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    737Educ. Soc., Campinas, vol. 28, n. 100 - Especial, p. 737-762, out. 2007Disponvel em

    Pedro Goergen

    EDUCAO MORAL HOJE:CENRIOS, PERSPECTIVAS E PERPLEXIDADES

    PEDROGOERGEN*

    A justia no uma parte da excelncia moral, mas a mo-ral inteira. (Aristteles)

    RESUMO: Partindo da constatao de que a moral um dos maisdiscutidos e polmicos temas da sociedade contempornea, o autorobserva uma relao entre a visibilidade do debate moral e a gravida-de das prticas imorais. Na tentativa de encontrar caminhos que con-duzam mudana dessa realidade, desenvolve o argumento de queos problemas morais no se restringem apenas ao comportamentodesse ou daquele grupo social, desse ou daquele indivduo, mas que

    eles se encontram intrinsecamente relacionados s tradies, aos cos-tumes e aos valores que constituem o ethos histrico-cultural da soci-edade. Por isso, entende que a superao da barbrie moral no podeser alcanada mediante intervenes e sanes tpicas, locais, super-ficiais, mas que necessrio um repensar amplo e corajoso dos arqu-tipos de nossa cultura no que se refere aos conceitos de cidadania, de-mocracia, justia social e espao pblico. O autor defende a tese deque a educao moral, para alm da tradicional disciplinarizao,deve centrar-se na formao dialgica do sujeito moral, tendo como

    escopo a virtude da justia.Palavras-chave:Educao moral. Formao de professores. Justia social.

    MORALEDUCATIONNOWADAYS:

    SCENARIOS, PERSPECTIVESANDPERPLEXITIES

    ABSTRACT: From the statement of fact that moral is one of themost discussed and polemical topics in our contemporaneous soci-ety, the author observes a relationship between the visibility of the

    * Doutor em Filosofia, professor titular da Universidade de Sorocaba (UNISO) e professor titular(aposentado) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: [email protected]

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    moral debate and the seriousness of immoral practices. In an attemptto find paths that lead to change this reality, he develops the argu-

    ment that the moral problems are not restricted to the behavior thisor that social group or individual, but that they are intrinsically re-lated to the traditions, customs and values that constitute the his-torical-cultural ethos of society. He thus understands that moral bar-barism cannot be overcome through interventions and topical, localor superficial sanctions, but that we need rethinking widely and cou-rageously the archetypes of our culture in what regards the conceptsof citizenship, democracy, social justice and public space. The authoradvocates the thesis that, beyond the traditional disciplinarization,moral education must focus on the dialogical training of the subjectsmoral, with the virtue of justice in our scope.

    Key words:Educationmoral. Training\formation of teachers. Socialjustice.

    Introduo

    moralidade da sociedade contempornea assume hoje uma di-

    menso inversamente proporcional sua visibilidade discursiva.Parece que quanto mais se fala em tica e moral, mais escanda-losamente imorais se tornam as prticas. O discurso moralizante nas-ce, de um lado, da justa revolta das vtimas da barbrie moral e, deoutro, do cinismo dos protagonistas da imoralidade. Comum aos doisaportes a tendncia de culpabilizar os outros, sejam eles indivduos,grupos ou instituies. No presente trabalho, quero defender o pontode vista de que a barbrie moral que vivemos no se explica nem sesoluciona culpando o outro e exigindo que ele mude seu comporta-mento. As razes da imoralidade so muito mais profundas e alcanamo terreno comum da tradio e da cultura. Por isso, entendo que a su-perao da barbrie moral no pode ser alcanada mediante interven-es e sanes tpicas, locais, superficiais, mas que necessrio um re-pensar amplo e corajoso dos arqutipos de nossa cultura, no que serefere aos conceitos de cidadania, democracia, justia social e espaopblico. Tal projeto deve relacionar a nossa tradio cultural e os valo-res a ela inerentes com o contexto moralmente perverso do modo de

    produo capitalista neoliberal que nos governa no momento. As per-plexidades e ambivalncias tico-morais precisam ser entendidas e ana-lisadas a partir da confluncia das caractersticas e tradies de nossa

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    cultura com o modo de produo e os referenciais e representaes ti-co-morais que lhe so prprias. Estes dois aportes a tradio cultural

    e a realidade econmico-poltica representam as vertentes cnicas dasquais nasce a imoralidade que barbariza nossas relaes sociais. Imora-lidade essa que ora gera revolta, ora no provoca mais que indiferena econformismo.

    Essa leitura da tica e da moral nos permite concluir que o dis-curso moralizante, que acredita num projeto de moralizao social me-diante a represso, apenas atinge a face aparente e superficial de um fe-nmeno cuja matriz antes estrutural, em termos histrico-culturais e

    econmico-polticos. Essa constatao, por sua vez, nos faculta perceberque a transformao moral, considerada uma das grandes urgncias dasociedade atual, no pode ser alcanada mediante a imposio de san-es a indivduos ou grupos, efetiva ou supostamente responsveis poreventuais transgresses morais. A moralidade estigmatizadora e penali-zante cnica num contexto de uma sociedade que nunca se disps arever profunda e radicalmente suas tradies e costumes, seus preconcei-tos e elitismos, suas discriminaes de raa, de gnero, de classe; cni-ca, tambm, no contexto de um modelo poltico-econmico-jurdico quese orienta no princpio, por natureza excludente e injusto, do utilitarismoque sistematicamente prioriza os interesses individuais.

