EDITORIAL PRESENÇA Queluz de Baixo · Tomás decide ir a pé. Do seu modesto andar na Rua de São...

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FICHA TÉCNICA Título original: The High Mountains of Portugal Autor: Yann Martel Copyright © 2016 by Yann Martel Todos os direitos reservados Edição portuguesa publicada por acordo com Westwood Creative Artists Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2016 Tradução: Isabel Nunes e Helena Sobral Revisão: Carlos Jesus/Editorial Presença Imagem da capa: Shutterstock Design da capa: CS Richardson Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1. a edição, Lisboa, abril, 2016 Depósito legal n. o 406 242/16 Reservados todos os direitos para Portugal à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730‑132 Barcarena [email protected] www.presenca.pt

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FICHA TÉCNICA

Título original: The High Mountains of PortugalAutor: Yann MartelCopyright © 2016 by Yann MartelTodos os direitos reservadosEdição portuguesa publicada por acordo com Westwood Creative ArtistsTradução © Editorial Presença, Lisboa, 2016Tradução: Isabel Nunes e Helena SobralRevisão: Carlos Jesus/Editorial PresençaImagem da capa: ShutterstockDesign da capa: CS RichardsonComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.a edição, Lisboa, abril, 2016Depósito legal n.o 406 242/16

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ÍNDICE

Parte Um

Sem Casa ........................................................... 11

Parte Dois

Para Casa ........................................................... 113

Parte três

Em Casa ............................................................ 179

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PARTE UM

Sem Casa

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Tomás decide ir a pé.Do seu modesto andar na Rua de São Miguel, no mal ‑afamado

bairro de Alfama, até à mansão do tio, situada no abastado bairro da Lapa, é uma boa caminhada através de grande parte de Lisboa. Deverá certamente demorar uma hora, mas o dia amanheceu lumi‑noso e cálido e o passeio tranquilizá ‑lo ‑á. No dia anterior, Sabino, um dos criados do tio, veio buscar ‑lhe a mala e o baú de madeira onde guarda os documentos de que precisa para a sua missão nas Altas Montanhas de Portugal e, assim, tem apenas a sua pessoa para transportar.

Apalpa o bolso do peito do casaco, onde guardou o diário do padre Ulisses, envolto num tecido macio. É uma tolice levá ‑lo assim, com tanto à ‑vontade. Se se perdesse, seria uma catás‑trofe. Tivesse ele juízo, tê ‑lo ‑ia deixado no baú, mas naquela manhã precisa de mais algum apoio moral, como sempre que visita o tio.

Apesar do entusiasmo que sente, lembra ‑se de trocar a bengala que normalmente usa pela que o tio lhe ofereceu. O punho é feito de marfim e o corpo de mogno africano, mas é sobretudo invulgar devido ao espelhinho de bolso redondo que se projeta de lado, logo abaixo do punho. O espelho é ligeiramente convexo e, assim, a imagem que reflete é bastante abrangente. Mesmo assim, é total‑mente inútil, uma ideia falhada, porque, ao ser usada, uma bengala está, pela sua natureza, em constante movimento, e a imagem refle‑tida pelo espelho é, por consequência, demasiado instável e efémera

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para servir para alguma coisa. Todavia, esta bengala extravagante é uma oferta do tio, feita de encomenda, e, sempre que Tomás o visita, leva ‑a consigo.

Desce a Rua de São Miguel até ao largo do mesmo nome e segue pela Rua de São João da Praça, antes de virar para o Arco de Jesus, num passo despreocupado de quem caminha por uma cidade que conheceu toda a vida, uma cidade bela e movimentada, repleta de comércio e de cultura, de desafios e de recompensas. No Arco de Jesus é assaltado por uma lembrança de Dora, a sorrir e a esten‑der a mão para lhe tocar. Neste caso a bengala é útil, porque as recordações dela fazem ‑no sempre desequilibrar ‑se.

