Eduardo Pellejero, O Jogo Em Que Andamos - Prólogo a Perder Por Perder

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O jogo em que andamos

Eduardo Pellejero

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 A literatura se parece muito a uma luta de samurais, só que

o escritor não luta com outro samurai, luta contra ummonstro. Geralmente sabe, também, que vai ser derrotado.Ter a coragem, sabendo previamente que vamos serderrotados, de sair a lutar: isso é a literatura.

Roberto Bolaño

Tudo o que faço está provavelmente destinado ao fracasso,mas faço-o apesar de tudo, porque há   que fazê-lo.

Jean-Paul Sartre

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m 1935 Paul Klee cai gravemente doente. Sofre de

esclerodermia progressiva, uma rara doença que produz oendurecimento da epiderme e dessecamento das mucosas,provocando a morte na maior parte dos casos. Depois dapersecução na Alemanha de Hitler e das angústias do exílioem Berna, é o fim do caminho para ele. Klee parece senti-lo dessa maneira. O enfraquecimento da vida e a iminênciada morte o paralisam, praticamente abandona o seutrabalho. Reconhecido sempre como um artistaextraordinariamente prolífico, o catálogo da sua obraregista apenas 25 trabalhos em 1936. Quem poderia culpá-lo? Longe da sua terra natal, fracassados os projetos aosquais se consagrara por completo durante anos, vai morrer,e o sabe. Então, sem explicação, algo nele se agita, resiste,recusa dar-se por vencido: 289 obras em 1937, 489 em1938, 1254 em 1939 (isso significa mais de três trabalhos

por dia, sem descansar sequer aos sábados!). São pinturasalegres, inclusive quando muitas vezes refletem o sombriodos tempos que corriam, desenhos nervosos, que parecemnão querer perder o pulso da imaginação. Duras na suafragilidade, firmes na sua precariedade, dezenas, centenas,milhares de imagens. É impossível não sentir-se comovidopor essa sobreabundante mostra de vitalidade, que

colocava Klee mais próximo que nunca do mistério dacriação que perseguira durante toda a sua vida.

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  Quiçá as melhores coisas das que somos capazesdependam dessa aceitação tranquila da derrota que lheestá prometida aos nossos maiores esforços. Toda a vitória

é provisória e necessariamente dá lugar a novos problemas,a novas questões, a formas imprevisíveis do desassossego.Na persistência, entanto, forja-se um espírito.

 A derrota é a forma sensível da nossa finitude. Doponto de vista da morte, a aposta está perdida antes de serfeita (as cartas estão marcadas, estamos condenados adesaparecer), mas apostar é a vida. Klee morreu a 29 de

Junho de 1940, aos 60 anos. O seu gesto, pelo contrário,continua vivo para nós, vivo para sempre, de verdade: falada vitória secreta que permeia toda a derrota (ter lutado,saber que se lutou), mesmo quando venhamos a perder (ealguns perderam tudo). Pensar é transmutar a consciênciada nossa mortalidade em urgência de viver, ainda que nãoseja raro que tenha lugar sob a forma de uma espécie detranquilidade post-mortem, onde o instante e a eternidadese conjugam na consumação de um conceito ou um verso,uma imagem ou uma melodia. Proust escreveu que os fatossão particulares e tristes, mas a ideia que extraímos delespode ser universal e alegre.

 A estupidez triunfa. Cada vez mais, somos chamado(forçados) a participar de um mundo de satisfaçãogarantida e rédito assegurado, onde não excita a vida nem

inquieta a morte. Nesse mundo, que exige de nós totaladesão, o pensamento crítico é um estranho. Quem pensa,perde. Por isso mesmo, também, a assunção estratégica daderrota converteu-se num princípio precioso para a crítica:gesto imprescindível para compreender como um mal,como um prejuízo, como uma deficiência, aquilo do qual otriunfalismo da nossa época se gaba. Quem perde tem a

distância para ver o que os vencedores não veem; como oanjo cinzento de Benjamin, repara nas ruínas e nas vítimasque o progresso do jogo deixa ao seu passo e, a partir desse

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olhar, propõe a sorte de outro jogo, no qual perder eganhar já não significam nada.

Perdedoras (anti)heroicas, a arte e a filosofia não

asseguram nada, não podem. O que as caracteriza é umapromessa (sempre diferida) de felicidade, que não têmintenções ou possibilidades de cumprir. Tomado nessesentido, o seu singular modo de jogar pode atravessarindistintamente qualquer experiência, qualquer reflexão equalquer pensamento. Apenas exige de nós que estejamospermanentemente abertos, de forma irrestrita e total, às

mais diversas figuras da desilusão e do desengano (emrelação ao que somos e ao que esperamos ser, às nossascertezas sobre a história e às nossas expectativas sobre ofuturo, às nossas intuições e ao nosso saber). Ao ponto deque é difícil compreender porque alguém apostaria nesse

 jogo: não haveria que ter nada que perder (mas sempre háalgo, sempre resta algo).

 Apesar de tudo, seguimos apostando. Quiçá, comodizia Foucault, pensar não consola nem torna feliz, masenquanto risco, conscientemente assumido econtinuamente retomado, de expor-se ao desequilíbrio, deentrar em perda (desconhecer-se a si mesmo e desconhecertambém o mundo), pensar desafia toda a lógica deefetividade, de acumulação ou de lucro – e nesse sentido,nos tempos capitais que nos calha viver, pensar é um ato

de resistência.Perdido por perdido, os jogadores que se sentamnesta mesa não duvidam em elevar a aposta mais uma vez.

 As formas espúrias da consciência que o presente livrocoloca sobre o pano excedem todo o cálculo, toda aproporção, e implicam uma reconciliação com a (ausênciade) razão de ser da arte. Atos de coragem, de lucidez e de

beleza sobrepõem-se nas suas páginas, nomes deperdedores célebres e de jogadores lendários, bolo no qualcoloco tudo o que tenho (e o que não tenho).

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  Apostas desrazoáveis, que não esperam nada, que selimitam a afirmar o jogo em que andamos e que, inclusivesob as suas formas mais radicais, mais desesperadas, mais

generosas, não conhecem outra forma de compromisso queo da esquecida tradição da reserva crítica. Logo, de umpensamento sem imagens, isto é, de um pensamento quenão levanta imagens de um mundo por vir, que se limita ainterromper, a perturbar, a colocar em questão.

 A sua leitura promete ao leitor apenas uma vitóriaimanente (ao custo, claro, de perder o tempo).

Eduardo Pellejero