno volume de 9 mm cúbicos, em madeira, feito de duas secções: umade pinho, outra de carvalho. O que constitui verdadeiramente a obra é o seuespaço de exposição, que não deve ser menor do que 200 metros quadrados(o cubo é colocado no chão). Pode não ser visto, pode não ser percebido,como muitos de nós já não vêem o brilho das estrelas. Cruzeiro do Sul é umtrabalho de 1969/70, que propõe problemas de escala e defasagens culturaispróprias de nossa colonização. Assim explicita o artista:

“Para os tupis, o carvalho e o pinho são árvores sagradas. Os jesuítasconverteram as divindades que esses índios adoravam numa única divinda-de, Tupã, rei do trovão, quando na realidade o significado tupi era mais com-plexo. As árvores eram sagradas por causa da fricção entre elas: se esfre-garmos um pedaço de carvalho contra um de pinho, o pinho queimará. Erasagrado o conhecimento de que o fogo poderia ser produzido assim.”

Sobre a questão da escala, o artista aponta para a suposta insignifi-cância do cubo, o objeto de arte, que por estar lá, simplesmente, é capaz deabrir um diálogo com as hierarquias culturais que situam a arte no mundo.

tância nesse momento é a insistência com que Cildo trabalha as questõesda visibilidade. “O que se vê é o que não se vê – os objetos estão em trans-formação permanente”, disse-nos certa vez Cildo, reagindo à formulação dosminimalistas que afirmaram “O que se vê é o que se vê”. Estranhasvisualidades... Didi-Huberman teria o que acrescentar nesse diálogo: “Sópodemos dizer tautologicamente ‘vejo o que vejo’ se recusarmos à imagem opoder de impor sua visualidade como uma abertura, uma perda – ainda quemomentânea – praticada no espaço de nossa certeza visível a seu respeito.E é exatamente daí que a imagem se torna capaz de nos olhar”4.

Onde está o objeto? Quando olhamos a obra, vemos um monte defeno. Só podemos encontrar a agulha na descrição dela, junto ao título, fixa-da à parede da sala de exposições. O fio invisível desenha a possibilidade deresposta. A linguagem específica da arte absorve as relações entre imageme palavra, produzindo movimento de atrito, de contato estreito entre o quesabemos pela experiência e o que imaginamos como conseqüência de con-ceitos e definições que nos chegam pelas mais variadas vias do conheci-mento. Diz Cildo Meireles: “Muito de minha obra se ocupa da discussão doespaço da vida humana, o que é tão amplo e vago. O espaço, em suas váriasmanifestações, abrange arenas psicológicas, sociais, políticas, físicas e his-tóricas. Em muitas obras, isso está perfeitamente claro, como se eu estives-se trabalhando com a ervilha sob a pilha de colchões, como diz o provérbio.(...) Na peça ‘Fio’ há uma discrepância entre valor de uso e valor de troca,entre valor simbólico e valor real. Minhas obras que utilizam dinheiro referem-se, todas, a essa dicotomia entre trabalho e trabalho de arte, entre feno eouro. Em ‘Fio’ há, também, um elemento de imperceptilidade: o fio de ouroestá oculto”5. A agulha no palheiro, a ervilha sob colchões, o grão de areia amais ou a menos em nossas ampulhetas, estão aí a apontar desvios de rota,

4 DIDI-Huberman, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo, Editora 34, 1998.105p.5 Entrevista. Gerardo Mosquera conversa com Cildo Meireles. In: Cildo Meireles SP, Cosac& Naify, 2000, p.20.

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SEÇÃO TEMÁTICA

A MÁQUINA DO MUNDO – O PSICANALISTA E O POETA

Mario Fleig

“Mas o que permanece, fundam os poetas”Hölderlin

Há cem anos nascia um poeta, o anjo torto que teve o destino traça-do: “Vai, Carlos! ser gauche na vida”1. Drummond interpreta a vida decada um de nós, sejamos seus leitores ou não. Mas, a partir desse