«Arranjei um tipo rico», dissera ela certa vez, estavam eles dei‑tados na cama em casa dele.

«Receio bem que não», retorquira ele. «O meu tio é que é rico. Eu sou o filho pobretana do seu irmão pobretana. O meu pai teve tão pouco êxito nos negócios como o meu tio Martim teve sucesso na proporção exatamente inversa.»

Nunca dissera aquilo a ninguém, nunca comentara tão termi‑nantemente e com tanta verdade a carreira irregular do pai, os planos de negócios que ruíam uns após os outros, deixando ‑o em dívida moral para com o irmão, que o salvava em todas as ocasiões. A Dora, porém, podia contar aquelas coisas.

«Oh, tu dizes isso, mas os ricos têm sempre montes de dinheiro bem escondido.»

Ele rira ‑se. «Ai têm? Nunca pensei no meu tio como alguém que fosse sigiloso em relação à sua riqueza. E, se assim é, se sou rico, por que razão não casas comigo?»

As pessoas miram ‑no quando passa. Algumas fazem comentá‑rios, umas quantas na galhofa, a maioria, porém, com boa intenção. — Tenha cuidado, pode tropeçar! — brada uma mulher preo‑cupada. Ele está acostumado àquela atenção pública e, para além de um gesto de cabeça sorridente, ignora ‑os.

Um passo de cada vez, segue a caminho da Lapa, as passadas leves e descontraídas, erguendo bem os pés e baixando ‑os com aprumo. Tem um modo de andar elegante.

Pisa uma casca de laranja mas não escorrega.

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Não repara num cão que dorme, mas pousa o calcanhar mesmo junto à cauda do animal.

Falha um degrau ao descer umas escadas curvas, mas está a segu‑rar o corrimão e recupera facilmente o equilíbrio.

E outros contratempos semelhantes.O sorriso de Dora desfez ‑se à menção de casamento. Ela era

assim, passava de um estado despreocupado a um profundamente sério num instante.

«Não, a tua família bania ‑te. A família é tudo. Não podemos virar as costas aos nossos.»

«A minha família és tu», retorquira ele, olhando diretamente para ela.

A rapariga abanara a cabeça. «Não, não sou.»Os olhos dele, em grande parte libertos do fardo de o orientar,

descontraem ‑se nas órbitas, quais dois passageiros sentados em espreguiçadeiras na popa de um navio. Ao invés de observar o solo, o seu olhar vagueia, sonhador. Repara nas formas das nuvens e das árvores. Segue o voo dos pássaros. Observa o resfolegar de um cavalo que puxa uma carroça e pousa em pormenores arqui‑tetónicos dos edifícios em que não reparara anteriormente. Nota a azáfama do trânsito na Rua Cais de Santarém. Ao todo, devia ser um encantador passeio matinal naquele agradável dia dos finais de dezembro do ano de 1904.

Dora, a bela Dora. Trabalhava como criada em casa do tio, e Tomás reparou logo nela da primeira vez que o visitou depois de a rapariga ter sido admitida. Mal conseguia desviar o olhar dela ou afastá ‑la do pensamento. Esforçou ‑se por ser particularmente atencioso e por travar com ela frequentes conversas breves sobre assuntos menores. Isso permitia continuar a mirar ‑lhe o belo nariz, os olhos escuros e vivos, os pequenos dentes brancos, a forma como se movia. De súbito passou a ser um visitante assíduo. Lembrava‑‑se precisamente do momento em que Dora percebeu que ele se dirigia a ela não como criada mas como mulher. Ergueu os olhos para ele, os seus olhares ficaram presos por um momento e depois ela afastou ‑se, não sem antes curvar o canto da boca num rápido sorriso cúmplice.

