Edson Freire O'Dwyer - Advocacia criminal: uma escola de cidadania

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I ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL

CONSELHO FEDERAL

ADVOCACIA CRIMINAL UMA ESCOLA DE CIDADANIA

Edson Freire O'Dwyer

Palestra proferida na XVIII Conferência Nacional dos Advogados, promovida pelo Conselho Federal da OAB, no per.íodo de 11 a 15 de novembro de 2002, na cidade do Salvador/BA.

Brasília, DF - 2003

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©Ordem dos Advogados do Brasil Conselho Federal, 2003

DIRETORIA:

Rubens Approbato Machado Presidente

Roberto Antonio Busato Vice-Presidente

Gilberto Gomes Secretário-Geral

Sérgio Alberto Frazão do Couto Secretário-Geral Adjunto

Esdras Dantas de Souza Diretor Tesoureiro

Capa: Suse\e Bezerra Miranda

Organização e diagramação: Luiz Carlos Maroclo

Tiragem: 2.000 exemplares

FICHA CATALOGRÁFICA

O'Dwyer, Edson Freire

Advocacia criminal- uma escola de cidadania / Edson Freire O'Dwyer,

-BrasIlia: OAB, Conselho Federal, 2003.

24 p.. . 1. Advocacia criminal- Cidadania. I. Ordem dos Advogados do Brasil. Conse-

Ih Federal. II. Título. CDD: 341.415

APRESENTAÇÃO

Ao ser organizado o Temário da XVIII Conferência Naci­onal dos Advogados, que se realizou na encantadora terra baiana de Salvador, de 11 a 15 DE NOVEMBRO DE 2002, tendo por tema central definido pelo Conselho Federal da OAB o trinômio "Cidadania, Ética e Estado", deliberou-se que seriam proferi­das, em cada um dos três dias de painéis, palestras magnas de abertura. No primeiro dia, 12 de novembro, a conferência foi proferida por um renomeado jurista estrangeiro, professor André Jean-Arnaud, que discorreu sobre o tema "O D ireito e a. Globalização". No segundo dia, 13 de novembro, coube a um jurista brasileiro, fora das terras baianas, permanentemente ho­menageado pela cultura jurídica internacional, Ministro Evandro Lins e Silva, que falou acerca do tema "Ética, Advocacia e J us­tiça". Para o dia do encerramento dos painéis, 14 de novembro, a OAB, homenageando os advogados e juristas da Bahia, sede da Conferência, convidou para proferir a palestra magna um mestre da área do direito penal, reconhecido internacionalmente por sua inteligência, capacidade e dotado de profunda sensibilidade, o Professor EDSON FREIRE O'DWYER, a quem coube falar so­bre "ADVOCACIA CRIMINAL - Uma Escola de cidadania".

A exposição do Professor Edson O'Dwyer, a par da pro­fundidade dos conceitos emitidos, foi emocionante. A clareza de seus pensamentos, difundidos por uma palavra sensível e apai­xonada, levou, em diversos momentos, os presentes às lágrimas. Sentia-se, em cada palavra, o amor à advocacia, ao ser humano. Não foi uma conferência: foi um hino de louvor à advocacia e, em especial, à injustiçada advocacia criminal. Como um dos mais sentimentais advogados criminalistas do país, se lamentou pelas injustiças de uma sociedade dirigida pelo chamado "clamor po-

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pular", ao relembrar da constante incompreensão do direito de defesa, afirmando: "ao defender os homens maus é difícil que nos entendam".

A sua apreciação sobre a "justiça técnica" é primorosa. Disse, do alto de uma experiência vivida, que "a justiça técnica, o julgamento técnico, esquece sempre o homem. "Os autos não o retratam, nem sua fisionomia é lembrada porque o julgador, em regra, só o viu no dia do interrogatório. Mas os fatos, estes são de importância extraordinária. O juiz os conhece, os estu­dou, é capaz de narrá-los bem na parte expositiva da sentença. E se julga habilitado a sentenciar. E quando condena faz um cálculo matemático, sempre técnico, considerando os quantitati­vos mínimo e máximo dó tipo, e dorme tranqüilo, certo de que cumpriu seu dever. Esquece ele que os fatos e o crime não esta­vam em julgamento, e que os fatos e o crime não seriam conde­nados, como não seriam absolvidos. A condenação ou a absolvi­ção volta-se para o homem, o homem acusado, aquele que tem alma e sentimentos. E a este ele, o Juiz, não conhece, não co­nheceu, não lembra sequer sua fisionomia. Não lembra que era um ser humano, um cidadão, aquele a quem ele julgou sem conhecer."