poeta, podemos perguntar em que o poeta nos interpreta? Quais os mistéri-os que se escondem e se desvelam na operação poética? Em que isso podeinteressar ao psicanalista? Sabemos o quanto Freud se debruçara sobre osenigmas que se insinuam na tragédia e na comédia, abrindo uma via de mãodupla nas relações entre o campo da arte e o da psicanálise. De um lado,encontramos os analistas que tomam a obra de arte, principalmente os tex-tos literários, como material para comprovar sua teoria2. O próprio Freud nãose desvia disso, e sob a alcunha de psicanálise aplicada, diagnostica Hamletcomo histérico. Mas, em contrapartida, não enverada pelo mesmo caminhoem seu ensaio sobre a Gradiva ou mesmo em seu artigo a respeito do Moisésde Michelangelo. Freud considera os poetas e os romancistas como “preci-osos aliados, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costu-mam conhecer uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quaisa nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar. Estão bem adiante de nós noconhecimento da alma, gente comum, pois se nutrem em fontes que aindanão tornamos acessíveis à ciência” (Freud, 1907). Seguindo esse caminho,

1 Drummond de Andrade, Carlos. Fazendeiro do ar & poesia até agora. Rio de Janeiro: J.Olympio, 1954. Cf. também As impurezas do branco. Rio de Janeiro: Record, 1990 e Anto-logia poética. 29.ed., Rio de Janeiro: Record, 1993.2 Cf. análise da interpretação proposta por Marie Bonaparte a respeito da obra literária deEdgar Alain Poe, Aventuras de Arthur Gordon Pym, feita por R. Chemama (Elementoslacanianos para uma psicanálise no cotidiano. Porto Alegre: CMC, 2002).

SEÇÃO DEBATES

O QUE É QUE ESTAMOS PROCURANDO?Se pensamos a arte como algo ligado à perda e à restituição, poderí-

amos dizer que nem sempre é um objeto palpável nosso alvo de procura.Algo buscamos. É esse ato que nos move enquanto artistas e também en-quanto “colecionadores de olhares desaparecidos”, tomando emprestado aquium fragmento de diálogo do filme “Um olhar a cada dia”, de Theo Angelopoulos.Nessa produção cinematográfica, um diretor desiste temporariamente derealizar suas próprias filmagens para sair à procura de três rolos de filmesnunca antes revelados.

Vamos arriscar a indicação de que é um olhar que nos faz falta, pois édele que dependemos para continuar a produzir arte. Algo procuramos, éevidente, quando precisamos sair de um estado de inércia diante de nossasperdas cotidianas, de nossa impotência face a elas. Porém, encontramossempre uma resposta em deslocamento: o trânsito em busca do que seconsidera perdido para sempre é o que nos faz valorizar uma obsessão.Criar é acreditar que o mundo está aí, em contínuo movimento – e a obraartística fixa um olhar, um símbolo que contém em si mesmo uma imagemdo mundo.

Que nossos caminhos não se façam em linha reta. Que entre um eoutro ponto de referência no mapeamento do lugar da arte, encontremos umdesvio. Ainda não há suficientes respostas para o que venha a ser arte e qualé a sua função social. Mas há uma indicação emocionante, proposta porRonaldo Brito a respeito do trabalho “Desvio” de Cildo Meireles: “O desviodefine a arte: aquilo que não se entrega à ordem senão para entregá-la devolta às manobras instáveis e duvidosas, ao momento suspenso de seu ris-co inicial. Eis o que não há: o mundo pronto”.

Do registro, do resíduo, do amálgama resultante do contato entre ocotidiano e a arte, reside e resiste o desejo de enunciação do objeto com aretenção de sua biografia. O artista acaba por expor o ato da busca em umanarrativa fragmentária. É testemunha do desvio.

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SEÇÃO DEBATES

dos elementos da escrita tem valor por si mesma, para além do sentido decada um de seus termos, como ocorre também nos provérbios.

Se considerarmos que Lacan, no seminário D’un discours qui ne seraitpas du semblant (1971), introduz o discurso psicanalítico como aquele quenão faz aparência de plenitude (faire semblant), pode-se inferir que tanto aoperação analítica como a poética se dão no corte que faz cair do discursodo mestre essa aparência de plenitude: “Os efeitos da emergência da funçãodo significante, é isto que deve ser introduzido para que alguma coisa mude,que não pode mudar, pois não é possível, é ao contrário pelo fato que odiscurso se centre de seu efeito como impossível, que ele teria alguma chancede ser um discurso que não seria da aparência” (13/01/1971).