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Algo de grandioso se libertou no seu íntimo, e a barreira da classe, de estatuto, a barreira do que era totalmente improvável e inadmis‑sível varreu ‑se. Na visita seguinte, ao dar ‑lhe o casaco, as mãos toca‑ram ‑se e ambos se demoraram nesse contacto. A partir daí, as coisas andaram depressa. Até então, as experiências íntimas e sexuais de Tomás haviam ‑se limitado a umas quantas prostitutas, ocasiões que haviam sido tremendamente excitantes e logo igualmente deprimen‑tes. Fugira de todas as vezes, com vergonha de si próprio e jurando nunca mais repetir. Com Dora fora terrivelmente excitante e assim permaneceu. Ela brincava com os pelos grossos do seu peito, a cabeça apoiada nele. Não tinha vontade de fugir para lado nenhum.

«Casa comigo, casa comigo, casa comigo», implorava ele. «Sere‑mos a riqueza um do outro.»

«Não, ficaremos apenas pobres e isolados. Não fazes ideia de como é. Eu faço e não quero que passes por isso.»

Durante aquele impasse amoroso nasceu o pequeno Gaspar. Se não fosse o facto de Tomás ter implorado com tenacidade, ela teria sido despedida da casa do tio quando se descobriu que car regava um filho. O pai fora o seu único apoio, dizendo ‑lhe que vivesse o seu amor por Dora, numa precisa oposição ao opróbrio silencioso do tio. Dora foi relegada para deveres invisíveis nos confins da cozinha. Gaspar vivia igualmente invisível na casa dos Lobo, amado de forma invisível pelo pai, que amava a mãe da mesma forma.

Tomás visitava a casa tantas vezes quantas a decência lhe permi‑tia, e Dora e Gaspar iam vê ‑lo a Alfama nas folgas dela. Passeavam até um jardim, sentavam ‑se num banco e ficavam a ver Gaspar brincar. Nesses dias eram como um casal normal. Ele estava apai‑xonado e era feliz.

Ao passar por uma paragem de elétrico, um elétrico ressoa nos carris, uma novidade nos transportes com pouco mais de três anos, de um amarelo ‑vivo e movido a eletricidade. Uns passagei‑ros apressam ‑se a apanhá ‑lo, outros a sair dele. Ele evita ‑os a todos, exceto um, contra o qual bate. Após uma conversa rápida, na qual se pedem e se aceitam desculpas mútuas, prossegue o seu caminho.

O pavimento do passeio apresenta várias pedras salientes, mas ele desliza sobre elas com facilidade.

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O pé bate na perna de uma cadeira de café, apenas um toque, nada mais.

A morte levou Dora e Gaspar, um passo inflexível de cada vez, o médico chamado pelo tio empregando o seu saber em vão. Pri‑meiro, dores de garganta e cansaço, seguidos de febre, arrepios, dores, dificuldade em engolir e em respirar, convulsões, a mente a perder ‑se num sufoco desvairado, até eles desistirem, os corpos acinzentados, retorcidos e tão imóveis como os lençóis em que se tinham debatido. Tomás esteve com cada um deles. Gaspar tinha cinco anos, Dora vinte e quatro.

Não presenciou a morte do pai alguns dias mais tarde. Encon‑trava ‑se na sala de música da casa dos Lobo, sentado em silêncio com um dos primos, entorpecido de dor, quando o tio entrou, o rosto sombrio. «Tomás», dissera ele, «tenho uma notícia hor‑rível. Silvestre... o teu pai, morreu. Perdi o meu único irmão.» As palavras não passavam de sons, mas Tomás sentiu ‑se fisicamente esmagado, como se um rochedo tivesse caído sobre ele, e chorou como um animal ferido. O seu pai, sempre tão caloroso! O homem que o criara, que encorajara os seus sonhos!

No decurso de uma semana — Gaspar morreu na segunda ‑feira, Dora na quinta e o pai no domingo —, o seu coração despedaçou ‑se como um casulo que rebenta. De lá não emergiu uma borboleta mas sim uma traça ‑cinzenta que pousou na parede da sua alma e não mais se moveu.