Por esses rápidos extratos pode se ver a imagem de um ser humano amadurecido nos embates judiciais, onde procurou, através da Justiça, em quem sempre confiou, o caminho de uma sociedade civilizada, consciente de que a ela só se chega condu­zido por advogado ético, inteligente, estudioso, combativo e, porque não dizer, ousado.

A conferência proferida por esse ser irrepetível e inigualável advogado, Edson O'Dwyer, merece ser reproduzida, lida, relida, trelida, como uma verdadeira Bíblia da advocacia criminal, uma escola real de cidadania. Essa é a razão que levou o Conselho Federal da OAB a publicar, como separata, a sua conferência, para que se dê aos advogados brasileiros, que não tiveram a ventura de estar presentes à XVIII Conferência Nacio­nal dos Advogados, a oportunidade de se emocionarem com a

�eleza de su� ��b�e profissão, e de renovar essa emoção àgueles gue tIveram o pnvIleglO de terem-na escutado na sagrada terra de Salva­dor.

Brasília, 12 de dezembro de 2002.

RUBENS APPROBATO MACHADO Presidente do Conselho Federal da OAB

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"Advocacia Criminal - escola de cidadania", é sobre o que

lhes devo falar, e essa fala haverá de destacar os pontos em que uma coisa e outra se encontram ou se identificam. Não me parece difícil fazê-lo.

Em verdade, quem entende a advocacia criminal como algo que ultrapassa o simples exercício profissional, que se alonga para significar defesa de valores integrativos do direito do homem, sua vivência social e política, o que tudo compõe sua cidadania, haverá de reconhecê-la como a forma mais efetiva de a esta defender e fazer respeitada. Cidadania não é só o que as leis dizem que seja, mas é, também, o reconhecimento de que o homem é mais do que um número de estatisticas, é u m ser social que se quer igual aos demais e assim tratado.

Na medida em que o advogado criminal luta por alguns dos direitos mais essenciais, entre. os quais a liberdade avulta, ele está lutando, exaltando ou construindo cidadania.

É por isso que a vida profissional do advogado criminal, sua atuação perante os tribunais ou fora deles, é uma luta permanente pela cidadania, ainda que às vezes não haja plena consciência dis­so.

Essa luta diária é uma escola. Uma escola onde o advogado ensina e aprende.

Se bem observarmos, há dois tipos de cidadania, como há dois tipos de direitos humanos. Um, é o que está escrito nas leis, nos tratados, nas convenções, nos livros, às vezes nas sentenças e sempre nos discursos. É uma cidadania teórica, aparentemente co­nhecida e defendida por todos. É uma cidadania divulgada, exal­tada, unânime. O outro, o outro tipo de cidadania, o outro tipo de direitos humanos, a cidadania que é direito de poucos, direitos humanos reconhecidos a poucos, cidadania e direitos que a muitos incomodam até porque nivelam, estes são os direitos humanos e a cidada-

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nia com os quais nós, advogados criminais, estamos permanentemente envolvidos.

Não são muitos os que vivenciam as profundas diferenças en­tre cidadania escrita e cidadania vivida. Uma, a escrita, só aparece na Constituição, expressamente referida com seu nome próprio - ci­dadania - duas vezes: no artigo primeiro, inciso III, quando é aponta­da como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, e no art. 22, inciso XIII, quando se fixa a competência exclusiva da União para sobre ela legislar. É pouco, é muito pouco, para uma Cons­tituição que se quis Cidadã. A outra, a cidadania vivida, esta nós advogados criminais a conhecemos bem, porque somos principalmen­te nós os que a defendemos.

A importância ao culto da cidadania precisa estar mais em . nossas consciências, já que não está definida em leis nem nos textos

constitucionais. Cuida-se tão pouco de cidadania, cidadania real, a que efetivamente nos interessa, que também os dicionários não a definem. Então, cidadania é o que cada um sente que seja, o que deve ser reconhecido por todos para diminuir desigualdades, para que ela se constitua, verdadeiramente, no repositório dos direitos mais essenciais do homem.

Cidadania, na prática e juridicamente, é, assim, o conjunto de regramentos e direitos nominados de garantias: as do devido proces­so legal, as da tutela jurisdicional do Estado, e todas as demais ínsitas no art. 5° da Constituição ou daí decorrentes. E quando se fala em cidadania e garantias, sobrelevam as que, com todas as limitações, sustentam a liberdade.

