Eduardo Carneiro. O discurso fundador do Acre(ano)

141
Eduardo de Araújo Carneiro - O Discurso Fundador do Acre(ano) EAC Editor ADQUIRA TAMBÉM: ISBN 978-85-919549-8-8 EDUARDO CARNEIRO É professor da UFAC, autor e editor de livros. Licenciado em História (UFAC) e bacharel em Economia (UFAC). Tem mestrado em Linguagem e Identidade (UFAC) e doutorado em História Social (USP). Atualmente é acadêmico do doutorado em Estudos Linguísticos (UNESP). Foi eleito membro da Academia Acreana de Letras. PRÓXIMOS LANÇAMENTOS: Eduardo de Araújo Carneiro O DISCURSO FUNDADOR HISTÓRIA & Linguística Houve um tempo em que os signos Acre e acreano não existiam. Eles não figuravam como opção vocabular na comunicação linguageira. Neste livro, eu tento explicar como esses signos ganharam formas gráfica e semântica a partir do sem-sentido”, do jamais-ditoe do nunca-pensado. Somente a história iluminada pela linguística, ou vice e versa, poderia lançar alguma luz sobre tal questão. E foi exatamente isso que eu pretendi fazer ao utilizar o conceito de “discurso fundador”, concebido aqui como um acontecimento linguístico materializado em uma dispersão de textos que age sobre o universo discursivo para inaugurar uma dada significância. Esse processo não é natural, e sim marcado por arbitrariedades e silenciamentos. Quando menciono o discurso fundador do Acre(ano), quero me referir à paisagem enunciativa responsável pela imaginação apoteótica da origem do Acre(ano). Através dele, é possível observar como o poder simbólico da linguagem foi empregado para “embelezar” fatos históricos ligados à violência, à corrupção e ao culturicídio. Enfim, este livro é mais uma tentativa de desmistificar a formação histórica do Acre, oferecendo ao leitor uma versão mais sincera do passado acriano. “A criação do Acre não foi uma dádiva dos deuses. Ele não surgiu das mãos do Criador, portanto, a sua origem não deve ser entendida como um espetáculo do Gênesis”. 4ª Edição

Transcript of Eduardo Carneiro. O discurso fundador do Acre(ano)

Ed

uard

o d

e A

raú

jo C

arn

eiro

-O

Dis

cu

rso

Fu

nd

ad

or d

o A

cre

(an

o)

EACEditor

ADQUIRA TAMBÉM:

ISBN

978-85-919549-8-8

EDUARDO CARNEIRO

É professor da UFAC, autor e editor de livros.

Licenciado em História (UFAC) e bacharel em

Economia (UFAC). Tem mestrado em Linguagem e

Identidade (UFAC) e doutorado em História

Social (USP). Atualmente é acadêmico do

doutorado em Estudos Linguísticos (UNESP). Foi

eleito membro da Academia Acreana de Letras.

PRÓXIMOS

LANÇAMENTOS:

Eduardo de Araújo Carneiro

O DISCURSOFUNDADOR

HISTÓRIA & Linguística

Houve um tempo em que os signos Acre e acreano não existiam.

Eles não figuravam como opção vocabular na comunicação

linguageira. Neste livro, eu tento explicar como esses signos

ganharam formas gráfica e semântica a partir do “sem-sentido”, do

“jamais-dito” e do “nunca-pensado”. Somente a história iluminada

pela linguística, ou vice e versa, poderia lançar alguma luz sobre tal

questão. E foi exatamente isso que eu pretendi fazer ao utilizar o

conceito de “discurso fundador”, concebido aqui como um

acontecimento linguístico materializado em uma dispersão de textos

que age sobre o universo discursivo para inaugurar uma dada

significância. Esse processo não é natural, e sim marcado por

arbitrariedades e silenciamentos. Quando menciono o discurso

fundador do Acre(ano), quero me referir à paisagem enunciativa

responsável pela imaginação apoteótica da origem do Acre(ano).

Através dele, é possível observar como o poder simbólico da

linguagem foi empregado para “embelezar” fatos históricos ligados

à violência, à corrupção e ao culturicídio. Enfim, este livro é mais

uma tentativa de desmistificar a formação histórica do Acre,

oferecendo ao leitor uma versão mais sincera do passado acriano.

“A criação do Acre não foi uma dádiva dos deuses. Ele não surgiu das mãos do Criador, portanto, a sua origem não deve ser entendida como um espetáculo do Gênesis”.

4ª Edição

C289d

Todos os direitos desta edição pertencem a Eduardo de Araújo Carneiro. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida por qualquer meio ou

forma sem a autorização prévia do autor. Contato pelo e-mail: [email protected]

Editor Geral

Eduardo de Araújo Carneiro

Capa, Diagramação, Preparação do Texto, Ilustração, Projeto Gráfico e Arte Final

Eduardo de Araújo Carneiro

Análise Crítica e Revisão Profa. Dra. Paula Tatiana da Silva (UFAC)

Imagem da Capa A Criação de Adão

de Michelangelo Buonarotti

ISBN 978-85-919549-8-8

4ª Edição Março de 2017

Carneiro, Eduardo de Araújo. O discurso fundador do Acre(ano): história &

linguística. /Eduardo de Araújo Carneiro. Rio Branco: EAC Editor, 2017, 140 p. : il.

I. História; II. Linguística; III Acre; IV. Revolução

Acriana; V. Historiografia acriana; VI. Análise do Discurso; Título.

CDD 981.12

DEDICATÓRIA

Às minhas orientadoras do Mestrado,

no primeiro ano, Dra. Maria do Rosário Gregolin (UNESP); e

no segundo ano, Dra. Marisa Martins Gama-Khalil (UFU).

Aos professores que participaram da banca de qualificação e

de defesa da minha dissertação de mestrado:

Dra. Laélia Rodrigues Silva (UFAC), Dr. Gerson

Albuquerque (UFAC) e Dr. Miguel Nenevé (UNIR).

À Profa. Dra. Paula Tatiana da Silva (UFAC),

líder do GEADEL (Grupo de Estudos em Análise de Discurso e

Ensino de Línguas), ao qual faço parte, pela revisão do texto

original, sugestões e apresentação desta obra.

A todos os meus alunos e ex-alunos dos cursos de

História, Geografia, Economia e Ciências Sociais.

A todos os meus familiares, em especial,

Sarah Cristina (filha) e Silvia Helena (irmã),

Aos membros da Academia Acreana de Letras.

“Já em Platão estava a ideia de que as origens tinham uma condição divina,

pois excedia em significação outro momento do processo histórico”.

(ACHUGAR, 2006, p. 246).

“Gosta-se de acreditar que as coisas em seu início se encontravam em

estado de perfeição; que elas saíram brilhantes das mãos do criador, ou na luz sem sombra da primeira manhã”.

(FOUCAULT, 2001, p. 17).

SUMÁRIO

PREFÁCIO (Dalmir Ferreira - AAL) 07

APRESENTAÇÃO (Profa. Dra. Paula Tatiana - UFAC) 08

INTRODUÇÃO 10

1. SOBRE O DISCURSO FUNDADOR 13

1.1 O DIALOGISMO NO CONCEITO DE DISCURSO FUNDADOR 14 1.1.1 Michel Foucault e a fundação de discursividade 15 1.1.2 Dominique Maingueneau e o discurso constituinte 17

1.2 ENTREVENDO O CONCEITO DE DISCURSO FUNDADOR 19 1.2.1 O discurso fundador sob o olhar de Eni Orlandi 19 1.2.2 O discurso fundador sob múltiplos olhares 23

1.3 DISCURSO FUNDADOR E COMUNIDADE: ALGUMAS ATRIBUIÇÕES SOCIAIS 29 1.3.1 Fixar um marco inaugural glorioso para a comunidade 30 1.3.2 Definir a identidade para a comunidade 34 1.3.3 Outras funções sociais do discurso fundador 36

2. O DISCURSO FUNDADOR DO ACRE 39

2.1 O SIGNO ACRE E SUAS SIGNIFICÂNCIAS 40 2.1.1 O “Acre” estrangeiro 44 2.1.1.1 O “Acre” peruano 45 2.1.1.2 O “Acre” boliviano 55 2.1.2 O “Acre” brasileiro 60 2.1.2.1 O “Acre” amazonense 68 2.1.2.2 Enfim, o “Acre” se torna Acre 82

2.2 A REVOLUÇÃO ACRIANA COMO ACONTECIMENTO FUNDADOR DO ACRE 85

2.3 A INVENÇÃO DA ORIGEM GLORIOSA DO ACRE 93

3. O DISCURSO FUNDADOR DO ACRIANO 97

3.1 O PATRIOTISMO ACRIANO 99 3.1.1 “Tudo foi feito por amor à pátria 102 3.1.2 O patriotismo no manifesto dos chefes da Revolução Acreana (1900) 113

3.2 O HEROÍSMO ACRIANO 118 3.2.1 “Imitemos o exemplo sem par” 121

3.3 AS VOZES CONSTITUINTES DO DISCURSO FUNDADOR DO ACRE(ANO) 126

CONCLUSÃO 132

REFERÊNCIAS 135

~ 7 ~

PREFÁCIO

Caro leitor,

As palavras de justificação ou esclarecimento que me pediu o autor da obra, e que agora inicio são inúteis e, portanto, desnecessárias, pois que esta é uma obra nascida para se ajustar a um momento que vivemos. A ela pouco terei que me referir, pois que apenas precisa ser lida.

De minha parte devo apenas aconselhar espírito aberto e atenção ao contexto em que ela se insere, sem que se deixe, no entanto, que nela também se busque intuitivamente uma verdade, essa que quase sempre se negligencia nos climas de exagerada euforia, enfim.

É obra que refreia ufanismos fabricados, que propõe seriedade na reflexão, que sem ser do contrapropõe rumo, sem carnavais, sem oba-oba. É obra que se utiliza do cientificismo acadêmico sem servilismo e supõe a necessidade da serenidade comum a quem raciocina.

Por fim, também não visa retorno de dividendo comum aos mercenários, nem tem a marca de qualquer bloco ou frente que se diga popular em seu sentido mais retrógrado. É escrito para uma geração que se queira digna, não para a venal ou a de massa de manobra que perdura.

A você que escreveu e a você que agora lê desejo que o encontro se complete no mais extenso entendimento, no mais profundo abraço e na mais alta causa de ações em prol da libertação da cegueira e do entorpecimento comuns aos que lutam pela evolução humana.

Dalmir Rodrigues Ferreira, artista, historiador, membro da Academia Acreana de Letras e

ex-presidente do Conselho Estadual de Cultura - Acre.

~ 8 ~

APRESENTAÇÃO

Eis aqui um novo olhar que se lança sobre o discurso da

fundação do Acre e da população que o constitui. Para alguns, “O Discurso Fundador do Acre(ano): História e Linguística”, do Prof. Dr. Eduardo de Araújo Carneiro, poderá ser compreendido como uma provocação. Mas o que faz a ciência senão provocar as verdades consideradas inquestionáveis?

Não se trata de um livro que gera polêmicas por meio da desconstrução de mitos, trata-se de uma fonte de pesquisa que desmistifica um imaginário construído em um contexto específico não mais satisfatório no tempo presente. É assim que “O Discurso Fundador do Acre(ano): História e Linguística” mostra-se capaz de gerar inúmeras outras pesquisas, pois suscita a abertura para discussões relacionadas a assuntos tidos como finalizados, ressignificando o papel da própria História: o de se reconstruir.

Novas descobertas promovem novas releituras, novos debates e novas reflexões. E é nesse fio discursivo que o autor direciona a sua escrita, dividida em três capítulos. No primeiro, Carneiro pauta-se na Análise do Discurso de linha francesa, mais precisamente nos preceitos de Eni Orlandi, para apresentar o conceito de “discurso fundador”, o qual irá perpassar todos os argumentos expostos nos capítulos 2 e 3. Apoia-se, também, nos estudos de Foucault (2006) e Maingueneau (2006), no que se refere a fundação de discursividade e a discurso constituinte, respectivamente. Dessa forma, o autor mobiliza conceitos linguísticos da Análise do Discurso para atender o objetivo principal da sua escrita: clarificar fatos históricos que, de algum modo, enuncia “a historicidade discursiva da identidade acriana e a subjetividade da narrativa epopeica da anexação do Acre”.

No segundo capítulo, coloca-se em pauta o processo de significação que diferencia o Acre, enquanto um território estrangeiro, daquele que o compreende como terra nacional, nas palavras do autor:

~ 9 ~

Não há interesse aqui de apontar qual a origem do signo ‘Acre’ ou identificar qual o acontecimento fundador dele. O relevante é entendermos as condições de produção do discurso que inventou um marco de origem ou possibilitou a imaginação da origem do Acre(ano) a partir da ‘Revolução Acriana’. Para que esse fenômeno fosse compreendido, houve a necessidade de analisar como um território considerado estrangeiro foi inventado como brasileiro e nomeado como Acre. (p. 39-40)

No capítulo terceiro, ao perfazer a tese de que a linguística lhe

serviria de subsídio para refutar a exígua transfiguração de “personagens históricos em semi-deuses”, o autor apoia-se na materialização do discurso (mapas, documentos oficiais, propagandas institucionais), a fim de analisar o contexto sócio-histórico-cultural que atravessa a formação da identidade do povo acriano.

Aos defensores de uma “história” que ignora os próprios fatos históricos, materializados em documentos variados, e de uma “história” propagadora de um sujeito/povo herói que jamais existiu, sugere-se conhecer esta obra e, principalmente, as fontes pesquisadas, a fim de repensar os fatos documentados, porque, como mesmo afirma o historiador Jacques Le Goff, “No limite, não existe um documento-verdade. Todo o documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo” (1996, p.547-548).

Dra. Paula Tatiana da Silva,

professora do Centro de Educação, Letras e Artes da Ufac, líder do Grupo de Estudos em Análise de

Discurso e Ensino de Línguas

~ 10 ~

INTRODUÇÃO

“O episódio histórico em si, por mais importante que ele seja, não é conservado na memória popular, e sua lembrança tão pouco alimenta a imaginação popular, salvo enquanto o episódio histórico particular estiver próximo de um modelo mítico” (ELIADE, 1992, p. 43).

Este livro é o resultado de releituras da minha dissertação de mestrado, defendida no programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Acre, em 2008, na qual foram acrescentadas algumas discussões e excluídas outras. A minha proposta inicial era analisar a versão epopeica da história do Acre, divulgada pelo governo do Estado, durante as comemorações cívicas do centenário da Revolução Acriana. No entanto, o meu posterior ingresso nos estudos em Análise do Discurso obrigou-me a alterar quase que completamente minha proposta inicial.

Dentre os muitos livros que li durante o mestrado, os que mais me influenciaram foram os da linguista Eni Orlandi, dois em especial, a saber: Discurso Fundador: a formação do país e a construção da identidade nacional (1993) e Terra à Vista! Discurso do Confronto (1990). Nestes livros ela trata de temas próprios do campo da história, no entanto, utiliza ferramentas linguísticas para isso. Foi então que adotei o conceito de “discurso fundador” e modifiquei o título da minha pesquisa para O Discurso Fundador do Acre nas comemorações oficiais do Centenário da Revolução Acreana (1999-2003).

Como historiador, eu já havia tido contato com o conceito de “mito fundador”, utilizado pela filósofa Marilena Chauí (2000), no entanto, considerei-o inadequado para o propósito que eu almejava. Primeiramente porque aproximaria o meu estudo da antropologia; depois eu não tratava com explicações “irracionais” ou “lendárias” do passado; e também porque o meu interesse não era verificar como “algo imaginário”, fixado como origem, atualizava-se no tempo presente, nem mostrar como as tensões sociais de uma época foram dissimuladas em narrativas históricas.

~ 11 ~

O que eu queria mesmo era estudar a produção, a circulação e a

recepção de sentidos na escrita da história. Por isso, a ideia de “discurso fundador” pareceu-me mais convincente. No entanto, eu ainda era um neófito nos estudos linguísticos, e considerava possível transportar um discurso de uma certa temporalidade para outra sem que ele sofresse “deslizes” de sentido. É por isso que, na época, o meu objetivo se limitava em identificar as marcas interdiscursivas existentes entre a narrativa sobre a origem do Acre divulgadas pelo governo da Frente Popular durante as comemorações cívicas do Centenário da Revolução Acriana (1999-2003) e aquela que significou o Acre como brasileiro em fins do século XIX e início do século XX.

Eu ainda não me havia dado conta de que as condições de produção dos discursos são determinantes na significação deles e que, por isso, as movências de sentido seriam inevitáveis. Apesar de ambos os discursos – os do final do século XIX e os do início do século XXI – adotarem a mesma versão épica da origem do Acre, isso não queria dizer que o último seria a mera reprodução do primeiro. Tivemos que deixar de lado a pretensão de estudar a circulação do discurso fundador nas comemorações cívicas do Centenário e limitar nossas reflexões às condições de emergência do discurso fundador do Acre propriamente dito. Por conta disso, o título final da dissertação ficou O discurso fundador do Acre: heroísmo e patriotismo no último oeste.

Após estudarmos dezenas de materialidades discursivas surgidas na época do processo de nacionalização do território que ficou conhecido como Acre, verificamos que dois foram os princípios de regularidades enunciativas que sustentavam a versão epopeica: o heroísmo e o patriotismo dos primeiros acrianos. A partir de então, procuramos compreender por que esses princípios emergiram e tornaram-se recorrentes nos discursos da época. Para tanto, utilizamos o método de “descrição arqueológica” praticado por Michel Foucault (2005).

Para contextualizar as condições em que escrevi a primeira versão deste livro, destaco que, em 2006, eu era um historiador que realizava um mestrado na área de Letras e que, ao iniciar a escrita da dissertação, estava muito preso aos debates marxistas (a “única” coisa que a maior parte dos professores da graduação em História se esforçava em ensinar). Por isso, por necessidade pessoal, por questão de consciência acadêmica e como ato de renúncia à “herança” teórica que havia adquirido, resolvi escrever

~ 12 ~

uma síntese dos pressupostos da Análise do Discurso (AD) e também do debate que existia em torno da ideia de “discurso fundador” (DF). O texto sobre AD serviu como um esboço para a redação de um outro livro que pretendo publicar ainda neste ano com o título Linguística para historiadores e cientistas sociais: uma introdução à Análise do Discurso. Já o texto sobre DF tornou-se o primeiro capítulo deste livro.

O segundo capítulo desta obra equivale ao terceiro da dissertação, no entanto, totalmente reformulado e acrescido de novos textos. Nele, tratamos da emergência dos discursos que significaram às regiões do Juruá e do Purus como estrangeira (boliviano e peruano) e brasileira (amazonense e acriano). Também analisamos os discursos que abordaram a “Revolução Acriana” como um acontecimento fundador do Acre(ano) e aqueles que significaram tal origem como gloriosa. O terceiro capítulo foi escrito tomando por base o quarto capítulo da dissertação. Nele, procuramos compreender a emergência discursiva dos dois principais traços da identidade acriana: o heroísmo e o patriotismo.

A imagem do afresco A Criação de Adão (1508-10) de Michelangelo Buonarotti (1475-1564), utilizada na capa deste livro, representa o episódio da criação do primeiro homem pelo Deus judaico-cristão, descrito no livro de Gênesis, o primeiro da bíblia. Inserimos a bandeira do Acre entre o dedo de Deus e o de Adão como forma de ironizar a história oficial, que supõe a formação do Acre(ano) como um resultado da ação dos “deuses, semideuses e heróis”. Desde o primeiro livro venho questionando essa história epopeica do Acre e venho recebendo muitas críticas e até acusações desrespeitosas, tudo isso porque ousei questionar uma narrativa quase “sagrada”.

A formação do Acre não foi uma dádiva dos deuses. O Acre não surgiu das mãos do Criador, portanto, a sua origem não deve ser entendida como um espetáculo do Gênesis. O que eu fiz nesses quatro livros que publiquei até agora foi revelar “os pecados” daqueles que fizeram a história do Acre, e daqueles que manipularam a escrita da história a fim de “beatificar” tais pecados. Por conta disso, é possível que um dia eu seja reconhecido mais como um analista de discurso do que como um historiador propriamente dito.

A todos, uma boa leitura!

~ 13 ~

CAPÍTULO 1

SOBRE O DISCURSO FUNDADOR

“Inserido na história e na memória, cada texto nasce de um permanente diálogo com outros textos; por isso, não havendo como encontrar a palavra fundadora, a origem, a fonte, os sujeitos só podem enxergar os sentidos no seu pleno voo.” (GREGOLIN, 2001, p.10).

O discurso fundador é uma categoria de análise que ganhou forma no interior da Análise do Discurso de linha francesa que mantém relação com debates no campo da linguística e da história. Apesar de hoje ser empregado por vários pesquisadores das ciências humanas, quer seja para explicar a genealogia de um campo do saber ou de uma nacionalidade, ele ainda não está plenamente sistematizado. Segundo Orlandi (1993, p. 7), é um conceito ainda em construção, pois “não se apresenta como já definido, mas antes como uma categoria a ser delimitada pelo próprio exercício de análise dos fatos que o constituem.” (ibidem, p. 7).

Algo parecido é dito por Maria Carpes (2005, p. 11): “apesar de sua importância, o discurso fundador não é considerado com a mesma formalidade de tantos outros conceitos estudados pela análise do discurso [...] ao contrário, é difícil achar material sistemático sobre o tema”. Segundo ela, “trazer novas perspectivas ao tratamento do discurso fundador aponta para a relevância de possibilitar nova compreensão sobre a quebra de paradigmas nas áreas do conhecimento.” (ibidem, p. 10).

Nos principais dicionários da língua portuguesa editados no Brasil, o adjetivo “fundador” aparece como qualificador de um sujeito verbal que funda alguma coisa. Mas também pode servir como

~ 14 ~

sinônimo de criador, autor, inventor ou pai. Em sentido figurado, o verbo “fundar” também é empregado como criar, gerar, instituir, dar origem a alguma coisa. Além do mais, o vocábulo “funda”, terceira pessoa do presente do indicativo do verbo “fundar” (do latim fundare), significa, quando transitivo direto, o estabelecimento de um fundamento ou do alicerce de algo.

A princípio, podemos dizer que o discurso fundador é o acontecimento linguístico1 que atribui identidade gráfica e semântica ao “nunca-pensado”, que nomeia o “jamais-experimentado”. É ele quem dá sentido àquilo que, em um dado momento, estava “sem-sentido”. Quando acontece a metamorfose simbólica que transforma o “nada” em “alguma coisa” imaginável, é o discurso fundador que nomeou, significou e atribuiu identidade ao “vazio” do “ainda não representado”.

Neste capítulo mostraremos alguns dos principais autores que colaboraram, direta e indiretamente, para a formulação do conceito de “discurso fundador”. Também nos posicionaremos sobre o assunto, explicando o conceito com o qual iremos trabalhar. Por último, analisaremos algumas das principais funções sociais do discurso fundador.

1.1 O DIALOGISMO NO CONCEITO DE DISCURSO FUNDADOR

Todo discurso é dialógico e mantém relações interdiscursivas

implícitas ou explícitas com outros discursos. Assim sendo, a emergência da expressão “discurso fundador” também está marcada pelo dialogismo. Neste tópico, veremos os conceitos que dialogam com o de discurso fundador, a saber: fundadores de discursividade, de Michel Foucault (2006); e discursos constituintes, de Dominique Maingueneau (2006). Por último, veremos como a linguista Eni Orlandi (1993) empregou o conceito de discurso fundador.

1 Composto por um conjunto de atos regulares de linguagem.

~ 15 ~

1.1.1 Michel Foucault e a fundação de discursividade

“Mas parece-me que se viu aparecer, durante o século XIX, na Europa, tipos de autores bastante singulares e que não poderiam ser confundidos nem com os grandes autores literários, nem com os autores de textos religiosos canônicos, nem com os fundadores das ciências. Vamos chamá-los, de uma maneira um pouco arbitrária, de fundadores de discursividade.” (FOUCAULT, 2006, p. 280).

O conceito de fundação de discursividade pode ser observado no

texto O que é um autor? de Michel Foucault, publicado na França, em 1969. Nele, Foucault (2006, p. 280) menciona que há autores tão significativos que acabam se tornando “fundadores de discursividade”, ou seja, os seus livros ganham tanto prestígio acadêmico que se tornam “referência” em um dado campo do conhecimento, regrando a formação de outros textos.

O autor a que Foucault se refere não se confunde com o sujeito empírico que escreveu a obra ou que pronunciou o enunciado. “O nome do autor não é, pois, exatamente um nome próprio como os outros” (ibidem, p. 273), pois ele não designa o indivíduo propriamente dito e sim um conjunto de textos singulares. O nome do autor é entendido por Foucault (2007, p. 26) como um “princípio de agrupamento de discurso, uma unidade e origem de suas significações”, um “foco de sua coerência” (FOUCAULT, 2007, p. 26) de sentido.

Assim sendo, o indivíduo a que se refere o nome do autor não pode ser considerado como a origem do discurso que está materializada na obra. O indivíduo será apenas o escritor ou o redator da obra e não o autor ou o inventor dela. Isso porque “todos os discursos que possuem a função autor comportam essa pluralidade de egos.” (FOUCAULT, 2006, p. 279). O “eu” autoral fica descentrado com a perspectiva da interdiscursividade constitutiva do discurso, pois há inúmeras vozes inscritas no texto. Então, para não confundir os

~ 16 ~

seus leitores, em muitas ocasiões, Foucault preferiu utilizar o termo “função-autoria”.

O que caracteriza uma função-autoria é a fundação de discursividade geralmente materializada em um conjunto de obras agrupadas pelo nome do autor. Pela originalidade, tal discursividade se torna “fiadora” de outros discursos; assumindo, com isso, um status de autoridade e de primazia sobre eles. As obras do autor tornam-se “reitoras” de uma rica cadeia enunciativa que segue após ela. Essa cadeia não abriga apenas as citações, as analogias e as repetições, os simulacros dele, mas também os contrastes, as diferenças, as dissensões, enfim, o “não idêntico”2.

Falando de uma maneira bastante esquemática: a obra desses instauradores não se situa em relação à ciência e no espaço que ela circunscreve; mas é a ciência ou a discursividade que se relaciona a sua obra como as coordenadas primeiras [...] o reexame dos textos de Freud modifica a própria psicanálise, e os de Marx, o marxismo (FOUCAULT, 2006, p. 283).

Por estar na base da cadeia enunciativa, os discursos que o

seguem mantém um constante “retorno à origem” (FOUCAULT, 2006, p. 283), às lacunas, às fendas, às ausências e ao esquecimento constitutivo da função-autoria para, a partir de então, devassá-lo, copiá-lo ou modificá-lo.

Resulta que, naturalmente, esse retorno, que faz parte do próprio discurso, não cessa de modificá-lo, que o retorno ao texto não é um suplemento histórico que viria se juntar à própria discursividade e a duplicaria com um ornamento que, afinal, não é essencial; é um trabalho efetivo e necessário de transformação da própria discursividade (FOUCAULT, 2006, p. 285).

2 A fundação de uma discursividade pode gerar, no futuro, um discurso completamente diferente. Por exemplo: a psicanálise de Lacan não guarda nenhuma semelhança com a de Freud; já a linguística de Chomsky não pode ser considerada como uma continuação da de Saussure.

~ 17 ~

O conceito de fundação de discursividade serve para compreender o do “discurso fundador”, pois ambos se posicionam como “matriz” de outros discursos. Obviamente, há inúmeras diferenças entre eles, Foucault (2006), por exemplo, fez distinção entre a fundação de discursividade, a fundação de gênero de um romance e a fundação de cientificidade, mostrando que o primeiro é diverso do segundo porque, além das analogias, também permite as dissensões; e do terceiro, pois, além de abrigar as dissensões, ainda impõe o retorno a si mesmo.

Para o conceito de discurso fundador, esse debate não faz diferença alguma, visto que, nesse caso, o importante é que haja um acontecimento enunciativo cuja materialidade inaugura um gênero, uma discursividade e uma cientificidade. Desse modo, tal conceito está primeiramente ligado ao ineditismo de uma unidade de sentido ou lugar de interpretação3 que seja produtora de regularidades, analogias e semelhanças4.

1.1.2 Dominique Maingueneau e o discurso constituinte

“Discursos Constituintes, isto é, discursos (religiosos, literários, científicos, filosóficos, etc.) que, em uma determinada sociedade, gerenciam os fundamentos da imensa massa de palavras, sem serem fundadas por elas [...] o caráter constituinte de um discurso confere uma autoridade particular a seus enunciados.” (MAINGUENEAU, 2006, p. 31 e 43).

O francês Dominique Maingueneau, desde os anos 1980, vem

introduzindo novos conceitos e novas abordagens no campo da Análise do Discurso (AD). Crítico da influência althusseriana na AD, Maingueneau também fez algumas releituras dos textos de Michel Foucault, muitas das quais polêmicas. O discurso constituinte é um desses

3 Pode ser uma discursividade, um gênero, uma interpretação, uma disciplina, uma nacionalidade, uma formação discursiva, um conceito, um saber, uma teoria etc. 4 Apesar de ele também poder ser “pai” de um “sentido outro”, isso não lhe é uma exigência.

~ 18 ~

conceitos controversos elaborados a partir de Foucault, que está em Cenas da Enunciação (2006).

Podemos dizer que o discurso constituinte é aquele que tem uma posição privilegiada no interdiscurso, isso devido ao fato de ele estar na base da cadeia enunciativa. Essa posição é devido ao fato de ele emergir no universo discursivo sem a necessidade de se vincular a um discurso anterior para legitimar-se. A posição fundadora dele acontece quando ocorre concomitantemente duas situações: a) ele afirma ser o primeiro da cadeia enunciativa; b) ele é reconhecido como tal.

O discurso constituinte é inscrito no interdiscurso como sendo a gênese do discurso: “cada discurso constituinte aparece ao mesmo tempo como interior e exterior aos outros, que ele atravessa e pelos quais é atravessado” (MAINGUENEAU, 2006, p. 35). Para esse pensador, “o caráter constituinte de um discurso confere uma autoridade particular aos seus enunciados, que são investidos de toda a autoridade conferida por seu estatuto enunciativo” (ibidem, p. 43).

No Dicionário de Análise do Discurso, Maingueneau define discurso constituinte como: “[...] o conjunto de discursos que servem de alguma forma como fiadores de outros discursos e que, não tendo eles mesmos discursos que os validem, devem gerir, em sua enunciação, o seu estatuto, de alguma maneira autofundado” (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004, p.126). Por serem “fiadores” ou “fundadores”, “não reconhecem outra autoridade que não a sua própria, de não admitir quaisquer outros discursos acima deles” (MAINGUENEAU, 2006, p. 31).

Os discursos constituintes se definem pela posição que ocupam no interdiscurso, pelo fato de não reconhecerem discursividade para além da sua e de não poderem se autorizar senão por sua própria autoridade, mais importante do que listá-los, é compreender o modo de constituição que os caracteriza [...] só um discurso que se constitui tematizando sua própria constituição pode desempenhar um papel constituinte para outros discursos [...] somente um discurso que se constitui ao tematizar sua própria constituição pode

~ 19 ~

desempenhar um papel de constituinte em relação aos outros (ibidem, p. 35 e 134).

O fato de o discurso constituinte não reconhecer a primazia da

interdiscursividade, não significa, como diz Maingueneau (2006, p. 33): “que as diversas outras zonas de produção verbal não exerçam ação sobre ele, bem ao contrário, existem uma interação constante [...] mas faz parte da natureza destes últimos negar essa interação”. Assim sendo, “os enunciados reconhecidos como fundadores” (ibidem, p. 46) são, eles próprios, entremeados por outros discursos anteriores.

O discurso constituinte guarda certa similaridade com o conceito de função-autoria fundadora de discursividade, utilizada por Foucault. Ambos estão apoiados em “textos reitores” (“arquitextos” para Maingueneau, 2006, p. 43), ou seja, em obras que se tornam referência para uma infinidade de enunciados. Nos dois casos, esses textos estão na base da cadeia enunciativa, mantendo uma posição de primazia sobre os outros, uma vez que a hierarquia enunciativa se constrói a partir deles, ora comentando-os, ora refutando-os. Ambos tentam explicar as seguintes questões: como um dado enunciado, discurso, texto ou obra foi canonizado como primogênito? Como se tornou fundamento de autoridade para tantos outros? Como conseguiu fundar uma unidade de sentido original a partir de um suposto vazio semântico? 1.2 ENTREVENDO O CONCEITO DE DISCURSO FUNDADOR 1.2.1 Eni Orlandi e o discurso fundador

No Brasil, a expressão “discurso fundador” foi popularizada

pela escritora Eni Orlandi (1990 e 1993). Neste tópico, apresentaremos, de forma breve, as contribuições que ela deu para a formulação do referido conceito. A princípio, é bom lembrar que a linguista Eni Orlandi foi uma das principais responsáveis pela introdução da Análise do Discurso (AD) no Brasil.