Realizaram ‑se dois funerais, um pobre para uma criada da pro‑víncia e seu filho bastardo, outro rico para o irmão pobre de um homem rico, cuja falta de êxito material foi discretamente omitida.

Não vê uma carruagem que se aproxima ao descer o lancil do passeio, mas o grito do cocheiro alerta ‑o e desvia ‑se rapidamente do caminho do cavalo.

Roça num homem de pé, de costas viradas para ele. Ergue a mão e diz: «As minhas desculpas», o homem encolhe os ombros ama‑velmente e fica a vê ‑lo afastar ‑se.

Um passo de cada vez, virando a cabeça de vez em quando para olhar por cima do ombro o que fica adiante, Tomás chega à Lapa a andar às arrecuas.

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«Porquê? Por que razão fazes isto? Porque não andas como uma pessoa normal? Basta deste disparate!», gritara ‑lhe o tio mais que uma vez. Em resposta, Tomás apresentara ‑lhe bons argumentos em defesa da sua forma de andar. Não fará mais sentido enfrentar os elementos — o vento, a chuva, o sol, o ataque dos insetos, o mau humor dos estranhos, a incerteza do futuro — com o escudo da nossa nuca, as costas do casaco, o traseiro das calças? São a nossa proteção, a nossa armadura. São feitos para aguentar os caprichos do destino. Entretanto, quando se anda às arrecuas, as nossas partes mais delicadas — o rosto, o peito, os pormenores atraentes da nossa roupa — estão protegidas do mundo cruel que nos espera, apenas exibidas quando e perante quem queremos com uma simples volta voluntária que nos destrói o anonimato. Já para não mencionar argumentos de natureza mais atlética. Que forma mais natural de caminhar para descer uma colina, argumenta ele, senão de costas? A dianteira dos pés tocam o chão com uma delicadeza ágil, e os músculos da barriga das pernas podem calibrar a contração e a descontração com toda a precisão. Assim, o movimento para baixo é elástico e sem esforço. E, se tropeçarmos, que outra forma mais segura existe senão andar às arrecuas, o almofadado das nádegas a proteger ‑nos na queda? É melhor que partir os pulsos numa queda para a frente. E ele não é demasiado obstinado em relação àquilo. Faz algumas exceções, por exemplo a subir as inúmeras escadas longas e sinuosas de Alfama ou quando tem de correr.

O tio descartou todas estas justificações com impaciência. Mar‑tim Augusto Mendes Lobo é um homem bem ‑sucedido mas impaciente. Contudo, sabe por que razão Tomás anda às arrecuas, apesar dos interrogatórios irritantes e das explicações dissimuladas do sobrinho. Um dia Tomás ouviu ‑o a falar com um amigo que o visitara. Foi o facto de o tio ter baixado a voz que o fez prestar atenção.

«... uma cena completamente ridícula», dizia o tio em voz baixa. «Imagine o seguinte: à frente dele, isto é, atrás dele, há um candeeiro. Chamo o meu secretário, o Benedito, e ficamos a ver num silêncio deslumbrado, os nossos espíritos preocupados com a mesma questão: Irá o meu sobrinho de encontro ao candeeiro?

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Nesse momento, surge na rua outro peão, na outra ponta. O homem vê o Tomás dirigir ‑se a ele a andar às arrecuas. Vemos pela maneira como inclina a cabeça que a forma curiosa de andar do meu sobrinho lhe chamou a atenção. Sei por experiência que haverá algum tipo de encontro — um comentário, um gracejo, no mínimo um olhar de espanto quando ele passa. De facto, alguns passos antes de o Tomás chegar ao candeeiro, o outro homem apressa o passo e detém ‑no com um toque no ombro. O Tomás vira ‑se. Eu e o Benedito não conseguimos ouvir o que os dois dizem um ao outro, mas assistimos à pantomina. O desconhecido aponta para o candeeiro. O Tomás sorri, acena com a cabeça e leva a mão ao peito para expressar a sua gratidão. O desconhecido devolve ‑lhe o sorriso. Apertam a mão. Com um aceno mútuo, afastam ‑se cada um para seu lado, o desconhecido rua abaixo, e o Tomás — dando meia ‑volta e avançando de novo às arrecuas — rua acima. Contorna o candeeiro sem o menor problema.