Falando em advocacia criminal e liberdade, lembro ter ouvido do saudoso J. B. Viana de Morais, em bela oração, que o advogado criminal se distingue dos outros, porque ele não fala em liberdade sem se emocionar.

E sob o domínio de suas emoções o advogado ensina e apren-de.

ROGÉRIO LAURIO TUCCI, com suporte em RUY BAR­

BOSA, vincula, muito bem, direitos e garantias, e na medida em que o advogado pleiteia garantias em favor de seu cliente e sua causa está ele pleiteando reconhecimento de direitos, direitos que em seu conjunto são direitos de cidadania. E esse ensino e essa aprendiza-

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gem são a escola de cidadania em que se constitui a advocacia criminal. Quando falo em advocacia criminal estou falando do exercício éti­

co da profissão. Se assim não for, se não houver respeito às regras éticas, não haverá garantia, direito, ensino, nem aprendizagem. Constatar-se-á, apenas, com sentimento, que os valores essenciais do direito e da Justiça estão e estarão sendo conspurcados, porque sem ética não há direito, nem justiça, nem valores.

Depois de mais de 50 anos de profissão, posso falar de ad­vocacia criminal e cidadania.

E para falar em advocacia criminal e cidadania eu resolvi lhes contar uma história. Uma história verdadeira, e essa história que 'lhes quero contar são muitas histórias, todas as histórias de advogados criminais, dos éticos, apenas desses, dos que talvez ain­da sejam um pouco românticos, dos que sacrificam comodidades, lazeres, não temem distâncias, ameaças ou incompreensões e se arriscam a perder boa fama ou, mais que isso, às vezes até a liber­dade. Lembro de LAC HAUD e DE SÉZE, ZOLA, HELENO

FRAGOSO e EV ARISTO DE MORAIS.

E essa história que lhes quero contar há de começar como começavam todas as histórias.

Todas as histórias, no meu tempo, naqueles tempos, "velhos tempos, belos dias", começavam assim: era uma vez . . . Fossem estó­rias da carochinha, fossem reais ou inventadas, começavam sempre aSSIm: era uma vez . . .

Eu resolvi lhes contar uma história. Uma história de vida. Não será propriamente a história de minha vida. É a história de um advogado, um advogado criminal, qualquer advogado criminal. Não somos iguais, não temos as mesmas lembranças nem vivemos os mesmos episódios, mas somos parecidos. E como vou lhes contar uma história, façam de conta que todas as nossas histórias são iguais.

Era uma vez ... um jovem igual aos outros. Entrou para a Faculdade de Direito aos 18 anos.

Naquele tempo a Faculdade tinha um nome bonito: era a FACULDADE UVRE DE DIREITO DA BAHIA.

O primeiro ano era de matérias básicas, mais ou menos pre­

paratórias para o resto do curso: I NTRODUÇÃO À CIÊNCIA D O

DIREITO, TEORIA GERAL DO ESTJillO, DIREITO ROMANO e ECO-

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NOMIA POLÍTICA. Chegavà-se ao segundo ano e lá estavam as primeiras maté­

rias que integrariam a fase profissionalizante: DIREITO CONSTITU­

CI aNAL, FINANÇAS, DIREITO CIVIL e DIREITO PENAL. E um dia

o jovem estudante recebeu as primeiras lições de Direito Penal. MANOEL BANDEIRA é um de meus poetas preferidos. E ele diz assim num trecho de seu belo poema EVOCAÇÃO

DO RECIFE:

"Um dia eu vi uma moça nuinha no banho

Fiquei parado, o coração batendo

Ela se riu Foi o meu primeiro alumbramento".

O Direito Penal é na Faculdade o primeiro alumbramento. São mais de 50 anos de vida profissional. Aquele jovem se

tornou advogado. E já são 50 anos ininterruptos de advocacia cri­minal. Envelheceu advogando, vai morrer advogado: são 50 anos de compromisso com a liberdade e a cidadania.

Todos os que envelhecem advogando no foro criminal jun­tam de sua experiência e de suas vivências as lições que receberam da vida, da vida profissional. Lições que alguns não aprenderam, mas que são lições de ética e cidadania.

Foram 50 anos de delegacias, juízos, tribunais, estradas, cár­ceres, quartéis, tensões, dúvidas, medos, alegrias, decepções, rai­vas, surpresas. Foram dias e noites de trabalho incessante, foram histórias contadas e ouvidas, Joram relatos emocionados, foram rai­vas incontidas, ambições incontroláveis, justificativas inaceitáveis, mentiras deslavadas, arrependimentos irreversíveis. Foram paixões, ira, ímpetos, desespero. Foram defesas e acusações.