~ 20 ~

Foi ela quem lecionou as primeiras aulas da disciplina,

direcionada ao ensino da AD, na Universidade Estadual de Campinas, ao final dos anos 1980, logo após ter retornado de seu pós-doutorado em Paris. Como afirma Gregolin (2003, p. 31), ela se tornou “uma referência obrigatória, responsável pela introdução dessa linha no Brasil, pela formação de inúmeros pesquisadores, pela divulgação de trabalhos filiados à tradição de Pêcheux”.

Em Campinas, a Análise do Discurso se institucionalizou pelo seu ensino enquanto disciplina – como parte dos currículos de graduação e de pós-graduação, do Instituto de Estudos da Linguagem, especificamente do Departamento de Linguística, o que é, aliás, a sua marca – ela se representou em programas de pós-graduação e em organismos de pesquisa o que garantiu sua estabilidade institucional e de produção que implantou fortemente no Brasil todo (ORLANDI, E. In: INDURSKY, 2005, p. 85-86).

A linguista explica e utiliza o conceito de discurso fundador em

duas obras principais: Terra à Vista! Discurso do Confronto (1990) e Discurso Fundador: formação do país e a construção da identidade nacional (1993). Neles, fica evidente o quanto Orlandi foi influenciada pelo debate sobre “função-autoria” feito por Michel Foucault. Há inúmeras citações desse autor nesses dois livros, principalmente no último; em compensação, Maingueneau é quase que completamente ignorado.

A função-autor pode ser assim concebida (cf. Foucault, 1983) como instituindo um quadro restrito e privilegiado de produtores ‘originais’ de linguagem, preferimos de nosso lado dessacralizar essa noção e estendermos a função autoria para o cotidiano, toda vez que o produtor de linguagem se coloca na origem, produzindo um texto com unidade, coerência, não-contradição e fim [...] A noção de autor, em nossa perspectiva, pode assim se aplicar ao corriqueiro da fabricação da unidade do dizer comum (ORLANDI, 1993, p. 24).

~ 21 ~

A grande inovação dela foi “estender a noção de autoria para o

uso corrente” (ORLANDI, 1998, p. 68). Com esse deslizamento de sentido, ela acaba por fundar uma outra concepção de autor, já que, para ela, há aqueles autores que “embora não instaurem discursividade (como o autor original de Foucault), produzem um lugar de interpretação no meio dos outros” (ibidem, p. 69-70).

Com isso, a função-autor, para nós, não se limita, como em Foucault (1983), a um quadro restrito e privilegiado de produtores originais de linguagem (que se definiriam em relação a uma obra). Para nós, a função-autor se realiza toda vez que o produtor da linguagem se representa na origem, produzindo um texto com unidade, coerência, progressão, não-contradição e fim. Em outras palavras, ela se aplica ao corriqueiro da fabricação da unidade do dizer comum, afetada pela responsabilidade social (ORLANDI, 1998, p. 69).

Ao que parece, Eni Orlandi não faz maiores distinções entre os

conceitos de autor e de fundador de discursividade, já que, segundo acredita, cada autor é fundador ao menos de um “lugar de interpretação”. O seu grande diferencial é que ela aplica o conceito de discurso fundador ao estudo da emergência dos sentidos e não apenas ao surgimento de “discursividades”. Com isso, ela pretendeu estudar o “movimento da construção do significar” (1993, p.11), ou seja, como é produzido um efeito de sentido capaz de apagar a inscrição da língua na história. Assim como acontece com o “discurso constituinte” de Maingueneau, o “discurso fundador” de Orlandi tende a negar a interdiscursividade que o atravessa, posicionando-se como a origem ou a fonte de autoridade do sentido.

O que estamos dizendo do discurso fundador contempla a instância da produção dos sentidos. Vamos fazer um paralelo estratégico com o que se dá com a instância do sujeito, em sua contrapartida. A noção que se relaciona ao que estamos dizendo do discurso fundador é, na instância do sujeito, a da função autor [...] embora a noção de discurso fundador possa corresponder, no dia-a-dia, a discursos

~ 22 ~

que produzem rupturas localizadas [...] preferimos guardar o nome de discurso fundador para o que se chama em Foucault instauração de discursividade (ORLANDI, 1993, p. 24, grifo nosso).

Todo “sentido” tem o seu discurso fundador. “O que o

caracteriza como fundador – em qualquer caso, mas precisamente neste – é que ele cria uma nova tradição, ele ressignifica o que veio antes e institui aí uma memória outra” (ibidem, p. 13). Resumindo, é “a fala que transfigura o sem-sentido em sentido (ibidem, p. 8); “mas também fundam sentidos onde outros sentidos já se instalaram” (ibidem, p. 13).

Imagem 01– Discurso fundador em Eni Orlandi

Fonte: autor (Cf. ORLANDI, 1993).

Uma outra inovação de Orlandi (1993), e que tornou-se

fundamental para a redação deste livro, foi o fato de ela aplicar o conceito de discurso fundador à formação da identidade nacional de um país. Aproximando, com isso, o conceito de discurso fundador com o de mito fundador. A autora explica que muitos foram os caminhos percorridos para que ela chegasse ao entendimento “do que seja o discurso fundador, quando se trata de pensarmos a formação de um país” (ibidem, p. 25), mas diz que o conceito “configura um processo de identificação para uma cultura, uma raça, uma nacionalidade (idem, ibidem, p. 24).

~ 23 ~

A existência de uma identidade nacional é, até hoje, para muitos,

algo inquestionável. Sendo assim, para estes, a questão era identificar os traços identitários do povo brasileiro. No entanto, como veremos adiante, o problema não é tão simples quanto parece. A identidade também pode ser estudada como algo imaginado, impossível, portanto, de se observar empiricamente.

Se hoje uma dada identidade é percebida como uma “evidência histórica” é porque algum dia ela foi inventada e tornada hegemônica por meio da fossilização do sentido desejado. Não é que a representação linguística da identidade seja um espelho fosco da identidade real, é justamente o contrário, pois a suposta identidade “empírica” nada mais é do que um espelho da identidade imaginada, representada pela linguagem. Todo esse processo é ideologicamente marcado.

Dessa forma, a identidade passa a ser um produto da linguagem, um “lugar de sentido” ou um “sítio de significância” como qualquer outro, de modo que sua emergência também esteja ligada a um discurso fundador, já que, segundo Orlandi (1993, p. 18), é ele quem “liga a formação do país a uma ordem de discurso que lhe dá uma identidade”. Funcionando como “referência básica no imaginário constitutivo desse país” (ibidem, p. 7).

1.2.2 O discurso fundador sob múltiplos olhares

“O discurso fundador é uma categoria de análise utilizada pela Análise de Discurso de origem francesa, para compreender a formação de discursos que fundam uma nova ordem de significações [...] deslocando os sentidos no tempo e espaço, realizando um novo arranjo e instituindo um novo sentido [...] a criação de um número ilimitado de discursos que nele se apoiam e a ele retornam como um referencial” (CARPES, 2005, p. 9).

Quando adotamos o conceito de discurso fundador na redação

deste livro, nosso objetivo era compreender dois fenômenos bem

~ 24 ~

específicos: a) os discursos que inventaram o Acre como brasileiro e que narraram o processo de nacionalização dele como uma epopeia; b) os discursos que reproduziram e ressignificaram a história do Acre e a identidade do povo acriano durante as comemorações do Centenário da Revolução Acriana (1999-2003). Apesar de a última situação ser abordada em um livro a parte, queremos deixar claro que o nosso objetivo foi aplicar o conceito linguístico para elucidar fatos históricos, quais sejam: a historicidade discursiva da identidade acriana e a subjetividade da narrativa epopeica da anexação do Acre.

Assim sendo, consideramos o discurso fundador como um acontecimento linguístico materializado em uma dispersão de textos que age sobre o universo discursivo para inaugurar uma significância. Essa significância pode ser oriunda tanto da nomeação de um não-sentido5, quanto da renomeação de um sentido já existente. De modo que essa (re)nomeação regre a formação de outros discursos, estabelecendo, com isso, um eterno retorno a si mesmo e, consequentemente, um constante vir a ser.

Por nomear, entendemos como o processo6 que funda o “novo”7, atribuindo uma identidade ao “nunca-experimentado”. Por

5 Isso não significa que o interdiscurso esteja ausente nesse processo. Apenas quer dizer que, em um dado momento, anterior ao da cena fundante, o signo, a interpretação, a representação ou o sentido não existiam. Mas tão logo vem ao mundo, ele já fica marcado pelos discursos anteriores a ele, pois a identidade semântica é marcada pelas diferenças. Nesse sentido, o discurso fundador provoca um efeito de origem, mas não significa que ele seja a origem do sentido ou da interpretação. Digo “efeito”, porque aquilo que dizem ter sido a origem também foi fruto de uma criação. 6 Não é um ato empírico passível de ser identificado. 7 O “novo” aqui está mais próximo à ideia de ineditismo do que a da originalidade (relativo a origem ou começo). O novo não tem origem definida, pois “é sempre sobre um fundo do já começado que o homem pode pensar o que para ele vale como origem” (FOUCAULT, 2002, p. 456). Mesmo não tendo origem, pode-se identificá-lo como inédito, na medida em que fundou no universo discursivo um sítio de significância capaz de dar forma a algo que até então “nunca” havia sido pensado.

~ 25 ~

“re-nomear”, entende-se o processo que instaura o “outro”8 onde o “novo” já existe. Por “sem-sentido”, aquilo que ainda não havia sido representado pelo discurso. Por “eterno retorno”, a tendência de revisitar os textos-fontes. Esse retorno, por sua vez, é quem deixa o discurso fundador sempre fundante, algo potencialmente diferente de si mesmo, pois a releitura dos textos-fontes sempre pode implicar em novas interpretações.

Desse modo, podemos dizer que há duas modalidades de discurso fundador: a) o discurso fundador primário, que funda o “novo”; b) o discurso fundador derivado, que instaura o “outro” a partir da crítica do “novo”. A própria Orlandi caracteriza o discurso fundador como aquele que nomeia o nunca pensado ou “transfigura o sem-sentido em sentido” (1990, p. 252), e como aquele que serve de deslocamento do já-instituído ou funda um sentido “onde outros sentidos já se instalaram” (1993, p.13). Assim, o discurso fundador pode ser representado como no diagrama abaixo:

Imagem 02 – Discurso Fundador

Fonte: autor.

Essa definição é provisória e foi pensada para ser aplicada à formação de uma identidade coletiva. No entanto, conforme as circunstâncias, ela pode muito bem ser aplicada a um sentido, a uma tipologia textual, a um campo do saber, a uma nacionalidade etc. Para finalizar esse tópico, é bom lembrar que a qualidade fundadora do

8 O “outro” é aquela unidade de sentido que é derivada pela crítica de uma unidade de interpretação já existente. O rompimento é tão dramático que o sentido derivado não é reconhecido pelo sentido primeiro em sua genealogia.

~ 26 ~

discurso é um status obtido socialmente e que pode sofrer deslocamentos com o tempo.

Uma outra possibilidade é a de Cirlana Souza (2007, p. 64), que estabelece uma distinção entre “discurso fundante” e “discurso fundador”9. O discurso primeiro seria o fundante - o discurso já institucionalizado que é constantemente retomado e, consequentemente, transformado. Já o segundo, seria aquele que parte do primeiro, porém não se identifica mais com ele. É fundador pois instaura um sentido outro, rompendo com a repetição. Portanto, o discurso fundador é um “efeito de deslocamentos e (in)versões de sentidos de já-ditos” (ibidem p.59), que produz uma singularidade, que consiste em “um efeito de não reconhecimento do mesmo, mas do novo, do sentido outro” (ibidem, p. 59).

O termo fundante adjetivador de discurso tem o efeito de sentido de já-dado, já construído e instaurado, porque fundante traz para o discurso (re)significado o sentido de processo, de movimento de instauração do discurso, além de fixar determinado discurso como o ponto histórico de ruptura primordial em determinado saber. Enquanto que o fundador remete a movimento e transformação, ao que faz (re)significar. Em todo dito fundante existem ditos fundadores [...] o trabalho de (re)significação é fundador – a partir do fundante. (SOUZA, 2007, p.65).

Para que não haja dúvidas, convém esclarecer nossa intenção

não é a de encontrar a origem ou a essência do “sentido”, pois bem sabemos que isso seria impossível. Mesmo que elas existissem, a opacidade da linguagem impediria a visualização lúcida delas. Isso sem dizer que o olhar do sujeito observador, constitutivamente oblíquo por

9 Para melhor exemplificar suas afirmações, Souza (2007) toma o caso da Psicanálise. Ela afirma que o discurso freudiano é o primeiro, portanto, o fundante; e o lacaniano, o segundo, por conseguinte, o fundador. Lacan rompeu com a ordem do discurso já institucionalizado, ou seja, o freudiano, produzindo sobre este um efeito tão forte que tornou necessário caracterizá-la como uma psicanálise outra.

~ 27 ~

conta da ideologia, também não conseguiria apanhá-las. Segundo Foucault (2001, p. 20), somente os metafísicos procuram “uma alma na identidade longínqua da origem”. Portanto, “não se recupera a origem. São só os efeitos que estão lá” (ORLANDI, 1990), pois a heterogeneidade constitutiva do discurso remete a origem para o infinito das relações interdiscursivas.

Apesar da impossibilidade de se encontrar o grau zero do discurso, o analista pode descrever as condições que possibilitaram o aparecimento da lei discursiva que o regrou. Essa é, na verdade, a missão da Análise do Discurso, pois, segundo Paveau e Sarfati (2006, p. 202) ela é “a disciplina que estuda as produções verbais no interior de suas condições sociais de produção”. E o próprio discurso é definido como “um enunciado emitido sob condições ou produção definidas” (COURTINE, 2006, p. 65). Então, cabe ao analista do discurso estudar as condições de produção do discurso fundador.

As condições de produção podem ser apanhadas pelo método arqueológico idealizado por Foucault na década de 1960 e que marcou sua trajetória acadêmica até fins dos anos 1970. Em síntese, a arqueologia “descreve os discursos como práticas especificadas no elemento do arquivo” (FOUCAULT, 2005, p. 149). O arquivo mencionado aqui não está em seu sentido dicionarizado, mas é entendido como “a lei do que pode e deve ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares” (ibidem, p. 147). Ao se descobrir “a lei” que regeu o aparecimento do discurso, na verdade, está se descobrindo as marcas históricas e subjetivas do discurso, desintoxicando-o de qualquer efeito de verdade que o impregnava.

O método arqueológico envolve a escavação, a restauração e a exposição de discursos, a fim de enxergar a positividade do saber em um determinado momento histórico. Ele se constitui na busca de elementos que possam ser articulados entre si e que fornecem um panorama coerente das condições de produção de um saber em certa época [...] Pelo método arqueológico, Foucault propõe analisar o acontecimento discursivo, isto é, tratar os

~ 28 ~

enunciados efetivamente produzidos, em sua irrupção de acontecimento, a fim de compreender as condições que possibilitaram a sua emergência em um certo momento histórico. (GREGOLIN, 2004, p. 71 e 78).

O arqueólogo do discurso, com o intuito de evidenciar a

subjetividade do sentido, desnaturaliza-o. Ele “escava” até o lugar onde dizem ser o eco mais primitivo do discurso para “soltar todos os fios ligados pela paciência dos historiadores” (FOUCAULT, 2005, p. 191). Fios que causavam uma impressão de origem, um efeito de neutralidade. Após descrever a “positividade”10 do discurso fundador, o analista mostra a relação entre a “ordem do discurso” que vigorava e o momento em que aconteceu a erupção do discurso. Ou seja, identifica as leis do que poderia e deveria ter sido dito, em um dado momento, por membros de um dado grupo social, as regras de dizibilidade que imperavam quando o acontecimento linguístico se deu.

Uma das grandes diferenças entre a Análise do Discurso e a linguística tradicional é o fato de a primeira negar a imanência do sentido - ou seja, um significado primeiro, original, imaculado, fixo e localizável no interior do signo. Acredita-se que não há uma originalidade semântica no âmago de um signo. Tanto é que um único significante pode passar por inúmeros processos de significação, o que torna cada signo um fenômeno polissêmico em potencial. Como afirma Barthes (1993, p. 136-141), o próprio signo pode transformar-se em simples significante de outro signo, em uma dada situação, e, igualmente, um mesmo significado pode ser encontrado em vários significantes. O sentido, portanto, tem um caráter movente.

Acreditamos que a identidade do signo não é natural. Todo significado dicionarizado tem sua monossemia construída historicamente. Se a subjetividade do signo e as marcas ideológicas dele não aparecem, isso não quer dizer que o sentido dele seja imanente. Apenas indica que o sentido fora fossilizado com o tempo,

10 “A positividade de um saber é o regime discursivo ao qual pertencem as condições de exercício da função enunciativa” (CASTRO, 2009, p. 336).

~ 29 ~

tornando-se hegemônico diante de outras possibilidades. Porém, as margens que limitam a identidade do signo são porosas, ocasionando possíveis deslizamentos de sentido. É por isso que o discurso sofre intenso controle social (Cf. FOUCAULT, 2007). 1.3 DISCURSO FUNDADOR E COMUNIDADE: ALGUMAS ATRIBUIÇÕES SOCIAIS

“A nação é uma realidade psicológica” (FEBVRE, 1998, p. 155).

Como já foi exposto, neste livro o conceito de discurso fundador foi pensado com o fim de estudar um fato histórico, ou seja, a constituição da identidade acriana que, por sua vez, está alicerçada em uma versão epopeica da história da origem do Acre. Do ponto de vista sociológico, o Acre significa uma comunidade de acrianos e, do ponto de vista político-administrativo, uma unidade federativa da República brasileira. Neste tópico, iremos analisar a importância do discurso fundador para uma comunidade, pois é ele quem instaura um marco fundador e o faz reluzir como “glorioso”. Muito parecido com um mito fundador, que trás a ideia de uma origem fincada em um tempo imemorial conhecido como “idade de ouro” ou “época dos heróis”.

De acordo com o Dicionário de Sociologia, comunidade é “um grupo de indivíduos, interdependentes do ponto de vista biológico e econômico, ocupando um espaço geográfico delimitado” (SANTOS, 1995, p. 48). Já para o Dicionário do Pensamento Social do Século XX, “comunidade geralmente indica um grupo de pessoas dentro de uma área geográfica limitada que interagem dentro de instituições comuns e que possuem um senso comum de interdependência e integração” (WILLIAM & BOTTOMORE, 1996, p. 115). Então, parece que as palavras-chaves para definir uma comunidade são: grupos humanos, interação social e território.

Entretanto, de acordo com Anderson (2005), o que une uma comunidade não é a sua estrutura, mais um determinado estado de espírito comum capaz de agregar as pessoas por meio da identificação. Nesse caso, o conceito de comunidade não está filiado ao território,

~ 30 ~

uma vez que a ênfase está em uma característica imaterial. Essa ideia de “comunhão” também não é consensual, pois, para os filósofos do contrato social, ela é incompatível com a teoria da natureza antissocial humana.

Atualmente, para muitos pensadores, principalmente aqueles ligados aos Estudos Culturais, a concepção de comunidade concreta e real da sociologia clássica não pode ser mais aplicada. Isso porque o “algo em comum” supostamente existente em uma coletividade pode ter sido inventado. Por isso, que Benedict Anderson (2005) trabalha com o conceito de “comunidades imaginadas”. Tanto uma comunidade local11 quanto uma nação podem ser consideradas “imaginadas”. Em uma nação, por exemplo, é impossível que todos se conheçam de fato. E se não se conhecem, como podem estar em comunhão? Essa pergunta é feita por Anderson (2005, p. 26), que ainda diz: “todas as comunidades maiores que as aldeias primordiais onde não acontece o contato cara a cara são imaginadas”.

São imaginadas porque a cultura comum que une a coletividade e a homogeneíza é uma construção sócio-discursiva. O local onde dizem que essa cultura está compartilhada é, na verdade, uma abstração. A língua que dizem ser uma, na verdade, são várias. E “a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, 2004, p. 13).

Então como essa comunhão ou identidade imaginada ganha efeito de evidência? Os intelectuais ligados à elite local criam narrativas com as quais o povo se identifica. O romance nacional, por exemplo, “é frequentemente um livro de leitura obrigatória no ensino médio como fonte de história local e de orgulho literário” (SOMMER, 2004, p. 18). Há uma intenção de fazer com que o povo interiorize a verossimilhança como realidade. O ensino da história, aquela que beira a “ficção científica” (VEYNE, 1982), também é utilizado, pois é através dele que o discurso fundador aparece disfarçado de verdade.

11 Anderson (2005) prioriza a comunidade nacional, no entanto, o conceito de nação também pode ser aplicado a “uma comunidade local, um domicílio, uma condição de pertencimento” (BRENNAN apud HALL, 2004, p. 58).

~ 31 ~

1.3.1 Fixar um marco glorioso para a comunidade

“Qualquer revolução [...] tem a tendência de se conceber como um início absoluto, um ponto zero da história” (FURET, 1989, p. 101).

Talvez a mais importante atribuição do discurso fundador para

uma comunidade seja a de estabelecer um momento inaugural para ela, quase sempre significado como fantástico. Quando a origem está vinculada a um tempo imemorial ou a um acontecimento lendário12, pode-se dizer que o discurso fundador também exerce o papel de um mito de origem13. É muito comum encontrarmos o momento primeiro das coisas como um ato solene envolto de glórias. “Gosta-se de acreditar que as coisas em seu início se encontravam em estado de perfeição; que saíram brilhantes das mãos do criador (FOUCAULT, 2001, p. 18). Desde a Grécia Antiga, a origem de uma comunidade é imaginada como apoteótica. Acreditava-se que as potencialidades do vir a ser estavam abrigadas na gênese das coisas. A lógica era a seguinte: se o arché14 era triunfal, todo o processo desencadeado a partir dele também o seria, pois o presente e o futuro estariam submetidos a uma “lei do

12 “Existem lendas que constituem a identidade, mas não são discursos fundadores. A do Saci e a do lobisomem não são. A das Amazonas é. E o que faz dela uma lenda que é um discurso fundador? [...] ela faz parte da origem do país, ou melhor, ela é constitutiva da delimitação do país. O Brasil é o país das Amazonas” (ORLANDI, 1993, p. 16). 13 O conceito de discurso fundador não está relacionado a uma explicação mentirosa ou irreal da realidade. Pois não é o caso de se ter um discurso falso em contraposição de outro verdadeiro. O que se quer observar é o funcionamento dos discursos em uma sociedade e os efeitos de veracidade, neutralidade e naturalidade que lhe são atribuídos. Quando a intenção é evidenciar a explicação irracional ou ilógica da formação histórica de uma comunidade, o conceito de “mito fundador” é mais assertivo. 14 “Um princípio que deveria estar presente em todos os momentos da existência de todas as coisas; no início, no desenvolvimento e no fim de tudo”. (Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Arch%C3%A9>. Acesso em: mar. 2014).

~ 32 ~

eterno retorno”15. Supunha-se que a aura do passado seria atualizada e transmitida de geração à geração, criando um lastro de magnificência entre a Idade de Ouro, o tempo presente e o porvir16. Portanto, os paradigmas da comunidade não ficam coagulando no passado constituinte entendido como a Época dos Heróis. Afinal, “se a projeção do futuro vinha do passado, este precisava estar à altura das aspirações do presente” (LOFEGO, 2004, p. 29).

O fato de o discurso fundador ter primazia na cadeia enunciativa, não quer dizer que tenha sido o primeiro dela. Se é reconhecido como tal é porque houve um apagamento proposital do já-dito (memória interdiscursiva). Além do mais, se o discurso fundador faz referência a uma origem, não significa dizer que ela realmente tenha existido.

A escolha de qualquer data ou acontecimento inaugural é arbitrária. A origem pertence ao campo da imaginação, e a imaginação só é possível graças à linguagem, que, por ser errante, não é confiável. Na prática, “vivemos sem referência ou sem coordenadas originárias, em miríades de acontecimentos perdidos” (FOUCAULT, 2001, p. 29). Se a escolha da origem é permeada de interdições, que dirá dos discursos que qualificam a genealogia como “fantástica” e “gloriosa”.

Um fato real [pode ser ...] re-criado até tornar-se fantástico [...] que confunde a realidade, a imaginação (a ficção, a literatura) e o imaginário (ideologia, o efeito de evidência construído pela memória do velho mundo) [...] Nasce de um fato real, passa para o maravilhoso, se enriquece de detalhes concretos de origens diversas da experiência dos conquistadores e se tece uma trama coerente que dá verossimilhança à lenda, produzindo

15 Observamos que o retorno não ocorre em direção à origem propriamente dita, mas à rede de discurso que a pontuou e a significou como um evento solene. 16 As situações mais corriqueiras que possibilitam a atualização de um discurso fundador são as festas cívicas e cultos ao passado e aos heróis. Por meio dessas atividades, a sociedade é convocada pelo governo local para rememorar as cenas primordiais da comunidade e venerá-las. Como não são rituais espontâneos do povo e sim eventos planejados e realizados pelos governos, não é difícil desconfiar quem, de fato, ganha alguma coisa com a manutenção da narrativa epopeica. A política do eterno retorno é inseparável da vontade de potência de quem o promove na atualidade.

~ 33 ~

evidência sobre a história do país, que não pode se confundir com as lendas que se contam sobre ele [...] Aí se processa o mecanismo ideológico de construção imaginária da realidade com seus efeitos de evidência” (ORLANDI, 1993, p. 17).

É comum observarmos que as narrativas dos povos, das cidades,

das nações ou dos países sempre começam com um fato tratado como grandioso. O episódio primordial é considerado um fenômeno modelo, que serve para que as pessoas se inspirem. É como um espelho de narciso, que reflete a imagem ideal da coletividade. Quando os indivíduos olham pra ela, se inspirem e internalizem o sentimento de orgulho e ufanismo.

É como um monumento que é erguido em um lugar central para servir de testemunho e fazer lembrar a suposta bem-aventurança inaugural. Esse tema foi tão banalizado por historiadores oficiais que Marc Bloch (2002, p. 56) chegou a dizer que eles mantiveram uma verdadeira “obsessão pelas origens”.

A maioria dos Estados Nacionais tem uma narrativa inaugural muito similar. O roteiro quase sempre é o seguinte: indivíduos dispersos motivados por sentimentos altruístas, voluntariamente se unem para solucionar uma causa que exige sacrifícios e atos de bravura. Guiados por um grande líder17, a superação da causa acontece de forma extraordinária. Nesses casos, o acontecimento constituinte quase sempre é conflito armado – de independência, de unificação, de delimitação de fronteiras e/ou de pacificação interna (Cf. GIDDENS, 2008, p. 47).

O discurso fundador transforma o fenômeno bélico em fatos espetaculares, dignos de comemoração. As contradições de classe, a violência, a miséria e outras mazelas sociais, quando não desaparecem, são justificadas como um mal necessário ou beatificadas pelas motivações supostamente “nobres” dos beligerantes. A narrativa romântica aponta para um destino afortunado para a comunidade.

17 “Algum gesto, algum acontecimento, em geral heroico, épico, monumental, iniciado ou executado por alguma figura providencial, que inaugurou as bases de uma suposta identidade nacional” (SILVA, 2005. p.85).

~ 34 ~

Para finalizar, ainda se faz necessário destacar outras observações.

O esforço fundacional é uma construção discursiva a posteriori. A comunidade não surge para que logo depois seja alvo de uma narrativa, pelo contrário, é a narrativa que constrói a comunidade, definindo seus limites identitários. É ela que consagra um lugar no universo discursivo para a comunidade, e é essa paisagem enunciativa que possibilita a visualização e a imaginação dela. Os participantes de um evento considerado fundador raramente têm a consciência de que estão protagonizando a instauração de uma nova comunidade. Quando isso acontece, os discursos proferidos por eles darão forma ao discurso fundador.

Além do mais, apesar de toda fundação abrigar uma origem, nem toda origem é fundadora. A origem só se torna fundadora quando é aceita socialmente como tal; quando abriga o paradigma da comunidade e quando se torna alvo do eterno retorno. Ainda que todos os discursos fundadores sejam constituídos de uma narrativa sobre a origem, nem toda narrativa de origem é um discurso fundador. Isso porque há discursos que falam da fundação, reforçam a fundação, mudam alguns aspectos da fundação, mas não inauguram a fundação, pois não estão inscritos nos arquitextos da discursividade. O fato de esse discurso presentificar o passado fundador, não significa que tenha um sentido eterno, mas que possui controle social para permanecer propositalmente eternizado.

1.3.2 Definir a identidade para a comunidade

“A noção de discurso fundador, como podemos observar, é capaz, em si, de muitos sentidos. Um deles, que ainda não mencionamos aqui, é o que liga a formação do país à formação de uma ordem de discurso que lhe dá uma identidade.” (ORLANDI, 1993, p. 18).

Vimos que o discurso fundador estabelece o ponto a partir do qual a genealogia de uma comunidade começa. Vimos também que esse marco primordial é tratado como um feito grandioso, e é

~ 35 ~

significado como portador dos paradigmas identitários da comunidade. É como se fosse uma “idade de ouro” instauradora da grandeza de um povo, em que as gerações futuras poderiam encontrar os arquétipos dignos de imitação, pois neles a identidade coletiva estaria em um “estado puro”. É como se a singularidade do “eu coletivo” estivesse enraizada nos arquétipos da cena fundante. Sendo assim, é comum que governos adotem políticas simbólicas de celebração ao acontecimento fundador da comunidade. Dessa forma, o discurso fundador torna-se uma “referência básica no imaginário constitutivo desse país” (ORLANDI, 1993, p. 7).

Não entraremos no debate teórico sobre a identidade, mas sinalizamos que não acreditamos que ela seja empiricamente fixa e observável. Adotamos o ponto de vista dos autores vinculados aos Estudos Culturais que a concebe como um fenômeno híbrido, proteiforme, fluido, movente, mestiço ou atávico. Afinal, “o que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem - é a discórdia entre as coisas, é o disparate (FOUCAULT, 2001, p. 17). Até mesmo a ideia de comunhão, tão necessária à constituição de uma identidade, tem sua existência questionável, por isso é tratada como “imaginada” por Anderson (2005). A identidade coletiva é o resultado de um processo de identificação regulares a uma imagem desejada fabricada discursivamente em arquitextos18 ou não19. Como a identificação é um processo sempre inacabado, exigindo práticas regulares, é comum o

18 Como já apresentamos, os discursos fundadores de uma identidade podem ser primários ou derivados. É primário quando o discurso fundador da identidade coletiva teve por base “arquitextos” fundadores da comunidade. Os textos-fontes criam regras enunciativas sobre a identidade que serão repetidas em infinitos discursos proferidos no decorrer do tempo. Ou seja, a filiação a estas regras enunciativas existentes nos arquitextos pode acontecer a qualquer época. 19 É derivado quando o discurso fundador da identidade coletiva está vinculado a textos escritos a posteriori da fundação da comunidade, quer seja porque discordaram com a identidade instaurada pelo arquitexto, quer seja pelo fato de o discurso primário não a ter definido com tanta precisão como fizera com o acontecimento fundador da comunidade. Nesse caso, outros textos criaram sentidos a partir das lacunas dos arquitextos.

~ 36 ~

aparecimento de novos caracteres na identidade coletiva ou a atualização de caracteres antigos. Como afirma Orlandi (1990, p. 129) em relação ao Brasil: “a brasilidade é um processo contínuo, incompleto, a se fazer indefinidamente. No presente, há discursos que fundam a brasilidade, como em qualquer tempo”. O discurso fundador produz um efeito de sentido instaurador da identidade. Isso não quer dizer que a identidade realmente exista, mas que foi imaginada como tal. O discurso fundador está a base da “construção do imaginário necessário para dar uma cara a um país em formação, para constituí-lo em sua especificidade como um objeto simbólico (ibidem, p. 18)”. Isso quer dizer que, apesar de sua importância, a memória discursiva não seria capaz de conservar a identidade coletiva. É preciso que o Estado adote uma política simbólica de comemoração a fim de que o sentido desejado seja permanentemente atualizado. Segundo Orlandi (1993), discursos fundadores são

[...] aqueles que vão nos inventando um passado inequívoco e empurrando um futuro pela frente e que nos dão a sensação de estarmos dentro de uma história de um mundo conhecido [...] são enunciados que ecoam e reverberam efeitos de nossa história em nosso dia-a-dia, em nossa reconstrução cotidiana de nossos laços sociais, em nossa identidade histórica [...] nos reconstroem um imaginário social que nos permite fazer parte de um país, de um Estado, de uma história e de uma formação social determinada. (ORLANDI, 1993, p. 12 e 13).