»Ah, mas espere! Ainda não acabou. Uns passos mais à frente, o outro peão vira a cabeça para olhar para o Tomás e fica claramente surpreendido ao ver que ele continua a caminhar ao contrário. Vê ‑se ‑lhe no rosto a preocupação — Cuidado, vai ter um acidente se não prestar atenção! —, mas também um certo embaraço, por‑que o Tomás está a olhar na direção dele e viu ‑o virar ‑se para o fitar, e todos sabemos que fitar alguém é má educação. O homem vira rapidamente a cabeça para a frente, mas é demasiado tarde e vai de encontro ao candeeiro mais próximo. Bate nele como um badalo bate num sino, e tanto eu como o Benedito nos encolhemos em solidariedade. A cambalear, faz um esgar e leva as mãos ao rosto e ao peito. O Tomás corre a ajudá ‑lo, corre virado para a frente. O amigo havia de pensar que o modo de andar para a frente pare‑ceria normal, mas não parece. A passada não tem vigor. Caminha a passos largos, o corpo avançando suavemente em linha reta, como se estivesse numa correia de transporte.

»Os dois homens travam nova conversa, o Tomás a exprimir grande preocupação, o outro homem descartando ‑a, sempre com a mão a pressionar o rosto. O Tomás apanha o chapéu do homem, que caíra no chão. Com outro aperto de mão e um aceno mais

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discreto, o pobre homem afasta ‑se a cambalear. O Tomás — e eu e o Benedito — fica a vê ‑lo ir ‑se embora. Só depois de o homem ter virado a esquina da rua é que o Tomás retoma o caminho à sua maneira, a andar para trás. Mas é evidente que o incidente o per‑turbou, pois agora bate dolorosamente no candeeiro que evitara com habilidade um momento antes. Esfregando a nuca, vira ‑se para o mirar, irritado.

»Mas, Fausto, ele insiste. Por mais que bata com a cabeça, por mais vezes que caia, continua a andar às arrecuas.» Tomás ouviu o tio a rir ‑se, acompanhado pelo amigo Fausto. Depois o tio pros‑seguiu mais sombriamente: «Isto começou no dia em que o filhito, o Gaspar, morreu de difteria. O rapaz nasceu fora do casamento, de uma criada da casa. Ela também morreu da mesma doença. Depois, assim quis o destino, o meu irmão Silvestre caiu morto passados alguns dias, ao meio ‑dia, a meio de uma conversa. A mãe do Tomás também morreu quando ele era novo, e agora o pai. Ser assim assaltado pela tragédia! Algumas pessoas não voltam a rir, outras entregam ‑se à bebida. No caso dele, o meu sobrinho escolheu andar às arrecuas. Já passou um ano. Até quando durará este estranho pesar?»

O que o tio não compreende é que, ao caminhar às arrecuas, com as costas viradas para o mundo e para Deus, ele não está a exprimir pesar. Está a levantar uma objeção. Porque, quando tudo o que aca‑lentávamos na vida nos foi tirado, que mais nos resta senão objetar?