A especificidade da operação poética, que Lacan toma como indica-dor do que se passa na operação analítica, é o giro do discurso, ou seja,daquele que faz laço social ao induzir uma aparência de plenitude para ainscrição do impossível dessa aparência. Aqui podemos situar o ponto noqual o artista se antecipa ao analista. De um lado, está o discurso da apa-rência, quer esteja na fala cotidiana ou no enunciado científico, e, de outrolado, a pequena articulação, geralmente presente num detalhe ou na ausên-cia deste, que faz buraco em seu devido lugar, como nos alerta Lacan: “Osefeitos da articulação da aparência – quero dizer da articulação algébrica e,como tal, trata-se apenas de letras – eis aqui o único dispositivo por meio doqual designamos o que é real; o que é real é o que faz buraco nesta aparên-cia. Nesta aparência articulada que é o discurso científico, o qual progridemesmo sem mais se preocupar se é ou não aparência. Trata-se apenas de quesua cadeia, sua rede, sua lattice, como dizemos, faça aparecer os devidosburacos no devido lugar. Ele não tem ponto de referência a não ser o impossívelao qual conduzem suas deduções; este impossível é o real. O aparato dodiscurso, na medida em que ele, em seu vigor, encontra os limites de suaconsistência, eis com que visamos, na física, a algo que é o real” (20/01/1971).

O buraco na consistência da aparência, efeito de corte no fascínio deum ideal de gozo, faz uma borda na qual, diz Lacan, “a escrita, a letra são noreal, e o significante, no simbólico” (12/05/1971).

é inútil interpretar Édipo. Ao contrário, este é que nos permite situar o quediz todo sujeito.

Lacan, em seu texto “Homenagem feita a Marguerite Duras do des-lumbramento de Lol V. Stein”, retoma, já numa perspectiva ética, a metodologiada Gradiva. Seria, diz ele, uma grosseria “atribuir a técnica adotada por umautor a alguma neurose. (...) a única vantagem que um analista teria o direitode tirar de sua posição é lembrar-se com Freud que, em sua matéria, oartista sempre o precede e que, portanto, ele não deve fazer-se de psicólogoali onde o artista abre-lhe o caminho”3.

Contudo, isso não basta para esclarecer no que o escritor antecipa apsicanálise. Quais seriam “as fontes que ainda não tornamos acessíveis àciência”? Como nos lembra Chemama (2002), “a questão está sempre paraser retomada: mas, afinal, sobre o que o escritor nos ensina?”

Poderíamos pensar que a principal contribuição do escritor, especial-mente do poeta, estaria na própria operação poética, na medida em queintroduz funções da linguagem, situando o destinador, o destinatário, a men-sagem, assim como o contexto, o contato e o código, e também o estudodos fenômenos de assonância, aliteração, paronomásia e das múltiplas figu-ras de linguagem. Encontramos fenômenos idênticos no discurso inconsci-ente, quando se produzem articulações literais ao longo da fala do analisante,sobretudo num instante de separação e desprendimento do objeto causa dodesejo como efeito do corte de uma identificação alienante.

Entretanto, seguindo as indicações que Lacan nos dá, a contribuiçãodecisiva do escritor está na atenção à literalidade, ou seja, no efeito de corteinesperado ao se deixar guiar pelos próprios caminhos da língua. Nesseponto, a operação da função poética pode efetivamente interessar ao psica-nalista, confrontado com aquilo que ouve na fala do analisante. Essas indica-ções nos são fornecidas por Lacan, principalmente no seminário L’insu quesait de l’une bévue s’aile à mourre (1976-77), ao propor que a combinação

3 J. Lacan, Shakespeare, Duras, Wdekind, Joyce. Lisboa, Assírio & Alvim, 1989, p. 125.

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SEÇÃO DEBATES

No meio do caminho tinha uma pedratinha uma pedra no meio do caminhotinha uma pedrano meio do caminho tinha uma pedra.

E agora, José?A festa acabou,a luz apagou,o povo sumiu,a noite esfriou,e agora, José?e agora, Joaquim?e agora, você?você que é sem nome,que zomba dos outros,você que faz versos,que ama, protesta?e agora, José?