Para terminar, é preciso que o pesquisador tenha bem claras as limitações do conceito de discurso fundador. Ele não consegue acompanhar o processo que levou o sentido identitário inaugurado pelo arquitexto a se tornar hegemônico. O discurso fundador não consegue explicar como ele foi fossilizado ou naturalizado, no entanto, ele pode identificar o princípio de regularidade dos enunciados constituidores do sentido, ou seja, a lei discursiva que os regrou.

~ 37 ~

1.3.3 Outras funções sociais do discurso fundador

“Os arreios com os quais as coletividades atam seus membros a uma história conjunta, ao costume, a linguagem e escola, ficam mais esgarçados a cada ano que passa” (BAUMAN, 2001, p.194).

“Se a projeção do futuro vinha do passado, este precisava estar à altura das aspirações do presente” (LOFEGO, 2004, p. 29).

O discurso fundador também consagra a presença de uma comunidade a um determinado território. Isso porque o território recebe uma valoração simbólica a fim de justificar o apoderamento dele pela comunidade. Somente no e pelo discurso é que a identidade de uma comunidade consegue fixar-se dentro de limites fronteiriços politicamente definidos. Um exemplo disso é a própria comunidade acriana que, para tornar legítima e natural sua hegemonia no território, teve que apagar a milenar presença indígena naquelas terras. O discurso fundador instaurou uma nova genealogia da presença humana no “Acre”, de modo que todas as experiências de pertencimento anteriores desapareceram.

Em termos de legitimidade, o passado é tanto melhor quanto mais remoto. A perfeição consiste em ancorar a nação na própria natureza, fazendo-a anterior aos homens e à história [...] As justificativas cruzam o limite do sagrado e tornam-se invulneráveis as querelas simplesmente humanas, funcionando como sustentáculo das exaltações nacionais mais desenfreadas (MAGNOLI, 1997, p. 17).

Para justificar o apoderamento, é possível também que o discurso fundador invente um vínculo imemorial e sagrado entre a comunidade e o território. Um exemplo disso é o caso dos judeus com relação às terras do chamado Oriente Médio, situadas na costa oriental do Mediterrâneo. A coletânea de livros conhecida como Velho Testamento narra a história em que Deus dava a Palestina aos judeus. Baseado nisso, o movimento sionista no século XX lutou até conseguir a fundação do Estado de Israel em maio de 1948. O problema é que aquelas terras já

~ 38 ~

eram ocupadas por palestinos, o que gerou inúmeros conflitos nas fronteiras desse Estado. O discurso fundador também colabora com a coesão social da comunidade. O fortalecimento da identidade forja um “espírito de comunhão”, ajuda a agrupar artificialmente os indivíduos, familiarizando-os, criando entre eles um sentimento de solidariedade, de modo a facilitar a convivência entre raças, povos, grupos de interesse, classes sociais que habitam o território abraçado pela soberania de um dado país ou Estado. “Em suma, essa representação permite que uma sociedade que tolere a existência de milhões de crianças sem infância e que, desde seu surgimento, pratica a apartheid social, possa ter de si mesma a imagem positiva de sua unidade fraterna” (CHAUÍ, 2000, p. 08).

A narrativa romântica do episódio inaugural tido como fantástico instaura o ufanismo e o otimismo social, alimentando a ideia de um destino venturoso para a comunidade. Nos rituais de celebração, o discurso fundador acaba funcionando como um entorpecente coletivo, pois quando a população se submete à aura e ao glamour das pompas cívicas em homenagens ao acontecimento fundador, ela tende ao esquecimento das dificuldades presentes. É dessa forma que o “encanto” do simbólico acaba fundando uma comunhão na não-identidade. Como afirma Hall (2004, p. 50): “uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentido que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos”.

É fato que quanto mais carente de aceitação popular e quanto maior for a vontade de potência dos líderes, mais farão uso de festas cívicas, que reinventa o passado da comunidade como fantástico. Assim sendo, as celebrações que destinavam a glorificar ou festejar o passado, acabam, exaltando o presente promovendo os promotores da festa. Os líderes sempre se colocam aos olhos do povo como herdeiros dos heróis de outrora, dignos, portanto, de também receberem aplausos. Além do mais, os rituais fazem da origem apoteótica uma história inacabada que tende a ser continuada no presente. Assim sendo, a rememoração da cena fundante acaba se tornando uma apoteose do tempo presente.

~ 39 ~

CAPÍTULO 2

O DISCURSO FUNDADOR DO ACRE

“A linguagem só faz sentido porque se insere na história” (ORLANDI, 2005, p. 25).

Diferentemente do que a historiografia oficial diz sobre a

criação do Acre, a genealogia desse ente não foi um espetáculo do gênesis ou uma dádiva dos deuses. Todo o conteúdo fantástico inscrito na narrativa da formação histórica do Acre foi manipuladoramente produzido. O fato de o arquivo discursivo preservado ou tornado hegemônico ter garantido o efeito de evidência dos enunciados que qualificaram a origem do Acre como “gloriosa”, não significa que tal origem realmente tenha sido honrosa. Apenas indica a forma como as “vozes constituintes” da época quiseram significar tal evento. Para desmistificar tal efeito de sentido, procuramos ir ao encontro do “grau zero” da emergência do signo Acre(ano). Afinal, houve um tempo em que o signo Acre não existia, ou seja, não figurava como opção vocabular. O que o fez surgir da vacuidade do jamais representado? Como ganhou forma gráfica a partir do “nunca-pensado”?

O objetivo não foi identificar o marco inaugural do aparecimento do signo Acre, pois isso é impossível. E mesmo que fosse admissível encontrar a origem dele, isso pouco ou nada mudaria as conclusões a que chegamos aqui, pois o nosso foco foi a semântica e não a etimologia. Para compreender o processo de significação desse território foi que convocamos a história, ou seja, o extralinguístico, para evidenciar duas coisas: a) o sentido que hoje atribuímos ao signo Acre não é natural ou imanente, pelo contrário, ele tem a ver com as condições de produção do discurso que o concebeu; b) o discurso que o concebeu produziu efeitos de verdade facilmente contestados pela

~ 40 ~

própria história, desde que percebida por um ângulo diverso do da narrativa oficial.

Trato o Discurso Fundador do Acre como a paisagem enunciativa responsável pela imaginação apoteótica da origem do Acre (território nacionalizado como brasileiro). Não há interesse aqui de apontar qual a origem do signo “Acre” ou de identificar qual o acontecimento fundador dele. O relevante é entender as condições de produção do discurso que inventou um marco de origem do Acre ou possibilitou a imaginação da origem dele a partir da “Revolução Acriana”. Para tanto, foi necessário analisar como um território estrangeiro fora inventado como brasileiro e, posteriormente, nomeado como Acre.

Do ponto de vista histórico-discursivo, a palavra “Acre”, apresenta diversos homônimos, ou seja, palavras com imagens acústicas iguais, mas significados diferentes. Cada “Acre” precisa ser entendido como um acontecimento discursivo singular. O Acre do início do século passado, não pode ser tratado como o berço do atual. Um homônimo não é a continuação do outro, o último não é a evolução do primeiro. São fenômenos distintos, fruto de uma erupção enunciativa própria.

Nesse sentido, discursivamente falando, os acrianos de outrora não são os ancestrais dos de hoje, já que há uma diferença semântica entre o nordestino que foi reconhecido como acriano por morar em território banhado pelo rio Acre e o acriano que nasceu em algum município do atual Estado do Acre. A narrativa cronológica tradicional não consegue abarcar realidades simultâneas e descontínuas, por isso, prefere tratar todos os “Acres” como fossem o mesmo. Porém, todo o lastro histórico entre eles ou entre uma geração a outra é ideologicamente marcado.

2.1 O SIGNO ACRE E SUAS SIGNIFICÂNCIAS

“As escolhas lexicais e seu uso revelam a presença de

ideologias que se opõem, revelando igualmente a presença de diferentes discursos, que, por sua vez, expressam a posição de grupos de sujeitos acerca de um mesmo tema.” (FERNANDES, 2005, p. 21).

~ 41 ~

A grafia ou a imagem acústica “Acre” pode expressar diversos

significados, dando forma a vários signos linguísticos. De acordo com o dicionário Houaiss, temos: 1) sabor amargo, ácido, azedo; 2) cheiro ativo, forte, penetrante; 3) som agudo, pungente; 4) que provoca amargura; aflitivo, doloroso, tormentoso; 5) desagradável; áspero, mordaz, ríspido; 6) unidade de medida para superfícies agrárias.

Quando a grafia “Acre” está relacionada a uma região ou a um território amazônico “colonizado” por brasileiros no último quartel do século XIX, passa a assumir sentidos outros dos mencionados. Cada sentido equivale a um signo, que deve ser compreendido como um acontecimento linguístico particular, com uma formação discursiva própria. Assim sendo, do ponto de vista semântico-discursivo e da descontinuidade histórica, um Acre não pode ser concebido como a evolução do outro, como se ambos fossem o mesmo ente. Isso porque a imagem que cada uma delas evoca na mente do interlocutor apresenta singularidades, o contexto de emergência e de utilização de cada um deles são diferentes e os atores sociais que os mobilizaram também.

Segundo esse entendimento, o Acre, enquanto região banhada pelo rio Acre, é diferente do Acre proclamado como República por Luiz Galvez. O território nacional da Repúblicas, além do rio Acre, também abrangia o Purus e Iaco. O Acre, enquanto território estrangeiro, é diferente daquele visto como nacional. Da mesma forma, não há como montar uma genealogia entre o Acre Território e o Acre Estado, a não ser arbitrariamente. Ambos representam entes políticos e jurídicos diferentes.

O Acre do Estado Independente proclamado por Plácido de Castro em 1903 não pode ser o mesmo Acre que conhecemos hoje. Embora homônimos, são signos linguísticos diferentes. O primeiro foi um país autônomo e o segundo é uma unidade federativa da República do Brasil. O Acre enquanto terras demarcáveis reivindicadas pelas lideranças aborígines certamente não é o mesmo que o Acre do discurso autonomista defendido por Guiomard Santos em fins dos anos 1950. O Acre amazonense que aparece nos discursos de Rui Barbosa não pode ser o mesmo Acre “ecologizado” dos porta-vozes

~ 42 ~

da Frente Popular. No campo semântico, esses dois fenômenos linguísticos são diferentes.

O Acre Estado não estava potencialmente presente nos primeiros núcleos de colonização das terras às margens do rio Acre em fins dos anos 1870. Caso contrário, a história seria uma mera sequência cronológica de fatos teleologicamente marcados. Portanto, não há um lastro de historicidade entre o Acre contemporâneo e o Acre colonizado por João Gabriel de Carvalho em meados de 1877/78. Estamos diante de dois Acre, embora homônimos.

O Acre que aparece no discurso do historiador boliviano José Aguirre Achá (1902) não foi o mesmo daquele dos discursos do senador Jonathan Pedroza (1848-1922), autor do Projeto de Lei que visava a incorporação do Acre Setentrional ao Estado do Amazonas. O Acre da expressão Departamento do Alto Acre, criado pelo governo federal em 1904, nada tem a ver com o da expressão Acre Setentrional20, inventado com a chegada das tropas brasileiras lideradas pelo general Olímpio da Silveira em Puerto Alonso em 1903. Veja abaixo:

Mapa 02 – Acre Setentrional e Acre Meridional.

Fonte: Revista Nossa História, Ano 3, Nº 25,

Novembro de 2005, p. 21. [Adaptado pelo autor] 20 No dia 3 de abril de 1903, o general Olímpio da Silveira assumiu o governo do Acre Setentrional, na mesma ocasião Plácido de Castro assumiu o governo do Acre Meridional. Um mês e dez dias depois, o general invadiu e o Acre Meridional, formando um único governo.

~ 43 ~

Mapa 03 - Território abrangido pelo Departamento do Acre.

Fonte: ACRE, 2001, p. 19. [Adaptado pelo autor]

O Estado Independente do Acre proclamado por Plácido de

Castro em janeiro de 1903 não foi o mesmo proclamado por Luiz Galvez em 1899. A representação geográfica deles não era igual. O Acre Meridional administrado por Plácido de Castro em abril de 1903 foi um, o Departamento do Alto Acre criado em 1904 foi outro. Em resumo, o “Acre” pode representar a imagem acústica e gráfica de diferentes signos e significar diferentes coisas. No caso específico dos topônimos, a dissemelhança pode acontecer nas dimensões territoriais, no status jurídico e/ou na condição político-administrativa.

2.1.1 O “Acre” estrangeiro

“A análise destina-se a evidenciar os sentidos do discurso tendo em vista suas condições sócio-históricas e ideológicas de produção. As condições de produção compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação social” (FERNANDES, 2005, p. 23).

~ 44 ~

Antes da chegada do homem branco civilizado de nacionalidade

brasileira, o território que hoje pertence ao estado do Acre já havia sido nomeado com os mais diversos topônimos. As Repúblicas do Peru e da Bolívia já o tinham como parte de seus respectivos territórios. Isso sem dizer das diversas nações aborígines que mantinham relações identitárias com a região há centenas de anos. Todas essas representações de pertencimento foram sacrificadas em favor da emergência do topônimo “Acre”, que já surge enodoado de “violência simbólica”.

Talvez os gestores do estado do Amazonas tenham sido os primeiros a inventarem aquele território como brasileiro, mas não como Acre, e sim como parte do município de Floriano Peixoto. É sabido também que o pernambucano Serafim da Silva Salgado, pioneiro na exploração do rio Purus, apesar de não ter navegado pelo rio “Acre”, o nomeou de “Canaquiri” (Cf. CASTELO BRANCO, 1958, p. 22).

Neste tópico, veremos como os “não-brasileiros”, mais especificamente os das Repúblicas do Peru e da Bolívia, significaram esse território. Infelizmente, pelo fato de as nações aborígines serem de cultura oral, não desfrutamos de fontes suficientes para fazermos maiores analises a respeito delas. Mas tanto do ponto de vista indígena, quanto do peruano e boliviano, os brasileiros se comportaram como invasores, apoderando-se de território alheio.

O topônimo “Acre” não existia no vocabulário dos falantes de língua espanhola, muito menos nos de línguas indígenas. Ele foi uma invenção brasileira. Por pura ironia, como para provocar a história oficial acriana e o conteúdo “teleológico” dela, resolvemos “brincar” com as palavras e utilizar termos como “Acre peruano”, “Acre boliviano”, “Acre espanhol”, mesmo que eles não tenham existido linguisticamente.

Por meio deles, queremos dizer que o território que hoje pertence ao estado do Acre foi apoderado simbolicamente com outros nomes, tanto por espanhóis, peruanos, bolivianos, quanto por nativos etc. O signo “Acre” é apenas um capítulo da história de nomeação e identificação desse território, o mais recente por sinal, e um dos mais

~ 45 ~

breves. Portanto, a imagem cartográfica que o nome Acre evoca como brasileiro, não passa de uma operação arbitrária.

2.1.1.1 O “Acre” Peruano

“O que o nome designa é construído simbolicamente. Esta construção se dá porque a linguagem funciona por estar exposta ao real enquanto constituído materialmente pela história [...] Designar é constituir significação como uma apreensão do real, que significa na linguagem na medida em que o dizer identifica este real para sujeitos. Se tomamos os nomes próprios este processo de identificação da designação é também um processo de subjetivação [...] neste caso é interessante ver como aquilo que é designado é constituído pelo funcionamento da nomeação” (GUIMARÃES, 2005, p. 91).

O território que hoje pertence ao estado do Acre figurou nos mapas peruanos durante boa parte do século XIX. Ele era tratado como “región noroeste del rio Madidi”. O antepenúltimo artigo do Tratado de Petrópolis (1903) dizia que "a República dos Estados Unidos do Brasil declara que ventilará diretamente com a do Peru a questão de fronteiras relativas ao território compreendido [...] procurando chegar a uma solução amigável do litígio sem responsabilidade para a Bolívia" (BRASIL, 2003, p. 79). Ou seja, o governo brasileiro tinha plena consciência de que aquele território negociado com a Bolívia também era requerido pelo Peru.

Mas como já se expôs, a disputa pela posse do referido território caberia somente ao Peru e à Bolívia, isso se levado em consideração os tratados internacionais firmados entre Portugal e Espanha. Esses dois países eram os legítimos herdeiros das terras que antes pertenciam ao vice-reino espanhol.

Até 1776, os atuais territórios da Bolívia e do Acre pertenceram ao Vice-Reino Espanhol do Peru. Eles eram conhecidos como Alto Peru que, durante algum tempo correspondeu à jurisdição da Real Audiência de Charcas (alto tribunal da Coroa Espanhola). Portanto, o território do estado do Acre até então era significado com o nome de Alto Acre ou Audiência de Charcas. No entanto, a partir de 1776, o Alto Peru passou a ser administrado pelo recém-criado Vice-Reino

~ 46 ~

Espanhol de La Plata, e a então Província de Charcas, uma das principais da Audiência, ficou conhecida como Intendência de Chuquisaca21. Juridicamente, a Real Audiência de Charcas abrangia um território maior do que a própria Intendência.

Mapa 04 – Possessões do Vice Reino do Peru na

primeira década do século XVIII. Em destaque, o “Acre” espanhol.

Fonte: Disponível em <http://i44.tinypic.com/r0a87p.jpg>. Acesso em: jan. 2016.

[Adaptado pelo autor]

Abaixo, um mapa das Colônias espanholas na América do Sul ao final do século XVIII, depois da criação do Vice Reino de La Plata em 1776 e da assinatura do Tratado de Santo Ildefonso em 1777. Em destaque, o “Acre” do Vice-Reino do Peru.

21 Em 1782, o governo espanhol dividiu o Vice Reino de La Plata em oito intendências,

dentre elas, a Chuquisaca, que até 1783, também era composta por Cochabamba.

~ 47 ~

Mapa 05 - Colônias espanholas na América do Sul (XVIII).

Fonte: Disponível em <http://navegandocomcolombo.blogspot.com.br/2015/ 07/divisao-da-

america-espanhola-em-vice.html >. Acesso em: jan.2016. [Adaptação do autor]

A partir de 1810, o Vice-Reino de La Plata foi convulsionado por

movimentos separatistas que desencadearam a independência da Espanha e a formação da República da Argentina. Aproveitando-se da ocasião, o Vice-Reino do Peru anexou a Audiência de Charcas novamente por um breve período da segunda metade de 1810. Mas, em novembro daquele mesmo ano, o território seria novamente incorporado à então chamada Província Unida do Rio da Prata (futura Argentina). Em junho de 1811, no entanto, as tropas espanholas derrotaram militarmente o exército da Província, incorporando novamente o Charcas ao Vice-Reino do Peru.

~ 48 ~

Mapa 06 - Vice-Reino do Peru em 1810 e a República do Peru em 1825.

Em destaque para o “Acre” peruano.

Fonte: MUZZO, Gustavo Pons. Las fronteras del Perú.

Lima: Iberia, 1962, p. 47. [Adaptado pelo autor]

Em maio de 1813, as tropas “argentinas” tomaram novamente

Charcas e, para enfraquecer o poder real espanhol na região, os líderes de Rio da Prata extinguiram a denominação “Audiência Real” do tribunal de Charcas. A partir de então houve uma alternância de governos “realistas” (apoiadores do Vice Reino do Peru) e os “patriotas” (seguidores do movimento de independência do Rio da Prata) em Charcas.

Em julho de 1816, acontece a independência da Argentina (União das Províncias da América do Sul) e os seus líderes logo intentam restaurar o território do antigo Vice-Reino de La Plata, do qual o Alto Peru fez parte22. No entanto, em novembro de 1816, as tropas

22 Portanto, se considerarmos que a Audiência abarcava o atual território do Acre, podemos dizer que, por pouco, ele não se tornou “argentino”. A República do Peru

~ 49 ~

“argentinas” são derrotadas pelas espanholas e a Audiência de Charcas foi mantida sob controle pelo Vice Reino do Peru23. Foi somente no Congresso Nacional Constituinte Argentino em 1825 foi que aceitaram oficialmente a separação do Alto Peru.

Mapa 07 – Províncias Unidas do Rio da Prata em 1811.

Em destaque, o “Acre argentino”.

Fonte: Disponível em <https://es.wikipedia.org/>. Acesso em: maio 2015.

afirma que a jurisdição da Audiência de Charcas nunca chegou de fato à região do atual Acre. O que mostra que o referido território de fato não pertencia à Bolívia. 23 É importante lembrar que os governantes do Alto Peru chegaram a pedir ao príncipe regente D. Pedro I que anexasse tal território. Isso aconteceu em junho de 1822, quando as tropas “libertárias” de Sucre e Bolívar ameaçavam invadir a região. As tropas portuguesas da Capitania de Mato Grosso chegaram a ocupar o Alto Peru. No entanto, em novembro daquele mesmo ano, o então imperador do Brasil D. Pedro I recusou-se a anexar o território, tratando-o como estrangeiro. Essa foi a primeira vez em que o Brasil negou-se a nacionalizar terras que hoje conhecemos como Acre.

~ 50 ~

Mapa 08 - Vice-Reino do Peru: Baixo Peru (verde)

e Alto Peru (amarelo) em 1810.

Fonte: Extraído do mapa de Eduardo Ydiaquez. Disponível em:

<http://www.mirabolivia.com>. Acesso em: mar. 2013. [Adaptado pelo autor]

O Peru conquistou sua independência em 1821, mas não

conseguiu manter sua soberania em todo o território que antes pertencia ao Vice-Reino espanhol do Peru. O Alto Peru continuava sob a égide dos espanhóis, até que a independência da região foi consolidada em agosto de 1825, dando origem à República da Bolívia. Em fevereiro de 1826, o governo do Peru reconheceu a independência da Bolívia, no entanto, reivindicou todas as áreas ainda não exploradas do Alto Madidi, as chamadas "tierras non descobiertas", nas quais as do atual estado do Acre estavam incluídas.

O governo peruano representava as regiões banhadas pelos rios Juruá e Purus como terras nacionais, ou seja, peruanas. Argumentava que a Audiência de Charcas nunca de fato estendeu a sua jurisdição para além do Alto Madidi. Na verdade, sua extensão máxima talvez tenha sido o rio Abunã ou o Rio Madre de Dios. Portanto,

~ 51 ~

de todos esses documentos, repito, parece fora de dúvida que no terreno da documentação os direitos do Peru estão bem amparados e que a Bolívia nunca teve direitos históricos sobre as terras situadas ao N.O. do rio Madidi e que insustentável é a pretensão de estender a sua soberania até a linha estabelecida pelo Tratado de S. Ildefonso, de 1777, isto é, até a linha geodesica que partindo da nascente principal do Javary passa pela Lábrea e prolonga-se até encontrar o Madeira. (CASTRO, 2005, p. 26).

Mapa 09 - Rios Madre de Dios e Madidi.

Fonte: Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/File:Madeirarivermap.jpg>.

Acesso em: jan. 2016. [Adaptado pelo autor]

A dificuldade do estabelecimento das fronteiras amazônicas entre o Peru e a Bolívia aumentara quando ambos os países, por conta de instabilidades políticas e de ameaças argentinas, uniram-se em uma Confederação durante os anos de 1836 a 1839. Nesse período, o Peru foi dividido administrativamente em dois: o Peru do Norte e o Peru do Sul. A região banhada pelos afluentes do rio Juruá ficou com Peru do Norte, e a banhada pelo rio Purus com o Peru do Sul. Veja no mapa abaixo.

~ 52 ~

Mapa 10 - Confederação Peru-Bolívia (1836-39).

Após a Confederação, os dois países voltaram a negociar a

definição de suas fronteiras, no entanto, sem muito êxito, já que ambos pleiteavam as mesmas terras e por meio dos mesmos títulos espanhóis. Enquanto disputavam entre si, centenas de brasileiros invadiam o território. E, sorrateiramente, a equipe diplomática de D. Pedro II alimentava ainda mais a discórdia entre os dois países, negociando a definição da fronteira amazônica brasileira de forma bilateral, evitando a organização de uma Comissão Trinacional para resolver o caso. Foi nesse contexto em que o Brasil firmou com a Bolívia o Tratado de Ayacucho em 1867. O fato gerou uma série de protestos do governo peruano, uma vez que a Bolívia, segundo acreditava, havia negociado com o Brasil o território incontestavelmente peruano.

Em 1865, Felipe Soldan publicou o primeiro Atlas Geográfico da República do Peru. Dois anos antes da assinatura do Tratado de Ayacucho (1867), ele representava a fronteira amazônica do território peruano com a linha “leste-oeste” do Tratado de Santo Ildefonso (1777). O rio Purus foi colocado como divisor natural entre o Peru e a

~ 53 ~

Bolívia, consequentemente, a parte oriental do atual Estado do Acre tornava-se boliviana; e a parte ocidental, peruana, conforme mostra o no mapa abaixo.

Mapa 11 - Peru em 1865 por Felipe Soldan.

Fonte: Disponível em <http://commons.wikimedia.org/wiki/File:PERU

_MAPA_1865.JPG>. Acesso em: mar. 2013. [Adaptado pelo autor]

Percebendo que o Brasil tinha preferência em negociar com a

Bolívia, país mais militarmente mais fraco, o governo peruano decidiu disputar o “Acre” pela via armada. A primeira tentativa aconteceu no Juruá em outubro de 1902. No ano seguinte, em 22 de junho de 1903, tentou ocupar as terras no Alto Purus, no início do rio Chandless. Todo o “Acre” e parte do Amazonas passaram a ser reivindicados pelo Peru (conforme o Mapa 12). No entanto, a "lei do mais forte" prevaleceu mais uma vez e o governo peruano teve que se curvar às exigências brasileiras. Dos 442.000 km² pretendidos pelo Peru, somente 39.000 km² foram concedidos pelo Brasil com a assinatura do Tratado de 8 de setembro de 1909.

~ 54 ~

Mapa 12 - Pretensões amazônicas do Peru.

Fonte: Euclides da Cunha. Mapa "Território Contestado Peruvio-Boliviano", 1909. Disponível

em: <http://euclidesite.wordpress.com >. Acesso em: mar. 2013. [Adaptado pelo autor]

Em resumo, ao que tudo indica, parece que o Peru realmente se constituía no herdeiro das terras amazônicas dos rios Purus e Juruá pertencentes à Coroa espanhola na época colonial. O território que hoje compõe o Estado do Acre figurou durante muito tempo nos mapas da República do Peru. Os mapas da época provam que o “Acre” também foi imaginado como peruano. O Madidi peruano transfigurou-se em “Acre”, mas essa é uma “memória apagada”. E 39.000 km² daquele Acre do Tratado de Petrópolis foi (re)significado como peruano, parte integrante de Madre de Deus e Ucayali.

Mapa 13 – Região do Acre definitivamente incorporado

pelo Peru em amarelo (1909).

Fonte: Mapa dos três Departamentos do Território Federal do Acre:

In: Acervo Digital: Memorial dos Autonomistas. [Adaptado pelo autor]

~ 55 ~

2.1.1.2 O “Acre” Boliviano

O Acre, como sabeis, faz parte do departamento boliviano do Beni, cuja capital é Trinidad, situada à margem esquerda do Mamoré, a cerca de 15° de latitude sul. Esse departamento, que é enorme e quase despovoado, é irrigado pelos rios já citados e pelo Beni com os seus grandes affluentes. (Plácido de Castro, apud CASTRO, 2005, p. 49-50).

Como se pode perceber, na epígrafe desse tópico, os líderes da

“Revolução”, como é o caso de Plácido de Castro, tinham plena consciência de que o território do Acre (aquele banhado pelo rio Acre) juridicamente não pertencia ao Brasil. A Bolívia, apesar de não ocupar o território como deveria, tinha-o como tierras non descobiertas. E o topônimo empregado para nomeá-las era “Apolobamba”. Ironicamente adotaremos o nome “Acre boliviano” para designá-las.

Tendo em vista os Tratados de Madri (1750) e o de Santo Ildefonso (1777), que mencionavam a linha "Javari-Madeira” como linha divisória entre as colônias espanhola e portuguesa, todo o atual território do estado do Acre era inquestionavelmente estrangeiro. A disputa pelo território caberia unicamente aos legítimos herdeiros do vice-reino espanhol, ou seja, as Repúblicas do Peru e da Bolívia. No século XIX, o “Acre” figurava no mapa dos dois países.

O Brasil e a Bolívia também adotaram a linha "Javari-Madeira” para definir suas respectivas fronteiras amazônicas por meio da assinatura do Tratado de Ayachucho em 1867. No entanto, a demarcação dependia da localização da nascente do Rio Javari e, na época, os membros da comissão demarcatória não chegaram em um consenso quanto a ela. O tempo passou e somente em 1895 foi que ambos os países tentaram novamente demarcar os limites fronteiriços estabelecidos no Tratado de Ayacucho, desta feita já em pleno surto gomífero.

~ 56 ~

Mapa 14 – Configuração territorial da Bolívia após o Tratado de Ayacucho.

Fonte: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:

Bolivia_antes_de_la_guerra_del_Acre.png>. Acesso em: set. 2012.

Mapa 15 – Parte do atual território do Acre sendo representado com o nome

“Apolobamba” em um mapa boliviano de 1894.

Fonte: IDIÁQUEZ, Eduardo. Mapa elemental de Bolívia. 1894. Disponível em:

<http://www.mirabolivia.com/>. Acesso em: maio 2015.

~ 57 ~

Nos anos 1860, por ocasião da elaboração do Tratado de

Ayacucho, os diplomatas Duarte Ribeiro (Brasil) e Isaltino Carvalho (Bolívia) prepararam um mapa para projetar algumas hipóteses sobre a linha "Javari-Madeira”. O mapa da "linha verde", como ficou conhecido, pode ser considerado uma prova de que em 1867 já se imaginava uma forma “oblíqua” para a linha "Javari-Madeira”. O nome do mapa tem a ver com o fato de a linha de cor verde supor a nascente do rio Javari na paralela 5º 36', temida por considerar não apenas o Acre boliviano, como também boa parte do estado do Amazonas, como pode ser conferido no mapa abaixo.

Mapa 16 - A “Linha Verde” e a Questão do Acre.

Fonte: CARVALHO, 1995, p. 190. [Adaptado pelo autor]

Caso houvesse coincidência entre a latitude da nascente do rio Madeira com a da cabeceira do rio Javari, a linha divisória “leste-oeste” entre os dois países seria uma reta na paralela de 10º 20'. Nesse caso, o território que compreende o atual estado do Acre estaria dividido em duas partes: o Acre setentrional, ao norte da linha, que seria brasileiro; e o Acre meridional, ao sul da linha, que seria boliviano. Caso a linha fosse uma “oblíqua”, todo o Acre seria boliviano, conforme o mapa a seguir.

~ 58 ~

Mapa 17 - A Latitudinal 10º 20' e a divisão do Acre em Setentrional e Meridional.

Fonte: CAMPOS, 2004, p. 62. [Adaptado pelo autor]

Em 1897, uma expedição brasileira liderada pelo Capitão-Tenente Cunha Gomes confirmou que a nascente do Javari realmente estava acima do paralelo de ‘10’20’’. Isso indicava que a linha “Javari-Madeira” deveria de fato ser uma “oblíqua” que, a partir de então, ficou conhecida como “linha Cunha Gomes”. Não havendo mais como questionar a titularidade boliviana sobre a região, o Itamarati autorizou a instalação de um posto alfandegário andino no rio Acre em fins do mês seguinte. O fato ocasionou um forte impacto na receita fiscal do governo amazonense, motivo pelo qual algumas autoridades brasileiras passaram a dar uma nova interpretação ao Tratado de Ayacucho. E foi justamente tal feito que serviu de argumento para que o Brasil declarasse o Acre Setentrional uma área litigiosa em 3 de abril de 1903.

Assim sendo, o Brasil reconhecia que o Acre Meridional era incontestavelmente boliviano, no entanto, nada fazia para que o governo boliviano conseguisse manter a soberania no território. Portanto, é inegável a existência do “Acre boliviano”. O fato de o governo brasileiro ter declarado o Acre Setentrional “litigioso”, não significava que a Bolívia tivesse deixado de tratá-lo como boliviano. Mas como a lei tende a dizer o que o mais forte quer ouvir, a Bolívia não teve outra alternativa a não desistir do “Acre”, assinando o Tratado de

~ 59 ~

Petrópolis em novembro de 1903, denunciado por muitos na época como um “mal disfarçado” contrato de compra e venda.

Os historiadores e políticos bolivianos produziram dezenas de livros para evidenciar o caráter “imperialista” do Brasil. Tanto é que existem muito mais obras sobre a Questão do Acre em língua espanhola do que propriamente em português. A bem da verdade, são raros os livros de História sobre a anexação do Acre produzidos no Brasil. Os poucos que temos são, maioria, livros de literatura (romances históricos). Apesar de existir inúmeros livros bolivianos sobre o assunto, não há nenhuma destas obras disponíveis em bibliotecas acrianas. O acriano conhece muito pouco a sua história e o pouco que conhece está baseado em livros de literatura centrados na visão do “vencedor”.