Escolhe um percurso indireto. Vira na Rua de São Francisco de Paula e começa a subir a Rua do Sacramento à Lapa. Está quase lá. Ao girar a cabeça para ver por cima do ombro — recorda ‑se que há um candeeiro à frente —, mira as traseiras da mansão do tio, com as suas cornijas intrincadas, as coroas complexas e as janelas altas. Sente um olhar sobre si e repara numa figura a uma janela na esquina do segundo andar. Dado que é aí que se situa o escritório do tio, é provável que seja o tio Martim, por isso vira a cabeça para trás e esforça ‑se por andar com confiança, circundando o candeeiro com todo o cuidado. Segue o muro que rodeia a propriedade do tio até chegar ao portão. Gira para chegar à sineta, mas a mão detém‑‑se no ar e volta atrás. Embora saiba que o tio o viu e está à espera

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dele, demora ‑se. Depois tira o velho diário encadernado a pele do bolso do peito do casaco, retira ‑lhe o pano de algodão, encosta ‑se ao muro e deixa ‑se escorregar até ficar sentado no passeio. Observa a capa do diário.

Sendo a Vida em Palavrase as Instruções para a Oferenda

do Padre Ulisses Manuel Rosário Pinto,humilde servo de Deus

Conhece bem o diário do padre Ulisses. Sabe de cor partes intei‑ras. Abre ‑o ao acaso e lê:

Quando os navios negreiros chegam perto da ilha para entregar a carga que vem neles, têm muitas contas & limpezas para fazer. À vista do porto, atiram borda fora corpo atrás de corpo, tanto a bombordo como a estibordo, alguns flácidos & inertes, outros que gesticulam debilmente. São os mortos & os enfermos graves, os primeiros descartados por já não terem préstimo, os segundos com receio de a doença de que padecem se poder espalhar e afetar o valor dos outros. Acontece que o vento me traz aos ouvidos os gritos dos escravos vivos, que protestam contra a expulsão dos outros do navio, e igualmente o baque dos corpos ao cair na água. Desaparecem no Limbo repleto que é o fundo da baía de Ana Chaves.

A casa do tio é igualmente um Limbo de vidas inacabadas, interrompidas. Fecha os olhos. A solidão assalta ‑o qual cão que fareja, rodeando ‑o com insistência. Afasta ‑a, mas ela recusa ‑se a deixá ‑lo em paz.

Encontrou o diário do padre Ulisses poucas semanas após a sua vida ter sido irrecuperavelmente gorada. A descoberta foi uma casualidade relacionada com o seu trabalho no Museu Nacional de Arte Antiga, onde era assistente do conservador. O cardeal‑‑patriarca de Lisboa, José Sebastião de Almeida Neto, acabara de fazer ao museu uma doação de objetos eclesiásticos e laicos, acumu‑lados ao longo dos séculos em todo o Império Português. Com a

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permissão do cardeal Neto, o museu enviou Tomás para pesquisar nos arquivos episcopais na Rua Serpa Pinto a fim de estabelecer a proveniência exata daqueles belos artefactos, a história de como um altar, um cálice, um crucifixo ou um saltério, uma pintura ou um livro chegaram às mãos da diocese de Lisboa.

O que encontrou estava longe de serem arquivos exemplares. Era claro que os diversos secretários dos vários arcebispos de Lisboa não se tinham debruçado muito sobre o assunto terreno de orga‑nizar milhares de papéis e documentos. Foi numa das prateleiras dedicadas ao patriarcado do cardeal José Francisco de Mendonça Valdereis, patriarca de Lisboa entre 1788 e 1808, numa secção generalista a que fora dado o simples título de Miudezas1, que ele descobriu o volume encadernado à mão com a capa de couro castanho, o título manuscrito ainda legível apesar das manchas e descolorações.

Que vida era aquela, que oferenda, interrogou ‑se. Que seriam as instruções? Quem fora aquele padre Ulisses? Quando abriu o volume, a lombada emitiu o som de pequenos ossos a quebrarem‑‑se. A caligrafia destacou ‑se com uma frescura surpreendente, a tinta preta formando um profundo contraste com o papel cor de marfim. A letra, em itálico e escrita com uma pena, pertencia a outra época. As páginas tinham um ténue rebordo de um amarelo‑‑vivo, indicando que haviam visto muito pouca luz desde o dia em que tinham sido escritas. Duvidava que o cardeal Valdereis tivesse alguma vez lido o volume; de facto, dado não existir qualquer nota de arquivo adstrita à capa ou algures no interior, nenhum número de catálogo, nenhuma data ou comentário e tam‑bém nenhuma referência ao livro no índice remissivo, Tomás teve a nítida impressão de que ninguém jamais o lera.