    H, sem dvida, razes em profuso para culpar os polticos porseu mau exemplo no manejo da coisa pblica; para responsabilizar ospais e as famlias por no darem aos filhos uma orientao moral firmee segura; para acusar a escola e os educadores por priorizarem apenas olado tcnico/instrumental da educao e menosprezar a dimenso mo-ral de sua prtica educativa; para diabolizar a mdia por estimular aindividualidade e a competitividade. De fato, so muitos os que levan-tam suas vozes exigindo uma renovao moral da sociedade. No entan-to, seus gritos so calados no ambiente opaco de uma cultura que setornou tolerante com as imoralidades que favorecem aos interesses orade uns, ora de outros. O espao da moralidade pblica foi invadidopelos interesses privados, criando uma promscua e permissiva relaoentre o pblico e o privado no foro jurdico, poltico, econmico fami-liar e educacional, capaz de abafar, aps breves espasmos de revolta, as

    mais acintosas afrontas moralidade pblica. S assim se explica, porexemplo, que os sucessivos escndalos pblicos dos ltimos dez ou vin-te anos continuem absolutamente impunes no Brasil.

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    Se for correta essa anlise, pode-se inferir que mudanas verda-deiras s podem ser alcanadas mediante um processo de profunda cr-

    tica cultural que envolva os arqutipos culturais que veladamente na-turalizam e toleram a imoralidade, na medida em que essa atende acertos interesses. Penso num debate honesto, profundo e democrticodas dimenses histrico-culturais de nossa tradio moral na economia,na poltica, na famlia, na escola e na mdia. A moralidade no ape-nas responsabilidade ou culpa desse ou daquele indivduo, desse ou da-quele grupo, dessa ou daquela instituio, mas da sociedade como umtodo. A moralidade social exige o aporte crtico da filosofia, da antropo-

    logia, da histria, da cincia poltica, do direito, da teoria educacional,das cincias da comunicao, da sociologia, da psicologia, da econo-mia, da epistemologia e da teologia, tanto para desvendar suas armadi-lhas cnicas, quanto para construir um espao pblico no interior do qualse realize um amplo debate tico sobre os princpios a partir dos quais sejulgam as decises e as aes.

    Dizer que a responsabilidade de todos no significa dizer queela no de ningum. Ao contrrio, significa que cada segmento soci-al, cada instituio, cada indivduo deve assumir responsabilidade mo-ral em seu mbito de atuao. Por sua inegvel influncia sobre a for-mao das futuras geraes, cabe aos setores diretamente envolvidos coma educao, como a famlia, a mdia e a escola, um papel particular-mente relevante na reforma moral da sociedade. Na reflexo que farei aseguir, volto a ateno para o sentido da formao moral na educaoformal, tentando argumentar, de um lado, contra a tese de que a esco-la a responsvel pela formao moral de seus alunos, no sentido deum enquadramento ou disciplinarizao moral e, de outro, contra a

    idia de que a educao formal deve limitar-se tarefa tcnica detransmissora de conhecimento. Ao contrrio desses dois mandamentos,freqentemente defendidos, desejo argumentar a favor de uma educa-o moral do sujeito que implique, ao mesmo tempo, a tematizaocrtica do ethos que, com seus conceitos, tradies e costumes, repre-senta o espao que legitima a atuao moral desse sujeito/cidado.

    A ttulo de roteiro, vou dividir minhas consideraes em cincobreves tpicos, deixando claro, desde o incio, que muitas das questes

    se imbricam e deveriam, na verdade, ser discutidas concomitantemente.Primeiro, vou tentar elucidar um pouco a distncia entre o discursomoral e a prtica na atualidade. Em segundo lugar, tento justificar que

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    faz parte das tarefas da educao formal promover a educao moral dosalunos. A seguir, volto a ateno para os dois principais interlocutres da

    educao moral na escola: crianas e professores. Num quarto momento,fao algumas sucintas referncias aos objetivos da educao moral reali-zada na escola. Segue-se a pergunta a respeito das condies necessriaspara a realizao dessa educao moral. Concluo com algumas conside-raes em torno de dificuldades, conflitos e ambivalncias com as quaisse defronta a educao moral no contexto da sociedade contempornea.

    1. Porque se fala tanto em moral hoje?

    Na verdade, a resposta a esta questo muito simples: fala-setanto de moral porque os problemas morais assumem dimenses as-sustadoras na sociedade contempornea. Isso no significa que em ou-tros tempos esse tema no tenha sido relevante. Os textos dos mais des-tacados e infuentes pensadores, filsofos, historiadores, polticos eliteratos de todas as pocas nos fornecem um vasto material que com-prova a constante preocupao com a tica e a moral. Porm, ao con-trrio do passado, o tempo atual vive grandes e cleres transformaesque afetam no s o exterior, mas tambm os fundamentos do ser e dopensar, as formas de julgar e decidir, as normas e os valores. As refern-cias que permitem distinguir o bem do mal, o justo do injusto assu-mem ares de volatilidade, de relatividade, de opacidade. Alm disso, odesenvolvimento cientfico-tecnolgico nos diversos campos do saber,como a fsica, a qumica, a biologia, a gentica, a comunicao etc.,amplia o poder de interveno do ser humano sobre a natureza e a vidacom conseqncias assustadores e imprevisveis. Em qualquer ambiente

    da sociedade contempornea, as decises e as aes podem ter efeitosameaadores no s para os indivduos, mas para a sociedade como umtodo. E, por ltimo, vivemos um tempo histrico em que se registra umesgaramento das fronteiras entre o pblico e o privado, permitindo queo espao pblico seja refuncionalizado em proveito do privado.