A seguir, apresentamos uma pequena amostra de obras bolivianas, a maioria consultada por este autor. É possível perceber que o nome “Acre” prevalece nos títulos, no entanto, o “Acre” dos bolivianos era tão somente as terras banhadas pelo “rio Acre”, também conhecido também como “Aquiry”, parte de Apolobamba.

Ismael Montes. A la Comandancia en Jefe de las fuerzas destinadas a la pacificación del Acre (1901).

Ismael Montes. Campaña del Acre: informe del comandante en jefe (1901).

José Aguirre Achá. De lós Andes al Amazonas: recuerdos de la Campaña del Acre (1902).

José Manuel Aponte. Bolivia: la revolución del Acre en 1902-1903. Datos para la historia (1903).

Félix Avelino Aramayo. La cuestión del Acre y la legación de Bolivia en Londres (1903).

Angel Díez de Medina. La cuestión del Acre, el derecho boliviano y la circular del Sr. Barón de Rio Branco (1903).

José Deheza. Política internacional: la cuestión del Acre (1903).

Meredia Villarreal. Guerra irregular en la región del Acre (1903). Emilio Fernández. La campaña del Acre (1900-1901) (1903).

~ 60 ~

Federico Díez de Medina. El Acre: breve rectificación á propósito del protocolo de 19 de febrero de 1895 (1904).

Florián Zambrana. El Acre: notas y correspondências (1904).

Benjamín Azcui. Resumen histórico de las campañas del Acre (1924).

Pastor Baldivieso Eyzaguirre. Campaña del Acre. Memorias históricas de un jubilado (1925).

Miguel Alaiza. Resumen histórico de la campaña del Acre (1925).

Nicolás Suárez. Anotaciones y documentos sobre la campaña del Alto Acre 1902 – 1903 (1928).

Hernán Messuti Ribera. La dramática desmembración del Acre (1997).

2.1.2 O “Acre” brasileiro

“O sentido das expressões linguísticas não é referencial, ou seja, não pode se apresentar a partir do conceito de verdade. Nesse sentido, as expressões linguísticas significam no enunciado pela relação que têm com o acontecimento em que funcional.” (GUIMARÃES, 2005, p. 5).

Não se sabe ao certo a origem do vocábulo Acre. Até o momento, o registro mais antigo com esse nome é um documento assinado pelo Brasil e pelo Peru em 23 de outubro de 1951. No Art. 1, § 7º do Tratado de Comércio, Navegação, Limites e Extradição, consta a expressão “a margem esquerda do rio Acre ou Aquriy”24. O documento revela que desde o início dos anos 1850 aquele rio já era reconhecido por meio de dois significantes. O uso do termo “rio Acre” foi mais corrente entre os migrantes brasileiros, já entre os bolivianos, até a

24 No Tratado de Petrópolis assinado por representantes dos governos brasileiros e peruanos em 17 de novembro de 1903, encontramos no Art. 7 a expressão “margem direita do rio Acre ou Aquiry”.

~ 61 ~

primeira metade da última década do século XIX, o mais frequente foi “rio Aquiry”25. Acredita-se que o “Aquiry” tenha origem em uma das palavras de língua tupi “Uwákürü” ou “Uakiry”, faladas pelos índios apurinãs (ipurinás), e que significam “rio dos jacarés”. Ou mesmo do vocábulo “Yasi'ri” ou “Ysi'ri” que significa “água corrente, veloz”. Outra possibilidade é a de que tenha surgido do léxico tupi “akyrá”, nome de uma tribo indígena que viveu na região do atual Estado do Ceará, e que significa “gordo”.

As hipóteses sobre a origem do nome “Acre” são muitas. Castelo Branco (1958, p. 4) menciona que houve quem defendesse a procedência fenícia da palavra “Acre”. Porém, a hipótese mais aceita é a de que o nome tenha surgido do aportuguesamento de uma palavra indígena, a qual, para alguns foi “a'kir ü”, de origem tupi, que significa “rio verde”; para outros, “Aquiry”, já mencionada.

Essas informações nos fazem questionar como ocorreu tal “aportuguesamento”. Para essa pergunta também há várias respostas. Para Castelo Branco (1958, p. 4), por exemplo, o fenômeno aconteceu no início dos anos 1870, quando os exploradores brasileiros da região puruense transformaram a palavra apurinã “uakiry” em “aquiri”, “aqri” e depois “Acre”. Ele diz que, em 1871, “Labre (Antonio Rodrigues Pereira Labre) encurtara (a palavra Aquiri) para Acre, grafia esta de que ele fora o primeiro a adotar e a publicar” (ibidem, p. 45). O autor chega a dizer que o “Aquiri” era o nome primitivo de “Acre” (ibidem, 72). Também é muito conhecida a explicação de que o aportuguesamento tenha surgido através de um erro de grafia do Aquiry ou Aquiri. O fato teria acontecido em 1878, quando João Gabriel de Carvalho, o “primeiro” colonizador do rio Aquiri, escreveu ao comerciante do Pará, Visconde de Santo Elias, pedindo para que certa quantidade de mercadorias fosse destinada à "boca do rio Aquiri". O comerciante, não entendendo a grafia de João Gabriel, achou que ele havia escrito algo como “Acri” “Aqri” ou “Acre”. Reza a “lenda” que

25 O inglês William Chandless preferiu empregar apenas o “Aquiry” em seus relatórios redigidos nos anos 1860: “Notes on the river Aquiry, the principal affluent of the river Purús (1866)” e “An Exploration of the River Aquiry, an Affluent of the Purus” (1867).

~ 62 ~

a partir de então, todas as mercadorias destinadas para aquela região foram com o nome “rio Acre”. Abaixo, temos o trecho em que Meira (1974, p. 21-22) narra a situação.

Constantemente chegam pedidos de mercadorias de todos os recantos amazônicos. Em um dos últimos vapores ancorados ao porto vieram numerosas cartas de aviamento endereçadas ao visconde de santo Elias, entre elas, uma de seu freguês antigo, o cearense João Gabriel [...] o Aquiri é um rio sinuoso, com numerosas curvas, cujas nascentes se perdem nas selvas em lugares longínquos [...] Num de seus barrancos aportou João Gabriel e ali montou o seu barracão, dando origem a um novo seringal. Com sua mão áspera escreveu uma carta comercial ao Visconde de Santo Elias, em Belém, solicitando mercadorias. E enviou o novo endereço: João Gabriel, rio Aquiri. No escritório do Visconde de Santo Elias embalaram-se as mercadorias pedidas por esse cliente de lugar tão remoto. Ao ser escrito à tinta azul, nos variados caixotes, o nome do seringalista, surge um obstáculo. O nome de João Gabriel está bem legível, ninguém entende, porém, o do rio por ele indicado: rio Aquiri, rio Acri ou Acre? As letras manuscritas grosseiras resistem a vários exames. Na dúvida, lança-se em grandes letras o endereço que parece mais provável: João Gabriel, rio Acre. Era o rio Aquiri completamente desconhecido. Jamais alguém havia ocupado as suas margens ou explorado o seu curso. João Gabriel, o pioneiro, sem o saber, batizou o novo território a explorar. Naquela tarde chuvosa de 1877 surgia em um escritório comercial de Belém o nome que haveria de designar uma bela e rica região [...] E em poucos minutos todas as caixas e caixotes recebiam o novo endereço e eram enviadas para bordo do navio que à noite deveria partir com destino ao Purus e ao Aquiri. E assim surgiu para a História do nome Acre, corrupção de Aquiri” (MEIRA, 1974, p. 21-22).

Há quem diga que a origem do nome Acre esteja nas propagandas feitas pelos arregimentadores de mão de obra no Ceará no último quartel do século XIX. Para convencer os “matutos”, supostamente se

~ 63 ~

dizia que naquela parte da Amazônia ninguém ficaria sem um “acre de terra”. Outras explicações também seriam possíveis, contudo, mencionaremos apenas mais uma, a de que o nome guarda relação com um porto mediterrânico conhecido como São João de Acre26. Esse porto ficou notório na história por ter sido palco do mais importante conflito armado entre muçulmanos e cristãos durante as Cruzadas do século XIII, e que acabou por definir a hegemonia islâmica na Terra Santa. Atualmente esse “Acre” é uma pequena cidade da região norte do Estado de Israel e fica cerca de 160km de Jerusalém. Na língua hebraica, o porto é chamado de Akko. Por ter mais de quatro mil anos, é natural que a região tenha recebido outros nomes. Mas é sabido que por quase toda a Idade Média o topônimo “Akre” se tornou o mais comum, principalmente quando virou capital do Reino de Jerusalém27. Como é sabido, judeus, árabes e cristãos de todo mundo aportaram em Belém e em Manaus antes mesmo do boom da borracha e, potencialmente, qualquer um deles poderia ter nomeado esse rio amazônico de Acre. Embora com chances remotas, essa hipótese não pode ser descartada sem que antes se faça uma pesquisa mais séria28. Diante de tantas indagações, podemos afirmar que o nome Acre não é um patrimônio dos primeiros acrianos, pois não foram eles quem inventaram a palavra. Como falei inicialmente, há menção dessa palavra em documento oficial datado em 1851, ou seja, antes da colonização daquela região pelos brasileiros. Além do mais, no livro Rio Purus (1972), escrito por Antonio Labre, já consta a palavra “rio Acre”. No Jornal do Amazonas, em sua edição de 16 de novembro de 1876, p. 2, menciona que um vapor por nome “Acre” navegava o rio

26 Assim ficou conhecido durante algum tempo em virtude de o monarca britânico Ricardo Coração de Leão (1157-1199) tê-la ocupado em 1191 e a deixado sob os cuidados dos Cavaleiros da Ordem de São João de Jerusalém, que prestavam socorro aos feridos de guerra. 27 Foi um Estado fundado pelos cristãos em 1099 durante a Primeira Cruzada. 28 A primeira sinagoga judaica no Brasil independente foi fundada em Belém no ano de 1824. O seu fundador tem um sobrenome curioso, trata-se de Abraham Acris.

~ 64 ~

Purus. Portanto, o vocábulo “Acre” é anterior à primeira geração de acrianos. Não é impossível que ela tenha surgido a partir de uma palavra indígena, mas é evidente que esse fenômeno tenha sido anterior à segunda metade do século XIX.

Imagem 03 – Prova da existência da palavra Acre antes da migração nordestina de 1878.

Fonte: LABRE, Antonio. Rio Purus: notícias.

Maranhão: Imp. M.F.V. Pires, 1878, p. 49. [Destaque nosso].

A expressão “rio Aquiri” continuou sendo empregada durante um bom tempo, mesmo com a hegemonia brasileira na região. Ela está no texto do Tratado de Petrópolis (1903) e no do Tratado de Limites Brasil-Peru (1909). Na década de 1960, autores como Castelo Branco (1958) ainda a usava. Tudo indica que o nome “Aquiri” ou “Aquiry” tenha desaparecido do vocabulário amazônico de forma lenta e gradual. O nome “Acre” só se tornou mais usual com a proclamação do Estado Independente do Acre por Galvez em julho de 1899. E é possível que ele tenha escolhido o nome devido ao fato de aquele rio

~ 65 ~

ser o mais rico em seringueiras, consequentemente, o mais populoso, o mais trafegável e o mais importante da região29. Quando Luiz Galvez estendeu a significação do nome Acre para muito além das terras banhadas por aquele rio, deu-se o início de uma operação semiológica, a saber, um acontecimento enunciativo de nomeação. O “Acre” de Galvez faz parte de uma enunciação de independência e autonomia territorial tanto da Bolívia quanto do Brasil. Ele usa o nome para identificar uma outra coisa que não era o rio que deságua à margem direita do Purus, e sim um ente político administrativo, uma pessoa jurídica de direito público. Portanto, o Acre inventado por Galvez não era o mesmo que dava nome ao rio. São dois signos linguísticos diferentes, embora homônimos e com mesmo significante e mesma “imagem acústica”. Quando estudamos a semântica de um acontecimento enunciativo (Cf. GUIMARÃES, 2005), é preciso tratá-lo como um fenômeno único, mesmo que sua erupção no universo discursivo esteja marcada pela interdiscursividade. Assim sendo, apesar de haver um diálogo entre a “República do Acre” e o “rio Acre”, ambos não podem ser tratados como signos iguais. São dois Acres diferentes! Portanto, não há uma cadeia de linearidade entre eles, o primeiro não é a continuação do segundo.

Mapa 18 - Acre enquanto “região do rio Acre”.

Fonte: Mapa do Acre. [Adaptado pelo autor].

29 É possível que a rejeição ao nome Aquiri ou Aquiry tenha se dado pelo fato de ele ser mais usual na língua espanhola que, naquele contexto, personificava o boliviano.

~ 66 ~

Mapa 19 – Provável território do Estado Independente do Acre

Fonte: Mapa do Acre. [Adaptado pelo autor]

O “Acre” de Luiz Galvez era um Estado soberano que adotara a forma republicana de governo. A república pressupõe o exercício da cidadania que, por sua vez, supõe um vínculo jurídico entre o indivíduo e o Estado. Nesse caso, realmente há a necessidade da invenção de um “gentílico”, que identifique o cidadão com o país em que ele nasceu. As evidências apontam que foi a partir de então que o gentílico “acrEano” se tornou frequente na linguagem regional. O gentílico, portanto, não tem 138 anos de uso (2016), isso significaria dizer que o vocábulo tivesse surgido em 1878, com a primeira ofensiva colonizadora de brasileiros em terras à margem do rio Aquiri ou Acre. Mesmo que houvesse alguma referência do gentílico nesta data, coisa que não há, dizer que ele tem 138 anos é tratar os diferentes signos homônimos como se fossem o mesmo. O sujeito que era reconhecido como “acrEano” por residir às margens do rio Acre, não pode ser tratado como o mesmo que se tornara “acrEano” por conta de sua cidadania vinculada ao Estado Independente do Acre. Neste último caso, como já foi visto, um sujeito poderia ser considerado “acrEano” mesmo não residindo às margens do rio Acre, já que a República de Galvez se estendia até rio

~ 67 ~

Iaco. Portanto, houve também uma mudança qualitativa do nome, o território deixa de ser uma mera localização residencial do sujeito para se tornar o espaço jurisdicional de um Estado soberano. A história do “acrEano”, cidadão da República do Acre, não é a mesma daquele sujeito que antes da República era reconhecido como “acrEano” tão somente por morar nas proximidades do rio Acre. Dizer que a origem de um está na sequência evolutiva do outro é desconsiderar que ambos foram produzidos por fenômenos de subjetivação distintos. Logo, não se trata de um mesmo “acrEano” em pleno processo evolutivo. Da mesma forma, é um anacronismo dizer que o gentílico “acrEano”, designador do sujeito natural do estado do Acre, unidade federativa da República do Brasil, tem origem em um tempo passado que sequer esse Estado existia. A narrativa oficial impõe a temporalidade linear e tranquilizadora do idêntico. Todavia, prefiro mostrar, a tensão que a dispersão temporal provoca naquilo que é naturalmente distinto de si mesmo. O lastro histórico e continuísta que reagrupa os diferentes homônimos em uma mesma narrativa foi construído artificialmente. Não há uma cadeia de derivação enunciativa entre eles. O que existe é uma interdiscursividade. Os defensores da Questão do Acre continuaram empregando o gentílico mesmo com a dissolução da República de Galvez em março de 1900. O termo era útil à causa que defendiam, pois promovia a união entre as pessoas e a mobilização delas. Naquele contexto, ser acriano tinha mais a ver com o não ser boliviano do que com o ser brasileiro. Isso porque, como já vimos, durante a vigência da República do Acre, ser “acrEano” também significava não ser brasileiro. 2.1.2.1 O “Acre” Amazonense

“A parte da zona acreana, que se estende ao Norte do paralelo de 10º20’, já era indubitavelmente brasileira antes do Tratado de 1903; nem nunca foi senão brasileira; e, sendo brasileira, necessariamente se havia de achar no

~ 68 ~

Estado do Amazonas”. (Ernesto Leme. Prefácio. In: BARBOSA, 1984, p. XXV).

“Cria no Rio Purus dezenove prefeituras. Destas a décima sexta bem como a décima nona se estendem até ao Acre, e a décima oitava compreende todo o Iaco, da foz às cabeceiras, com os seus afluentes”. (Governador da Província do Amazonas, Ato Nº 185, 23 de agosto de 1892, grifo nosso. Apud, BARBOSA, 1984, p. 150).

“A comarca de Floriano Peixoto que se constituía de todo o rio, desde a foz até as últimas explorações, foi criada depois da República e tinha como sede a vila de Antimary, a qual no aludido ano, foi transferida para um planalto à margem esquerda do Purus, em gente a embocadura do Acre [...] A nomeação do coronel Francisco Monteiro, [...] foi muito bem aceita no Acre”. (CARVALHO, 2002, p. 18).

Antes mesmo que a Questão do Acre surgisse, parte das terras

banhadas pelo rio Aquiri já era tratada como brasileira pelo estado do Amazonas. No nível simbólico, portanto, o abrasileiramento do “Acre” já havia sido iniciado antes mesmo de o Acre existir enquanto comunidade de acrianos. Na verdade, a Questão do Acre começou como uma causa amazonense, a iniciativa de contestar a soberania boliviana não partiu do “acriano” ou do “brasileiro do Acre”. Assim sendo, o “Acre” é fundado como brasileiro como um “não-Acre”, na medida em que a brasilidade dele estava baseada no fato de ele (ou parte dele) ser tratado como jurisdição do município amazonense Antimarí, que depois ficou conhecido como Floriano Peixoto. O Acre não foi simplesmente uma dádiva dos acrianos. O papel do governo do Amazonas foi fundamental até mesmo para a exploração do rio Purus, pré-requisito para a colonização do Acre. A partir dos anos 1950, aconteceram as primeiras expedições de reconhecimento por parte de “diretores ou encarregados de índios” nomeados pelo governo da Província do Amazonas.

~ 69 ~

Elas tinham como objetivo provável a “pacificação” dos índios,

e a obtenção de informações sobre a quantidade de seringueiras, de índios e de bolivianos naquelas plagas, no entanto, a justificativa para tal foi a descoberta de uma passagem fluvial livre de cachoeira e menos extensa para a Bolívia30. Após confirmada a ausência de bolivianos e o potencial gomífero da região, operou-se um intenso processo de invasão31 na década de 1870.

Os famosos exploradores João Rodrigues Cametá, Serafim da Silva Salgado e Manuel Urbano da Encarnação, por exemplo, eram “diretores de índio” em missão oficial designada pelo governo amazonense. O primeiro saiu de Manaus em direção ao sul amazônico em março de 1852 e se tornou o primeiro brasileiro a explorar o rio Purus. Nesse mesmo ano, o segundo foi contratado e até onde se sabe o mesmo explorou o rio Purus até 10º 25’ de latitude sul, ou seja, ultrapassou o paralelo que definiria a fronteira do Brasil com a Bolívia com o Tratado de Ayacucho (1867). Em 1861, foi a vez do terceiro “diretor de índio” subir o rio Purus, conta-se que atingiu o rio Acre chegando até Xapuri.

Depois de feito o “zoneamento ecológico-econômico” da região pelos primeiros “desbravadores” contratados pelo governo do Amazonas, foi a vez de a iniciativa privada financiar os “colonizadores” para explorarem economicamente a região e pagarem os devidos impostos à alfândega amazonense. Em 1871, quando o Coronel Pereira Labrea chegou às margens do rio Acre, conta-se que ali encontrou “o posto do seringueiro Manuel Joaquim, donde foi ter ao Sítio Flor de Oiro, de Geraldo Correia Lima” (BARBOSA, 1974, p. 39). Em 1877-8 (?), foi a vez de João Gabriel de Carvalho e Melo juntamente com inúmeros outros chegarem à confluência do rio Acre com o rio Purus.

Pelo que se sabe, eles foram os primeiros “invasores” que operaram a extração e comercialização clandestina de borracha naquele

30 Dizia-se que queria chegar até a Bolívia para adquirir gado “para baratear a subsistência da população da capital amazonense”. (RIBEIRO, 2009, p. 19). 31 Vários fatores favoreceram a invasão: a) o território era rico em seringueiras; b) os bolivianos não protegiam as suas fronteiras; c) os brasileiros tinham facilidades creditícias para expandir a produção gomífera para além das fronteiras etc.

~ 70 ~

território até então estrangeiro. “Em poucos anos, o rio Acre estava todo ocupado, e assim também o Purus, até onde existia a seringueira, ou seja, até onde é a atual fronteira com a República do Peru” (MELO, 1968, p. 105). O Estado do Amazonas incentivava a exploração econômica da região porque lucrava com a arrecadação de impostos sobre a exportação da borracha. Abaixo segue um Ato Governamental Nº 248, assinado pelo Presidente da Província do Amazonas em 12 de agosto de 1878, que comprova que o rio Acre era tido como parte da jurisdição amazonense.

Divide em duas a agência ambulante de rendas provinciais no Rio Purus: uma até Iutanaã, derradeiro ponto de escala dos vapores subvencionados, outra deste ponto até o Rio Acre, nomeando logo o serventuário para a segunda. (Apud BARBOSA, 1984, p. 144).

Em 5 de setembro de 1850, a Comarca do Alto Amazonas que até então fazia parte da Capitania Grão-Pará é elevada à categoria de Província. “Desde esse tempo, como daqui a pouco se verá das certidões autênticas dos atos do seu próprio governo, entra a nova Província a exercer jurisdição administrativa em paragens do Acre Setentrional” (BARBOSA, 1974, p. 11, Vol. 37, Tomo 6).

Como já foi visto, a Província foi quem “preparou o terreno” para a colonização das proximidades do rio Acre. Inclusive era ela quem expedia títulos fundiários na região. Povoada quase que exclusivamente por brasileiros, garantia a brasilidade daquele território pelo uti possidetis e pela constituição geográfica, uma vez que os Andes dificultava o acesso dos bolivianos. O grande advogado Rui Barbosa entrevistou vários ex-presidentes da Província do Amazonas a fim de saber sobre a real administração da região do rio Acre.

Todos estes documentos, em número de cento e oito, são autos de demarcação de terras devoluas, vendidas pelo Governo do Amazonas, sob o antigo regime e durante o atual no território do Acre [...] Autos nº 18, 1898, À margem do Rio Acre, Município Floriano Peixoto, solo devoluto vendido pelo Governo do

~ 71 ~

Amazonas. Demarcante, Antonio Leite Barbosa. Demarcador, Domingos José Moers. (BARBOSA, 1975, p. 154 e 155).

Trechos dos depoimentos foram publicados (BARBOSA, 1975,

p. 124-132) e ambos são uníssonos em dizer que a população do rio Acre estava sujeita à jurisdição amazonense: “autoridade de espécie alguma ali houve, a não ser nomeada pelo Governo do Amazonas” (ibidem, p. 129), “sendo sempre administrada e policiada pela antiga Província” (ibidem, p. 130).

Vários documentos e cartas da época, remetidos da região do rio Acre ou destinados a ele, tinham como endereço “Antimary”, “Floriano Peixoto” ou “Lábrea”. Isso porque, em 1890, o município de Lábrea foi dividido e deu origem ao município de Antimary, que em 1897 passa a se chamar “Floriano Peixoto”. Serzedello Correa (1899, p. 138, grifo nosso) confirma que o governo do Amazonas já administrava o “Acre”, tal como comprova o trecho abaixo:

Ora, o Estado do Amazonas exerce plena e inteira jurisdição em toda essa região. A 32ª divisão distrital ou circunscrição política do Amazonas na Comarca de Lábrea estende-se desde o foz do Rio Teuni, por ambas as margens, até a boca do Rio Acre, inclusive. A 34ª principia na foz do Iaco e termina nos limites com o Peru pelo mesmo rio. Assim, pois, segundo a organização dos Municípios no Amazonas as regiões do Acre estão sob a jurisdição do seu governo: a prefeitura de Lábrea rege-as desde o Rio Purus até o Rio Mari, ou desde o Ituxi até o Teuni.

Não havendo um acordo imediato do Brasil com a Bolívia, foi consenso entre os bolivianos que a ocupação do território banhado pelo rio Acre ocorresse prontamente. Para tanto, Juan Francisco Velarde, delegado nacional da Bolívia, chega a Manaus em 11 de julho de 1899, para viabilizar a criação de um posto aduaneiro no rio Acre. Tocantins (2001, p. 225) conta que foi o governador do Amazonas Ramalho Júnior que impediu a fundação do referido posto alfandegário.

~ 72 ~

Além do mais, quando uma expedição militar boliviana aportou

em Xapuri em setembro de 1989, foi o subprefeito do Alto Acre, coronel da Guarda Nacional Manoel Felício Maciel, nomeado pelo Governo do Amazonas, quem primeiro resistiu à soberania boliviana na região do Acre, intimando os bolivianos a saírem da região a fim de que fosse evitada uma guerra. Portanto, não foram os acrianos os primeiros a enfrentarem os bolivianos, a Questão do Acre surgiu como uma causa amazonense, conforme comprova o documento a seguir:

Comandante Superior da Guarda Nacional do Distrito de Floriano Peixoto, 13 de Novembro de 1898.

Cidadão Major Benigno Gamarra.

Tendo chegado ao conhecimento desta comandancia a invasivo desta fronteira por uma força armada, debaixo do seu comando, para fundar nestes rios Acre e Purus uma nova delegação policial boliviana e tomar posse desta grande parte do Brasil, sem que tenha sido ratificada a linha divisória, sendo essas regiões exploradas e cultivadas por Brasileiros, há mais de 30 anos, de posse mansa e pacífica sem oposição de natureza alguma, trazendo esse fato o terror pânico mais alarmante a esta parte da nação brasileira, prejudicando sumamente o comércio que em alta escala se desenvolve nesta terra a vista e considerando a grande distância em que se acha esta povoação do Governo Federal e Estadual e vendo que os habitantes daqui estão sobressaltados e sem meios de defesa, esta comandância resolveu de acordo com a lei da Guarda Nacional das fronteiras do Brasil, mobilizar-se provisoriamente e ir em defesa desta grande porção de Brasileiros [...] Manoel Felício, Coronel Comandante Superior.

Em janeiro de 1899, os bolivianos mais uma vez tentaram criar uma alfândega no rio Acre, mais precisamente em “Puerto Alonso”. Foram necessários apenas vinte e dois dias do estabelecimento do Posto Aduaneiro boliviano para que uma Junta Revolucionária fosse

~ 73 ~

organizada com o fim de derrubá-lo. Pois, “para todos os efeitos, os bolivianos estavam na comarca amazonense de Antimary” (CARVALHO, 2002, p. 25). Por conta disso, houve um levante amazonense contra a delegação boliviana. Primeiramente, o superintendente de Floriano Peixoto (antigo Antimary) Francisco Monteiro de Souza Júnior pede oficialmente em ofício datado em 29 de abril de 1899, que o Cônsul boliviano Moisés Santivanez evite o conflito armado saindo daquela região.

Logo em seguida, José Carvalho, secretário do superintendente, encabeça aquilo que ele próprio chamou de “primeira insurreição acreana”, que teve como resultado a expulsão dos bolivianos. O rio Acre, portanto, já havia sido inventado como brasileiro, isso não foi obra dos acrianos, e sim dos amazonenses. A Junta Revolucionária criada naquela ocasião não era “acreana” e sim “amazonense”. O objetivo do levante não era a “independência” do Acre, mas a salvaguarda do território considerado amazonense32.

A causa somente deixou de ser amazonense e passou a ser acriana com a proclamação da República do Acre. E isso apenas para dissimular a opinião pública nacional, pois, na prática, é do conhecimento de todos que o próprio governador do Amazonas foi o "idealizador e sustentáculo da República do Acre" (TOCANTINS, 2001, Vol. I, p. 440). Para acompanhar Luiz Galvez, o governador do Amazonas também contratou "vinte homens, todos veteranos da guerra de Cuba" (DANTAS, 2012, p. 23). Portanto, "Luiz Galvez, com dinheiro e armas do governo do Amazonas, seguiu para o Acre" (REIS, 1937, p. 19). Como é do saber de todos, a República do Acre tem vida curta e chega ao final em março de 1900.

Em julho de 1900, o novo governador do Amazonas, Silvério Nery, toma posse. Em novembro de 1900, financiou uma expedição militar de libertação do Acre nominada “Floriano Peixoto”, que também ficou conhecida como "Expedição dos Poetas", pela quantidade de intelectuais - “voluntários da pátria” sedentos de

32 Por conta da legislação da época, a intimação não poderia ser um ato oficial do governo do Amazonas, devido a isso, José Carvalho estrategicamente recolheu a assinatura de 57 seringalistas em um manifesto contra a delegação boliviana.

~ 74 ~

recompensas. Mais uma vez, a iniciativa para “libertar o Acre” não parte dos acrianos e sim dos amazonenses. O insucesso aconteceu novamente, apesar de estarem bem equipados com uma canhoneira e inúmeras metralhadoras fornecidas pelo governo amazonense, foram derrotados em poucas horas.

A “Revolução” liderada por Plácido de Castro também não foi diferente, embora mais discreta, porém, também houve participação do governo do Amazonas. Entretanto, como a partir de Galvez as “revoluções” assumiram uma postura separatista, o caráter amazonense delas foi dissimulado com o discurso do “acreanismo”. Em uma carta de 18 de junho de 1902, portanto, antes do início da “Revolução” iniciada em 6 de agosto, Rodrigo de Carvalho diz: “baldeamos a carga da Maria Thereza, a bordo dela vem o Dr. Gentil com armamento e um capitão com vinte e tantos soldados, commissionados pelo governador para fazer a revolução” (Apud OURIQUE, 1907, p. 223). Se levarmos em consideração que o próprio Plácido de Castro afirmou ter iniciado o combate contra os bolivianos em 6 de agosto de 1902 com apenas 33 homens (Cf. CASTRO, 2005, p. 56), fica fácil deduzirmos que o episódio inaugural da “Revolução Acriana” ou da “Grande Revolução” foi protagonizado por mercenários contratados pelo governo do Amazonas.

O escritor Jacques Ourique na obra O Amazonas e o Acre publicou várias cartas enviadas por Rodrigo de Carvalho, Gentil Norberto e Plácido de Castro33 ao governador do Amazonas Silvério Nery; e tantas outras que este enviou àqueles. Os primeiros pediam armas, munições, lanchas, comidas etc. O último certificava-se do andamento do conflito

33 As cartas trocadas entre Plácido de Castro e Silvério Nery foram poucas se comparadas com a intensa comunicação que Carvalho e Norberto mantinham com o governador. Essa situação reforça a suspeita de que Plácido de Castro tenha sido um “prestador de serviços” da estirpe de Galvez. É bom que se diga que a história de que Plácido de Castro somente aceitaria o comando militar da “revolução” caso o governo do Amazonas não interferisse nela, tem procedência duvidosa, uma vez que não aparece nos apontamentos do próprio Plácido de Castro. Provavelmente foi mais uma manipulação histórica, dentre as muitas inventadas por Lima (1998, p. 89).

~ 75 ~

e mantinha “viva” a missão de incorporar o território ao Estado do Amazonas depois da vitória.

Em uma das cartas consta que o governador do Amazonas havia despachado armas e outros mantimentos para a “Revolução”, sob a responsabilidade de Gentil Norberto (Apud OURIQUE, 1907, p. 223). No entanto, este havia se recusado a encaminhá-las aos combatentes por conta de discussões com Rodrigo de Carvalho (idem, ibidem, 1907, p. 224). A exemplo do que aconteceu na Expedição Floriano Peixoto, os revolucionários queriam repartir os “despojos” antes da vitória. Leia:

Por mais agradável que queira ser V. Ex. não posso sê-lo, ao ponto que o Dr. Gentil me disse para procurar com que os acreanos o façam Presidente [...] antes da vitória não se tratará de Governo, ficará a Junta Revolucionária até que se vença; vencedores os coronéis Joaquim Victor e José Galdino, que disputem quem será o chefe, se Victor ou Gentil: eu deixo o campo livre, pois nunca ambicionei a chefia (Carta de Rodrigo de Carvalho ao Governador do Amazonas datada em 24 de julho de 1902. In: OURIQUE, 1907, p. 227).

Em 19 de janeiro de 1903, quase às vésperas da rendição incondicional do exército boliviano, Rodrigo de Carvalho envia uma carta ao governador do Amazonas, alertando-o que havia uma "grande quantidade de pretendentes a governador do Acre e a cousa acabaria em briga grossa" (ibidem, 1907, p. 416). Isso é um forte indício de que Plácido de Castro realmente não era o líder político da “Revolução” e sim um militar a serviço da causa acriana. Se dado estava que o “novato” fosse o “mentor” da “Revolução”, como explicar a disputa que se deu entre os “veteranos” pela governança do futuro Poder Executivo acriano?