Estudou a primeira página, reparando numa entrada com uma data e o nome de um lugar por cima: 17 de setembro de 1631, Luanda. Virou as páginas com cuidado. Surgiram outras datas. O último ano registado, embora sem dias nem meses, era 1635.

1 Todas as palavras, expressões e frases em itálico surgem em português no original. (NT)

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Tratava ‑se, portanto, de um diário. Aqui e ali notou referências geográficas: «as montanhas de Bailundu... as montanhas de Pungo Ndongo... a antiga rota de Benguela», locais que pareciam situar‑‑se todos na colónia portuguesa de Angola. A 2 de junho de 1633 surgiu um novo topónimo: São Tomé, a pequena ilha no golfo da Guiné, também uma colónia, «um salpico de caspa caído da cabeça de África, dias sem fim para norte ao longo da costa húmida deste continente pestilento». O seu olhar caiu numa frase escrita algumas semanas mais tarde: Esta é a minha casa. Todavia, não estava escrita apenas uma vez, pois as palavras cobriam a página. Uma página inteira com a mesma frase curta, numa letra apertada, as linhas repetidas, vacilando levemente para cima e para baixo: «Esta é a minha casa. Esta é a minha casa. Esta é a minha casa.» Depois paravam, substituídas por texto mais racional, para reaparecer algumas páginas à frente, cobrindo meia página: «Esta é a minha casa. Esta é a minha casa. Esta é a minha casa.» E outra vez, mais à frente, durante uma página e um quarto: «Esta é a minha casa. Esta é a minha casa. Esta é a minha casa.»

Que significaria? Porquê aquela repetição maníaca? Acabou por encontrar uma explicação possível numa página onde a repetição era igual às outras ocorrências, cobrindo desta vez quase duas pági‑nas, com uma diferença, uma alusão no fim, uma pista a indicar que a frase da página era uma elipse que o autor completou men‑talmente de cada vez: «Esta é a minha casa. Esta é a minha casa. Esta é a minha casa, para onde o Senhor me mandou até me levar para o Seu seio.» Era evidente que o padre Ulisses estava torturado por uma devastadora saudade de casa.

Numa das páginas, Tomás encontrou um esboço curioso, o dese‑nho de um rosto. As feições haviam sido traçadas à pressa, exceto os olhos doloridos, que estavam meticulosamente desenhados. Estudou ‑os durante muito tempo, mergulhando na sua tristeza. Lembranças do filho que perdera recentemente rodopiaram ‑lhe no espírito. Ao deixar os arquivos nesse dia, escondeu o diário entre papéis inócuos que levava na pasta. Foi honesto consigo próprio em relação ao seu objetivo. Não se tratava de um empréstimo informal, era um roubo puro e simples. Uma vez que os arquivos episcopais

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de Lisboa tinham negligenciado o diário do padre Ulisses durante mais de duzentos e cinquenta anos, não iriam agora dar pela sua falta, e ele queria examiná ‑lo como devia ser à sua vontade.

Começou a ler e a transcrever o diário assim que arranjou tempo, avançando devagar. A caligrafia variava entre trechos de leitura fácil e outros que lhe exigiam que percebesse que um certo garatujo representava uma certa sílaba, enquanto um outro rabisco repre‑sentava outra. Impressionou ‑o o facto de a escrita ter compostura nas primeiras secções, tornando ‑se notoriamente pior. As páginas finais mal se percebiam. Não conseguiu decifrar um certo número de palavras por mais que tentasse.