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.Porém meu ódio é o melhor de mim.Com ele me salvoe dou a poucos uma esperança mínima

Uma flor nasceu na rua!Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.Uma flor ainda desbotadailude a polícia, rompe o asfalto.Façam completo silêncio, paralisem os negócios,garanto que uma flor nasceu.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.É isto, amor: o ganho não previsto,O prêmio subterrâneo e coruscante,leitura de relâmpago cifrado,

Como é que o poeta, o artista, o escritor e o analista podem realizaressa façanha? Qual é seu segredo? Ora, “o próprio da poesia quando elafalha, é justamente de não ter senão uma significação, de ser puro nó deuma palavra com outra palavra. Disso resulta apenas que a vontade de sen-tido consiste em eliminar o duplo sentido, o que se concebe ao realizar estecorte, isto é, fazer com que haja apenas um sentido” (15/03/1977). Mais doque apenas um sentido, ainda retruca Lacan.

O poeta substitui o sentido ausente pela significação (a Bedeutung, nosentido de Frege, como na significação do falo, ou seja, aquilo que faz refe-rência ao introduzir sua falta, seu vazio), que se expressa, por exemplo, noqualificativo que Dante coloca em sua poesia, ou seja, que é amorosa. O dese-jo tem um sentido, enquanto que o amor cortês, como já foi apontado no Semi-nário sobre A ética da psicanálise, se suporta no vazio. Isso quer dizer que apoesia resulta de uma violência feita ao uso corrente da língua. “O sentidotampona, mas com a ajuda do que se chama a escritura poética, vocês podemter a dimensão do que poderia ser a interpretação analítica” (19/04/1977).

A operação poética, reconhece Lacan, ensina ao psicanalista algosobre a interpretação analítica. E ainda mais, a verdade tem a estrutura dodizer poético. “A metáfora, a metonímia não tem alcance para a interpreta-ção senão na medida em que sejam capazes de fazer função de outra coisa,para o qual se unem estreitamente o som e o sentido. É na medida em queuma interpretação justa extingue um sintoma que a verdade se especificapor ser poética. Não é do lado da lógica articulada que se deve sentir oalcance de nosso dizer” (19/04/1977).

É dentro dessa perspectiva que se pode ler a queixa de Lacan a res-peito de sua insuficiência poética: “A astúcia do homem é de preencher tudoisso com a poesia, que é efeito de sentido, mais igualmente efeito de furo.Não há senão a poesia que permite a interpretação, e é nisso que eu nãoconsigo mais, em minha técnica, com que ela se sustente; eu não sousuficientemente poeta (pouâte), eu não sou pouâteassez!” (17/05/1977).

Será Drummond suficientemente poeta? Deixo a cada um se situarnessa pergunta, ao acompanhar a sonoridade e a letra dos recortes de poe-mas que se seguem.

FLEIG, M. A máquina do mundo...

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SEÇÃO DEBATES

Mas, como eu relutasse em respondera tal apelo assim maravilhoso,pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança era mínima – esse anelode ver desvanecida a treva espessaque entre os raios de sol inda se filtra

A treva mais estrita já pousarasobre a estrada de Minas, pedregosa,e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,enquanto eu, avaliando o que perdera,seguia vagaroso, de mãos pensas.

Seguimos, continuamos, um passo e outro passo, “de mãos pensas”.

que, decifrado, nada mais existe

Amor é o que se aprende no limite,depois de se arquivar toda a ciênciaherdada, ouvida. Amor começa tarde.

A morte sabe disto e cala.Só a morte é que sabe.

A poesia (não tire poesia das coisas)elide sujeito e objeto.

O poema marca o limite do discurso da ciência. A falha no saber,daquilo que não se deixa inscrever, inscrevendo assim mesmo, na insistência.Enigma de todo enigma. O poeta é um sabedor dos enigmas, deixando-se levarpelo que não sabe. Para ilustrar, um trecho de “A máquina do mundo”.

A máquina do mundoO que procuraste em ti ou fora deteu ser restrito e nunca se mostroumesmo afetando dar-se ou se rendendo,e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riquezasobrante a toda pérola, essa ciênciasublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,esse nexo primeiro e singular,que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardenteem que te consumiste ... vê, contempla,abre teu peito para agasalhá-lo.