Durante os anos em que se desdobra a vida do advogado

criminal desfilam ante seu olhos e ouvidos todos os sentimentos,

humores, paixões, dúvidas e esperanças de um número tão grande

de pessoas que não será possivel estimar ou calcular. São pessoas

de todas as espécies. São pessoas comuns e especiais. São pessoas

letradas e ignorantes. São ricos e pobres. São culpados e inocentes.

São verdadeiros e mentirosos. São vítimas e autores. E são também

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pais, irmãos, esposos, filhos, amigos, desafetos, adversários. São protago­nistas· de dramas e comédias. A todos, o advogado, vê e ouve, a todos conhece, muito ou pouco. Com todos dialoga, a muitos apenas aconselha e a outros patrocina.

Entre clientes e advogados há uma estreita relação de confiabilidade, entrega, esperança e às vezes decepção.

De muitos clientes nós, advogados criminais, recebemos ho­norários, de outros apenas agradecimentos. De outros mais nem uma coisa nem outra. Não sei o que mais me recompensou, me agradou, o que mais me serviu, o que mais me estimulou. Teriam sido os dinheiros que nos ajudam a viver e sustentar a família? Tenho sérias dúvidas. O dinheiro nunca me emocionou, mas não foram poucas as lágrimas diante de um "muito obrigado" ou de um "Deus lhe pague", também ditos entre lágrimas.

O Direito Penal foi também, qual o jovem da história, o meu primeiro alumbramento. E quando ainda jovens estudantes, nos deixávamos por ele seduzir, quando ainda não sabíamos nada da advocacia, nada do direito, nada da vida, a defesa criminal já se transformava no ideal de futuro, no que deveria vir a ser definitivo. É nessa fase que o estudante de direito já se antevê na tribuna do júri, principalmente nela, a fazer o auditório e os jurados se emoci­onarem e a se emocionar também, e a tentar, às vezes sem sucesso, que uma lágrima mais afoita, incontida, incontrolável, não lhe salte dos olhos na peroração.

Passado aquele instante de beleza do espetáculo judiciário do júri, as togas, as becas, os debates, a oratória, a tensão da vota­ção, para a maioria a realidade vai ser outra . E os bacharéis se albergam no Direito Civil, Comercial, Tributário, Trabalhista, etc ...

São poucos os que ficam. E esses poucos sabem que não estão indo ao encontro da glória, do poder e da riqueza. O seu horizonte é a liberdade.

A figura do advogado criminal é sempre a mais admirada. Lendas, histórias, casos, exemplos, defesas brilhantes, gestos de coragem e desprendimento, tudo nos faz diferentes dos demais profissionais do direito aos olhos alheios. A fama dos bens sucedi­dos seduz.

O que nem todos sabem é que há um espaço muito grande ocupa-

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do por horas insones, por dúvidas atrozes, por expectativas bem diferentes daqueles momentos fugazes de alegria, euforia, emoção, às vezes de aplausos.

Nesse espaço de ansiedade e tensão, o advogado é mais ci­dadão do que nunca e por isso o ânimo do cumprimento do de­ver não se deve tornar menor. E é então que se pode distinguir o advogado, aquele que faz de sua atividade um exercício de cidada­nia, daquele que simplesmente advoga. Enquanto um norteia seu trabalho para os resultados que não interessam apenas a seu patro­cinado, mas se refletem no todo social, o outro dá-se por satisfeito quando escreve a última palavra de sua petição ou quando pronun­cia a última frase da defesa oral.

O júri é o instante mágico da defesa. Ele nos ensina, mais do que possamos aprender em outros momentos profissionais, o quan­to é complexa e diversificada a alma humana.

É no júri que a Justiça está mais próxima de Deus. E Deus é, também, coração e emoção.

Quando RUY afirmou que não há justiça sem Deus, ele cer­tamente estava querendo dizer que não há justiça sem emoção, sem coração. Que não há Justiça quando o Juiz só vê à sua frente a Lei, quando sua preocupação ao sentenciar está voltada, apenas, para os fatos, as provas, os testemunhos, as perícias, as contradições, as verdades e mentiras dos autos. RUY sabia que a justiça criminal técnica esquece o homem, o homem na sua complexidade, na sua cultura, nos seus condicionamentos, no seu passado, na sua educa­ção, nos seus vínculos familiares, em sua formação advinda dos exemplos, bons ou maus, que recebeu. Esquece que o homem acu-sado tem alma e sentimentos.