Para os líderes bolivianos, Plácido de Castro nunca figurou como o líder da Revolução. Ele era tido como um mero coadjuvante, assim como os outros membros da Junta Revolucionária. O verdadeiro responsável pela “Revolução” seria o poder executivo amazonense. Segundo Zambrana (1904, p. 163), cônsul boliviano no Pará, “Silverio Nery, Gobernador de Amazonas, autor responsable y sostenedor de la revolución del Acre [...] Plácido de Castro, Rodrigo de Carvalho, Gentil Norberto y demás coautores de la citada revolución”.

~ 76 ~

Antes mesmo da vitória contra os bolivianos, dois grupos de

interesse disputavam o governo do Acre: o dos grandes seringalistas e o dos liberais. O governo do Amazonas apoiava a causa acriana, porém temia o fortalecimento político dos seringalistas locais. Eles podiam resistir à incorporação do Acre ao estado do Amazonas. É por isso que o governador preferia os liberais como Gentil Norberto e Rodrigo de Carvalho e com eles mantinha contato. Ambos mantinham vínculos com os comerciantes e políticos de Manaus, tanto é que faziam rotineiras viagens a essa cidade.

É relevante lembrar que a própria aclamação de Plácido de Castro como governador do Estado Independente do Acre só aconteceu por causa da bem-sucedida articulação que Rodrigo de Carvalho fez entre os seringalistas locais e o governador do Amazonas. Experiente como era na política, Silvério Nery já havia desconfiado das pretensões políticas de Plácido de Castro, tanto é que teve que ser convencido por Rodrigo de Carvalho de que o “novato” não resistiria ao plano de incorporar o Acre ao Amazonas, vejamos:

Plácido é indiferente que isso (o território do Acre) seja do Amazonas. A mim (Rodrigo de Carvalho) ele (Plácido de Castro) diz sempre: isso (o Acre) não pode ser estado; há de ser do Amazonas; já vê Vossa Excelência (Nery) que ele é amigo [...] Combinei com os oficiais em aclamarmos o Plácido governador [...] por isso, no dia da tomada de Porto Acre o Dr. Pimenta em nome dos acreanos vai aclamá-lo. Só assim teremos o Acre do Brasil e com certeza do Amazonas. (Rodrigo de Carvalho ao governador do Amazonas, apud OURIQUE, 1907, p. 417, grifo nosso).

Esse documento é mais um forte indício de que Plácido de Castro não era o líder político da causa acriana, mas que o sucesso militar e a conveniência política o fizeram governador do Acre. O apoio político de Rodrigo de Carvalho não era gratuito, ele queria minar as pretensões que Gentil Norberto nutria de ser governador do Acre. Com Plácido de Castro no poder, Dr. Rodrigo julgava que conseguiria influenciar as decisões governamentais.

~ 77 ~

Mas tão logo alcançou prestígio nacional, Plácido de Castro

recusou a tutela do veterano. Foi a partir de então que o último se tornou um desafeto do primeiro. Carvalho foi, inclusive, apontado como cúmplice do assassinato de Plácido de Castro ocorrido em 1908 (Cf. CASTRO, 2005). Abaixo algumas dentre muitas cartas que comprovam o envolvimento do governo do Amazonas na promoção da causa supostamente acriana.

Caquetá, 12 de novembro de 1901. Excelentíssimo Senhor Doutor Silvério José Nery [...] Se V. Ex. ainda pensa como quando daí vim, em junho vindouro limparei o Acre de bolivianos. Necessito que V. Ex., em abril, arranje uma lancha de confiança e me mande alimentação para 150 homens em 30 dias, 60 Mannlincher (rifles) com 15.000 tiros e 120 rifles de cano comprido com 30.000 tiros [...] com muita estima e consideração - Rodrigo de Carvalho. (Apud OURIQUE, 1907, p. 171, grifo nosso).

Caquetá, 18 de junho de 1902 - Exm. Sr. Dr. Silverio José Nery, respeitável amigo e senhor [...] basta-me 180 armas, 60 sem fumaça e 120 rifles com as competentes munições [...] Rodrigo de Carvalho. (Apud OURIQUE, 1907, p. 171).

Caquetá, 18 de julho de 1902 - Exm. Sr. Dr. Silverio José Nery, respeitável amigo e senhor [...] se pudermos obter 120 rifles e 40.000 tiros faremos o assalto [...] com muita estima e consideração - Rodrigo de Carvalho. (Apud OURIQUE, 1907, p. 217).

Acreditamos que ficou claro que o governo do Amazonas já administrava, policiava e tributava parte do território que hoje compreende o atual estado do Acre. As terras que banhavam o rio Acre, conhecidas simplesmente como “Acre”, faziam parte do município Antimarí, que depois ficou conhecido como Floriano Peixoto. Acontece que do ponto de vista dos tratados internacionais, a interpretação hegemônica que se tinha até o final do século XIX era de que aquelas terras eram estrangeiras. Isso significava tantos os brasileiros que colonizaram o “Acre” quanto o governo do Amazonas que o administrava agiam de forma ilegal e criminosa. No entanto, a região acriana movimentava muito

~ 78 ~

dinheiro e por não ser fiscalizada por alguém de direito, o oportunismo dos “bandeirantes” brasileiros acabou prevalecendo. A maioria dos jornais da época e o próprio Itamarati dizia que os nordestinos agiram de boa-fé, pois consideravam-na “terras sem dono”. No entanto, se a presunção da inocência é, em parte, cabível aos humildes nordestinos, para o governo do Amazonas e agenciadores de mão de obra, ela é mero discurso fiador do imperialismo brasileiro. O governo federal brasileiro fez vistas grossas ao que estava acontecendo, da mesma forma que Portugal havia feito com os bandeirantes que invadiam o território colonial espanhol na América do Sul no século XVII.

As fronteiras entre o Brasil e a Bolívia já estavam delimitadas pelo Tratado de Ayacucho (1867) e ratificadas pelo Protocolo de 1895. A única coisa que faltava era realizar a demarcação, ou seja, definir os marcos físicos constituintes da linha de fronteira. Em 1895, Brasil e Bolívia indicam o boliviano Juan Manoel Pando e o brasileiro Gregório Thaumaturgo de Azevedo para fazerem parte da comissão demarcadora dos limites fronteiriços estabelecidos no Tratado de Ayacucho:

Deste rio [o Madeira] para oeste, seguirá a fronteira por uma paralela, tirada da sua margem esquerda na latitude sul de 10º 20' a encontrar o rio Javari. Se o Javari tiver as suas nascentes ao norte daquela linha leste-oeste, seguirá a fronteira desde a mesma latitude por uma reta a buscar a origem principal do dito Javari. (Disponível em: <http://pt.wikisource. orgw iki/ Tratado_de_Ayacucho>. Acesso em fev. 2013, grifo nosso).

Então, a primeira missão da comissão era identificar a nascente do rio Javari. Constatada a coincidência entre a latitude da nascente do Rio Madeira com a da cabeceira do rio Javari, a linha divisória “leste-oeste” entre os dois países seria uma reta na paralela de 10º 20'. Neste caso, o território que compreende o atual Estado do Acre ficaria

~ 79 ~

dividido em dois: o Acre setentrional, ao norte da linha, que seria brasileiro; e o Acre meridional, ao sul da linha, que seria boliviano.

Após os estudos, Thaumaturgo de Azevedo constatou que a cabeceira do rio Javari realmente ficava ao norte da paralela 10º 20'. Isso significava dizer que a divisão entre os dois países se daria por uma linha “oblíqua", ou seja, uma geodésica "leste-oeste”. No mapa a seguir a referida linha seria a hipotenusa do triângulo retângulo que representa o território até então incontestavelmente boliviano.

Mapa 20 - Linha oblíqua.

Fonte: TOCANTINS, 2001, Vol. I, p. 420.

Uma fronteira baseada na linha paralela "leste-oeste", traçada na latitude 10º 20', já daria grandes prejuízos aos brasileiros. Com a oblíqua, a situação chegava ao extremo, pois tornava bolivianos tanto o Acre meridional, quanto o setentrional. A fim de defender os interesses econômicos dos amazonenses, Thaumaturgo de Azevedo advogou que os cálculos sobre a nascente do rio Javari feitos pelo Barão de Tefé em 1874 deveriam ser alvos de uma revisão.

O Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Carlos Augusto de Carvalho, até que demonstrou simpatia pelas petições de Thaumaturgo de Azevedo. Mas fora substituído no início do mês de setembro de 1896 pelo militar Dionísio Cerqueira. O novo ministro se posicionou a favor da soberania boliviana na região acriana e

~ 80 ~

Thaumaturgo de Azevedo passou a dizer que não realizaria demarcações contra o Brasil (Cf. AZEVEDO, 1901). Dizia que se a "linha oblíqua" do Protocolo "Carvalho-Medina" de 1895 prevalecesse, o Estado do Amazonas perderia até 69% de sua renda obtida com a produção e comercialização da borracha (Cf. TOCANTINS, 2001, Vol. I,

p. 213). O resultado foi que Dionísio Cerqueira o exonerou do cargo no início de 1897.

Em 23 de setembro de 1898, um novo Protocolo foi assinado já com os dados geográficos atualizados. Não havendo mais como questionar a titularidade boliviana sobre a região, em fins do mês seguinte, o Itamarati autorizou a instalação de um posto alfandegário andino no rio Acre. Em 15 de novembro de 1898, Olinto de Magalhães substitui Dionísio Cerqueira no Ministério das Relações Exteriores. Pressionado pela opinião pública e pelos políticos de Manaus, o novo ministro assina um novo Protocolo com a Bolívia em 30 de outubro de 1899. Nele se previa uma nova expedição para constatar a nascente do rio Javari. Para frustração dos brasileiros, mais uma vez, o resultado não alterou por demais os cálculos anteriores.

Não havendo mais como questionar o fato de que a nascente do rio Javari se encontrava ao norte da paralela 10º 20', o governo do Amazonas mobilizou políticos, intelectuais e militantes para defenderem a sua causa. Foi então que o Deputado Federal Serzedello Corrêia, o senador Rui Barbosa e o ex-chefe da comissão demarcatória brasileira Thaumaturgo de Azevedo passaram a dizer que o Itamaraty dava interpretação errônea ao Tratado de Ayacucho. Diziam que independente do lugar onde estivesse a nascente do Javari, bastaria traçar um meridiano a partir dela até chegar a paralela 10º 20’. O ponto de encontro dessas duas retas perpendiculares, a chamada “linha quebrada”, serviria de marco final da linha divisória iniciada no rio Madeira.

~ 81 ~

Mapa 21 - "Linha quebrada" defendida

pelos “patriotas” brasileiros.

Fonte: TOCANTINS, 2001, Vol. I, p. 421.

Essa "nova" interpretação foi adotada pelo novo Ministro das Relações Exteriores, Barão do Rio Branco. Ele toma posse em 03 de dezembro de 1902, e passa a questionar a soberania boliviana ao norte da paralela 10º 20'. Adere à defesa da “linha quebrada” como divisória entre os dois países. Assim o fez para tornar o Acre Setentrional uma área litigiosa e justificar e legitimar a ocupação militar da região. A Bolívia não teve outra alternativa a não ser aceitar o modus vivendi proposto pelo Brasil e posteriormente desistir do Acre. Dizia o diplomata boliviano "ese funesto modus vivendi es el acto más deplorable que registran los anales de nuestra penosa historia diplomática"(ARAMAYO, 1903, p. 39).

Resumindo, somente a “Revolução Acriana” serve para explicar a anexação das terras que hoje compõem o estado do Acre. Quem de fato estava por trás de tudo, orquestrando o abrasileiramento do “Acre”, não eram os acrianos e sim o governo do Amazonas. Basta dizer que a Junta Revolucionária do Acre era composta por vários “testas de ferro” daquele Estado, dentre os quais Rodrigo de Carvalho e Gentil Norberto. Além do mais, até mesmo a “nova” interpretação do Tratado de Ayacucho, calçada nos interesses amazonenses, colaborou para a assinatura do Tratado de Petrópolis, já que, após a

~ 82 ~

ocupação militar do Acre Setentrional pelas tropas do exército brasileiro em 3 de abril de 190334, foi um ultimato à Bolívia.

Apesar de todo esforço amazonense, a região anexada ingressou no corpo da pátria na condição de Território administrado diretamente pela União. Isso, além de ser inconstitucional, feria diretamente os interesses do Amazonas. Mas os políticos desse Estado não se conformaram, e decidiram disputar contra a União o direito sobre o Acre por meio de ações políticas e jurídicas.

A primeira tentativa oficial se deu em dezembro de 1905, quando o senador Jonatas Pedrosa apresentou um Projeto de Lei ao Congresso Nacional visando a anexação do Território do Acre ao estado do Amazonas. A segunda tentativa aconteceu, no mesmo mês, quando o Amazonas contratou o renomado jurista Rui Barbosa para atuar como advogado em uma Ação Civil Originária (Nº 9) aberta no Supremo Tribunal Federal contra a União. A defesa foi argumentada em duas grandes obras: A transação do Acre no Tratado de Petrópolis (1906) e O Direito do Amazonas ao Acre Setentrional (1910). Apesar de o parecerista ter dado ganho de causa ao estado do Amazonas, a Ação Civil nunca foi julgada pelo Supremo.

A Constituição de 1934, em suas Disposições Transitórias, mais precisamente em seu artigo 5º, afirmava que a União indenizaria o estado do Amazonas pelos prejuízos que teve pela perda do Acre. Subtende-se, com isso, que de fato o Acre havia assumido o formato de “Território” de maneira ilegal e que toda ou parte de sua extensão geográfica deveria pertencer ao estado do Amazonas, caso contrário, não haveria necessidade de indenização, que, ao que tudo indica, veio a ser paga em 1950. 2.1.2.2 Enfim, o “Acre” se torna Acre

“Sem silêncio não há sentido, sendo que o silêncio não é apenas um acidente que

34 O Brasil já havia obtido a neutralidade norte-americana e a desistência do Bolivian Syndicate (Cf. CARNEIRO, 2015b). Nessa conjuntura, a Bolívia não tinha condições de resistir às imposições do Brasil.

~ 83 ~

intervém ocasionalmente: ele é necessário à significação. O implícito é já um subproduto desse trabalho do silêncio, um efeito particular dessa relação mais de fundo e constitutiva. O implícito é o resto visível dessa relação. É um seu resíduo, um epifenômeno” (ORLANDI, 2007, p. 45).

A anexação ao Brasil das terras que hoje conhecemos como Acre foi o resultado de múltiplos fatores, que podem ser resumidos em três: a) a invasão do território estrangeiro pelos brasileiros; b) a resistência militar contra a soberania boliviana; c) a atuação diplomática do Itamarati na neutralização dos EUA e do Bolivan Syndicate e na obtenção de um acordo com a Bolívia e com o Peru. Todavia isso não explica a invenção do Acre, apenas dá conta da nacionalização do território que hoje pertence ao estado do Acre. Mas o território poderia ter sido incorporado ao estado do Amazonas e, assim sendo, o “Acre” provavelmente receberia outro topônimo. E ainda que o nome sobrevivesse para além da designação de um rio, certamente não representaria a totalidade do território atual, já que naturalmente seria dividido em municípios amazonenses. Então, como o “Acre” se tornou Acre? O território de nacionalidade brasileira localizado na Amazônia sul-ocidental, banhado pelos rios Juruá e Purus, logo abaixo da famosa linha “Cunha-Gomes”, só veio a existir legalmente como “Acre” em 30 de abril de 1904, com o Decreto Federal 5.206, que chamou oficialmente todas aquelas terras pelo nome de Acre e estabeleceu uma organização política e fiscal dele. Antes, nem mesmo o Tratado de Petrópolis havia aplicado o topônimo Acre às terras adquiridas. No tratado, esse nome indica apenas um afluente do rio Purus. O próprio Congresso Nacional, em sessão extraordinária do dia 13 de janeiro de 1904, que aprovou o parecer favorável dado pelo relator da Comissão de Diplomacia sobre o Tratado de Petrópolis, deixa registrado em ata a distinção entre o território do Acre (banhado

~ 84 ~

pelo rio Acre) e a região oeste (que engloga também o juruá) 35. Portanto, o Acre desse discurso era um Acre no máximo puruense, não abarcando a metade ocidental do território atual, pois

[...] pelo tratado de Petrópolis, esse fim é plenamente alcançado, ficando reconhecido pela Bolívia como brasileiro, não só o denomina de território do Acre, mas também outros territórios a oeste, que ela possuía nominalmente e estão de longa data ocupados por brasileiros. (Apud, Senado Federal. O Tratado de Petrópolis e o Congresso Nacional. Brasília: 2003, p. 86).

O Decreto Federal Nº 5.093, de 28 dezembro de 1903, que convocava o Congresso Nacional para apreciar o Tratado de Petrópolis, também não menciona a palavra Acre. O topônimo não aparece no Decreto Federal Nº 1.181, de 25 de fevereiro de 1904, que “autoriza o Presidente da Republica a administrar provisoriamente o territorio reconhecido brazileiro, em virtude do tratado de 17 de novembro de 1903”. O Itamarati provavelmente evitou incorporação do “Acre” ao estado do Amazonas. Isso porque o Tratado com a Bolívia que planejavam iria acarretar obrigações ao governo brasileiro. A transação fora uma espécie de contrato de compra e venda disfarçado, portanto, o território haveria de ingressar ao solo pátrio de forma onerosa. Após assinada a “permuta de territórios e outras compensações”, o Brasil se responsabilizaria, dentre outros, por indenizar a Bolívia com um valor de £ 2.000.000 (dois milhões de libras esterlinas) e construir uma ferrovia

com cerca de 365 km que ligasse as cidades de Porto Velho e Guajará-Mirim, os rios Madeira e Mamoré, respectivamente.

35 Essa observação foi feita mesmo tendo os parlamentares acesso à Exposição de Motivos sobre o Tratado de Petrópolis, de 27 de dezembro de 1903, regida pelo Barão do Rio Branco, que qualifica o Acre como sendo “a imensa região regada pelos afluentes meridionais do Amazonas a leste do Javari”. Isso indica que a ideia de Acre – Purus e Juruá – estava em pleno processo inventivo, o que já dava pistas da posição contrária do Barão à incorporação daquele território ao estado do Amazonas.

~ 85 ~

A negociação rendeu inúmeras críticas ao Barão do Rio Branco. Alegavam que os cofres da União haviam sido onerados por causa de um território ainda litigioso, já que também era reivindicado pelo Peru. Os críticos diziam que o Brasil deveria usar o argumento do uti possidetis e levar o caso ao arbitramento, adquirindo o território sem qualquer ônus. Mas o arbitramento adiaria o resultado da pendenga e não garantiria a vitória do Brasil. Por isso é que o Barão resolveu “arrematar” o “Acre” de forma onerosa. Sabedor das críticas que levaria por conta dos gastos, planejou incorporar aquele território ao solo pátrio em um formato de autarquia administrada diretamente pela União. Essa seria a forma encontrada para que o Governo Federal recuperasse, por meio da cobrança de impostos sobre a exportação da borracha, todo o dinheiro investido na aquisição daquele território nacionalizado pelo Tratado de Petrópolis. Acontece que a Constituição Federal em vigor, a de 1891, não autorizava administração direta de qualquer território pela União. Pela legislação em vigor, aquele “triângulo geográfico” deveria tornar-se um Estado ou ser incorporado a algum já existente. Os diplomatas Barão do Rio Branco e Assis Brasil resolveram a questão inventando o Território do Acre. O Território era uma categoria específica de divisão administrativa descentralizada encontrada nos EUA, por meio do qual a União administrava uma determinada parte do território nacional diretamente. E dessa forma foi que o Acre emergiu na ordem do discurso: eivado de inconstitucionalidade. 2.2 A REVOLUÇÃO ACRIANA COMO ACONTECIMENTO FUNDADOR DO ACRE

“Um fato real [...] era re-criado até tornar-se fantástico [...] Que terreno fértil esse que confunde a realidade, a imaginação (a ficção, a literatura) e o imaginário (ideologia, o efeito de evidência construído pela memória do velho mundo) [...] Nasce de um fato real, passa para o maravilhoso, se enriquece de detalhes concretos

~ 86 ~

de origens diversas da experiência dos conquistadores e se tece uma trama coerente que dá verossimilhança à lenda, produzindo evidência sobre a história do país, que não pode se confundir com as lendas que se contam sobre ele... Aí se processa o mecanismo ideológico de construção imaginária da realidade com seus efeitos de evidência” (ORLANDI, 1993, p. 17).

A “Revolução Acriana”, conflito militar que houve no final do século XIX e início do século XX entre o exército boliviano e as tropas acrianas, é considerada como o evento fundador do Acre. Isso porque assim foi significada pelos líderes da Questão Acriana. No decorrer dos anos, esse discurso foi fossilizado como verdade. Portanto, esse acontecimento tem uma força simbólica muito grande no imaginário social acriano e, é por isso, que resolvemos incluí-lo nesse livro, fazendo alguns comentários sobre ele. Virou um “lugar-comum” a afirmação de que a “Revolução Acriana” foi a responsável pela anexação do Acre ao Brasil, como se ela tivesse colocado um ponto final na Questão do Acre. Alguns livros chegam a atribuir todo o mérito da nacionalização do território a Plácido de Castro (Cf. MARINS, 1954; FIGUEIREDO, 2007; CABRAL, 1986; COSTA, 2005). O que não deixa de ser uma análise episódica, que prioriza a temporalidade de “curta duração” e os feitos daqueles que são tratados como “grandes líderes”. No livro A formação da Sociedade Econômica do Acre (2015), mostramos que a cadeia genealógica da Questão do Acre vai desembocar no capital internacional. Foi ele quem financiou o processo migratório para a região amazônica no último quartel do século XIX com o fim de intensificar a produção da borracha. Seria mais sensato, portanto, apontar o início da “colonização” do Purus e do Juruá como marco do processo de nacionalização do Acre. Ou mesmo a chegada dos primeiros “colonizadores” liderados pelo cearense João Gabriel, em 1857. Ou quem sabe a assinatura do Tratado de Petrópolis (1903), já que foi a partir de então que o território do atual Acre de fato passou a figurar no mapa brasileiro.

~ 87 ~

A “primeira insurreição” contra a soberania boliviana no rio Acre em maio de 1899 ou a proclamação do Estado Independente do Acre por Galvez em julho de 1899, também poderiam ter sido eleitos como acontecimento fundador do Acre. Muitos outros poderiam ocupar a cena inaugural do Acre, como a primeira reunião da Junta Revolucionária, no entanto, escolheu-se a “Revolução” de Plácido de Castro. Por quê? Um pouco de sinceridade bastaria para reconhecer que a dita “Revolução” não anexou um palmo de terra sequer ao Brasil. Ao final dela, o Acre ainda figurava como território estrangeiro, uma vez que foi declarado um Estado Independente, separado tanto da Bolívia quanto do Brasil. Além do mais, como veremos, a vitória militar de Plácido de Castro não foi definitiva, já que o próprio presidente da Bolívia, juntamente com o seu ministro de guerra, se dirigia para o local da “desforra”.

A “desforra” só não aconteceu por conta da intervenção diplomática do Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores do Brasil, que procurou entrar em acordo com o governo boliviano até que um tratado fosse assinado para resolver definitivamente a questão. Uma provável chacina de brasileiros radicados em território boliviano pelas tropas do General Pando comoveria a opinião pública de tal maneira que um mal pior poderia acontecer na jovem república. Tudo isso foi evitado com a assinatura do Modus Vivendi.

O militar brasileiro Freitas Dias, que participou da coluna expedicionária de ocupação do Acre Setentrional liderada pelo general brasileiro Olímpio da Silveira em abril de 1903, afirma que o suposto combate entre Pando e Plácido de Castro foi um grande mito. Explica que são falsas as narrativas que dizem ter "Plácido de Castro sitiado o exército boliviano sob o comando pessoal do General Don José Manoel Pando, em um lugar denominado Puerto Rico" (FREITAS, 1949, p. 6). Essa argumentação também foi defendida por Azcui (1925). O historiador Leandro Tocantins (2001, Vol. II, p. 206) afirma que "não existe nenhuma palavra daquele general confessando o cerco irremediável da praça. É lícito, pois, concluir que estava ainda longe de ser decidido o combate de Puerto Rico". Segundo Goes (1991, p. 165):

~ 88 ~

"não houve choque entre os exércitos". O combate entre o exército do general Pando e as tropas acrianas foi "uma lenda gerada por Plácido de Castro e outros interessados em aumentar-lhe o renome e os seus feitos" (FREITAS, 1949, p. 34). Além do mais, de nada adiantaria uma provável vitória contra os bolivianos, sem a anuência dos EUA, já que estava inclinado a apoiar a Bolívia pelo fato de grandes financistas norte-americanos estarem envolvidos com o Bolivian Syndicate e também por causa do posicionamento apático do Brasil diante da Doutrina Monroe. É necessário ter bem claro que a Questão do Acre não era uma simples disputa territorial entre dois países sul-americanos. A região era alvo de uma disputa imperialista entre EUA e Inglaterra. Ambos queriam dominar o mercado latino-americano transformando-o em parte de suas respectivas “áreas de influência”. Desde a independência em 1822, a Inglaterra era a principal parceira comercial do Brasil. O Brasil sofria pressão para adotar políticas tributárias diferenciadas para os EUA. No entanto, como afirma Santos (2004, p. 115), a postura do Brasil na Conferência Pan-Americana de 1889 foi “refratária aos objetivos da reunião e ao avanço do espírito interamericanista”. O Brasil resistia ao alinhamento requerido pela Doutrina Monroe, não por patriotismo, mas porque dava preferência às relações comerciais com os britânicos. O Brasil era um dos poucos países do continente com o qual os EUA apresentavam déficit na balança comercial. Nesse contexto, os EUA avizinharam-se da Bolívia, que tinha uma das maiores reservas de seringueiras do mundo, o “Apolobamba” (nome dado ao Acre pelos bolivianos). Para neutralizar politicamente os EUA perante a Questão do Acre, o Barão do Rio Branco teve que abraçar a Doutrina Monroe (Cf. BANDEIRA, 1978, p. 168). A partir de então, houve uma “reorientação da política externa brasileira da Europa para os Estados Unidos” (HENRICH, 2010, p. 89). Somente após obter a neutralidade norte-americana, foi que o Brasil teve condições de negociar com os grandes banqueiros a desistência do Bolivian Syndicate. Os EUA poderiam intervir militarmente no Acre para proteger os acionistas yanques de eventuais prejuízos. Afinal, os sócios do Sindicato eram "verdadeiros testas-de-ferro de

~ 89 ~

gente muito mais importante" (SOARES, 1975, p. 143). Os investidores não aceitariam o governo de Plácido de Castro pacificamente, caso não fossem indenizados, poderiam intervir militarmente na região. O governo boliviano não tinha condição financeira de indenizar o sindicato. Em contrapartida, o governo norte-americano já havia dito de forma velada que não aceitaria que seus compatriotas tivessem prejuízos (Cf. TOCANTINS, 2001, Vol. II, p. 87). Sendo assim, o Itamarati propôs que o governo brasileiro assumisse os custos da indenização e adotasse políticas comerciais mais “alinhadas” aos EUA. O Barão do Rio Branco explica o feito: "O que o governo brasileiro então obteve foi a renúncia pura e simples da concessão havida pelo Sindicato, para assim eliminar um elemento perturbador das negociações" (KENT apud BRASIL, 2003, p. 299). Tudo isso indica que a vitória de Plácido de Castro de nada valeria caso os interesses dos países imperialistas e de seus respectivos investidores não fossem salvaguardados. Sem dizer do fato de que o governo do Peru também reivindicava o território. A “Revolução” não havia encerrado a “Questão Acriana”.

A “imagem 4”, a seguir, é uma materialidade discursiva governamental que sintetiza bem o que estamos falando. Pois afirma que a “Revolução” originou o Acre e consolidou o destino do “povo” acriano. A origem aponta para o destino promissor que o governo do Estado desejava capitanear através da propaganda. O discurso fundador serve exatamente para isso: sustentar o otimismo coletivo e massificar a alienação no presente a partir de uma manipulação histórica do passado. O texto não faz menção ao trabalho diplomático do Itamarati para solucionar a Questão do Acre, ou seja, ela é um reflexo da análise episódica que não leva em consideração o que estava acontecendo sobre o caso para além das trincheiras. O texto é enfático ao destacar: “era o fim da Revolução e o nascimento do Acre”. De acordo com o texto, homens e mulheres movidos por um ideal elevado doaram suas vidas para consolidar “um lugar no mundo” para aquela “terra”. É como se a ação daqueles primeiros acrianos instaurasse um destino para as gerações futuras.

~ 90 ~

Imagem 4 – O discurso fundador do Acre em um texto governamental

Fonte: Governo da Floresta. In: Jornal A Tribuna, 23 de janeiro de 2005, p. 16.

Para finalizar esse tópico, é relevante tecer algumas hipóteses sobre a escolha da “Revolução” como acontecimento fundador da anexação do Acre. Como vimos, a “Revolução” não finalizou a Questão do Acre, no entanto, foi ela que ganhou tal fama. Por que isso aconteceu? Quem se propôs a fazer tal coisa? É possível que isso tenha a ver com a disputa política e simbólica que houve entre os acrianos e o governo federal tão logo fora confirmado o “rebaixamento” do Acre à categoria de Território em 1904. Os líderes da “Revolução Acriana”, após a vitória contra o exército boliviano em Puerto Alonso em janeiro de 1903, trataram logo de inflar a importância dos feitos militares, uma vez que, assim fazendo, autopromoviam-se como merecedores de honras e recompensas. No seguinte verso do Hino Acriano – escrito em outubro de 1903 por Francisco Mangabeira, um médico baiano que fez parte das tropas acrianas – “possuímos um bem conquistado, nobremente com armas na mão”, o Acre aparece como uma conquista exclusivamente militar, e tal

~ 91 ~

conquista, apesar do “banho de sangue”, foi significada como uma ação “nobre”. Ainda em vida, Plácido de Castro deixou bem claro o seu ponto de vista com relação à interpretação que deveria prevalecer, pois afirmou que “heroica luta contra a Bolívia” foi a responsável pela “entrada do território do Acre para a comunhão brasileira” (CASTRO, 1906-7, In: TJAC, 2003, Vol. 2, p. 33). Claro que essa interpretação é interesseira, uma vez que ele se posicionava como credor do governo federal pelos serviços prestados, tal como confirma o seguinte texto:

Passando a administração do Estado para a União, todos nós esperávamos, por certo, ser recebido, como filhos extremados nos braços maternais, e que ao invés dos sofrimentos e provações com que temos sido mimoseados pelo governo federal, fôssemos antes carinhosamente satisfeitos em nossas palpitantes necessidades, aspirações, aliás justíssimas para aqueles que se apresentavam cheios de serviços prestados à pátria na integração de sua fronteira ocidental. (CASTRO, 1906-7, In: TJAC, 2003, Vol. 2, p. 12, grifo nosso).

Os acrianos ligados ao Movimento Autonomista36, grande parte ex-combatentes da “Revolução Acriana”, desprestigiados com a atitude do governo federal em indicar pessoas “de fora” para ocuparem os principais cargos do Acre Território, resolveram contestar a situação. Diziam que aquela postura representava uma ingratidão com aqueles que haviam se arriscado em favor do Brasil. Foi no seio desse movimento que surgiram frases de efeito como: “somos os únicos brasileiros por opção”, “os únicos a lutarem para ser brasileiros” etc. Essa retórica fazia parte da estratégia de convencimento e de mobilização da opinião pública em favor da autonomia acriana. Nesse contexto, apontar a “Revolução Acriana” como a responsável pela anexação do Acre, só aumentaria a pressão em cima do governo federal para que o mesmo contemplasse os “revolucionários”

36 O grupo de acrianos que passou a defender a imediata elevação do Acre à categoria de Estado.

~ 92 ~

com cargos públicos, como fora feito, e conceder aos acrianos o direito de eleger seus próprios governantes. O governo federal reagiu rendendo homenagens ao Barão do Rio Branco como o responsável pela anexação do Acre, mostrando a importância do Itamarati para a solução definitiva da Questão do Acre. A reação mais natural dos autonomistas foi a sacralização de Plácido de Castro, logo após a sua morte, como o “libertador do Acre”. Era melhor um “herói” local que pudesse ser utilizado politicamente em favor da causa autonomista, do que um “herói” nacional que endossava os interesses da união sobre a região. Desde o início, o governo federal preferiu destacar a figura do Barão do Rio Branco como o responsável pela anexação do Acre. Por isso, nomeou como “Rio Branco” um dos centros comerciais mais importantes do Acre naquele início de século, como consta no decreto abaixo. O nome do Barão de Rio Branco dado à cidade que viria a se tornar a capital do Acre foi uma imposição do governo federal, que assim o fez para homenageá-lo. Não houve qualquer consulta à população local. O governo federal, através dos prefeitos, rendia-lhe homenagens, tratando-o como “patrono do Acre” (jornal Acreano, de Xapuri, 1 de novembro de 1909, Nº 56, primeira página). O “17 de novembro”, data da assinatura do Tratado de Petrópolis, virou nome de escola, praças e outros.