FLEIG, M. A máquina do mundo...

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RESENHA RESENHA

Na terceira e maior parte a sua vida amorosa, o casamento, as dúvi-das sobre quem, afinal, ele ama, seus negócios. Permeando a tudo, as suasteorias sobre seus males que beiram a hipocondria, e a descrição pormeno-rizada do nascimento de lesões conversivas.

Termina com a psicanálise e seu ataque contra o seu psicanalista e aprópria psicanálise. Aqui entra nosso interesse outra vez, a sua cura, oualgo que possa ser chamado assim é de fato efeito de sua análise, a mesmaque ele nos conta que não lhe deixou efeitos. Vocês não conhecem nenhumpaciente assim, não é? A grandeza do escritor é realmente fazer Zeno falarnuma direção e nos convencer do contrário.

O autor teve contato com Edoardo Weiss, que era o psicanalista queanimava o ensino de Freud em Trieste nesta época. Não é descartado que opsicanalista do livro tenha sido moldado a sua imagem. O problema é queWeiss não gostou nada da obra e censurou o autor por mau uso das idéiasanalíticas. Muito tempo depois, acredito que dá para constatar o contrário.O romance foge do caminho, tantas vezes trilhado, de um herói que édestruído por seus conflitos internos. A própria narrativa que testemunha-mos é o que interrompe essa trajetória. A bronca de Weiss vinha de umaidealização do alcance da cura analítica, algo próprio de uma época deafirmação de uma jovem ciência.

Italo Svevo é o pseudônimo de Ettore Schmitz, um triestrino, filho de paialemão e mãe italiana que viveu na fronteira destas línguas e culturas. Eraíntimo amigo de Joyce, com quem mantinha uma correspondência; amizadeque lhe valeu, sem que fosse necessário, mais visibilidade ainda para sua obra.

Poucas coisas são tão ricas quanto compartilhar uma obra, um filme,uma letra de música. No caso do romance é mais complicado, nem todo mun-do tem o nosso gosto e hoje se lê tão pouco. Minha intenção, agora já não maissecreta, é que mais gente leia para poder elaborar junto umas hipóteses sobrea real doença de Zeno, o que o fez melhorar. Enfim, para pensar como um casoclínico, pois poucas obras dão uma dimensão tão humana e tão real do sofri-mento neurótico e de como que se pode levar e ser levado por uma neurose.

Então, caro leitor, eu resolvi o seu problema de leitura de férias, sãotrês coelhos com uma só cajadada: um grande romance, você não vai seculpar por não estar estudando algo sério, e a diversão é garantida.

Mário Corso

O PSICANALISTA ERA O CULPADO

SVEVO, Italo. A Consciência de Zeno; tradução: Ivo Bar-roso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 411p.

AConsciência de Zeno”, de Italo Svevo, es-teve muitos anos fora de catálogo. Paranossa sorte, a Editora Nova Fronteira

trouxe o livro de volta, numa tradução bemcaprichada de Ivo Barroso e com um interessan-te posfácio de Alfredo Bosi.

É um romance de primeira grandeza, sóisso já valeria a recomendação, mas, no nossocaso, temos uma particularidade: trata-se deuma das primeiras obras em que a psicanáliseé mencionada e em que o psicanalista é um personagem. O fato é particu-larmente relevante em sua época, na qual, para desespero de Freud, dacomunidade artística só tinha a adesão indesejada dos surrealistas.

Na verdade, o psicanalista está oculto; a ele são endereçadas aslinhas, e está para ser escarnecido pelo herói da trama que quer demonstrarque a psicanálise não funciona. A trama é a vida de Zeno, mas ele só a narraporque é incentivado pelo seu analista, como um exercício da memória comfins terapêuticos. Depois, na posse de seus manuscritos, o analista publicaa obra, que é como nos teria chegado. Ou seja, o mote do livro seria umaautobiografia psicanaliticamente orientada. Para época em que o romancefoi escrito (1923) isso era uma boa sacada.