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A justiça técnica, o julgamento técnico, esquece sempre o homem. Os autos não o retratam, nem sua fisionomia é lembrada porque o julgador, em regra, só o viu no dia do interrogatório. Mas os fatos, estes são de importância extraordinária. O Juiz os conhe­ce, os estudou, é capaz de narrá-los bem na parte expositiva da sentença. E se julga habilitado a sentenciar. E quando condena faz um cálculo matemático, sempre técnico, considerando os quantita­tivos mínimo e máximo do tipo, e dorme tranqüilo, certo de que cumpriu seu dever. Esquece ele que os fatos e o crime, não esta-

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vam em julgamento, e que os fatos e o crime não seriam condena­dos, como não seriam absolvidos. A condenação ou a absolvição volta-se para o homem, o homem acusado, aquele que tem alma e sentimentos. E a este ele, o Juiz, não conhece, não conheceu, não lembra sequer sua fisionomia. Não lembra que era um ser huma­no, um cidadão, aquele a quem ele julgou sem conhecer.

A Justiça do júri é diferente. O acusado ali está, os jurados ouviram de viva voz sua história, sentiram seu olhar, talvez te­nham identificado seu arrependimento ou sua arrogância, sua hu­mildade, seu discernimento, suas origens e valores. E podem julgá­lo melhor, porque ele, o réu, é um homem de sua comunidade. É um homem igual a eles.

Ali no júri talvez seja onde se tem a certeza de que é mais importante ter bons juízes do que boas leis.

Ali se erra e se acerta, como em todos os tribunais. j á vi o júri errar levado pela oratória da defesa ou pelas influências polí­ticas ou financeiras, alheias ao direito e à Justiça. Mas já vi pre­sentes as mesmas influências em outros Tribunais, os mesmos er­ros em outros Tribunais. Nunca vi o Júri errar, propositalmente, contra o acusado: mas já vi em outros Tribunais.

Em minha vida profissional já houve dezenas, muitas de­zenas de júris. Já defendi culpados e inocentes, já vi condenações e absolvições, já vi, repito, erros e acertos. Todos os que advoga­mos no Júri já os vimos. No julgamento popular todos já ensina­mos e aprendemos cidadania.

Tenho, ainda, paixão pelo Júri. O espetáculo judiciário que ali se desenvolve continua a ter o mesmo encantamento do pri­meiro a que assisti, recém ingressado na Faculdade. Lembro que naquele momento, como se dissesse a mim mesmo, senti que era aquilo que eu queria p'ra minha profissão, p'ra minha vida, des­lumbrado que estava com tudo que via. Mal sabia eu que a vida dos advogados criminais é também feita, e muito, de insegurança e de solidão. É bom que os jovens não saibam disso para não se intimidar. Mas se a alguns fizermos confissão nesse sentido deve­mos lhes dizer, também, que dúvidas, medos, inseguranças, soli­dão, tudo isso faz parte da vida.

Não sei de instante maior de cidadania do que quando o

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homem comum, o servidor público, o operário, o comerciante, o jornalis­ta, o engenheiro, o balconista, o vendedor, é feito Juiz, julgador de um seu igual. Ele, o jurado, está ali por ser respeitável, respeitado, confiável. Só por isso. Sem títulos nem pompas.

Para usar uma expressão bem nordestina, bem provinciana, fico matutando comigo mesmo se não era no jurado, no Júri popu­lar, no juiz leigo, que ELLERO estava pensando quando afirmou que

"julgar é uma função que o homem usurpou a

Deus".

Não há, não deve haver, advogado que já tenha participado de um Júri, criminalista ou não, que não haja verificado que o julgamento por homens do povo é um exercício de cidadania, uma escola de cidadania. E quando Se fala em cidadania é necessário que nos conscientizemos de que ela traz em si toda a carga de imperfeição do homem, mas mesmo imperfeitos, como somos, tem de ser cada vez mais exercitada, mais consciente, mais integrada nos bens e nos males da Justiça.