Decreto Nº 7, de 7 de setembro de 1904, Dá nome de Vila Rio Branco à antiga povoação da Empresa. O prefeito do Departamento Nacional do Alto Acre, nomeado pelo governo federal, tendo em consideração os altos e relevantes serviços prestados à Pátria pelo eminente brasileiro o Exm. Sr. Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores, o qual, com a maior honra para a Nação, conseguiu levar ao bom termo, no curto espaço de um ano, a antiga questão do território do Acre, que parecia perdida para o Brasil, DECRETA: Art. 1º - Passa a denominar-se Vila Rio Branco a antiga povoação da Empreza, sede do Governo da Prefeitura, elevada à categoria de Vila por Decreto Nº 3, de 22 de agosto findo. (In: TJAC, 2003, p. 122, grifo nosso)

~ 93 ~

A partir da leitura do decreto, fica claro que o sucesso da anexação do Acre ao Brasil fora atribuído ao Barão do Rio Branco e não a Plácido de Castro. O “Barão” sendo aceito como “pai do Acre”, ficaria mais fácil justificar o domínio político federal naquele território. Tempos depois, o governo federal indicou a Vila Rio Branco como capital do Território do Acre. Isso indignou Plácido de Castro, que logo manifestou a sua discordância. Segundo ele, a região era “imprópria à permanência da sede da prefeitura” (In: TJAC, 2003, Vol. 2, p.11). 2.3 A ORIGEM GLORIOSA DO ACRE

“A noção da origem está ligada, sobretudo, à ideia da perfeição e beatitude” (ELIADE, 1994, p. 52).

“O Acre possui uma história das mais importantes que se insere na história do Brasil. É uma história contada por HERÓIS e HEROÍSMO até os dias de hoje. Foi traçada por bravos rústicos e nordestinos e seus descendentes, levados pela inspiração patriótica, pela necessidade de sobrevivência e pelo anseio de manterem para si o território conquistado com suor e sangue” (BARBOSA, 1991, p. 31).

O discurso fundador não se preocupa apenas em estabelecer uma origem para os fenômenos sociais, ele também faz dessa origem algo fantástico. Já foi visto que a história do Acre sob a ótica da descontinuidade pode abrigar várias gêneses e que a escolha de uma delas é sempre uma ação arbitrária sustentada politicamente, ou seja, uma convenção. Resta-nos compreender como o discurso carrega o fato inaugural com uma “aura”, ao ponto de, às vezes, conseguir transformar acontecimentos selváticos, como uma luta armada, em algo apreciável e digno de comemoração.

A origem do Acre é coberta de “glória” pela historiografia oficial e pela literatura regional. Os dois argumentos que geralmente são utilizados por ambas para inventar uma genealogia epopeica são narrar a bravura com que os migrantes enfrentaram o “inferno verde” para sobreviver e louvar o patriotismo daqueles que arriscaram suas vidas

~ 94 ~

em um conflito armado contra os bolivianos para garantir o direito de serem brasileiros. No entanto, como o processo de migração não figura na narrativa oficial como o ponto de partida, concentramos a análise à engenharia discursiva que inventou a sanguinária Revolução Acriana em algo digno de veneração.

A principal retórica utilizada foi o discurso patriótico, como se um idealismo aparentemente “nobre” pudesse justificar crimes dos mais diversos tipos. A suposta motivação patriótica do movimento revolucionário serviu, como na maioria das guerras europeias do século XX, para provar a “inocência” ou “bem-aventurança” dos assassinos e tornar o fenômeno bélico uma atividade menos repugnante e, quem sabe, até virtuosa. No discurso oficial, a violência vira espetáculo de patriotismo e cena de heroísmo, como afirma Micelli (1994), é na guerra que os mais mesquinhos apetites humanos são expostos à consagração da história.

Os grandes crimes coletivos geralmente são cometidos em nome da virtude [...] A ética fascista incluía o genocídio, os espartanos louvavam o infanticídio, os jesuítas acreditavam na tortura, os puritanos queimavam bruxas, os seguidores de Hassan i Suffah ou do IRA praticam assassinatos [...] Na Alemanha pós-drepressão, vários oficiais da SS eram promovidos por suas habilidades genocidas. Com surpreendente frequência, a violência tem sido enaltecida por códigos morais. (THOMSON, 2002, p. 13, 22 e 29, grifo nosso).

Os documentos escritos preservados são sempre aqueles

deixados pelos vencedores da guerra e eles fazem questão de ressaltar a “moralidade” das motivações dos seus soldados. A violência cometida nos campos de batalha aparece ideologizada como algo positivo. Comemorar a guerra é louvar ao “gênio humano aplicado à destruição” (MAGNOLI, 2013, p. 16). No entanto, a estética da violência tem os seus admiradores.

Em Homero (VIII a.C.), por exemplo, a guerra era cantada em versos. No Acre, temos afirmações como “é chegada a hora de lembrarmos e comemorarmos o aniversário de um século da última e

~ 95 ~

mais sangrenta fase da luta acreana”. (NEVES, Marcos Vinícius. O Centenário da Revolução Acriana e o Museu da Borracha. In: jornal O Estado do Acre, de Rio Branco, em 8 de abril de 2002, N° 53, p. 2, grifo nosso).

Uma outra data também muito gloriosa para nós [...] aquela em que Plácido de Castro efetuou o cerco da Volta da Empresa, fato que representa uma das páginas mais brilhantes da nossa moderna história. (O jornal O Acreano, do Departamento do Alto Acre, de 22 de Outubro de 1911, Nº 74, p. 2 e 3).

A história oficial tenta negar o óbvio, ou seja, que “todos os

movimentos armados ou diplomáticos pela posse do Acre [...] foram motivados pela riqueza” (SOUZA, 2002, p. 148). No entanto, o que ficou de fato imortalizado foi a motivação nobre do patriotismo. Já mostramos no livro A formação da sociedade econômica do Acre que a “Revolução Acriana” foi um subproduto do impacto da inserção da região que hoje compreende o atual território do Acre na rede comercial das grandes potências mundiais. “No rush da borracha, o capital estrangeiro correu para a Amazônia e foi investido de mil maneiras” (REIS, 1982, p. 127). Abaixo, uma placa comemorativa, significando a origem do Acre como “gloriosa conquista”.

Imagem 5 – A origem do Acre tratada como “gloriosa” I.

Fonte: Placa comemorativa do Centenário da Revolução Acriana localizada em

frente ao Museu da Borracha. Foto do próprio autor.

Os conflitos armados gerados em consequência da reprodução

do capital são incompatíveis com qualquer idealismo “nobre”. Pelo

~ 96 ~

contrário, não há maior elogio à desrazão do que uma guerra. Ela é a forma mais animalesca de se resolver divergências de interesse. Sustentar uma ideia de “aura” constituinte em uma origem marcada por uma guerra é fazer apologia à violência. Sem a borracha, os “patriotas” não teriam lutado “heroicamente” pelo Acre. A seguir, um exemplo do discurso “triunfalista” sobre a origem do Acre em uma matéria de jornal.

Imagem 6 – A origem do Acre tratada como “gloriosa” II.

Fonte: jornal Folha do Acre, da Cidade da Empreza, em 6 de agosto de 1911, p. 2.

Acervo digital da Biblioteca Nacional.

~ 97 ~

CAPÍTULO 3

O DISCURSO FUNDADOR DO ACRIANO

“A Revolução Acreana foi muito mais que uma guerra [...] foi, na verdade, um momento singular onde foram estabelecidos os signos que ainda hoje trazemos em nossa identidade mais essencial [...] antes da Revolução não havia acreanos”. (Jorge Viana. Apresentação. In: CALIXTO, 2003, grifo nosso). “A grandeza patriótica dos acreanos só é comparável à sua heroica tenacidade em defender o território que eles supunham ser incontestavelmente nacional”. (COSTA, 2005, p. 191, grifo nosso).

Já falamos que a comunidade acriana foi fundada a partir de uma “narrativa da comunhão” instaurada em decorrência da “Revolução Acriana”. Mas esse acontecimento fundador também desencadeou infinitos enunciados caracterizadores dessa comunidade, ou seja, traços identitários dela.

A leitura do enunciado da epígrafe acima suscita-nos uma pergunta: quais são esses “signos” que desde a Revolução fazem parte da “identidade mais essencial” do acriano? Uma das possíveis respostas pode ser encontrada nesta citação: “nova estrela veio a figurar no céu de nossa bandeira, nela refulgindo o sacrifício dos heróis acreanos e o patriotismo de nossos estadistas” (LEME, 1978, p. XXXIII).

Neste capítulo, analisaremos a emergência do patriotismo e do heroísmo como fundadores da identidade acriana. Ambos serão tratados aqui como acontecimentos discursivos que se realizam na história, formando arquivos, ou seja, continuidades temáticas preservadas através do tempo.

~ 98 ~

O objetivo é evidenciar a arbitrariedade dos traços identitários

que consagraram o “eu” acriano. Isso a partir de uma análise arqueológica foucaultiana desses dois princípios de dispersão. Por que chamar de herói aquele a quem o outro chamou de assassino? Por que chamar de patriota aquele a quem outro chamou de flibusteiro? Outros sentidos são possíveis e é necessário entender o propósito dessa interdição, a fim de explicar essa pobreza enunciativa que forma a identidade acriana.

Se apenas as qualidades heroicas e patrióticas são visíveis, não quer dizer que o passado acriano esteja imaculado de violência e corrupção. Pelo contrário, isso é prova da existência de uma política simbólica que interditou todos os enunciados que denegriam a imagem ideal do “eu” acriano. Se hoje temos orgulho de ser acriano é porque desconhecemos a nossa história. O pouco que sabemos dela advém do contato com a narrativa epopeica, resultado das lembranças preservadas por nossa elite.

Esse déficit semântico constitutivo explica o porquê do massacre dos indígenas não ter significado a comunidade acriana de violenta, sanguinária e xenofóbica, apesar de o fenômeno ter sido uma constante e ter acompanhado todo o processo de formação histórica do Acre. É de se estranhar que mesmo que o interesse econômico tenha prevalecido durante toda a chamada Questão do Acre, os acrianos não tenham sido identificados como avarentos, ambiciosos ou gananciosos.

A identidade acriana poderia ter sido marcada por vários traços negativos, no entanto, prevaleceram só os positivos. Como foi possível inventar uma imagem de “bons mocinhos” para aqueles “primeiros acrianos” diante de inúmeros acontecimentos dramáticos praticados por eles? Afinal, o heroísmo e o patriotismo acriano foram estabelecidos em uma terra que virou um cemitério natural de indígenas depois da chegada dos nordestinos. Mas não foi somente isso, diversos crimes se tornaram práticas regulares – assassinatos, sonegação fiscal, tráfico de mulheres, descaminho de borracha, corrupção econômica na cadeia de aviamento, estupro de nativas etc. Enquanto comunidade de acrianos, é bom lembrarmos que o Acre é um fenômeno imaginado, sem qualquer empiria, a não ser a da

~ 99 ~

materialidade discursiva que o descreve. Sendo assim, qualquer traço identitário coletivo atribuído a ele, também será indiscutivelmente imaginado. Não existe “identidade essencial” como menciona a epígrafe, muito menos “signos” constituintes do ser acriano. Foi o discurso fundador enquanto paisagem enunciativa que permitiu a imaginação dos acrianos como heróis e patriotas. Neste capítulo, estudaremos como o patriotismo e o heroísmo acriano foram discursivamente fundados. 3.1 O PATRIOTISMO ACRIANO

“Não havia pátria, no sentido atual, em um tempo em que não havia nações”. (FEBVRE, 1998, p. 94).

Iniciaremos esse tópico falando sobre o patriotismo enquanto fenômeno histórico no mundo ocidental. O objetivo é traçar a memória discursiva vinculada a esse signo para entendermos qual era o patriotismo que povoava o imaginário dos chefes da Revolução Acriana. Inicialmente é importante lembrar que o vocábulo pátria surgiu pelos idos do século XVI (Cf. FEBVRE, 1998) e que foram os renascentistas quem nomearam como patrióticas as experiências de fidelidade.

Na Grécia Antiga, o patriotismo estava baseado nos ideais de virtude da nobreza guerreira e cavalheiresca (KUJAWSKI, 1992). Dizia-se que a epopeia grega fora animada pelo patriotismo enquanto amor à honra. Com o fortalecimento da aristocracia nas cidades-estados, a fidelidade à virtude foi transferida para a cidade natal de cada cidadão. “A militância patriótica cotidiana era, sobretudo, a reunião dos cidadãos na ágora para se verem e ouvirem reciprocamente [...] conversar na praça era militar pela cidade” (idem, ibidem, p.30).

Na Roma Antiga, o patriotismo era fundamentado na fidelidade ao Império e na obediência ao direito público. “Sem o direito, o cidadão de Roma não podia ser efetivamente romano” (idem, ibidem, p.35). Para os “bárbaros”, o patriotismo expressava-se através da fidelidade à tropa. Por serem nômades, eles desenvolveram um patriotismo aterritorial, a

~ 100 ~

pátria estava onde a tropa estava. O cristianismo, por outro lado, prega uma pátria celestial onde todos os salvos terão lugar.

No período feudal, o patriotismo tomou forma provinciana com a desfragmentação política do Império Romano. O sentimento de fidelidade continuou, no entanto, foi direcionada às relações vassálicas. Como afirma Febvre (1998, p.115), “no século XII, o verdadeiro sentimento referencial, o sentimento que tem poder o espírito dos homens é sempre o sentimento de fidelidade”. A partir do século XV, com o surgimento das monarquias absolutistas na Europa, aos poucos o sentimento de fidelidade foi transferido para a pessoa do monarca. Ele representava a unidade política e territorial do país, a personificação do Estado.

A emergência da sociedade burguesa ampliou a concepção de pátria, que passou a representar o país no qual a “terra dos ancestrais” (idem, ibidem, p. 152) estava inserida. Ela foi deixando de se referir ao feudo, vila ou região onde se havia nascido.

Para o dicionário espanhol 1726 (primeira edição), a pátria ou, no uso popular, tierra, ‘a pátria’, significa apenas ‘o lugar, o município ou a terra onde se nascia’ ou ‘qualquer região, província ou distrito de qualquer domínio senhorial ou Estado. Esse sentido estreito de pátria, que foi diferenciado do sentido lato do termo moderno como pátria chica, ‘a pequena pátria’, é bastante universal antes do século XIX, exceto entre as pessoas cultas com conhecimento da Roma antiga. Até 1884, a tierra não era vinculada a um Estado; até 1925 não ouvimos a nota emocional do patriotismo moderno, que define pátria como a nossa própria nação, com a soma total de coisas materiais e imateriais passadas, presentes e futuras, que gozam da amável lealdade dos patriotas (HOBSBAWM, 2004, p. 28, grifo nosso).

Foi somente no século XX que a elite econômica e letrada

europeia conseguiu amalgamar os conceitos de povo, estado e nação, vinculando ambos ao território. A fidelidade do povo agora era orientada para a nacionalidade. “A base dos nacionalismos de todos os tipos era igual: era a presteza com que as pessoas se identificavam

~ 101 ~

emocionalmente com ‘sua’ nação e podiam ser mobilizadas [...] presteza que podia ser explorada politicamente” (HOBSBAWM, 2003, p. 204).

O patriotismo era uma identificação emocional com a nação – uma invenção do nacionalismo que, por sua vez, era um instrumento de manipulação do Estado. Portanto, não é errado dizer que esse patriotismo foi uma invenção do Estado para facilitar a obediência civil dos cidadãos. O próprio nacionalismo também fora uma invenção para forjar uma unidade cultural entre os habitantes do território e assim inibir os conflitos internos. A lealdade cívica deveria vir acompanhada de ações proativas em favor do Estado (HOBSBAWM, 2003, p. 106).

A relação entre o patriotismo e o país era puramente simbólica, assim como era a relação do país com a nação; da nação com o Estado; do Estado com o povo; e do povo com o território. A única coisa que era simulada era a relação dos interesses da “pátria” com os interesses econômicos dos grupos políticos dominantes que gerenciavam o Estado. Lutar pela pátria não poderia aparecer como uma luta em favor das causas da elite econômica do país.

No caso do Brasil, o Estado só implantou ações concretas e planejadas para a invenção da identidade nacional no início do século XX. No século XIX, houve as primeiras tentativas da imaginação da nação com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil em 1839 e com a atuação de intelectuais como Adolfo Varnhagen (1816-78)37 e José de Alencar (1829-1877)38. Apesar do esforço, pode-se dizer que a “alma brasileira” é um patrimônio simbólico republicano da primeira metade do século XX (Cf. CARVALHO, 1990).

37 Escritor alemão nascido acidentalmente em São Paulo (Cf. PINSKY, 1992, p. 13), foi considerado por muitos o “pai da historiografia brasileira”. Segundo Reis (2003, p. 33), ele “representa o pensamento brasileiro dominante durante o século XIX”. Varnhagen “procurava passar a ideia de nação já constituída, não mais em construção como de fato ocorria [...] Ele não narra a constituição da nação, ele simplesmente a constitui” (idem, ibidem, p. 14). 38 Ele é considerado o pai da literatura brasileira. Em O Guarani (1867), ele narra uma “fundação épica da nação brasileira”, em que “a violência da conquista é representada como um gesto natural e heroico [...] capaz de acalmar a dor da violência que assinala o lugar da origem” (COELHO, 2005, p. 148 e 149).

~ 102 ~

Durante o Império, o regionalismo, a escravidão, as imigrações

estrangeiras e os movimentos separatistas prejudicaram a construção da nação. Por conta desses fatores, a popularização do patriotismo enquanto religião cívica seria adiada. Um exemplo disso foi a dificuldade encontrada por D. Pedro II em mobilizar “patriotas” para a Guerra do Paraguai (1865-70). Quem de fato atendeu ao apelo da “mãe gentil” foram os negros, que “voluntariamente” se candidatavam para defender a pátria. “No exército do Império do Brasil, para cada soldado branco, havia nada menos que quarenta e cinco negros!” (CHIAVENATTO, 1984, p.111).

3.1.1 “Tudo foi feito por amor à pátria”39

“A burguesia enganava o povo, ocultando os verdadeiros fins da guerra, seu caráter imperialista, de anexação. Todos os governos imperialistas declararam que faziam a guerra em defesa da pátria [...] Não se pode defender a pátria de outro modo se não lutando por todos os meios revolucionários contra os latifundiários e os capitalistas da própria pátria, isto é, contra os piores inimigos de nossa pátria”. (LÊNIN, 1968).

“Ambos, líder e liderados, embalados pelo ritmo das vazantes e das cheias, viram crescer em seus corações o orgulho de ser brasileiro”. (VIANA, Tião. Apresentação. In: CASTRO, 2005 p. 10, grifo nosso).

“O Estado do Acre é uma das partes mais legítimas do território brasileiro. É feito por um povo que se orgulha de ser brasileiro, porque lutou para isso”. (Jorge Viana apud Jornal Página 20, Rio Branco, 06 de agosto de 2005, versão online.).

39 Argumento utilizado pelos idealizadores do Estado Independente do Acre perante a opinião pública nacional (Cf. BRAGA, 2002, p.14).

~ 103 ~

Levando em consideração o contexto nacional relatado na

introdução do capítulo, fica impossível imaginar sentimento patriótico no Acre em fins do século XIX. “No Brasil do início da república, inexistia tal sentimento [de comunidade, identidade coletiva]” (CARVALHO, 1900, p. 32). O sentimento nacional brasileiro passou a ser consolidado somente a partir de 1930, quando o Estado Novo passou a combater o regionalismo, promover festas cívicas e divulgar os símbolos nacionais.

O patriotismo que os “revolucionários acrianos” afirmavam ser de todos era, na verdade, de ninguém. Nem nos grandes centros urbanos do país, a brasilidade era um fenômeno plenamente consolidado, que dirá entre os seringueiros analfabetos isolados na floresta amazônica. Mas esse discurso emotivo não fora empregado para convencer os seringueiros a lutarem contra os bolivianos, para eles, as estratégias foram outras. O emprego do discurso patriótico pelos defensores da Questão do Acre foi usado como retórica para convencer a opinião pública nacional a se posicionar a favor da causa dos latifundiários do Acre e à demanda fiscal do governo do Amazonas.

É fácil compreender isso, basta lembrar que a produção da borracha representava a riqueza de seringalistas, dos comerciantes e dos políticos de Manaus que administravam os impostos sobre a exportação da goma. O que estava em jogo não era a nacionalidade dos brasileiros que residiam no Acre e sim da nacionalidade das terras desses brasileiros, pois isso definiria a procedência da borracha, e o consequente direito de cobrar tributos.

Havia um grande temor de o governo boliviano aumentar os impostos, invalidar os títulos fundiários expedidos pelo governo amazonense e impor restrições sobre o corte da seringueira. Ser brasileiro era a garantia de que esses “males” não aconteceriam. Portanto, o que importava para os revolucionários não era a nacionalidade em si, mas os privilégios advindos dela. Defender o território nacional era o mesmo que defender suas propriedades privadas.

Segundo Cabral (1986, p.37), o medo de perder a renda advinda da cobrança de impostos fez com que o governo do Amazonas mantivesse um “clima de tensão e revolta” na região. Em contrapartida, os seringalistas atiçavam os seringueiros contra os bolivianos,

~ 104 ~

inventando que eles sofreriam castigos por trabalharem em terras estrangeiras. “Nada mais falso, tudo não passou de fantasia destinada a levantar a opinião nacional contra a ocupação do Acre” (TOCANTINS, 2001, p. 248).

Foi assim que os seringueiros receberam D. José Paravicini. Viam nele não o representante legítimo de um país que, sob os resguardos dos tratados internacionais, se empossava do território acreano, e sim o algoz dos brasileiros, o usurpador de rendas nacionais (idem, ibidem, p. 248).

Atingidas em seus interesses, as classes dominantes amazonenses insuflaram, por toda parte, a ideia de uma sublevação contra a missão boliviana. Nos jornais, nos seringais, no parlamento e até nos bares procurava-se incutir a ideia de que a pátria havia sido lesada pela adoção da medida de permitir a posse da Bolívia no Alto-Acre. Não se dizia, porém, que, subjacente a isso, estavam os interesses econômicos profundamente afetados [...] a campanha objetivara sacudir a opinião pública. (CALIXTO, s/d, p. 111, grifo nosso)

A possibilidade de o seringueiro ter lutado por motivos

patrióticos ligados à ideia de nação é próxima de zero. Os migrantes não tinham motivos para amar o país. A pátria faltava-lhes ao encontro. Por ocasião da Grande Seca nos anos de 1877/78, foi justamente a falta de assistência social pública que constrangeu os nordestinos à condição de desterro. Antes mesmo da migração, a cidadania brasileira já não lhes rendia benefício algum.

Mesmo que o sentido de pátria fosse entendido como sinônimo de território nacional, provavelmente eles não teriam motivações para defendê-la, pois, naquela conjuntura, a terra representava um “calvário”. Por motivos diversos, é possível que tenha morrido mais de 150 mil migrantes na Amazônia em fins do século XIX. Os sobreviventes eram submetidos à condição de escravidão por dívida no seringal. Como afirma Castro (2005, p. 143), “todo o Acre é um cemitério”.

Além do mais, segundo Hobsbawm (2004, p. 21): “a maioria dos estudiosos concordaria que, qualquer que seja a natureza dos primeiros

~ 105 ~

grupos sociais capturados pela consciência nacional, as massas populares – trabalhadores, empregados, camponeses – são as últimas a serem por ela afetadas”. E o seringueiro era “o mais apolítico dos brasileiros”, segundo o Dr. Oliveira Viana (apud COSTA, 2005, p. 221). Sem vida urbana, sem cidadania e sem consciência política, o patriotismo seringueiro vira ficção.

A incorporação de seringueiros ao exército de Plácido de Castro não fora feita de modo deliberado e voluntario. Como já foi dito, o extrator estava “preso” ao seringal, não podia tomar qualquer iniciativa sem o consentimento do “patrão”. A inserção militar do seringueiro acontecia quando o patrão dele aderia à Revolução. Quando isso acontecia, geralmente o seringalista colocava alguns seringueiros à disposição da Questão do Acre. Nestas condições, obviamente que não foram às trincheiras em defesa da “pátria”, a motivação provavelmente eram outras, qual seja, a promessa de liberdade e de perdão das dívidas com o “Barracão”.

Escravo da gleba e escravo do seringalista tuchaua, o nordestino tinha duas saídas: fugir do “centro” ou fugir do Acre. Já verificamos como era impossível a volta ao nordeste. Sobrava, contudo, a oportunidade da “descida” para a margem. O cearense ficou espiando essa “oportunidade” e eis que ela surgiu como contingência histórica: a guerra com a Bolívia. Este foi o momento em que ele pela primeira vez se libertou [...] A descida para a guerra era como uma fuga: fuga do “centro” [...] com a guerra, sonhavam quebrar todas as pesadas correntes que os amarravam cruelmente na grande selva [...] Depois da guerra, se vitoriosa, acreditavam que os proprietários passariam a ser seus irmãos, que poderiam, eles seringueiros, possuir terras e bens, que os seus saldos seriam vultosos e que todo o sistema latifundista seria abalado para oferecer-lhes mais amplas possibilidades de vida. (BASTOS. In: COSTA, 2005, p. 47-48).

Após a anexação do Acre, o seringueiro continuou “expatriado”,

e o que é pior, “trabalhando para se escravizar” (CUNHA, 2000, p.

~ 106 ~

152). Será que os nordestinos teriam enfrentado o impaludismo, os índios selvagens, a natureza hostil, o isolamento social, a falta de infraestrutura básica, a insalubridade, a falta de mulher, a ausência da família, a semiescravidão, os assassinatos a sangue frio, a ausência do poder público, o exército boliviano, dentre outros, por idealismo patriótico? A verdade é que a “revolução” faltou-lhes ao encontro. A cidadania brasileira não lhes trouxe benefício algum. Nem antes e nem depois da Revolução. Mas a história oficial insiste em dizer que:

Bendita a história do povo heroico [...] Abençoados corações que souberam amar o Brasil [...] Gloriosa rude gente, que sem saber explicar o que seja patriotismo mas, sentindo dentro do peito, com seu sangue generoso, sem saber ler, escreveu um evangelho de amor pelo Brasil! (RIBEIRO, 2008, p. 171).

É provável que o coração patriótico dos seringalistas batesse

conforme a quantidade de dinheiro que eles ganhavam com a comercialização da borracha. Alfredo Cabral (1984, p. 53) conta que uma das formas com as quais Plácido de Castro utilizou para convencer os “patriotas” a aderirem à Revolução foi “dando patente de capitão para os donos de seringal que conduzissem pelo menos vinte homens”. O fato de defenderem suas terras contra a soberania boliviana não significava sentimento de pertencimento ao Brasil, muito menos ao Acre. Era quase impossível ter algum sentimento de apego àquele “inferno verde”, por isso que se diz que “todo o Acre passou a ser um acampamento” (BASTOS apud COSTA, 2005, p. 29).

Durante a chamada “primeira insurreição acriana”, o patriotismo foi utilizado como retórica para justificar a contestação da soberania boliviana no Acre. O servidor público José Carvalho, secretário do superintendente do município amazonense Floriano Peixoto, foi quem liderou o movimento. Isso aconteceu em fins de abril de 1899 quando, em nome do povo, José Carvalho, intimou a delegação boliviana a se retirar daquelas plagas. A decisão não foi um ato impensado. Na casa do seringalista Joaquim Victor, local “onde nasceu a ideia de expulsar o delegado boliviano e a respectiva delegacia” (CABRAL, 1986, p. 33),

~ 107 ~

“reuniam-se de preferência os conspiradores para combinar um plano seguro de rebelião” (COSTA, 2005, p.115). Nesse local,

pesavam-se ainda os prós e os contras da atitude a assumir, não só de rebelião contra a Bolívia, também contra o Governo Federal. Esse aspecto da questão apresentava-se como o mais sério. E uma pergunta surgia: como o governo brasileiro receberia a atitude dos acreanos, de hostilidade à Bolívia, ele que os abandonara reconhecendo os direitos bolivianos sobre o território? (idem, ibidem, p. 116, grifo nosso).

Como o ato de José Carvalho era contrário aos acordos

internacionais firmados pelo Brasil com a vizinha Bolívia, todos os envolvidos estavam sujeitos aos rigores da legislação em vigor. Sendo assim, era preciso tornar aquele movimento admissível perante o Itamarati e a opinião pública nacional. Uma causa nobre como o da defesa da “pátria” serviu perfeitamente àquela ocasião, pois interditou outros motivos como o da tentativa de preservar a propriedade privada dos brasileiros e manter a cobrança de impostos feitas em Manaus.

Por mim o digo: jamais senti profundas sensações e nem sei se os destinos me proporcionarão ocasião de outra vez experimentar, ou seja, o sentimento do dever de cidadãos reclamado pelos sagrados interesses da Pátria [...] Não tememos as responsabilidades que nos possam advir... porque a fazemos na fé de patriotas [...] e com todo ardor do nosso patriotismo” (CARVALHO, 2002, p. 24 e 40).

O senhor José Carvalho era advogado formado em

Pernambuco, estado considerado um dos insurrecionais do país. Além do mais, era “bisneto de Bárbara Alencar, a heroína da revolução pernambucana de 1817” (TOCANTINS, 2001, p. 239). Obviamente, Carvalho tinha uma base filosófica liberal, pois os iluministas eram estudados nos cursos de Direito.

~ 108 ~

A Era das Revoluções (1789-1848) havia espalhado a ilustração

para a maioria das academias ocidentais. Apesar de o individualismo ser o comportamento mais habitual, durante as revoluções liberais, o discurso patriótico se tornou uma retórica das elites urbanas que procurava, através dele, justificar as guerras em defesa da expansão do capital nacional dos homens de posse. No período liberal, o patriotismo ainda não estava ligado à ideia de nação, e sim ao de país ou ao do lugar ou região de nascimento.

A utilização dos vocábulos “nós” e “povo” por parte dos liberais do século XVIII não significava a existência de uma identificação coletiva ou comunidade já formada. Eram como efeitos de sentido que simulava ser de “todos” o que, na prática, era apenas de alguns grupos de interesse. Por essa época, era comum políticos e intelectuais falarem em nome do povo como se fossem porta-vozes dele. Por exemplo, na primeira Constituição Federal norte-americana temos o seguinte enunciado inaugural: “Nós, o povo dos Estados Unidos”. Ora, que povo era aquele do discurso? Os índios? Os negros? Os imigrantes? Os analfabetos? Certamente, que não.

O advogado José Carvalho e tantos outros letrados ligados à Questão do Acre souberam manipular os signos liberais em favor da causa defendida. Eram ecos de uma memória discursiva europeia oitocentista liberal que chegava ao Brasil tardiamente com a proclamação da república em fins do século XIX. Constatemos isso, por exemplo, em um trecho do discurso de Carvalho quando da intimação do cônsul boliviano: “Venho em nome do povo deste rio e em nome do povo brasileiro, intimar V. Exc.° para abandonar este lugar, porque não toleramos mais o governo boliviano que V. Exc.º Representa!” (CARVALHO, 2002, p. 28, grifo nosso).

Em outro momento, assevera que “nós aqui defendemos a honra da pátria arrancando do domínio estrangeiro o Acre que é nosso, que nos pertence, custe, embora, o sacrifício de nossa vida!” (CARVALHO, 2002, p. 34). Que “povo” era esse do discurso de José Carvalho? A sociedade gomífera era rigidamente verticalizada, o seringueiro, por exemplo, não tinha autonomia para decidir nada. Que patriotismo era esse? Tal sentimento é característico de pessoas

~ 109 ~

letradas e politizadas da zona urbana e não de analfabetos isolados uns dos outros no interior da floresta. E foram esse povo e esse patriotismo imaginários que embasam o discurso identitário acriano.

O espanhol Luiz Galvez, proclamador do Estado Independente do Acre (1899), também fez uso dos signos liberais, embora de forma mais cômica. Isso porque agora se tratava de um espanhol defendendo a pátria brasileira, país a que tinha imigrado há pouco tempo. Tão hilária foi a chegada dele em Antimari que Leandro Tocantins (2001, p. 324) descreve que “a população tomou Galvez por boliviano”. Abaixo o Brasão de Armas do Estado Independente com fortes traços liberais.

Imagem 7 – Brasão de Armas do Estado Independente do Acre

Fonte: AGUIAR, 2000, p.41.

É sabido que o discurso liberal de Galvez era mais refinado do

que o de José Carvalho. Não é para menos, o primeiro foi estudante de Direito na conceituada Universidade de Madrid e falava fluentemente cinco idiomas, conforme afirma Osório Figueiredo (2007, p. 30). Como diplomata, respirou os “ares” republicanos de vários países, coisa que o segundo não teve a oportunidade de fazer. É possível que a escolha do 14 de julho para a proclamação do Estado Independente do Acre não tenha sido aleatória. Figueiredo (2007, p. 31) explica que: “a data fora escolhida de propósito, em comemoração à queda da bastilha, acontecida há 110 anos”.