O livro está dividido em quatro grandes partes. Seguramente a maisdivertida é a primeira, onde ele nos conta as suas patéticas tentativas dedeixar de fumar. As descrições servem para qualquer vício, na fineza psicoló-gica da descrição da compulsão (o pessoal do núcleo toxicomania vai ado-rar). Nem precisa dizer que para aquilo que ele considera o seu grande mal,o fumo, o psicanalista não dá a mínima.

Na segunda, começa o drama, sua impossibilidade de fazer qualquercoisa, de tomar qualquer caminho e sua relação com seu pai. Poderia sechamar capítulo da neurose obsessiva.

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RESENHA RESENHA

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hos particulares e escusos. Canalha de carteirinha poderá fundar uma igreja,para, em nome de Deus (fala), roubar melhor dos pobres (ato). Aliás, “acanalhice é uma patologia do ato” que prevê o uso indiscriminado do outro e,muito cientemente, vislumbra a impunidade.

O ideal veiculado no imperativo “levar vantagem em tudo” e a crençade que “tudo sempre vai acabar em pizza”, reiteradamente propostos, mar-cam a existência de algumas concepções ignoradas que mantêm a repeti-ção. No primeiro caso, o de levar vantagem em tudo, pressupõe, além dadivisão da sociedade em duas classes – a dos trouxas e a dos espertos –, oideal maligno de um narcisismo que marca como bom pensar só em si edesconsiderar absolutamente o outro, ou seja: o ideal da patologia do ato,posto a esperteza estar referida ao agir não ao ser. Quanto à certeza de quetudo vai sempre acabar em pizza, alude menos ao descrédito da força dasinstituições do que ao prazer obtido, ao gozar, por tabela, pela possibilidade,geralmente confirmada, de que “alguns eleitos” conseguem escapar impune-mente aos ditames da lei do pai; odiados publicamente e admiradossecretamente.

Se tudo é possível, não é mais a lógica do desejo que rege as subje-tividades, mas sim a da inveja. Porque, objeto outrora interditado impossível,agora é possível, mas somente para alguns, os que podem financiá-lo.

O círculo cínico se interromperia, na medida em que o lugar do “trou-xa”, “dos que não podem”, ficasse vago, na medida em que deixassem de“sustentar” os “espertos”, os “eleitos”. Trata-se de sair dessa “servidão volun-tária” e vigiarmos de perto as pessoas que nós mesmos colocamos no poderpara velar os bens da comunidade. Vale a pena reproduzir o último parágrafodo livro: “decerto há razões históricas para esta tendência à servidão volun-tária, que pode ser rastreada até a colônia e nada deve ao discurso cínicoque é posterior. Este último, não obstante, finca raízes onde quer que taiscondições estejam dadas. Cresce e floresce no meio desta nostalgia do pai,que já empurrou para braços militares e para todo tipo de aventureiro quesustente uma retórica messiânico-autoritária. Como no conto de Borges,alguém nos está sonhando e a irresponsabilidade de não fazer nada nostranqüiliza e nos adormece”3.

Rossana Oliva

NO CÍRCULO CÍNICOOU CARO LACAN, POR QUE NEGAR A

PSICANÁLISE AOS CANALHAS?

GOLDENBERG, Ricardo. No círculo cínico ou caro Lacan,por que negar a psicanálise aos canalhas? Rio de Janei-ro: Relume Dumará, 2002. 110p.

Em qualquer momento da história da hu-manidade, o discurso esculpe as feiçõesdas relações sociais. Este discurso tem

um efeito nas subjetividades, principalmente notocante aos valores que serão alicerçados. Paraa psicanálise, ainda é um chamamento para queo sujeito responda de uma determinada posição.

Lacan propôs quatro discursos radicais, o da histérica, o do mestre, odo universitário e o do psicanalista, “verdadeiras matrizes das relações hu-manas como as conhecemos (e as vivemos) no Ocidente”1. O autor propõeagregar um quinto discurso, o cínico, examinadas suas características econseqüências. Cito algumas.