    Os amplos traos desse cenrio assumem contornos mais ntidosse focarmos o olhar sobre alguns aspectos mais tpicos. Assim, apesarde todas as promessas e expectativas de progresso e de soluo dos pro-

    blemas humanos, formuladas no incio da modernidade (Kant, 1969),uma grande parte da populao mundial continua faminta, analfabe-ta, doente e moribunda. Isso ocorre num momento em que j existem

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    os recursos tcnicos e econmicos suficientes para reverter esse quadro.Aps o desencantamento do mundo medieval (Weber, 2005, p. 49),

    ordenado pelo modo divino, a modernidade assume a instituio daordem como criao humana. A existncia moderna, diz Bauman,na media em que produzida e sustentada pelo projeto, manipula-o, administrao, planejamento (1999, p. 14). Foi no interior desseprojeto que germinou a profunda ambivalncia entre o avano cientfi-co-tecnolgico que ensejou a abundncia de bens culturais e materiaise a misria, o atraso, a carncia de milhes de pessoas. Dessa condiofundante de excluso que, para muitos, inerente ao sistema poltico/

    econmico vigente, decorre a pergunta a respeito da natureza moral des-se sistema.A contradio entre a abundncia e a misria gera um ambiente

    de barbrie que violenta as relaes em todos os espaos da vida: nafamlia, na escola, nas ruas, nas empresas, nas relaes internacionais.Em todos esses mbitos observa-se uma incrvel banalizao da vidaporque a vida demais. A partir da modernidade, a plenitude da vidaj no deveria ser buscada na transcendncia, mas na imanncia. Ora,se o sentido da vida se esgota na felicidade terrena e se esta no puderser alcanada seno por alguns, a vida (pelo menos para muitos) perdeo sentido e no merece ser respeitada como valor.

    A falta de trabalho exclui multides da atividade laboral, que precisamente o processo constituinte do ser humano (Pochmann, 2004).O desemprego fere o homem em sua essncia, pois agride a humanida-de do ser humano, impedindo-o de participar condignamente da cons-truo de sua prpria identidade. Ironicamente, o autor do desenvolvi-mento e do progresso excludo e condenado a uma violenta e agressivacompetitividade que no s legitima a agresso e a eliminao do outro,mas se transforma numa das mais excelsas virtudes do nosso tempo.

    A agresso ao meio ambiente gera uma vulnerabilidade de pro-pores inusitadas que ameaa a sobrevivncia da prpria humanida-de. A poluio da gua, do ar e da terra, bem como a poluio visual,a sonora e a olfativa, so, todas elas, conseqncia da interveno irres-ponsvel sobre o meio ambiente, que pode ter efeitos terminais, con-forme alertam os cientistas de todo o mundo. O mesmo se aplica

    manipulao gentica, ao uso de hormnios, ao emprego de insumosqumicos, visando o lucro rpido sem considerar as conseqncias delongo prazo.

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    As doenas, epidemias, vrus, gripes se disseminam vertiginosa-mente pelos caminhos rpidos (at mesmo eletrnicos) que ligam po-

    vos e culturas. Os que dispem de recursos constroem barreiras, criamanti-vrus, conseguem proteger-se, enquanto os demais definham, mor-rem. Parece claro que os frutos do trabalho social, materializados noconhecimento, favorecem mais a uns e menos a outros.

    A vergonhosa onda de corrupo que se abate, cnica, perversa eespetacularizada, sobre o espao pblico, gera uma reao de repdiotalvez sem precedentes no pas. Para alm dos casos especficos de imo-ralidade pblica, aparece no horizonte a ameaa da falncia das insti-

    tuies sociais ante o fenmeno de miscegenizao entre o pblico e oprivado, que ameaa os prprios fundamentos do estado de direito.Resumindo estes itens, aos quais poderiam ser acrescentados tan-

    tos outros, pode-se dizer que estamos vivendo um domnio sem prece-dentes da razo instrumental e utilitarista (Adorno, 1985), para a qualos fins justificam os meios. Conceitos como eficincia, eficcia, lucro,domnio e vantagem assumem posio central nas relaes humanas dasociedade contempornea. O princpio da performatividade, do bom

    funcionamento, torna-se o critrio de avaliao das aes individuais ecoletivas. Com isso, a sociedade capitalista neoliberal assume diretrizesmorais que invertem o imperativo da tica kantiana, no apenas per-mitindo, mas condicionando o bom funcionamento do sistema ao usodo homem como meio.

    So esses cenrios preocupantes e desoladores que provocam estaverdadeira exploso do debate moral que ecoa o tempo todo nas fam-lias, nos espaos polticos, na Igreja, na universidade e na escola. A gran-

    de pergunta que se coloca ao homem e sociedade contempornea, doponto de vista moral, como encontrar uma resposta pergunta: Oque significa tu deves? Em outros termos, como podemos encontrarnovos fundamentos para o dever.

    Se, na condio de educadores morais, dissermos ao aluno tu de-ves e ele perguntar porque devo, qual a resposta que lhe daremos? Osgregos argumentaram que devemos por causa do Bem e da destinaonatural do homem para o Bem. Os cristos medievais acreditaram que

    devemos por mandato de Deus. Os modernos argumentam que odever se baseia na razo. Desde ento, as respostas so muitas e vari-adas. De modo geral, associa-se o dever condio de sobrevivncia

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    ou conquista da felicidade. Mais recentemente, os ps-modernos(Lyotard, 1985; Lipovetsky, 1989; Bauman, 1997; Vattimo, 1996) anun-

    ciam o fim do dever nos moldes tradicionais e proclamam que as formasde comportamento devem ser decididas no contexto, nas circunstncias.Esta resposta se relaciona natureza da sociedade contempor-

    nea que se encontra em rpidas transformaes; uma sociedade em quetudo o que estabelecido logo se desfaz; uma sociedade em que tudose centra nos interesses do indivduo; uma sociedade em que o privadose sobrepe ao pblico; uma sociedade em que as possibilidades de in-fluncia e manipulao da natureza, do ser humano e da vida assumem

    dimenses assustadoras.So essas perplexidades que esto na raiz da grande visibilidadeque alcana o discurso moral hoje. As pessoas sentem-se rfs de par-metros de comportamento. Os mais jovens, vivendo o esprito da poca,so contrrios a qualquer tipo de autoridade. Os adultos sentem-se inse-guros, des-autorizados, sem saber o que dizer aos jovens. Sero corriquei-ros o assombro e a desorientao das pessoas diante do futuro da socie-dade se prosseguirem as prticas que afrontam qualquer sentido de bem

    comum, de justia social. Por vezes, as pessoas parecem cansadas de lu-tar por uma sociedade melhor diante das dimenses assustadoras dabarbrie; preferem desistir, encerrar-se na sua privacidade, abandonar opoltico, desestimuladas pela sensao de impotncia perante as intermi-nveis sries de abusos que se sucedem diante de seus olhos. Embora sejacompreensvel, essa atitude encerra o grande risco de deixar o campo li-vre para que as contravenes sejam toleradas como uma rotina inevit-vel, contra a qual no h o que fazer. Penso que a luta em defesa de umasociedade livre e justa no pode ser abandonada e acredito que educa-

    o cabe um papel importante nessa tarefa.