Estamos falando de cidadania. É preciso destacar aqui que a cidadania de que falamos não

é aquela que tradicionalmente identificava os que podiam ou não votar, ou os que adquiriam ou perdiam a nacionalidade. Também não é o mesmo conceito clássico e antigo, quando cidadão era o

que podia participar da vida política do local onde vivia. O cidadão de quem lhes falo é aquele para quem se voltou

a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, ainda que mais preocupada ela com o homem do que com o cidadão. O cidadão de quem lhes falo é o que se conseguiu definir ou identifi­car nas regras da Declaração Universal de 1948 e na Conferência de Viena de 1993.

Mas o cidadão que nos importa não é o dos textos legais nem dos discursos, o que nos importa é o cidadão que eu conheço, que é igual a mim, que é meu vizinho, meu patrão e meu emprega­do, meu irmão e meu colega, meu cliente e meu amigo. Este cida­dão é o que está protegido pelos regramentos constitucionais edita-

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dos em 88 e é o mesmo que está agasalhado pelos tratados e convenções pertinentes a direitos humanos recepcionados pela nossa Lei Maior e a ela integrados na condição de cláusulas pétreas. É o cidadão que precisa do advogado, o que está lutando por ter seus direitos reconhecidos e assegu­rados.

Direitos humanos e cidadania não são exclusividade de nin­guém. Brancos e negros, ricos e pobres, doutores e analfabetos, homens e mulheres, adultos e crianças, todos os têm. Mas há uma diferença: em regra, os brancos, os ricos, os doutores e os homens pensam ter mais ... e lutam por ter mais.

Nossa escola de cidadania é feita, em maior parcela, na de­

fesa daqueles que não são considerados homens bons: os que de­

fendemos, nós advogados criminais, estes são os tidos como ho­

mens maus! E esta é uma das imensas dificuldades e incompreensões

contra as quais lutamos para exercer nossos misteres e cumpnr

nossos deveres, o que não nos intimida ou desestimula, ou pelo

menos, não nos deve intimidar ou desestimular. Ao contrário, é

nessas defesas que o advogado se realiza, é nesses instantes que

ele é mais do que um advogado, ele é um protetor, é um amigo, é

mais que isso, é um irmão. Ao defender os homens maus é difícil que nos entendam.

Mais fácil é que nos julguem e a eles nos nivelem ou comparem. Mais fácil é que nos condenem.

Mas pouco nos importa como nos vejam ou nos julguem. VIEIRA dizia que não nos causa mal algum o que falam de nós mentindo. Não é bem assim. Muito do que dizem de nós, mentin­do, nos causa incômodo, raiva, decepção, e a alguns, marca indelé­vel e negativamente. Que fazer? Desistir? Não! Conscientizar-se de uma verdade contida em aconselhamento de RUY a EV ARISTO DE

MORAIS, sobre críticas e incompreensões para com o advogado e sua missão, como EVARISTO julgava sofrer.

RUY nos ensinou que apesar de tudo,

" ... nem por isso o papel do advogado é de menos necessidade ou menos nobre".

E se preferirmos lembrar, outra vez, MANOEL BANDEIRA,

IS

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quando assim for, quando nada mais puder ser feito para explicar o que somos e o que fazemos, quando, à semelhança do tísico nada mais puder ser tentado, sequer um pneumo-tórax, versejamos com ele:

" ... a única coisa a fazer é tocar um tango argenti-no ... "

Estou a lhes falar de nós, advogados, advogados cnmtnats. E destes, os que, a meu juízo, merecem nossas atenções, nossos des­taques, nossos louvores, são os advogados que todos deveriam ser, os sérios, os éticos, os que se entregam às causas, os que estudam, os que trabalham, os que vibram, os que se emocionam.

Não dou o mesmo tratamento àqueles que se escravizam aos honorários, aos inescrupulosos, aos anti-éticos, aos que subor­nam ou tentam subornar, aos que se acumpliciam com bandidos e se fazem bandidos também, aos que vivem e sobrevivem às custas do crime organizado, aos que usam diploma, titulação, identifica­ção profissional, para vantagens apenas financeiras e pessoais, o que não lhes dá, nunca, respeito, admiração, dignidade, nem cida­dania profissional. Mas lhes dá, e a eles oferecemos, o repúdio e a execração a que têm direito.

Os que ensinam e aprendem cidadania com a advocacia criminal são aqueles que defendem, com o mesmo denodo, humil­des e poderosos.

Se é dever defender liberdade, cidadania, ética, às vezes também se o faz na acusação. E na acusação também se aprende muito. Se na defesa os dotes oratórios, a literatura, a escolha das provas a serem destacadas e as teses jurídicas são estratégias lícitas, já na acusação entendemos que só a verdade, a mais pura verdade, a verdade dos autos, pode sustentar a atuação do advogado.