O cinismo dos nossos dias, concebido como uma forma de ser eestar no mundo, é a antítese do movimento filosófico cultural fundado porDiógenes na Grécia Antiga. Este tinha como objetivo criticar, afrontar e exporo discurso dominante onde ele se apresentava hipócrita, mentiroso e falso.De tiradas curtas e sagazes, geralmente acompanhado de performance emato, Diógenes e seus seguidores corriam todos os riscos que podem correros que ousavam desafiar o poder, estando no lado oposto ao da aristocracia.Ele não tolerava “ver as mesmas regras sendo invocadas ao mesmo tempopara proscrever e prescrever a conduta imoral; e a prática sancionando o queo preceito proibia”2. Características estas, na íntegra, do discurso cínicomoderno, filho do capitalismo e que se sustenta sobre a dissimulação e aocultação. Serve-se ele despudoradamente das normas e dos princípios uni-versais, geralmente aceitos e sancionados pela cultura, para encobrir gan-

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80 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 108, nov. 2002

AGENDA

EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RSTel: (51) 3333 2140 - Fax: (51) 3333 7922

e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.brJornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956

Revisor: Breno SerafiniImpressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.

Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Maria Ângela Brasil e Robson de Freitas PereiraIntegrantes: Ana Laura Giongo Vaccaro, Gerson Smiech Pinho,

Henriete Karam, Liz Nunes Ramos, Marcia Helena de Menezes Ribeiro,Maria Lúcia Müller Stein e Rossana Oliva

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 2001/2002

Presidência - Maria Ângela Brasil1a. Vice-Presidência - Lucia Serrano Pereira2o. Vice-Presidência - Jaime Alberto Betts

1a. Tesoureira - Grasiela Kraemer2a. Tesoureira - Simone Moschen Rickes

1a. Secretária - Carmen Backes2o. Secretário - Gerson Smiech Pinho

MESA DIRETIVAAlfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Maria Gageiro, Ana Maria Medeiros da Costa,

Analice Palombini, Ângela Lângaro Becker, Edson Luiz André de Sousa,Gladys Wechsler Carnos, Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Víctora,

Liliane Froemming, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack,Marta Pedó e Robson de Freitas Pereira.

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

Reunião da Comissão de Eventos

Reunião da Mesa DiretivaReunião da Comissão de BibliotecaReunião do Serviço de Atendimento ClínicoReunião da Comissão do Correio da APPOAReunião da Mesa Diretiva aberta aos mem-

bros da APPOA

10h

21h20h15min20h30min20h30min21h

PRÓXIMO NÚMERO

TRABALHO COM BEBÊS

NOVEMBRO – 2002

Dia Hora Local AtividadeSede da APPOA

Sede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOA

07, 14,21 e 280707 e 2111 e 2511 e 2521

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N° 108 – ANO IX NOVEMBRO ñ 2002

UTOPIA E A FUNÇÃO SOCIAL DA ARTE

S U M Á R I O

EDITORIAL 1

NOTÍCIAS 3

SEÇÃO TEMÁTICA 17A ARTE É UM ESPAÇO DEINVENÇÕES, DE VIDA A PROCURARPELO AVESSO DO SIMTOMAJorge de Campos Valadares 18AS UTOPIAS COMO ÂNCORASSIMBÓLICASEdson Luiz André de Sousa 24ENTRE LUGARES: ESPECULAÇÕESSOBRE UTOPIA E PSICANÁLISEAna Vicentini de Azevedo 28UMA PSICANÁLISE PARA SALVARO MUNDO DESENCONTROS ENTRESURREALISMO E PSICANÁLISETania Rivera 32IMPASSE E HESITAÇÃO NA POESIABRASILEIRA CONTEMPORÂNEAManoel Ricardo de Lima 36UTOPIA E DISTOPIA NALITERATURA BRASILEIRASueli Tomazini Barros Cassal 43UTOPUS: FORMAÇÃO EABERTURA DE ESPAÇOSJanaina Bechler 52A UTOPIA É UMA LINHA DEHORIZONTE: DESLOCAMENTODESTE PONTO E O OLHAR DOSINTERSTÍCIOSMaria Ivone dos Santos 56AINDA NÃO ESTÁ AQUIO QUE VOCÊ PROCURAElida Tessler 63SEÇÃO DEBATES 69A MÁQUINA DO MUNDO – OPSICANALISTA E O POETAMario Fleig 69

RESENHA 76“A CONSCIÊNCIA DE ZENO” 76

“NO CÍRCULO CÍNICO” 78

AGENDA 80