~ 110 ~

Mesmo que a hipótese dessa interdiscursividade com a Revolução

Francesa venha a ser verdadeira, isso não significa que “todos” essa noção era compartilhada por todos. Talvez apenas Galvez e, no máximo, alguns poucos letrados liberais. Porém, maldosamente alguns historiadores manipulam a história para inventar uma suposta consciência “revolucionária”, endossando, com isso, o suposto patriotismo acriano. Veja um exemplo disso:

Ao se inspirar no movimento jacobino francês, os brasileiros do Acre deixavam claro que queriam ir muito mais longe do que a própria república oligárquica brasileira [...] a intenção dos fundadores do Acre era estabelecer um governo republicano, democrático e libertário [...] os revolucionários sempre fizeram questão de deixar claro que almejavam, sobretudo, o direito de ser brasileiros [...] essa é a história de lutas pelo direito à cidadania, que se faz necessário conhecer e da qual se deve ter orgulho”. (NEVES, Marcos Vinicius. “Acreanos e Jacobinos”. In: Galvez e a República do Acre: revista do 1° Centenário do Estado Independente do Acre, 1999, p. 12, grifo nosso).

Galvez não só se aventurou em entrar na ordem do discurso patriótico como também foi um dos seus principais interlocutores perante os acrianos. “Sua participação, embora alguns a tenham como quixotesca, despertou o sentimento patriótico de toda aquela gente, gerando o espírito de civismo acreano” (FIGUEIREDO, 2007, p. 30). Logo abaixo, leia um trecho do discurso feito por Galvez no momento da proclamação do Estado Independente do Acre em 1899:

Aceitamos leis, pagamos tributos e impostos e obedecemos, passivamente, todos os julgamentos de alta e baixa justiça praticados pelo Delegado nacional da Bolívia, na esperança de que nossa idolatrada Pátria e gloriosa e humanitária Nação brasileira acudisse em nosso socorro e atendesse nossos justíssimos pedidos. O governo do Brasil não respondeu aos nossos patrióticos alarmes; a Pátria, a nossa estremecida mãe [...] É justo, pois que cidadãos livres,

~ 111 ~

conhecedores dos seus direitos civis e políticos, não se conformem com estigma de párias criado pelo governo de sua pátria, nem podem, de forma alguma, continuar sendo escravos de uma outra nação – a Bolívia. Impõe-se a independência destes territórios [...] é necessário levantar nossa honra pela Bolívia depreciada [...] se não aceitais a independência continuaremos a sofrer humilhações que nos impõem uma nação estrangeira; se, pelo contrário, aceitares a independência constituiremos o Estado Independente do Acre, forte e digno pelo patriotismo de seus filhos. (Apud AGUIAR, 2000, p. 54-55, grifo nosso)

Devia ser patético ouvir o “dom-juan” (BARROS, 1993, p. 33)

expressando seus sentimentos de amor ao Brasil. Mas esse discurso foi “uma demagogia necessária para o gênero do papel que estava desempenhando” (TOCANTINS, 2001, p. 326). Afinal, “era o melhor caminho para exaltar o amor cívico, assim como persistir no estilo derramado de patriotismo [...] tinha em mira comover os brios regionais dos que escutavam a oração” (idem, ibidem, p. 327). Mas ele, assim “como muitos outros estrangeiros, atraídos pela aventura e por um possível enriquecimento fácil, vai participar na polêmica Brasil-Bolívia” (LIMA, 1981, p. 104). Não por menos que Barros (1993, p. 38) o chama de “demagogo e figurante, escolhido a dedo”.

Bizarra aquela República? Sem dúvida, mas os proprietários mais abastados e esclarecidos sabiam que, sem a Ordem, sem que aquela vasta região, com seus milhares de habitantes fosse política e juridicamente organizada, mais difícil se tornaria a acumulação e circulação de capital. Desde que Galvez organizasse o recém criado Estado, de modo a não obstar o fluir da riqueza advinda da exploração da força de trabalho nos seringais, eles, os patrões, também poderiam tolerar as bizarrices humanitárias de seu presidente [...] Convivendo no reino do caos, grande número de patrões sabiam o quanto o estado de anomia representava um entrave à acumulação, uma acumulação pseudofáustica diríamos nós. (CALIXTO, 2003, p. 158, grifo nosso).

~ 112 ~

O coronel Plácido de Castro também afirmou que lutava “pela integridade da pátria” (Apud CASTRO, 2005, p. 121) e respeitava “todas as disposições do Governo de nossa Pátria” (idem, ibidem, p. 139). Com isso, subentende-se que a concepção de “pátria” empregada por ele estava relacionada a de Estado (povo, território e governo). Ou seja, não era o Brasil enquanto país e sim o Brasil enquanto República Federativa. É bom que se diga que muitas vozes foram sufocadas durante a criação do arquivo discursivo do patriotismo acriano. Afinal, o discurso do amor à pátria não foi aceito passivamente, como se pode observar logo abaixo.

O fundo desse quadro triste em que os traidores da pátria transformaram a esplendorosa região do Acre [...] julgaram encontrar assaz ocasião para, patrioticamente, roubarem o suor do incauto habitante do Acre [...] essa rebelião [...] não subsistirá jamais porque ali o que impera é a ambição desordenada, porque dali fugiram os sentimentos generosos, porque ali o mal tem guarida e a traição subsiste! [...] empregara a chantagem e a chantagem reuniu adeptos; mentiram e a mentira congregou entorno de uma bandeira despedaçada os que deixaram se amasiar pelo canto da sereia, belo mais traidor, harmonioso, mas desgraçado [...] Para roubar, vestiram mendaz capa de patriotismo, cobriram os rostos com a máscara de fingido amor à pátria. (Jornal Pátria, Manaus, 6 de julho de 1899, n° 205, p. 1, grifo nosso).

Em suma, o discurso fundador do patriotismo acriano se tornou

uma lei discursiva durante o processo de anexação do Acre. Ele tinha três funções: a) enobrecer a Questão do Acre; b) comover a opinião pública em favor da causa acriana; c) justificar os “revolucionários” perante a Justiça, uma vez que desobedeciam e incitavam a desobediência de acordos internacionais firmados pelo Brasil. A suposta “luta patriótica dos seringueiros” (COSTA, 2005, p. 179) dissimula o “sangue” e o “lodo” (Cf. CARNEIRO, 2015a) constituintes da formação histórica do Acre.

~ 113 ~

Foi o acaso que as insidiosas forças do mal [...] pretenderam cavar um abismo de ódio entre os dois estados sul-americanos [Brasil e Bolívia]. E instilaram, na alma do valoroso povo andino, a ideia de que a pátria brasileira lhe lançaram um cartel de desafio, movido pelo torpe desejo de conquista-lhe um pedaço de território. “Quando, na realidade, muito outras eram as causas profundas, geradoras do sangrento entrechoque que atirou, contra os soldados da Bolívia, o patriotismo incandescente dos guerrilheiros acreanos”. (LIMA, 1998, p. 19)

Tão logo foi anexado ao Brasil pelo Tratado de Petrópolis (1903),

o Acre foi “rebaixado” à condição de Território administrado diretamente pela União (1994). Por conta disso, como bem explica Carneiro (2015c) em A epopeia do Acre e a manipulação da História, o discurso patriótico foi renovado pelos líderes do Movimento Autonomista acriano. Por meio do discurso emotivo, queriam convencer à União da injustiça que era deixar os únicos “brasileiros por opção” sem eleger os seus representantes políticos nas prefeituras, no Estado e no Congresso Nacional.

3.1.2 O patriotismo no manifesto dos chefes da Revolução Acreana (1900)

“Quem se não sacrifica pela Pátria é incapacíssimo de possuir um sentimento bom [...] A razão do patriótico pleito está conosco e por ele trabalharemos com energia e convicção”. (BRAGA, 2002, p. 25 e 31).

“Uma terra para ganhar dinheiro e enricar não pode inspirar compaixão [...] Ninguém vem para a Amazônia com esperança de ficar. Ganhar dinheiro não combina com amor a terra”. (BENCHIMOL, 1977, p. 221).

Neste tópico se fará um exercício de análise do discurso a partir

do Manifesto dos Chefes da Revolução Acreana, escrito em fevereiro

~ 114 ~

de 1900 e endereçado “ao venerado Presidente da República Brasileira, ao povo brasileiro e às praças do comércio de Manaus e do Pará”. O documento foi assinado por dezesseis ricos seringalistas e homens de negócios da região. Nenhum deles havia endossado a expulsão da delegação boliviana do Acre liderada por José Carvalho em maio de 1899, já que as mais de sessenta rubricas existentes nessa intimação não são compatíveis com as dezesseis do Manifesto. Isso pode ser um indício da falta de unidade entre os “revolucionários”.

O Manifesto tem início com o seguinte enunciado: “Os brasileiros livres nunca serão bolivianos. Independência ou morte! Viva o Estado Independente do Acre!”. Como se pode perceber, os ideais liberais claramente atravessam o enunciado. Três perguntas ingênuas: para quem seria a liberdade? De quem seria a independência? Para quem seria a morte?

Ora, “Independência ou morte!” é o que dizem ter gritado D. Pedro I ao proclamar a independência do Brasil. Ao reproduzir tal enunciado, é possível que os “chefes da revolução” quisessem criar uma relação entre a proclamação da independência do Brasil com a proclamação do Estado Independente do Acre. Talvez inscrever o último evento na memória discursiva do primeiro. O certo é que eles deixam bem claro que “os acreanos querem ser brasileiros” (BRAGA, 2002, p. 24).

O Estado Independente do Acre foi significado como “uma rebelião sagrada, que só visava à defesa da Pátria Brasileira” (BRAGA, 2002, p. 17). A principal justificativa era que “tudo se fez por amor da pátria” (idem, p. 14). No decorrer do texto, as palavras pátria e patriotismo aparecem cerca de vinte e sete vezes. Eles diziam “advogar a causa do Brasil” (idem, p. 20) e queriam “defender a integridade da pátria” (idem, p. 14).

Não podia admitir que o Brasil republicano

abandonasse sem cerimônia a área mais produtiva da

federação [...] prepararam aberta e francamente a

revolução contra as prepotências da Bolívia, a fim de

reentregarem (sic) a mãe pátria a pérola que ela

queria soterrar [...] O nosso patriotismo segredava-

~ 115 ~

nos que expulsássemos esses algozes. (BRAGA,

2002, p. 13 e 22).

O Manifesto enfatizava o fato de o Estado Independente ser o resultado do “levantamento patriótico do povo acreano” (idem, p. 11, grifo nosso). Obviamente que, nesse contexto, a ideia de “povo acreano” não passa de um mero efeito de sentido, pois falavam em nome da “soberana vontade popular” (BRAGA, 2002, p. 20), pois não houve qualquer consulta popular. Galvez nunca convocou uma única assembleia de seringueiros para deliberarem sobre o teor das dezenas de decretos que expedia como presidente da República do Acre.

Os “revolucionários” queriam mesmo era mostrar à opinião pública uma falsa unidade em torno do governo de Galvez, além, é claro, de pretender socializar as possíveis punições para aquele ato culpável tanto pelas leis bolivianas quanto pelas brasileiras. Como diria Joel Silveira (Apud ALENCAR, 2005, p. 34), “no momento em que veio a valoração da borracha, surgiram também, como por encanto, os brios cívicos, as razões da pátria invadida”.

O discurso patriótico foi acompanhado da “demonização” boliviana. Como diziam que lutavam porque gostavam de ser brasileiros, tiveram que montar um discurso xenofóbico com relação aos bolivianos. Assim se referiam aos bolivianos: “abutres” (BRAGA, 2002, p. 25), “algozes” (idem, p. 22), “carrascos” (ibidem, p. 16), “usurpadores” (idem, p. 24), “cobiçosos” (idem, p. 13), “desleais” (idem, p. 12). Diziam que os bolivianos tinham “propósitos criminosos” (idem, p. 11), que exerciam “domínio ilegal e despótico” (idem, p. 11), que haviam montado uma “alfândega ilegalíssima” (idem, p. 22) e faziam “exigências inqualificáveis” (idem, p. 26).

Por que o Manifesto foi escrito? Essa pergunta pode ser respondida por meio da análise do contexto histórico no qual ele foi escrito. Ele foi redigido em fevereiro de 1900, época em que o Estado Independente do Acre experimentava a (des)ordem do retorno de Galvez ao governo. Ele havia sido deposto na virada do ano de 1899, pelo influente seringalista Souza Braga, dono dos seringais Benfica, Riozinho e Niterói. O seringalista, assim como tantos outros, havia ficado insatisfeito com a proibição da exportação da borracha editada

~ 116 ~

por Galvez, que assim o fez como represália às Casas Exportadoras de Manaus e Belém que se negavam a reconhecer os atos fiscais do governo provisório.

Muitos dos seringalistas não aceitaram sacrificar seus negócios em prol de um patriotismo que transformaria as pélas de borracha em trincheiras. “Naquela terra, tudo girava em torno de interesses da produção e comercialização do látex” (CALIXTO, 2003, p. 167), e como o Estado Independente havia ferido tais interesses, aqueles que patrioticamente apoiaram Galvez, imediatamente passaram a criticá-lo. Foi então que 28 de dezembro de 1899, “apoiado por um pequeno grupo de descontentes” (AGUIAR, 2000, p. 88), Souza Braga é aclamado presidente do Estado Livre do Acre. As três primeiras medidas do novo governo foram: o banimento de Galvez; o restabelecimento da ordem comercial; e tornar livres os rios daquela região para o transporte da goma elástica.

O senhor Braga passou a afirmar que “entre o Governo de Paravicini e o de Galvez não há grande diferença, assemelha-se na forma e no fundo, deprimir o caráter nacional brasileiro e arruinar a nossa fortuna” (Apud TOCANTINS, 2001, p. 389, grifo nosso). O interessante é que Souza Braga também fez uso do discurso patriótico para justificar a deposição de Galvez e também o “golpe” como sendo um “movimento revolucionário” (idem, p. 391).

Foi por volta dessa mesma época que uma comitiva andina chegou a Puerto Alonso para fazer valer os impostos bolivianos na região. Ladislau Ibarra, o chefe da expedição, decretou estado de sítio e suspendeu todas as garantias constitucionais da população local. Com isso, a região virou uma “torre de babel”. Ninguém sabia quem realmente mandava ali, e a quem pertencia de direito os patrióticos impostos. Como a situação se tornou insustentável, Souza Braga foi forçado a renunciar o governo em prol do retorno de Galvez, ocorrido em 30 de janeiro de 1900. Araújo Lima (1998, p. 52) comenta o ocorrido:

Irrisória a pérfida reparação. Ela só se consumava porque o usurpador sabia que, àquelas horas, uma flotilha brasileira, sob o comando do capitão-tenente

~ 117 ~

Raimundo Ferreira, subia o Acre, com a missão de depor e prender o aventureiro atraiçoado.

As principais autoridades do país e a opinião pública de modo

geral deviam estar perplexas com as informações recebidas daquelas paragens. Mal souberam do Estado Independente do Acre, já se escutava falar sobre a deposição de Galvez e da fundação do Estado Livre do Acre pelo seringalista Souza Braga. Quase concomitante a essas informações, espalhou-se a notícia de que Galvez havia retornado à presidência do Estado Independente do Acre, e desta feita, com o apoio de seu algoz, Souza Braga. Tudo estava muito confuso.

Os “chefes da revolução” temiam que a tumultuada conjuntura política do Estado Independente prejudicasse a liberação dos créditos advindos das Praças de Manaus e Belém. Sem eles, o sistema de aviamento estaria fadado ao fracasso, e com ela a produção da borracha. E foi exatamente esse temor que motivou-os a redigir o Manifesto. Era preciso esclarecer aqueles acontecimentos, mostrar como ficou “garantidíssima a paz em todo o território” (BRAGA, 2002, p. 16), enumerar o progresso ocorrido naquele lugar com advento do Estado Independente (idem, p. 15), assegurar que toda goma elástica baixaria aos portos (idem, p. 26) e “demonstrar ao público as intenções patrióticas e humanitárias [dos revolucionários]” (idem, p. 16).

Peça notável, lida, em março de 1900, na capital do Pará, pelo Sr. Rodrigo de Carvalho, um dos chefes acreanos de maior vulto, diante de uma vasta assembléia que se reuniu no edifício da Associação Comercial [...] o manifesto acreano repercutira em todo o país, despertando as simpatias nacionais para o grande pleito. (COSTA, 2005, p. 123-124).

No Manifesto, todo o jogo de interesse econômico pela região fora silenciado. “Nada pretendemos, provento algum alvejamos, posições de natureza alguma almejamos” diziam (BRAGA, 2002, p. 18). “Da revolução pretendemos unicamente a glória de trabalhar pela reivindicação dos seculares direitos brasileiros à região por nós arroteada e engrandecida. Nada mais, nada menos (idem, ibidem, p. 30 e 18). Mas eles queriam mesmo eram “rápidos lucros, de forma que em pouco

~ 118 ~

tempo pudessem voltar a sua terra de origem em melhores condições de vida” (CALIXTO, 2003, p. 43). Tinham “a preocupação exclusiva de enriquecer” (CUNHA, 2000, p. 168). É impossível negar, a não ser por meio do discurso fundador, que “a conquista da região efetuou-se por motivos econômicos” (REIS, 1982, p. 17). Negar isso é o mesmo que dizer que os bandeirantes do século XVI “dilataram” o território brasileiro por “amor à pátria”.

3.2 O HEROÍSMO ACRIANO

“Em todas as épocas da história do mundo, encontraremos o grande homem como o salvador indispensável do seu tempo. Como disse, a História do mundo é a biografia dos grandes homens [...] o culto aos heróis há de perdurar para sempre”. (CARLYLE, s/d, 23).

“O que estamos fazendo aqui é resgatando a saga de milhares de pessoas que vieram de várias partes do mundo para construir uma terra nova. Eles são heróis. E não é todo povo que tem o privilégio de ter heróis. Nós temos muitos”. (Jorge Viana, Apud: Jornal Página 20, Rio Branco, 14 de junho de 2002, p. 12).

Iniciaremos esse tópico falando um pouco do heroísmo na cultura ocidental. No decorrer da história, a concepção de heroísmo ganhou várias conotações, de modo que é possível identificar vários estereótipos de herói. Geralmente as qualidades e desventuras que assumem são marcadas pelas aspirações políticas dos grupos sociais dominantes, que traçam o perfil dos heróis para que o povo se enxergue neles.

O antropólogo e linguista Joseph Campbell em O herói de mil faces (1988), no capítulo Transformações do herói, faz um minucioso estudo sobre esse personagem. E descobre que, apesar das “mil faces”, o herói assume traços semelhantes nas mais diversas culturas. Ele tem “jornadas” quase idênticas, passa por rituais de separação, iniciação e de retorno. Uma possível explicação para tal analogia é que esse

~ 119 ~

fenômeno seja uma produção espontânea da psique humana que “se torna parte da vida cultural de um povo” (FEIJÓ, 1984, p. 20).

Além de Campbell, o herói também é estudado por Feijó (1984) e Carlyle (s/d). Enquanto o primeiro o estuda a partir da mitologia universal, os dois últimos preferem analisá-lo por meio de figuras reais e históricas. Campbel (1988) identifica seis tipos de heróis: o humano, o guerreiro, o amante, o tirano, o redentor e o santo. Mas certamente existem outros, a saber: o profeta (Maomé), o revolucionário (Che Guevara), o bandido (Robin Hood), o músico/roqueiro (Joh Lennon), o poeta (Dante), o presbítero (Lutero), o gênio (Rousseau), o político/estadista (Napoleão).

Quando se refere a uma pessoa, o status de herói é geralmente obtido postumamente. A heroificação é um processo e tem uma história marcada por interesses. Geralmente há três estágios: a) separação: eles saem do mundo dos mortais; b) iniciação: passa pela metamorfose simbólica; c) voltam para os mortais em forma glorificada. Portanto, até que se prove o contrário, ninguém nasce herói. Não há provas de uma suposta predestinação.

Sociologicamente falando, o herói sempre se torna um instrumento de manipulação e mobilização política, quer seja da classe dominante, quer seja das subalternas. A história oficial, no entanto, dificilmente consagra à imortalidade os heróis vinculados à luta dos pobres, quando aparece em algum monumento, uma figura anônima é que prevalece. Durante muitos anos, a História foi o lugar privilegiado do culto aos heróis. Thomas Carlyle (s/d), no século XIX, foi quem firmou as bases dessa prática discursiva. Ele pregava a necessidade do culto aos heróis para evitar a anarquia e a revolução. Assim concebida, a história seria a biografia dos grandes homens.

Carlyle defende um caráter divino nos heróis e que uma sociedade fundada em seu culto seria estável e respeitaria a hierarquia como coisa sagrada [...] cultivar o ensinamento dos feitos heroicos para a juventude respeitar a ordem e conservar a história sem mudanças. Ele chega a ser taxativo: o verdadeiro herói é filho da ordem; sua missão é garanti-la [...] o problema é que sua teoria

~ 120 ~

acabou impregnando todo um pensamento histórico (FEIJÓ, 1984, p. 34).

É bom que se diga que um comportamento pode ser considerado

heroico para um grupo social e repugnante para outro. Os heróis “podem ser produzidos e desfeitos, ao sabor de novos interesses ou paixões” (MICELI, 1994, p. 12). Eles são um resultado da imaginação humana. Apesar de poder assumir mil faces, somente a do guerreiro/militar será abordada aqui.

Na mitologia grega, o herói era considerado um semideus, uma vez que era fruto da união entre um ser humano e um deus. Ele herdava alguns dos poderes extraordinários dos deuses e a mortalidade dos homens. Aos heróis, a mitologia atribuía realizações grandiosas, impossíveis de serem realizadas por homens comuns. Geralmente essas realizações estavam relacionadas a muito derramamento de sangue. Entretanto, há sempre um discurso humanitário, civilizatório, patriótico e enobrecedor na narrativa da guerra. Nela o herói é sempre motivado por sentimentos nobres e altruístas, de modo que até a violência cometida por ele se torna legítima e aceitável.

Na retórica do hino acriano, por exemplo, diz-se que o combate fora feito “nobremente, com armas na mão”, ou seja, a macabra tarefa de derramar “sangue” tem o seu lado “digno” e “nobre”. Podemos perceber que até hoje a perspectiva bélica do herói permeia o imaginário ocidental. São nas guerras que os mais ilustres heróis civilizados são revelados. Eles chegam ao Olimpo por “salvarem” toda uma coletividade de cruéis inimigos, portanto, uma de suas especialidades é matar supostos adversários. A história oficial explica tudo pela quimera do idealismo, que a tudo beatifica, desde o egoísmo e interesses materiais dos financistas envolvidos, até o assassinato praticado pelos soldados. Como afirma Miceli (1994, p.78), “na guerra, os mais mesquinhos apetites humanos são expostos à consagração da história”.

~ 121 ~

3.2.1 “Imitemos o exemplo sem par”40

“O Acre possui uma história das mais importantes que se insere na história do Brasil [...] É uma história contada por Heróis e Heroísmo”. (BARBOSA, 1991, p. 31, grifo nosso).

“Aos heroicos e malogrados companheiros da primeira insurreição do Acre”. (CARVALHO, 2002, dedicatória).

Os fios do discurso que tecem o heroísmo imanente da identidade acriana são da mesma tessitura ou regularidade discursiva dos que beatificam as ações mortais dos heróis guerreiros da antiguidade. No tópico anterior, vimos que a motivação patriótica dos acrianos não constitui-se em fato. “Lutar para ser brasileiro” foi uma espécie de mantra empregado pela elite acriana a fim de justificar as atrocidades cometida por ela. Acaso massacraram indígenas por amor ao Brasil? Exploraram de forma predatória a seringueira por patriotismo? Praticaram corrupções no sistema de aviamento em defesa da nação?

Tudo isso não pode ser apaziguado pelo discurso do “amor à pátria”. Houve muito “sangue” e muito “lodo” praticado (Cf. CARNEIRO, 2015a). É preciso saber como tais fatos foram transfigurados em virtude e como esses personagens históricos viraram “semi-deuses”, arquétipos da identidade acriana. Acontece que as “virtudes heroicas” dos acrianos se manifestavam para realizar façanhas de natureza egoísta. “As populações extasiadas de ambição defendiam seu patrimônio” (MEIRA, 1974, p.48). Como na Antiguidade Clássica, o heroísmo ficou do lado dos vencedores. Para os bolivianos, a ação heroica dos acrianos não passou de pilhagem imperialista; para os indígenas, representou o genocídio; para a natureza, a depredação.

A verdade era que contra os bolivianos não era preciso heroísmo algum, pois eram como se fossem um cão morto. A Bolívia era um país arrasado que havia sofrido inúmeras calamidades. Perdeu o litoral para o Chile (1879-1882), enfrentou uma das maiores secas de sua história em

40 Trecho do Hino Acriano.

~ 122 ~

1876 a 1879, quando ficou “completamente sem alimentos” (CHIAVENATTO, 1981, p. 42). Enfrentou um terremoto em 1877, “seguido de uma peste, que provou milhares de vítimas” (idem, ibidem, p. 42). Seu principal produto de exportação na época, a prata, foi acometido de uma queda de preços sem igual nos anos 1871 e 1895. Nessas condições, o exército boliviano mais parecia “um amontoado de famintos, salvos entre os que escapavam da peste” (idem, p. 46) tinha que percorrer “uma caminhada de mais de 2 mil Km pela selva” (idem, p.191) até chegar ao Acre.

A situação boliviana pode ser resumida da seguinte forma: “tem-se a impressão de uma Bolívia incapaz até mesmo de se defender das investidas de qualquer uma das mais frágeis nações do contexto latino-americano” (LIMA, 1981, p. 8). Era um “Estado fraco” (ibidem), “desorganizado” (ibidem), “sem unidade” (ibidem), de “economia de subsistência” (ibidem), com um “exército fraco e desorganizado” (ibidem, p. 23).

Foi justamente para sair da crise que o presidente Pando almejou incluir a comercialização da borracha à economia nacional boliviana. Ele sabia que se houvesse a menor centelha de resistência, seria impossível a manutenção da soberania naquela região. Por isso, valeu-se de acordos internacionais, em vez da força militar. Os bolivianos naquela região eram como um Davi na frente de Golias. Não havia um equilíbrio de forças, a quantidade de brasileiros era maior, bem como a quantidade de armas à disposição deles. Portanto, a vitória contra os bolivianos não significou nenhum ato extraordinário à altura da tipologia do herói.

Segundo a professora Laélia Rodrigues (SILVA, 1996, p. 90), a concepção heroica do povo acriano tomou forma com a redação do hino escrito por Francisco Mangabeira em outubro de 1903, no seringal Capatará (AC). O hino é considerado o “poema inaugural” da temática “conquista” na literatura acriana (idem, 2002, p.30), pois foi o “primeiro poema, cujo tema é a Revolução Acreana” (idem, 1996, p. 90) e “a primeira tentativa de representação literária para dizer o que pode ser o território e seu povo” (idem).

Invencível e grandes na guerra/ Imitemos o exemplo sem par [...] Fulge um astro na nossa bandeira/ Que foi

~ 123 ~

tinto no sangue de heróis [...] Possuímos um bem conquistado/ Nobremente com armas na mão/ Se o ofenderem, de cada soldado/ Surgirá de repente um leão/ Liberdade é o querido tesouro [...] (Francisco

Mangabeira. Hino Acriano, grifo nosso).

O acriano imaginado por Mangabeira voltava “triunfante da luta”. Essa imagem apoteótica é a marca do heroísmo acriano. A vitória militar favoreceu a ideia de uma identidade constituinte heroica. O autor do hino era um médico à disposição das tropas acrianas, portanto, ao atribuir traços heroicos ao acriano, fundava também um ethos de si próprio. O mesmo fizera José Carvalho (2002, p. 48) quando afirmava: “há um outro herói que jamais deve ser esquecido – é o povo do Acre”. Para o Brasil, o povo era significado como patriótico e heroico a fim de obter o apoio para a nacionalização do Acre e sua elevação à categoria de Estado. Para o povo acriano propriamente dito, quem assumia o papel de herói e patriota eram os membros da elite, que manipulavam esse discurso para obter obediência e respeito (Cf. CARNEIRO, 2015c).

Nessa ordem do discurso, o coronel Plácido de Castro se tornou o arquétipo do heroísmo acriano. Ele ficou conhecido como “o libertador do Acre”41. Mas esse “libertador” não foi o indivíduo histórico homônimo que participou da “revolta da degola” no Rio Grande do Sul, “a mais bárbara das revoluções latino-americanas” (MOCELIN, 1999, p.7). Nem aquele que migrou para a Amazônia na virada para o século XX em busca de riqueza fácil na “economia do roubo” (BENCHIMOL, 1977, p. 157). Nem aquele que assassinava os próprios brasileiros que se “rebelavam” ao seu comando. Nem o grande seringalista latifundiário que tirava proveito da servidão de seus compatriotas. Nem aquele que era odiado por vários “brasileiros do Acre”. Nem aquele que à beira da morte amaldiçoou o Acre, negando-lhe o sepultamento de seu próprio corpo.

O herói “Plácido de Castro” é uma unidade discursiva, um sítio de significância que agrupa vários discursos e formam uma imagem

41 Foi dessa forma que Plácido de Castro foi qualificado ao ser inscrito “no Livro dos heróis da Pátria, que se encontra no Panteão da Liberdade e da Democracia” (1° Parágrafo da Lei Federal N° 10.440, de 02 de maio de 2002).

~ 124 ~

ideal e desejada daquele homem histórico. O Plácido de Castro do discurso é uma paisagem enunciativa que expressa a vontade de potência de seus interlocutores. Aquilo que seria impossível ao Plácido de Castro histórico fazer, o imaginado realizou. Nenhuma concepção sociológica admitiria que um indivíduo fosse responsável pela soberania brasileira no Acre e pela fundação de “um povo e sua identidade: o Acre e os acreanos”42.

Mas esse caudilho destemido, que escreveu com sua espada a epopéia da reação antiimperialista contra o Bolivian Syndicate, é acima de tudo um patriota [...] a atitude de rebeldia seria a negação de todo o glorioso feito, que custara o preço de tantas vidas de brasileiros. (LIMA, 1998, p. 196).

Voltemos à expressão “libertador do Acre” e o confrontemos.

Que libertação é essa protagonizada por Plácido de Castro? Se levarmos em conta que todos os Tratados Internacionais – da Bula Papal Intercoetera (1493) ao Tratado de Ayacucho (1867) – diziam que as terras que os migrantes brasileiros chamaram de “Acre” não pertenciam ao Brasil. Como pôde trazer liberdade ao Acre alienando-o dos seus legítimos donos?43

Qual Acre teria sido liberto por Plácido de Castro? O Alto-Purus ou o Alto-Juruá? Teriam sido as terras banhadas pelo rio Acre? Ou os mais de 152 mil KM2 que compreendem o Acre atual? Se levarmos em consideração que a “Revolução” liderada por ele teve uma abrangência territorial bem limitada, o Vale do Rio Acre, como pôde ter sido responsabilizado por outras regiões do atual Acre que nem sequer pisou? O Vale do Juruá, por exemplo, não conheceu a “revolução” de Plácido de Castro. Como pode ter sido liberto por ele?

Teria Plácido de Castro libertado o Vale do Rio Acre? Talvez o mais correto seria dizer que suas tropas e não somente ele obtiveram importantes vitórias sobre os bolivianos nessa região. Tais vitórias não

42 Trecho do convite para a programação da comemoração do centenário da morte de Plácido de Castro assinado pelo Governo do Estado do Acre em 2008. 43 Pelo uti possidetis o território seria indígena, a não ser que o herói esteja incluído no rol daqueles que não consideravam os nativos “gente”.

~ 125 ~

foram definitivas, pois o presidente da Bolívia havia organizado uma operação militar de “libertação” e como o evento não se concretizou totalmente, o resultado dela só cabe às especulações. Além do mais, aquelas terras já haviam sido arrendadas para o Bolivian Syndicate44, contra o qual Plácido de Castro não teria a mínima chance45. Sem dizer que o próprio Peru ainda tinha entrado em cena reivindicando aquele território também.

Historicamente, o gaúcho Plácido de Castro não anexou um palmo de terra ao Brasil. O que se fez sob a liderança dele foi derramar muito “sangue” no altar de mamom e proclamar o Acre um país independente tanto do Brasil quanto da Bolívia. A anexação do Acre deveu-se muito mais à atuação do Itamarati do que das tropas acrianas propriamente ditas. Como saudava Olavo Bilac (apud TAVARES, 2001, p. 151): “Paranhos do Rio Branco! Abençoado seja o teu cérebro, porque a tua inteligência restituiu ao Brasil os brasileiros que estavam sem pátria!”.