Nesse lado da causa também se aprende muito, às vezes até mais do que defendendo. Basta ver que é preciso aprender a con­trolar os arroubos, a não exagerar na argumentação, a tratar com respeito o acusado, a entender seu lado humano, a não partilhar dos senti­mentos e emoções das vítimas.

É preciso não esquecer que, apesar de tudo, ele, o acusado,

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é um homem! Fazer isso é, também, defender e exaltar a cidadania. Ou o

acusado, mormente antes da condenação definitiva, não é um cida­

dão? Não tem ele direitos? E não os terá mesmo depois de conde­

nado? É assim e por isso que as tarefas do advogado criminal não

se dirigem unicamente à proteção de seu cliente. Elas transcendem

à individualidade e alcançam, direta ou indiretamente, a todos. O

exercício de suas funções, o cumprimento de seus deveres, os cus­

toS de seu trabalho, as canseiras de sua labuta são um exercício de

cidadania respeitante não só a ele profissional, não só a seu patr�­

cinado, mas a tantos quantos, para viverem civilizadamente, ext­

gem uma prestação jurisdicional absolutamente respeitadora de di­

reitos. Assisti, faz pouco tempo, numa missa comunitária, uma ora­

ção que até então não conhecia. Em suas invocações, o sacerdote

pedia a proteção de Deus, sua compreensão, sua tolerância, sua Jus­

tiça, para com os bandidos, os criminosos, os réprobos, o.s assalta�­

tes e assassinos, enfim, para os homens maus. Eles prectsam maiS.

Bons ou maus, além de criaturas do Senhor, são também detentores

de direitos, detentores de cidadania mesmo que limitada, e é impe-

rioso que a respeitemos. . . Somos depositários da obrigação de lutar por taIS garantlas,

nós advogados, principalmente os criminalistas. Às vezes não é fá­

cil fazê-lo. Pouca coisa é fácil em nossas vidas, mas é preciso lem­

brar sempre, a cada instante, a cada embate, a cada dificuldade, a

lição de GORKI:

"só são homens os que se atrevem a encarar o sol de frente".

Vejam, meus colegas, que a cada instante, com dificuldades, ensinamos e aprendemos, e devemos fazê-lo encarando o sol de frente.

O defensor pode ser público, escolhido ou nomeado. A vida é sempre mais difícil para os mais necessitados e não

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há necessidade maior, em certos instantes, do que a de defesa nos tribu­n�s. Mas as defesas são onerosas, são caras, os advogados são profissio­naIS que, como todos, com trabalho garantem seu sustento. E os que não podem pagar têm tanto direito à defesa quanto os que a pagam. Mas todos têm direito a uma boa defesa. E nem sempre é uma boa defesa a exercita­d�

.por algumas defensorias públicas criminais, que têm sob sua responsa­

blltdade, dezenas, centenas de processos. Certamente não. Dai porque não basta lutar pela criação e ampliação de defensorias públicas, é preciso lutar por boas defensorias, sobretudo as criminais, para que elas realmente exercitem a defesa na sua amplitude; que não se limitem ao cumprimento de �guns prazos e à elaboração de alguns recursos. Que não entreguem a malDr parte d e seu trabalho a estagiários ainda inexperientes e despreparados. Que tenham disponibilidade de tempo e meios materiais para ir além do comparecimento às audiências. Que possam e saibam ou�

vir seus defendidos e que sejam capazes de se apaixonar pelas causas, mesmo aquelas que não chegam à mídia e por isso não fazem a fama dos advogados.

Estou falando do defensor cuja função, segundo RUY:

" . I conslste em ser, ao ado do acusado, inocente ou criminoso, a voz de seus direitos legais".

Seja contratado, seja público, seja advogado nomeado, só é def�nsor, na integralidade da expressão, aquele que seguir esse enS1namento.

Estar ao lado do acusado é protegê-lo. E essa proteção fal­tou no julgamento de JESUS CRISTO:

Ele estava só! Muitos vivemos os anos de chumbo, os tempos escuros da

ditadura, injusta, cruel, malvada, como são todas as ditaduras inde­pendentemente da ideologia, dos aplausos de muitos e do c�nfor­mi�mo de outros. No âmago, todas se parecem, se igualam, umas malS repugnantes, repulsivas, outras menos, mas todas desrespei­tando o homem, seus direitos, sua cidadania, suas idéias, seus so­nhos, sua liberdade e até sua vida.