    2. Compete escola fazer educao moral?

    Vou abusar da pacincia do leitor iniciando com uma citao bas-tante longa de Adorno, extrada do texto A educao contra a barbrie.Ali, Adorno (1995, p. 155) afirma que

    (...) desbarbarizar tornou-se a questo mais urgente da educao hoje em dia.O problema que se impe nesta medida saber se por meio da educaopode-se transformar algo de decisivo em relao barbrie. Entendo porbarbrie algo muito simples, ou seja, que, estando na civilizao do mais

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    alto desenvolvimento tecnolgico, as pessoas se encontrem atrasadas deum modo peculiarmente disforme em relao sua prpria civilizao,

    e no apenas por no terem em sua arrasadora maioria experimentado aformao nos termos correspondentes ao conceito de civilizao mastambm por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, umdio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruio, quecontribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda a civilizao ve-nha a explodir, alis, uma tendncia imanente que a caracteriza. Conside-ro to urgente impedir isto que eu reordenaria todos os outros objetivosda educao por esta prioridade.

    Esta citao de Adorno traz dois elementos importantes para o

    nosso contexto. Primeiro, o autor afirma que de fundamental impor-tncia evitar a barbrie, o que significa dizer que a formao moral deveocupar o lugar central na educao e, segundo, que preciso saber se,efetivamente, a educao pode fazer algo nesse sentido. Esta ltimaquesto Adorno responde com simplicidade, dizendo que, se conseguir-mos colocar o tema da barbrie no centro da conscincia pedaggica, aeducao j estar fazendo muito. Nesse posicionamento est suben-tendido que, se a educao no tematizar a barbrie, ela poder favo-

    rec-la indiretamente. Numa palavra, fundamental que, para evitareste risco, a educao seja transparente em sua finalidade humana, oque significa assumir uma postura moral.

    Se, de um lado, o postulado do dever ameaa caducar, de outro,reatualiza-se com notvel vigor a preocupao moral em todos os seg-mentos da sociedade. E a pergunta a respeito do que a educao podefazer para ajudar a reduzir a barbrie est na boca de todos e se colocacomo responsabilidade para aqueles que pensam e fazem educao.Mesmo reconhecendo no ser o remdio para todos os males, a educa-o pode oferecer uma contribuio importante e, quem sabe, indis-pensvel para corrigir as injustias do mundo e contribuir para a cons-truo de um mundo social menos desumano e mais responsvel. Se,para evitar uma colaborao inconsciente e indesejada com a barbrie,a educao deve ser transparente em sua finalidade humana, comodiz Adorno, necessrio que a escola tenha conscincia disso e saibatraduzir em sua prtica tal sentido humano. E, para adiantar o que serretomado mais adiante, entendo que a educao tem um papel funda-

    mental na formao do sujeito moral, crtico e autnomo, dando no-vos e transformadores rumos ao movimento dialtico entre o indivduoe a coletividade.

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    Mesmo admitindo que nos encontramos nos momentos finais daera do dever, no sentido tradicional e moderno, isso no significa que

    devamos assistir ao declnio de todas as virtudes.1A boa convivncia hu-mana no dispensa normas e leis que devem ser obedecidas. Trata-se,portanto, no do fim do dever, mas de um processo de reorganizaomoral que leve em conta uma realidade social ordenada segundo novosprincpios e formas de relacionamento. J no temos a mo temvel dodivino, nem mesmo o absolutismo da razo para nos orientar em nossasdecises e aes. , portanto, necessrio buscar outras formas de com-portamento moral que sejam condizentes com as condies da sociedade

    e do homem contemporneos. Esta a tarefa na qual est envolvido umvasto colgio de pensadores que congrega representantes das mais dife-rentes reas de conhecimento.

    Reconhecer as circunstncias e os homens tal como so no sig-nifica que esta realidade deva ser transformada em paradigma demoralidade. No se pode confundir o ser, a realidade como ela , como dever ser, a realidade como ela deveria ser. Hoje, usufrui-se o presen-te, o eu, o conforto, o corpo, o prazer. Esta a nova retrica do carpediem que veio substituir a antiga retrica do dever. isso que os alu-nos trazem para a escola e isso que, como veremos adiante, a escoladeve tomar como ponto de partida para qualquer proposta de educa-o moral. neste contexto que precisa ser inventado um novo discur-so tico. O sentido da responsabilidade moral precisa reconstituir-seem novas bases em meio tendncia individualista e hedonista que ca-racteriza o presente.