Além do mais, por que a “glória” deve ser dada apenas a Plácido de Castro, já que os governadores do Amazonas eram quem de fato financiavam e incentivavam a Revolução? Por que a glória não é estendida, em igual proporção, a José de Carvalho, a Galvez, aos membros da Expedição dos Poetas, aos líderes da “revolução” do Juruá, ou a todos os seringueiros que fizeram a “revolução”?

O conteúdo heroico da identidade de Plácido de Castro não é natural. É possível que do ponto de vista indígena, ele tenha sido um assassino; do ponto de vista boliviano, um oportunista, “canalha”, “covarde” (Cf. POSNANSKY, 1904, p. 11), líder de um grupo de “capangas” e “mercenários” (Cf. RIBERA, 1997, p. 69); do ponto de

44 A assinatura do contrato ocorreu no dia 14 de julho de 1901 e aprovado no Congresso Nacional Boliviano em 17 de dezembro 1901 (cf. TOCANTINS, 2001, V. II, p. 45). 45 Não havia dúvidas de que o negócio estava protegido por influentes forças políticas em Washington e o Governo Norte-Americano cedera, embora de modo velado, como sempre acontece em tais casos, em dar cobertura ao empreendimento cuja lista de incorporadores incluía os nomes de maior evidência nas finanças do país. (TOCANTINS, 2001, V.II, p. 65).

~ 126 ~

vista de alguns membros da milícia acriana, um ditador; do ponto de vista de políticos locais, um ambicioso por poder; e do ponto de vista de muitos seringueiros, mais um membro da elite político-econômica local que negava a exploração no seringal. (Cf. BENCHIMOL, 1977, p. 394).

Sou da opinião de que o modelo militar de heroísmo não deve ser incentivado. O estereótipo de herói não devia ser aquele que assassina o oponente para lograr uma vitória. O Acre não deve ser visto como um “povo de bravos” só porque “empunhara armas” para defender “com coragem o seu solo” (Cf. MARTINS, 1978, p. 55). Afinal, o herói deve ser aquele que resolve conflitos respeitando a vida, e não cometendo assassinatos. Além do mais, a parcela de “brasileiros do Acre” que realmente empunhou armas contra a Bolívia foi mínima. Comparada com a população local da época, talvez menos de 10% se envolveram diretamente no conflito.

Quando olhamos a imagem do acriano na literatura, nos jornais da época e na historiografia, o heroísmo e o patriotismo aparecem como regularidades enunciativas. Atualmente, os acrianos tomam consciência dessa identidade quando ficam expostos a políticas simbólicas governamentais. Quando o acriano contempla sua face na história e na literatura, ele acaba por se convencer de que ele é aquilo que os livros dizem dele. Uma sensação megalomaníaca é criada baseada em uma grandeza fantasiosa de si. Essa sensação produz pacifismo e otimismo social, e é exatamente por isso que os governos do Acre se preocupam tanto em foment-a-lo.

3.3 AS VOZES CONSTITUINTES DO DISCURSO FUNDADOR DO ACRE(ANO)

“Nem índios, nem europeus, somos produzidos por uma fala que não tem um lugar, mas muitos. E muitos aqui é igual a nenhum. Desse lugar vazio fazemos falar as outras vozes que nos dão uma identidade. As vozes que nos definem”. (ORLANDI, 1990, p. 14).

~ 127 ~

“Todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si [...]Assim, deliberadamente ou não, o locutor efetua em seu discurso uma apresentação de si”. (AMOSSY, 2005, p. 9).

O arquivo do discurso fundador do Acre(ano) é formado por um

conjunto de discursos preservados em documentos que tematizaram a origem do Acre(ano). Quais vozes constituíram-no? Certamente não foi as do seringueiro. A ele era negado o poder da palavra. Não tinha voz nem para contestar a soma dos valores que devia ao barracão, quanto mais seu discurso circulado com status de verdade. Os seringalistas comuns, maioria analfabetos (REIS, 1953, p. 114), atarefados como estavam com a empresa extrativa, também não formavam opinião.

Então, quais sujeitos, posições enunciativas, significaram o Acre(ano)? A pergunta não é qual o indivíduo fundador do dizer, mas qual o lugar enunciativo que se deve ocupar para que se tornar sujeito do discurso que “inventou” o Acre(ano). Para efeito desse estudo, chamar-se-ão “promotores da revolução acreana” os formadores de opiniões que estavam diretamente ligados à Questão Acreana. Eles foram os inauguradores do discurso fundador do Acre(ano).

Quem são eles? São os políticos ligados ao governo de Manaus; os membros da Junta Revolucionária, os seringalistas “esclarecidos”, a quem Rodrigo de Carvalho chamou de “acreanos de real merecimento” (Apud CASTRO, 2005, p.47)46; e os letrados comprometidos com a engrenagem gomífera (médicos, advogados, professores, jornalistas, escritores, agrimensores etc.) tanto os de Manaus, Belém e Rio de Janeiro, quanto aqueles que se instalaram no Acre no transcorrer da “revolução”. Eles agiram sobre universo discursivo da época e

46 O próprio Plácido de Castro se tornou um porta-voz desses latifundiários “esclarecidos”. Como também era dono de vários seringais, obviamente não ficava ao lado do oprimido seringueiro, pelo contrário, defendia a classe social na qual estava inserido. Para ele o seringalista era “torpemente roubado” (CASTRO, 2005, p. 180), “assaltado” (idem), sofria “perdas” (idem, p. 199), tinha prejuízo por conta da ignorância do seringueiro (idem, p. 205), e, por isso, estava em constante “condições de insolvência” (idem, p. 203). Considerava um equívoco “atribuir aos proprietários a extorsão de que são vítimas os seringueiros” (idem, p. 204).

~ 128 ~

instauraram uma imagem positiva para Acre(ano), regrando o que podia e devia ser dito sobre ele.

Quem clamou pelo “direito à nacionalidade, ao exercício da cidadania e à escolha de seu próprio caminho [...], sobretudo, o direito de ser brasileiro”, não foi o “povo” como afirma NEVES (1999, p.12), mas aqueles que se colocavam como porta-vozes dele. O “nós” do discurso fundador do Acre(ano) não incluía o seringueiro, muito menos o nativo. Das poucas vezes que emergiram na ordem do discurso foi para promover e reforçar os interesses e ideais dos promotores da Revolução. Aos nativos mandavam matar, e aos seringueiros47 exploravam até a invalidez.

Os letrados tiveram importância particular na nomeação do Acre(ano), principalmente aqueles ligados à grande imprensa da época. Eles exportavam a ideia de epopeia acreana Brasil à fora. Apesar de essas atividades serem mais intensas em Manaus e Belém; no Acre, os letrados passaram a exercer maior influência quando os primeiros jornais locais passaram a ser publicados com certa regularidade a partir 1902. “Nesse momento histórico do Acre, a criação literária confundia-se com a atividade jornalística”. (SILVA, 2002, p.30).

Através da literatura patriótica, a natureza e o homem se irmanam em gigantismo, beleza e é possível construir uma imagem positiva que deriva do orgulho nacional de conquista [...] A seleção dos jornais sugere que a orientação patriótica e integracionista predomina como pressuposto ideológico que direciona as primeiras manifestações literárias do Acre [...] Esses poemas sugerem os nexos estabelecidos entre a concepção de unidade nacional e a conquista desse

47 De próprio punho, Plácido de Castro evidencia o que pensava sobre os seringueiros: eram membros das “classes inferiores da sociedade” (CASTRO, 2005, p. 208); “sempre inculto” (ibidem, p. 201); “de índole muitíssimo perdulária” (ibidem, p.205); “ignorantes e supersticiosos” (idem, p. 235); “avessos às regras elementares de profilaxia” (idem, p. 235), “resistem a qualquer tratamento racional” (ibidem, p.235). Segundo o coronel, os sofrimentos do coletor de látex vinham da própria “ignorância” (ibidem, p. 205); tinha dívidas porque gastava dinheiro com objetos de luxo, bugigangas e ciganas (ibidem).

~ 129 ~

Território [...] os letrados também buscam a reintegração dessa parte da Amazônia. Tal busca manifesta-se como declaração de amor à pátria, essa pátria que, vista pelos olhos da literatura, é a melhor de todas. (SILVA, 1996, p. 77 e 80).

Qual a missão do poeta nas origens do território acreano? [...] As respostas para tais perguntas podem ser encontradas, ao menos em parte, nas páginas de alguns jornais acreanos que circularam desde o período inicial de formação do território [...] As características desses poemas permitem compreender os modos de percepção da realidade no período inicial de formação do território [...] Para tanto, no caso do Acre, nada mais providencial que a ênfase temática dada à conquista [...] temas perfeitos para eufóricos hinos de celebração dos feitos heroicos em terra tão inóspita. (SILVA, 2002, p. 29).

Os jornais são fundamentais para a constituição das comunidades imaginadas (ANDERSON, 2005). No caso do Acre, esse meio de comunicação foi decisivo para que os discursos dos “promotores da revolução acreana” circulassem. A escrita da história oficial foi baseada nesses discursos, que logo se fossilizaram em livros de história e de literatura, conquistando o status de evidência. Os jornais assumiam duas importantes funções sociais: a “de elaborar a representação do homem local” (SILVA, 1996, p. 66) e a da “elaboração de uma imagem positiva da integração do território ao país” (idem, p. 65, grifo nosso). Abaixo, mostramos como o “patriotismo” e o “heroísmo” acriano ganharam força de evidência nos livros de história e literatura.

Quadro 01 – Citações sobre o patriotismo e heroísmo acriano

PATRIOTISMO HEROÍSMO “(os brasileiros) envolvidos por um interesse

patriótico-mercante resolveram mover uma ação contra o governo de La Paz”.

(BARBOSA, 1991, p. 58).

“A revolta que durante cinco anos emocionou a alma nacional e realizou a mais viril e eloquente demonstração de patriotismo que os anais do

país registram”. (COSTA, 2005, p. 113).

Há um outro herói que jamais deve ser esquecido –

é o povo do Acre”. (CARVALHO, 2002, p. 48).

“Heroicos povoadores dos barrancos”.

(COSTA, 2005, p. 82)

~ 130 ~

“Amparada ostensivamente pela nossa chancelaria, que lhe reconhecia a soberania sobre

a região convulsionada pelo patriotismo dos seringueiros, a Bolívia não cedia do propósito de

ali estabelecer definitiva e solidamente o seu domínio”. (COSTA, 2005, p. 125).

“Por mais ilegal que pareça esse proceder dos insurretos, traduz um belo movimento de

patriotismo e os sentimentos apurados do direito de propriedade”. (Silvério Neri, Governador

do Amazonas, em 1901, apud COSTA, 2005, p. 132).

“Na História acreana, aos sangrentos combates que delineou tranquilamente e bravamente venceu, páginas de um intenso brilho, que

ficaram como documentos do patriotismo e valor dos seringueiros”. (COSTA, 2005, p.145).

“Agiram os acreanos por inspiração de seu patriotismo, para que o Brasil não perdesse, por

insciência de alguns dos seus estadistas, uma região maior de 5.780 léguas quadradas, que eles,

acreanos, haviam desbravado, povoado e civilizado com o seu másculo e inigualável

esforço”. (COSTA, 2005, p. 191).

“As condições sociais dessa população se haviam expressado nobremente, documentando-lhe o

patriotismo, num memorável gesto de civismo — rejeitando o domínio boliviano, numa revolução

que levantou a seu favor o Brasil inteiro”. (COSTA, 2005, p. 214).

“A consciência nacional pode, hoje, capacitar-se de que a vitória dos patriotas acreanos também

foi a sua vitória”. (LIMA, 1998, p. 19).

“A glória de Plácido de castro permanece ignorada no Brasil [...] a personificação do mais

sadio patriotismo”. (LIMA, 1998, p. 21).

“Patriotas que se foram incorporando em cada seringal. Gente e mais gente, a engrossar a coluna

da libertação” (LIMA, 1998, p. 122”).

“A terra desflorada pelo cearense heroico”.

(COSTA, 2005, p. 97)

“Os feitos heroicos que deram ao Brasil o domínio

definitivo da região”. (COSTA, 2005, p. 240

“A vida torna-se, então, um permanente heroísmo [...] sem ao menos saber, ao certo, para que servem

aquelas bolas de borracha em que, diariamente, se

transformam as gotas de seu suor”. (LIMA, 1998, p.39)

“Nessa data imortalizada para os anais do heroísmo acreano.” (idem, p.121).

“E um povo de bravos, que empunhara armas, que

defendera com coragem o seu solo e que seria capaz de formar, no coração da selva,

um grande Estado que, anexado ao Brasil, serviria de

orgulho a toda a nação”. (MARINS, 1978, p. 55).

“O Acre foi uma luta de bravos”.

(MARINS, 1978, p. 5).

“Os acreanos não queriam a ajuda do governo Federal

[...] eles saberiam recuperar, por suas próprias mãos a

terra perdida [...] Que gente extraordinária! Sim,

Tiãozinho, precisamos render homenagens à

bravura daquela gente”. (MARINS, 1978, p. 59).

~ 131 ~

“O ano novo trouxe-lhes uma exacerbação de patriotismo, que faz prever toda a bravura”.

(LIMA, 1998, p. 150).

“Desse instante até o dia seguinte, uma invencível rajada de vibração patriótica sacudiu o

acampamento inteiro”. (LIMA, 1998, p. 151).

“Os patriotas revolucionários”. (MEIRA, 1998, p. 19).

“E se o Acre é brasileiro é porque os acreanos são brasileiros e o alto patriotismo deles quer que

eles sejam brasileiros”. (MEIRA, 1998, p. 36).

“Ninguém poderia ficar indiferente à sorte daqueles seres humanos que lutavam por uma

PÁTRIA que estava em seu coração”. (MEIRA, 1974, p. 47).

“Impelidos pela vibração colossal do patriotismo e com perfeito sentimento da unidade

indissolúvel da nação”. (RIBEIRO, 2008, p. 9).

“Cada seringueiro era um soldado e cada soldado sabia amar o Brasil”. (RIBEIRO, 2008, p. 121).

“Um povo que soube se impor pelo seu heroísmo”.

(MEIRA, 1998, p. 9).

“A heroicidade daquela gente, só auxiliada pelo vigor

dos exploradores valentes que já de há muito se haviam

ali estabelecido”. (MEIRA, 1998, p. 18).

“Os hércules que desbravaram o Acre”.

(RIBEIRO, 2008, p. 9). “Bendita a história do povo heroico que soube honrar o brio da raça e continuar a tradição da nossa gente”.

(RIBEIRO, 2008, p. 171).

“Irmãos que tão heroicamente se batiam pela causa santa da pátria”. (Maj.

Ladislau da Silva em setembro de 1902, Apud RIBEIRO, 2008, p. 117).

Fonte: próprio autor.

~ 132 ~

CONCLUSÃO

“O que nos importa é observar esse movimento entre o real da descoberta (sem-sentido), a fantasia (imaginação), e a ideologia (imaginário), produzindo a realidade dessa história que se está fazendo. E que produz o efeito de que a ideologia sempre está fora da história (oficial). Por seu lado, essa história aproveita, do discurso fundador, o fato de que nele há ainda uma indistinção entre imaginação, imaginário e realidade”.

(ORLANDI, 1993, p. 18, grifo nosso).

O Acre é, acima de tudo, a consagração do homem branco de nacionalidade brasileira em uma região milenarmente marcada pela presença indígena. No entanto, o apoderamento físico desse território foi precedido pelo assenhoreamento simbólico dele, uma vez que, antes mesmo da colonização, os migrantes já imaginavam aquele “fim do mundo” (JACKSON, 2011), como uma “terra de ninguém”, uma espécie de “deserto ocidental” (COSTA, 2005). Portanto, a primeira violência cometida pelos brasileiros neste território foi a simbólica.

A nosogenia acriana foi inaugurada em âmbito internacional pelo financiamento estrangeiro em favor do aumentar da produção da borracha, e em âmbito local pela violência imagética da negação da humanidade indígena. O sangrento genocídio, o dramático culturicídio e tantas outras patologias sociais protagonizados pelos “heróis patriotas” (Cf. CARNEIRO, 2015a), base da árvore genealógica do povo acriano, foram invisibilizados pela historiografia oficial. Infelizmente o excesso de “acrEanismo” provocado por políticas simbólicas de governos com tendência ao autoritarismo populista tem afetado a sanidade mental de parte da coletividade local. Digo isso porque ingenuamente se orgulham em dizer que são “os únicos brasileiros por opção”. Esse surto de megalomania misturado com delírios de grandeza está baseado em um sofisma, em uma manipulação da história.

Eu tive que aproximar as minhas reflexões da linguística e utilizar o conceito de discurso fundador para entender como um período tão violento e tão corrupto conseguiu transmutar-se em uma

~ 133 ~

espécie de Idade de Ouro da acrianidade. Por conta disso, esse livro se preocupou mais em historicizar a emergência da verossimilhança do que em descrever os fatos propriamente ditos. A verossimilhança é a imagem através da qual as “vozes constituintes do discurso fundador” pintaram a cena inaugural do Acre(ano). É a representação ideal dos acontecimentos, de como deveriam ser imortalizados no imaginário social para posterior recordação.

Em resumo podemos dizer que o discurso fundador do Acre tem as seguintes características: a) estabelece um marco inaugural glorioso para o Acre(ano) – a “Revolução Acriana”; b) sugere o culto ao passado por meio do eterno retorno às origens; c) instaura o idealismo patriótico como motivação constituinte da “Revolução Acriana”; d) consagra qualidades heroicas para a primeira geração de acrianos; e) inventa uma comunhão em torno da “Revolução”.

Até hoje o período relativo à formação histórica do Acre(ano) é tratado como uma espécie de Idade de Ouro, em que os paradigmas e os arquétipos da identidade acriana se encontram em seu estado puro. É como se a ideia triunfalista da origem fosse fiadora do otimismo presente e futuro. Esse atavismo acriano precisa ser desintoxicado, pois a ideia de gênese defendida por ele está “envenenada” de “acrEanocentrismo”, um subproduto do nefasto etnocentrismo. No decorrer dessas linhas mostramos que a apoteose da genealogia Acre(ana) foi o resultado de um processo de significação apoteótica, qual seja, o do “embelezamento” dos fatos históricos. A nossa missão foi justamente denunciar o caráter manipulador desses sentidos enobrecedores, revelando o jogo de interesse que estava por trás deles.

O fato de o caráter “glorioso” da origem ser retratado nos documentos e textos jornalísticos da época, não garante o caráter célebre da genealogia do Acre(ano). Isso porque o discurso enobrecedor é explicado pelas condições históricas e linguísticas que permitiram a emergência dele. Consequentemente, a representação beatificada do Acre(ano) tem uma história e está eivada de “violência simbólica” e de relações de poder. A manutenção dela é puramente convencional. O gentílico “acrEano”, por exemplo, foi inventado com o propósito de causar certa união entre os “brasileiros do Acre” em

~ 134 ~

torno da causa latifundiária dos seringalistas e da demanda fiscal do governo do Amazonas.

Essa disposição à heroificação do passado demonstra o conservadorismo das elites acrianas. Evoca-se o heroísmo quando o objetivo é fomentar uma sociedade de covardes (Cf. MICELI, 1994). Afinal, “quanto mais fracos os homens numa sociedade, tanto mais eles precisam de super-heróis. E tanto mais super-heróis eles recebem para se manterem fracos” (KOTHE, 1985, p. 72). Tudo isso não deve servir de espanto, pois a retórica da identidade é sempre mais presente nas comunidades com unidade coletiva fragilizada.

Toda a pesquisa que resultou nesse livro visou encontrar, nas “origens” do Acre(ano) fincadas pela historiografia oficial, a formação do acriano enquanto subjetividade, e a do Acre enquanto território brasileiro. No entanto, tais origens não foram encontradas, no lugar delas o que se achou foi uma rede interminável de discursos. O passado inaugural glorioso, a identidade bem-aventurada e a anexação territorial epopeica, tudo, não passam de discursos. E se esses discursos circulam até hoje com o status de verdade, é porque existe uma política institucional para preservá-los como tal. Por isso, a história do Acre, da forma como vem sendo escrita e ensinada, mais deseduca do que educa. Ela não tem compromisso com o desenvolvimento do juízo crítico do cidadão acriano, pelo contrário, a missão dela é produzir ufanismo, alienação e pacificação social. Toda a glória desse passado imemorial pode ser resumida nisto: discursos, uma rede interminável de discursos.

MUITO OBRIGADO PELA LEITURA!!!!

Eduardo de Araújo Carneiro

Rio Branco, fevereiro de 2017.

~ 135 ~

REFERÊNCIAS

ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e

literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. AGUIAR, José Wilson. Estado Independente do Acre: Governo Provisório

Luis Galvez de Arias. Rio Branco: PMRB, FMC/Ac, 2000. ALENCAR, Fontes de. História de uma polêmica: Rio Branco, Rui Barbosa e

Gumersindo Bessa. Brasília: Thesaurus, 2005. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem

e a expansão do nacionalismo. Lisboa: Edições 70, 2005. BARBOSA, Adalva. A História do Acre e suas Origens. (5ª Série). Brasília,

1991. BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de historiador. Rio de

Janeiro: Zahar Editor, 2002. BARBOSA, Rui. O direito do Amazonas ao Acre Setentrional. Fundação Casa

Rui Barbosa, 1984. BARTHES, Roland. Mitologias. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S. A.,

1993. BARROS, Glimedes Rego. Nos Confins do Extremo Oeste: a presença do

capitão Rego Barros no Alto Juruá (1912-1915). Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1993, Vol. I.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio De Janeiro: Zahar, 2001. BENJAMIN, Azcui. Resumen histórico de las campañas del Acre (1899-

1903). Intendência de Guerra: La Paz, 1925. BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: um pouco – antes e além – depois.

Manaus: Editora Umberto Calderaro, 1977. BRAGA, Antonio de Souza. et al. A questão do Acre: Manifesto dos chefes da

revolução acreana ao venerado presidente da república brasileira, ao povo brasileiro e às praças de comércio de Manaus e do Pará. Rio Branco: FEM, 2002.

CABRAL, Alfredo Lustosa. Dez anos no Amazonas (1897-1907). 2. ed. Brasília: Senado Federal, 1984.

CABRAL, Francisco P. Plácido de Castro e o Acre Brasileiro. Brasília: Thesaurus, 1986.

CALIXTO, Valdir. et all. Acre: uma história em construção. Rio Branco: Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Acre, s/d.

______. Plácido de Castro e a Construção da ordem no Aquiri: contribuição à história das idéias políticas. Rio Branco: FEM, 2003.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Trad. Adail Sobral. São Paulo: Pensamento. 1988.

~ 136 ~

CARLYLE, Thomas. Os heróis e o culto dos heróis. São Paulo: Cultura

Moderna, s/d. CARPES, Maria Cristina. Freud e a construção do discurso fundador da

psicanálise. Tubarão: Universidade do Sul de Santa Catarina, 2005. (dissertação de mestrado).

CARVALHO, José. A primeira insurreição acreana. Rio Branco: FEM, 2002. CARVALHO, José Murilo. A formação das almas: o imaginário da República

no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CARVALHO, Affonso. Rio Branco: sua vida, sua obra. Rio de Janeiro:

Biblioteca do Exército Nacional, 1995. CARNEIRO, Eduardo de Araújo. O Capital Internacional no Aquiry: Sangue

e Lodo na Formação Econômico-social do Acre. Rio Branco: UFAC, 2012. (Monografia em Ciências Econômicas).

______. A formação da sociedade econômica do Acre: “sangue” e “lodo” no surto da borracha. Rio Branco: EAC editor, 2015.

______. A fundação do Acre: uma história revisada da anexação. Rio Branco: EAC editor, 2015b.

______. A epopeia do Acre e a manipulação da história no Movimento Autonomista & no Governo da Frente Popular. Rio Branco: EAC editor, 2015c.

CASTRO, Genesco. O Estado Independente do Acre: excertos históricos. Brasília: Senado Federal, 2005.

CASTRO, Plácido. Relatório de governo (1906-7). In: Tribunal de Justiça do Acre (TJAC). Acre: relatórios de governo – 1899 a 1905 (Os anos do conflito, Vol. 2). Rio Branco: Gráfica do Tribunal de Justiça do Acre, 2003.

CASTELO BRANCO, José Moreira B. O gentil acreano. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. RJ: Imprensa Nacional, Vol. 207, abril/junho, 1950, p. 3-77.

______. Descobrimento das terras da região acreana. Rio de Janeiro: Departamento da Imprensa Nacional, 1985.

COELHO, Olga Valeska Soares. In(de)cisão entre dois mundos: um estudo sobre o projeto de nação em O Guarani de José de Alencar. UFMG/Unileste-MG, 2005.

COSTA, João Craveiro. A conquista do deserto ocidental: subsídios para a história do território do Acre. Brasília: Senado Federal, 2005.

COURTINE, Kean-Jacques. Metamorfoses do Discurso Político: derivas da fala pública. São Carlos: ClaraLuz, 2006.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

~ 137 ~

CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo:

Fundação Perseu Abramo, 2004. CHIAVENATTO, Julio. Bolívia: com a pólvora na boca. São Paulo: Brasiliense,

1981. ______. Genocídio Americano: a guerra do Paraguai. São Paulo: Brasiliense,

1984. CUNHA, Euclides da. Um paraíso perdido: ensaios amazônicos. Brasília:

Senado Federal, 2000. ELIADE, Mircea. Mito do Eterno Retorno. São Paulo: Mercuryo, 1992. FEBVRE, Lucien. Honra e Pátria. Trad. Eliana Aguiar. RJ: Civilização Brasileira,

1998. FEIJÓ, Martin Cezar. O que é herói. São Paulo: brasiliense, 1984. FERNANDES. Cleudemar Alves. Análise do Discurso: reflexões introdutórias.

Goiânia: Trilhas Urbanas, 2005 FIGUEIREDO, Osório Santana. Plácido de Castro o Colosso do Acre. Santa

Maria: Pallotti, 2007. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 15. ed. São Paulo: Loyola, 2007. ______. Em defesa da sociedade: curso no Collègede France (1975-1976).

Trad. Maria E. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ______. Microfísica do Poder. 16. ed. Rio de Janeiro: Graal. 2001. ______. A arqueologia do Saber. Rio de janeiro: Forense Universitária, 2005. ______. O que é um autor? In: MOTA, Manoel de Barros (Org.). Estética:

literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: editora UFJF, 2005.

GUIMARÃES, Eduardo. Semântica do acontecimento. São Paulo: Pontes, 2005. GREGOLIN, Maria. BARONAS, Roberto (org.). Análise do Discurso: as

materialidades do sentido. 2. ed. São Carlos, S.P: Editora ClaraLuz, 2003. GREGOLIN, M. Foucault e Pêcheux na construção da análise do discurso:

diálogos e duelos. São Carlos: ClaraLuz, 2004. ______. (Org.). Filigranas do discurso: as vozes da história. Araraquara:

FCL/Laboratório Editorial/ UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2000.

______. (et al.). Análise do Discurso: entornos do sentido. Araraquara: UNESP FCL, Laboratório Editorial. São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2001.

______. Análise do Discurso: lugar de enfrentamentos teóricos. In: FERNANDES, C.; SANTOS, J. B. Teorias linguísticas: problemáticas contemporâneas. Uberlândia: Edufu, 2003.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. RJ: DP&A, 2004.

~ 138 ~

HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Paz

e Terra, 2004. ______. A Era dos Impérios (1875-1914). São Paulo: Paz e Terra, 2003. INDURSKY, Freda. FERREIRA, Maria Cristina (org.). Michel Pêcheux e a

Análise do Discurso: uma relação de nunca acabar. São Carlos: ClaraLuz, 2005.

KOTHE, Flávio R. O Herói. São Paulo: Ática, 1985. KUJAWSKI, Gilberto de Mello. A Pátria Descoberta. Campinas: Papirus,

1992. LACROIX, Maria de Lourdes. A criação de um mito. In: ______. A fundação

francesa de São Luís e seus mitos. São Luís: Lithograf, 2002. LE GOFF, Jacques. História e memória. 4 ed. Campinas, Editora da

UNICAMP, 1996. LEME, Ernesto. Prefácio. In: BARBOSA, Rui. O direito do Amazonas ao Acre

Setentrional. Fundação Casa Rui Barbosa, 1984. LÊNIN, V. I. Cultura e Revolução Cultural. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1968. LIMA, Cláudio de Araújo. Plácido de Castro: um caudilho contra o

imperialismo. Rio Branco: Fundação Cultural do Estado do Acre, 1998. LIMA, Manoel Ferreira. A Bolívia de 1890 a 1905: suas relações exteriores e a

questão do Acre. Niterói: UFF, 1981. (Dissertação de Mestrado). LOFEGO, Silvio Luiz. IV Centenário da cidade de São Paulo: uma cidade

entre o passado e o futuro. São Paulo: Annablume Editora, 2004. MAGNOLI, Demétrio. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política

externa no Brasil. São Paulo: UNESP; Moderna, 1997. MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da Enunciação. Trad. Sírio Pessent (et

al.). Curitiba: Criar Edições, 2006. ______. Gênese dos discursos. Trad. Sírio Possenti. Curitiba: Criar Edições,

2005. MARTINS, Francisco. Território de Bravos: uma epopéia na Amazônia. 15. ed.

São Paulo: Melhoramentos, 1954. MEIRA, Silvio Augusto de Bastos. A epopeia do Acre: batalha do outro negro.

2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1974. MICELI, Paulo. O mito do herói nacional. São Paulo: Contexto, 1994. NEVES, Marcos Vinícius. Acreanos e Jacobinos. In: FUNDAÇÃO DE

CULTURA ELIAS MANSOUR. Galvez e a República do Acre: revista do 1° Centenário do Estado Independente do Acre. Rio Branco: FEM, 1999.

ORLANDI, Eni Puccinell (org.). Discurso e Leitura. Campinas: Cortez/Editora da Unicamp, 1988.

______. (et al.). Sujeito & Discurso. São Paulo: Editora da PUC-SP, 1988b.

~ 139 ~

______. Terra à Vista! Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. São

Paulo: Cortez, 1990. ______. Discurso fundador: a formação do país e a construção da identidade

nacional. São Paulo: Pontes, 1993. ______. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico.

Petrópolis: Vozes, 1996. ______. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 6. ed. Campinas:

Pontes, 2005. ______. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas:

Editora da UNICAMP, 2007. PAVEAU, Marie; SARFATI, Georges. As Grandes Teorias da Lingüística: da

gramática comparada à pragmática. Trad. Mª. Rosário Gregolin (et al). São Carlos: ClaraLuz, 2006.

POSNANSKY, A. Campaña del Acre: la lancha Iris. La Paz: Tipografia de “El Diário”, 1904.

REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagem a FHC. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

REIS, Arthur Cezar Ferreira. O Seringal e o seringueiro. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura, 1953.

______. A Amazônia e a cobiça internacional. Rio de Janeiro: civilização brasileira, 1982.

______. A questão do Acre. Manaos: Phenix, 1937 RIBERA, Hernán Messuti. La dramática desmembración Del Acre. Sucre:

Ed. Judicial, 1997. ROBIN, Régine. História e Linguística. São Paulo: Editora Cultrix, 1977. SANTOS, Washington dos. Dicionário de Sociologia. Belo Horizonte: Del

Rey, 1995. SANTOS, Luís Cláudio. O Brasil entre a América e a Europa: o império e o

interamericanismo. São Paulo: UNESP, 2004. SILVA, Laélia Maria Rodrigues. Procura-se uma pátria: a literatura no Acre

(1900-1990). 1996. Tese (Doutorado) – PUC, Rio Grande do Sul. ______. Um caminho de muitas voltas. Rio Branco: FEM, 2002. SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e Diferença: a perspectiva dos Estudos

Culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. SOMMER, Doris. Ficções de Fundação: os romances nacionais da América

Latina. Belo Horizonte: UFMG, 2004. SOUZA, Carlos Alberto Alves de. História do Acre: novos temas, novas

abordagem. Rio Branco: Editor Carlos Alberto Alves de Souza, 2002. SOUZA, Cirlana Rodrigues. O discurso fundador lacaniano como efeito de

deslocamentos e (in)versões de sentidos. 2007. Dissertação (Mestrado) – UFU, Uberlândia - MG.

~ 140 ~

TAVARES D’Amaral, Márcio. Barão do Rio Branco. São Paulo: Editora Três,

2001. TOCANTINS, Leandro. Formação Histórica do Acre. Brasília: Senado Federal,

2001, Vol. I. VEYNE, Paul. Como se escreve a história, Foucault revoluciona a história. 4.

ed. Brasília: Editora UnB, 1982. VIANA, Jorge. Apresentação. In: Revista Galvez e a República do Acre. Rio

Branco: FEM, 1999. WILLIAM, O; BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Social do

Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

ADQUIRA TAMBÉM

Contato: [email protected]