Foram tempos ·escuros.

Muitos vivemos aqueles tempos. Alguns, felizmente entre os

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advogados criminais poucos, ainda trazem marcas físicas, que se ajuntam

às psíquicas, decorrentes das torturas e do medo. Ainda bem que são pou­

cos. Mas muitos dos que atuaram em defesa de políticos, presos ou não,

não esquecem de como era difícil apresentar-se em algumas delegacias e

em quartéis, como era difícil ser advogado, como era difícil defender. Como

era difícil lutar por liberdade e cidadania. Mas o fizemos. Não queriamos

ser, nem o fomos, heróis, nem bravos, nem valentes. O que queríamos era

ser advogados, apenas advogados. O que queriam os era defender direitos,

cidadania, pouco importando de quem. O que queríamos era pleitear jus­

tiça. E o fizemos na medida em que nos era permitido fazer. Em cada

defesa como que repetíamos o belo verso de THIAGO DE MELLO,

que era um grito de esperança:

"Faz escuro mas eu canto - porque a manhã vai che­gar".

Em tempos assim, qualquer que seja a pátria, alguns advo­gados se tornam símbolos. Basta lembrar, na França, de BERRIER e CHAEVAU - LAGARDE e no Brasil de RUY, SOBRAL PINTO e EVANDRO LINS.

Aqueles que profissionalmente freqüentaram delegacias, quar­téis, prisões, certamente não estão esquecidos. E é um motivo de orgulho não esquecer. Não esquecer que valeram tantos e todos os sacrifícios. Não esquecer que de tudo ficou a lição de que mesmo sentindo medo, vale a pena não ser covarde. O advogado criminal é somente um homem, igual aos outros, às vezes frágil, mas em seu trabalho deve ter a fortaleza dos que não se abatem.

Hoje, felizmente, os tempos são. outros. A manhã chegou. Ainda que não em termos ideais, até porque não seria possível, e talvez não o seja nunca . Já reconhecemos' que há uma consciência avantajada da importância da cidadania e dos direitos humanos. Já somos todos quase iguais. Padres, pastores e rabinos já celebram cultos comuns. Homens e mulheres disputam as mesmas oportuni­dades. Brancos e negros convivem em paz. É ótimo que seja assim. Mas não basta. Cidadania não é apenas isso. Cidadania é também alimentação, moradia, saúde, trabalho, justiça, o que tudo se pode resumir numa palavra: dignidade. E a busca da dignidade é uma

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luta incessante. De uma parte dela nós advogados nos encarregamos, mas somos poucos e não tão fortes como deveríamos e gàstariamós de ser.

Ainda falta muito. Ainda não temos a pátria ideal. Tê-Ia-emos um dia? E quando chegará esse dia? Quando tivermos consciência de que já não é mais tempo de pedir. Será tempo de exigir.· Exigir tudo que nos é devido: exigir que se acabem as masmorras dos presidios e as torturas dentro e fora de qualquer dependência oficial; exigir que os advogados sejam respeitados em delegacias e juizos. Exigir e receber o que é nosso direito, sem ter de agradecer o pouco, o quase nada é só o que muitos têm.

Nesse dia, que há de chegar, não precisaremos mais cantar, com CHICO BUARQUE DE HOLANDA, lembrado por ALBERTO SIL­VA FRANCO:

"Por esse pão p'ra comer Por esse chão p'ra dormir

A certidão p'ra nascer

A concessão p'ra sorrir

Por me deixar respirar Por me deixar existir

Deus lhe pague

Pela cachaça desgraça que a gente tem que engolir

Pela fumaça de graça que a gente tem que tossir

Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair Deus lhe pague."

Lutamos e vamos continuar lutando pela ética e pela cidada­nia, certos de que cada causa, cada pleito, cada defesa, não é ape­nas uma causa, um pleito, uma defesa, é uma luta. Que cada tese que sustentamos pode aproveitar a alguns, a muitos, a poucos ou a todos, pouco importa, e que ao lutar estaremos repetindo a lição aprendi­da com COUTURE em um dos seus mandamentos, que é um hino para nós advogados.

"Luta - teu dever é lutar pelo direito; porém quan­do encontrares o direito em conflito com a justiça,

luta pela justiça;

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Tem fé, tem fé, no direito como o melhor instrumento para a conquista humana; na justiça como destino nor­mal do direito; na paz como substituto benevolente da justiça, e sobretudo tem fé na liberdade, sem a qual não há direito, nem justiça, nem paz".

N em cidadania.

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