    As crianas e os jovens passam grande parte de sua vida na esco-la. Nesse tempo forma-se sua sensibilidade, sua maneira de pensar ede julgar, se moldam seus conceitos e representaes, se enrazam ati-tudes e comportamentos. Todo esse desenvolvimento que acontece aolongo dos anos escolares representa a constituio da identidade do su-jeito com suas diferentes, mas complementares faces do epistmico, doesttico e do tico. Mesmo que defendssemos o ponto de vista de quea educao no deveria ocupar-se da formao moral dos seus alunos,seria impossvel negar que, de uma forma ou de outra, no contexto es-colar das relaes professor/aluno, dos livros didticos, das avaliaes,

    estariam sendo transmitidos ideais e imagens de homem, de mundo,de relacionamento, de normas e valores. A influncia moral sobre osalunos impossvel de ser evitada no ambiente escolar. Assim sendo,

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    parece razovel que isso no acontea de forma inconsciente e difusapelo assim chamado currculo oculto, mas que seja explicitada, discu-

    tida e orientada para a formao de um sujeito moral autnomo, crti-co e responsvel. Retomando o pensamento de Adorno, necessrioque a educao seja transparente em sua finalidade humana, assumin-do uma postura moral. Veremos mais adiante como isso pode ser feito.Antes, preciso registrar que o ponto de partida de qualquer projetode educao moral conhecer bem os dois personagens envolvidos naformao tica realizada na escola: o aluno e o professor.

    3. Quem so os alunos e quem so os professores?Podemos iniciar lembrando uma evidncia que, por vezes, no

    devidamente levada em conta. As crianas no chegam escola comofolhas em branco, completamente abertas para receberam as marcas deuma formao moral que a escola tem para oferecer. Ao contrrio, a es-cola acolhe pessoas que j se encontram em formao, com mltiplasinfluncias e determinaes, das quais muitas certamente so definiti-vas, ao passo que outras ainda esto abertas transformao. Todo ser

    humano, embora nasa com uma certa carga gentica, comea a cons-tituir-se, a formar sua identidade desde o nascimento pelas experinci-as e aprendizagens que acontecem no contexto das relaes familiares,sociais e miditicas.

    As normas e convenes que ordenam a vida do grupo em que apessoa cresce ou que so mediadas pelos meios eletrnicos, os gestos, asatitudes, os conselhos, os movimentos, os humores etc., vo sendo ab-sorvidas e incorporadas pelo indivduo no ambiente simbitico de suas

    relaes com o meio. Os gregos falavam de uma tchne tou biou, ou seja,de uma tcnica ou de uma arte de vida que relaciona o indivduo ao ethos, maneira de ser da comunidade.Por isso, a criana quando chega es-cola j portadora de uma vasta experincia, de uma histria relativa-mente longa de formao que envolve no s conhecimentos, sensibili-dades, mas tambm representaes de valores, formas de julgamento ede comportamento. Importa lembrar que at esse momento a formaoda criana predominantemtne heternoma, ou seja, predomina a ab-

    soro inconsciente das influncias vindas de fora.A escola, portanto, deve receber a criana como um ser j for-mado, embora no plenamente, pelo contexto social em que viveu e

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    continua vivendo. Alis, isso pode representar o primeiro grande desa-fio da formao tica: estabelecer uma relao no-traumtica entre a

    identidade j constituda da criana e o imaginrio moral vigente naescola. A escola deve receber a criana no para julg-la, mas para des-pertar nela a conscincia de sua prpria realidade, de sua prpria his-tria e, assim, criar condies para que ela, aos poucos, possa assumir-se como autora de sua prpria identidade, constituindo-se como sujeitomoralmente autnomo e capaz de tomar nas prprias mos o seu des-tino no interior da comunidade.

    Como veremos adiante com mais detalhe, algo semelhante, em-

    bora se encontrem em outro estgio de suas vidas, pode-se dizer tam-bm dos professores. Eles no so sujeitos etreos que pairam acima darealidade. Ao contrrio, so pessoas envolvidas e afetadas nas suas con-vices, sensaes, aspiraes como qualquer outra pessoa que convivacom os conflitos e ambivalncias ticas e morais da sociedade contem-pornea.

    Diferentemente de perodos anteriores, em que os valores, as tra-dies e as normas eram mais estveis, hoje tudo voltil e mutante.

    Esse carter histrico tornou-se um dos elementos centrais de toda aeducao e da educao moral em particular. Em decorrncia dos mo-dos de pensar, de julgar e de agir, multiplicam-se, tambm, as estrat-gias de influncias sobre os indivduos, particularmente aquelas empe-nhadas na adaptao das pessoas ao sistema e seus interesses. A crianachega escola j familiarizada com e influenciada por uma diversidademuito grande de opinies, de posicionamentos a respeito dos mais di-ferentes assuntos; chega influenciada por posicionamentos religiosos,ora hermticos e dogmticos, ora soltos e descomprometidos; chegamarcada por imagens de violncia, de erotismo, de relaes utilitaristas;chega, sobretudo, seduzida por anseios, desejos, modelos de felicidaderelacionados s prioridades do mercado, do consumo, do lucro.

    Nesse contexto, os meios de comunicao surgem como novo epoderoso mecanismo de infuncia heternoma na educao das pesso-as, inclusive na sua formao moral. De fato, a mdia, com seus inte-resses ligados ao modelo social capitalista, que fixa muitas das causasprioritrias que estimulam a orientao e o comportamento dos indiv-

    duos, que emocionam os coraes hedonistas e desculpabilizam as cons-cincias pelo abandono de suas responsabilidades morais e sociais. Naverdade, a mdia, hoje invasiva ao extremo, serve-se dos mais refinados

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    recursos tcnolgicos, lingsticos e imagticos para influenciar e se-duzir. Ao contrrio do que muitas vezes se pensa, essa influncia no

    se limita venda de produtos, mas usa seu poder de seduo para con-formar seu modo de pensar, de sentir, de agir e de ser, impedindo aformao de indivduos autnomos, independentes, capazes de julgare decidir conscientemente (Adorno, 1986, p. 99).