O que o padre Ulisses escreveu quando estava em Angola não passava de um relato fiel de pouco interesse. Não passava de mais um subordinado do bispo de Luanda, o qual «se sentava à sombra do cais no seu trono de mármore», enquanto ele se consumia num torpor apático, a afadigar ‑se de um lado para o outro a batizar lotes de escravos. Todavia, em São Tomé foi acometido por uma força desesperada. Começou a trabalhar num projeto, a oferenda mencionada no título. A sua criação consumiu ‑lhe o espírito e roubou ‑lhe toda a energia. Mencionou andar em busca da «madeira mais perfeita» e de «ferramentas adequadas» e recordou o treino que tivera na oficina do tio quando era novo. Descreve ter oleado a oferenda várias vezes para ajudar à sua preservação, «as minhas mãos reluzentes artífices de um amor dedicado». Perto do fim do diário, Tomás encontrou umas palavras estranhas, louvando o cará‑ter grandioso da sua criação:

Cintila, guincha, ladra, ruge. Verdadeiramente o Filho de Deus soltando um alto brado & exalando o último suspiro enquanto a cor‑tina do templo se rasga de alto a baixo. Está terminado.

Que ofício aprendera o padre Ulisses e o que produziria a oficina do tio? O que é que oleara com as suas mãos? O que é que cintilava, guinchava, ladrava e rugia? Tomás não conseguiu encontrar uma resposta clara no diário do padre, apenas alusões. Quando é que o Filho de Deus soltou um alto brado e exalou o último suspiro?

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Na cruz. Então, poderia o objeto em questão ser um crucifixo, interrogou ‑se Tomás. Era certamente uma escultura de algum tipo, mas havia mais qualquer coisa. Pelo relato do padre, um trabalho bastante peculiar. Algo adejou na alma de Tomás. Recordou ‑se das últimas horas de Dora. Depois de cair na cama, agarrara ‑se a um crucifixo com ambas as mãos e, por mais que se remexesse e se voltasse, por mais que gritasse, nunca o largou. Era uma efígie de metal barata que cintilava sombriamente, de tamanho pequeno, do tipo que podia estar pendurado numa parede. Morreu agarrando ‑o contra o peito no seu pequeno quarto sem adornos, apenas com a presença de Tomás numa cadeira a seu lado. Quando chegou o momento final, assinalado pela obstrução dramática da respiração ruidosa e áspera (ao passo que o filho partira calma‑mente, quais pétalas de uma flor a caírem), sentiu ‑se como uma placa de gelo a ser arrastada rio abaixo.

Nas horas que se seguiram, à medida que a longa noite termi‑nava e o novo dia se estendia à sua frente, e enquanto esperava pelo cangalheiro que nunca mais aparecia, fugiu e regressou ao quarto de Dora várias vezes, repelindo o horror, atraído por uma com‑pulsão. «Como vou sobreviver sem ti?», suplicava ‑lhe a certa al‑ tura. A sua atenção centrou ‑se no crucifixo. Até então, andara à deriva do ponto de vista religioso, observante por fora, indife‑rente por dentro, mas agora apercebia ‑se de que a questão da fé ou se levava radicalmente a sério ou o oposto. Ficou a olhar o crucifixo, alternando entre uma crença total e uma descrença total. Antes de lançar a sua sorte de uma ou de outra forma, pensou em guardar o crucifixo como recordação, mas Dora, ou antes, o seu corpo, não o largava. As mãos e o corpo dela agarravam o objeto com uma força obstinada, mesmo quando ele praticamente a soer‑gueu da cama, na tentativa de lho arrancar. (Em contraste, Gaspar tivera uma morte tão doce, como se fosse uma grande boneca de trapos.) Soluçando de raiva, desistiu. Nesse momento, veio ‑lhe ao espírito uma resolução, mais uma ameaça. Olhou, furioso, o crucifixo e sibilou: «Tu! Tu! Eu hei de tratar de ti, não perdes pela demora!»

O cangalheiro chegou por fim e levou Dora e o maldito cru cifixo.

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