    O certo que as crianas chegam escola com uma identidadeque j sofreu mltiplas influncias, positivas e negativas, da famlia, domeio, da televiso, da internet. Essa uma realidade que qualquer pro-jeto de educao moral deve considerar como ponto de partida. O mais

    grave e perverso dessas influncias que elas no apenas se agregamquais adereos identidade individual em constituio, mas represen-tam, na verdade, elementos estruturantes da prpria personalidade.Dessa forma, tornam-se resistentes, no encontrando outra forma desuperao seno pela conscientizao psicanaltica e crtica das deter-minaes scio-culturais da personalidade. Se pelas influncias do sis-tema e de suas instituies o homem se torna egosta atravs da multi-plicao e exaltao dos interesses privados, como transformar esseindivduo privado, cujo ideal de felicidade a satisfao de seus inte-resses egosticos, num cidado preocupado com o bem comum? estaa realidade que justifica a tese inicialmente levantada de que o educa-o moral no pode ser vista apenas como a educao dos indivduos, apartir de certos princpios ou normas morais. Esta ser sempre umatarefa sisfica de eterno e frustrante recomear, enquanto o sistema con-tinuar gerando filhos contaminados de imoralidade. , portanto, ne-cessria a perpectiva mais ampla da renovao moral da sociedade comoum todo.

    Na outra ponta da relao formativa, encontra-se o professor que,a exemplo das crianas ou dos jovens, tambm est exposto s perma-nentes influncias do meio. No se pode imaginar que para se realizarum projeto de educao moral seja suficiente a manifestao de bonspropsitos e a conclamao de professores para que eles assumam seupapel de formadores. preciso, antes disso, que os docentes tenhamuma correspondente formao, que tenham passado por um processode conscientizao de sua prpria moralidade, de seus ideais e sentidos

    de homem, de mundo e de vida, dos fundamentos que orientam seujulgar e agir, para s ento, e a partir da, pensarem no papel que lhescabe como agentes da formao moral. Mais ainda: como agente de

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    formao moral, o professor no fala sozinho, mas com ele fala todo ocontexto escolar, ou seja, na educao moral escolar est sempre envolvi-

    da a escola como um todo. Na verdade, este todo, com suas diferentesvozes, desde o diretor ao funcionrio, desde os contedos aos procedi-mentos didticos, desde os momentos formais aos ldicos, que represen-ta o verdadeiro agente da educao moral.

    Formar professores com sensibilidade moral significa familiariz-los criticamente com as imagens de mundo, de ser humano, de meioambiente, com conceitos como liberdade, responsabilidade, respeito,tolerncia; significa despertar neles a sensibilidade para as formas mais

    dignas, justas, belas e felizes de se viver, de modo que eles, por sua vez,possam despertar em seus alunos sensibilidades semelhantes. Esta pers-pectiva tico-esttica abandona o sentido regulador, enquadrador eidentificador da tica tradicional para despertar nos jovens a percepoe a responsabilidade diante da desestetizao que representa a misria,a injustia, a fome, enfim, a barbrie. Para avanarmos um pouco noesclarecimento dessa importante questo, parece adequado perguntarquais so os objetivos da formao moral.

    4. Quais os objetivos da educao moral?

    Como j foi dito anteriormente, o modelo de um ordenamentomoral de princpios e de regras estveis pertence ao passado. Hoje, tudoest em permanente tansformao: o que valeu ontem pode no valer hojee o que vale hoje pode no servir amanh; o que tido como certo numdeterminado contexto cultural pode no ser correto em outro. Impe-se

    o entendimento de que os princpios e as regras universais perdem suafora a favor de novas convenes, que dependem dos contextos cultu-rais. Pode-se dizer que se ampliam e flexibilizam os limites dos sentidose, com isso, os limites do sujeito e do mundo. Como na arte, a vida pa-rece ser uma permanente renovao de regras e de preceitos.

    O contexto contemporneo de paulatina desconstruo dos valo-res e normas tradicionais exige outras formas de legitimao. Pressupon-do, como parece plausvel, que os homens no conseguem conviver paci-

    ficamente sem normas que regulamentem suas condutas e sabendo,tambm, que tais normas no podem ser deduzidas de princpiostranscendentais, necessrio dar-lhes legitimidade com base em outro

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    procedimento. J no incio da poca moderna, Rousseau (2007), Hobbes(2006) e Hume (1995) propuseram a idia do contrato social. Mais re-

    centemente, Habermas (1989) e Rawls (1993) sugerem a idia de con-senso a ser encontrado mediante o dilogo. Este novo procedimento delegitimao tem conseqncias considerveis tanto para o sujeito quesimplesmente cumpre normas, quanto para aquele que exige o cumpri-mento de normas. Para o primeiro no suficiente obedecer cegamentes normas, porque, desde a modernidade, o sujeito moral assume acorresponsabilidade pela legitimidade das normas. Se, na moral tradici-onal, Abraho podia matar seu filho sem incorrer em crime porque obe-

    decia a Deus, a partir da modernidade, mesmo obedecendo a Deus,Abraho seria criminoso, porque o argumento da autoridade no mais oisentaria da responsabilidade pelo homicdio. De outra parte, para oeducador no suficiente exigir obedincia em nome de alguma autori-dade: ele precisa tornar plausvel a legitimidade das normas. No primei-ro caso, necessrio responder pergunta em nome de quem se obedecee, no segundo, em nome de quem se exerce a autoridade moral. Exige-se, portanto, um elevado nvel de conscincia e de responsabilidade. Hoje, necessrio dar voz vida do indivduo e da comunidade em meio ao

    calor e fragilidade da realidade. A linguagem evocativa substitudapor uma linguagem palpitante, que tenta dizer o que nunca foi dito, quebusca abrir trilhas em meio a cenrios nunca antes visitados. A todo ins-tante mudam os cenrios na biologia, na medicina, na gentica, na co-municao, na poltica, na economia, gerando sempre novos desafios paraa reflexo tica e, consequentemente, para as decises e aes morais.

    Esse deslocamento dos fundamentos da moralidade do cu para aterra, da transcendncia para a imanncia, tem enormes implicaes para

    qualquer projeto de formao moral. No bojo dessa reviravolta, ocorre apassagem da viso providencialista e fatalista da histria para uma visopuramente humana e histrica. Com isso, dissolve-se a fonte que legiti-mava a educao moral tradicional e perde fora o argumento da autori-dade em nome do qual se exigia submisso e obedincia. Encontramo-nos em meio a essa passagem, com os olhos ora voltados para o passado,ora para o futuro, entre a saudade e a esperana, vivendo intensamenteas ambivalncias de um mundo em transformao.

    Ao tempo em que as mudanas ocorriam de forma mais lenta, ohomem tinha condies de olhar para o passado e ver nele espelhados opresente e as expectativas de futuro, de modo que tinha como orientar-se,

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    sentir-se seguro, em relao ao curso dos acontecimentos. Nesse con-texto de estabilidade, justificava-se uma educao moral baseada no ar-

    gumento da autoridade, que exigia sujeio e obedincia ao conjuntode normas e valores aceitos por todos. A educao moral consistia narepresso dos desejos e instintos e na incoporao do ethoslegitimadopela tradio. Hoje, as tradies se encontram sob suspeita, perderamsua fora orientadora e no oferecem mais amparo e segurana diantede um futuro inseguro e imprevisvel.

    Essa condio cultural tem decisivas conseqncias para a for-mao moral das pessoas. De um lado, como vimos, a educao moral

    nos moldes tradicionais da adaptao a um cdigo tico de traos uni-versais e permanentes j no possivel. De outro, pela dissoluo dasreferncias, o homem corre o iminente risco de submergir na mudan-a, de ser envolvido, absorvido e levado pelo fluxo da existncia, semconseguir assenhorear-se do seu prprio caminho e destino. Para queisso no ocorra e para que no impere a lei do mais forte, so necessri-os cdigos de conduta, normas e valores que devem ser respeitados portodos. o preo da condio humana: a liberdade de todos exige olimite da liberdade individual. Apesar das teses que falam do fim dosvalores(Lipovetsky, 1989), dos tempos lquidos (Bauman, 1999), aspermanncias, as referncias, as normas e valores so condies neces-srias da vida humana. No h sociedade humana nem convivncia or-denada e pacfica sem um cdigo de direitos e deveres, orientador dacoexistncia dos indivduos. O que ocorre que este cdigo no maisindelvel, permanente e universal, mas histrico, ou seja, sujeito a trans-formaes e mudanas que acompanham as condies materiais e cul-turais da sociedade. Essa ambivalncia entre a permanncia e o fluxo,

    entre a tradio e o porvir, entre o ser e o vir-a-ser o centro da paideiacontempornea.2

    Nesse cenrio, a tarefa da educao moral coloca-se numa novaperspectiva de formar um sujeito moral, portador de uma conscinciacrtica que lhe permita uma permanente percepo e avaliao dapertinncia dos cdigos, normas, tradies, na perspectiva da liberda-de e da justia. A liberdade condio seminal de qualquer moralidade,uma vez que sem liberdade no h deciso nem ao moral, e justia

    condio antropolgica do ser humano como ser social, que precisa en-contrar formas de convivncia em que direitos e deveres se equilibrem.Por isso, formar sujeitos morais no significa, pelo menos no significa

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    apenas, transmitir esse ou aquele valor, exigir esse ou aquele comporta-mento, mas contribuir para tornar o indivduo um sujeito crtico, po-

    ltico, reflexivo. Compete ao professor despertar nos seus alunos o de-sejo de ser um sujeito moral. Esse fundamentalmente um processodialgico, argumentativo, de convencimento. Ningum pode obrigaralgum a ser um sujeito moral contra a sua vontade, nem mesmo me-diante as mais severas ameaas ou sanes, pela simples razo de que aliberdade condio sine qua non da moralidade. Obedecer s normas,seja por conforto ou temor, condio suficiente para ser correto (emconformidade com as normas), mas no para ser um sujeito moral. A

    ao moral tem como pressuposto a livre escolha do sujeito. E essa con-dio de sujeito moral autnomo no existe a priori, nem pode ser sim-plesmente transmitida pela educao: uma condio que deve ser con-quistada e continuamente fortalecida ao longo de toda a vida. Ajudarnesse intuito o sentido e o objetivo da formao moral.

    Erigir liberdade e justia em princpios centrais de um novo mo-delo de moralidade implica repensar profundamente a relao entreindividuo e sociedade, estabelecendo novos vnculos que agregam as t-nicas fundantes dos modelos tico-filosficos da antiguidade e damodernidade, focados, como se sabe, respectivamente, na justia e naindividualidade. Sociedade e indivduo so as duas faces imbricadas deuma mesma realidade social.

    O ser humano, por ser dotado de razo, um ser confiado a simesmo, que deve cuidar de si, velar por si mesmo. Dessa premissa eleno pode abrir mo, sob pena de deixar de ser humano. O sujeito mo-ral s se constitui a partir do trabalho que faz consigo mesmo comoexerccio de conquista de sua liberdade. O estado que o indivduo de-seja o estado de soberania e independncia de si mesmo, numa pala-vra, de autonomia com relao a si mesmo, s coisas e ao mundo. Des-se objetivo maior decorre a pergunta a respeito da conduta ou das regrasque devem ser assumidas para alcanar esse estgio de autonomia.

    Combater a imoralidade significa, ento, o homem repensar-secomo sujeito moral; repensar-se como indivduo, em sua histria pes-soal, nas suas relaes com os outros seres humanos e com a natureza;significa repensar a sua situao no mundo contemporneo, o sentido

    de sua vida presente e futura, as suas formas de convivncia e usos dosoutros e da natureza. Mas significa, tambm, repensar a sociedade, seusobjetivos e ideais, seus valores e normas, seu sistema jurdico, poltico

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    e econmico, na perspectiva da convivncia digna e justa. E no con-texto dessa relao entre o individual e o social, como dimenses

    fundantes da moralidade, que o conceito de justia adquire nova einarredvel centralidade. A justia a primeira e mais fundamental vir-tude do homem contemporneo. O eixo dessa nova perspectiva consis-te na relao indissolvel entre o indivduo e a sociedade. Restabeleceresse vnculo entre indivduo e sociedade, em meio a um contexto cul-tural em que tal vinculao se apresenta estremecida, parece-me o ob-jetivo central de educao moral. No existe o sujeito moral indepen-dente da sociedade e nem a sociedade moral independente do sujeito

    moral: ambos mantm entre si vculos indissolveis de liberdade e dejustia. Liberdade o escopo e justia sua condio. Nesses termos, noh liberdade sem justia e nem justia sem liberdade.

    Se fosse resumir essas consideraes, diria que a educao moralse baseia, em termos de procedimento, no dilogo e na argumentao,e, em termos de objetivos, na formao do sujeito moral crtico, aut-nomo e livre, cujas principais virtudes devem ser a responsabilidade ea justia. No entanto, a realizao desse objetivo enfrenta, na prtica,

    grandes dificuldades, uma vez que as tendncias hegemnicas nos con-textos scio-cultural-econmico se orientam em sentido contrrio. Aseguir, sero apontadas algumas dessas dificuldades.

    5. Dificuldades, conflitos e ambivalncias

    Podemos distinguir vrias situaes que configuram posiciona-mentos distintos com relao educao moral. O primeiro repre-sentado por aqueles que, diante do mundo barbarizado em que vive-mos (Matti, 2002), sentem-se desiludidos e impotentes e noacreditam que algo possa ser mudado pela educao moral. No interi-or da escola, existem tambm os que, atropelados pelo cotidiano de tan-tas tarefas, burocracias e frustraes, tornam-se indiferentes, optandopor cumprir suas obrigaes sem altruismos nem projetos. H tambmo grupo dos saudosistas que constantemente comparam os bons tem-pos com as desgraas morais contemporneas e sonham com o retor-no ao passado das normas claras, da ordem e do dever. Finalmente, exis-

    tem os que fazem coro a um certo discurso de senso-comum, lamuriento,acusativo e catastrofista, que se sentem vtimas e no se cansam de cul-par os outros.

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    Em meio tenso entre essas vrias situaes, a escola acome-tida por uma profunda crise. Ao mesmo tempo em que a escola res-

    ponsabilizada pela formao moral dos alunos para compensar o vazioformativo aberto pelo esfacelamento da famlia, pela influncia desen-contrada da mdia e pela desorientao tica geral da sociedade, ela solicitada a dedicar-se a adaptar os alunos sociedade, transmitir-lhesconhecimentos e habilidades, de modo que possam ter uma vida desucesso. Esta crise essencialmente a crise da Bildung, da formao dohomem integral, individual e social,que se esfacela sob a desmesuradasubmisso da educao s exigncias de um modelo de vida que se di-

    vide entre os prazeres imediatos, as vantagens materiais e as exignciasdo mercado. Sob a alegao da necessidade de atender s incontornveisexigncias desse modelo de existncia, ou seja, de realizar uma educa-o utilitarista que adapta os indivduos realidade, a escola fortemen-te constrangida a abrir mo de uma de suas mais importantes respon-sabilidades, que a formao integral do ser humano em sua dimensoepistemolgica, esttica e moral. Essa, ento, a primeira grande difi-culdade: exige-se, de um lado, uma educao voltada para o mercado,para a competividade, para o til e, de outro, uma educao do sujeitomoral responsvel, respeitoso, justo. So duas propostas no apenas dis-tintas, mas em boa medida contraditrias, uma vez que, como vere-mos adiante, o atendimento aos mandados do mercado fere, em mui-tos aspectos, os princpios da moralidade. Essa situao gera um climade indiferena e impotncia entre os docentes que, descrentes das reaispossibilidades de uma educao moral, parecem cada vez mais refnsde um sistema que deles exige virtudes opostas aos parmetros de umamoralidade fundada no respeito, na dignidade, na tolerncia, na justia

    e na democracia.Essa situao de um certo marasmo moral confere incrvel atua-

    lidade pergunta formulada por Hobbes: Por que os homens devematuar de outra forma que no seja em funo de seu prprio proveitoimediato?. Esse o ponto nevrlgico e a dificuldade maior da educa-o moral hoje. Enquanto tudo se foca no indivduo, nos seus interes-ses, nos seus desejos, vantagens e prazeres, a educao moral precisa,remando a contracorrente, cultivar o respeito, a responsabilidade e a

    justia. Nesse sentido, a educao moral torna-se uma tarefa complexaque envolve o grande desafio da contrafaticidade, uma vez que a ten-dncia educacional dominante a da acomodao, da adaptao, do

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    enquadramento das pessoas a uma realidade orientada pelos interessesdo sucesso pessoal, da posse de bens e do exerccio do poder.

    Tal tarefa torna-se ainda mais difcil se levarmos em conta que ocuidado do indivduo consigo mesmo passou a representar, desde amodernidade, no mais a negativa renncia do eu, comum na moralcrist, mas uma conquista positiva de constituio do eu. Temos entoa ambivalente exigncia de, ao mesmo tempo, promover o desenvolvi-mento do indivduo, com sua liberdade e autonomia, e despertar neleo esprito de socialidade respeitosa, tolerante e responsvel. Encontrarum equilbrio entre os interesses individuais e as necessidades sociais

    no , de modo algum, uma tarefa simples. Aristteles ensinou que aformao da pessoa tem sempre um carter poltico, uma vez que o euse constitui na estreita relao com a plis, seuscostumes, normas evalores (1999, p. 18).O ethos, de onde deriva tico, a maneira dealgum se conduzir, sua forma de ser, de decidir e de agir diante dediferentes situaes no interior da comunidade. Essa dupla dimensio-nalidade, individual e social, do ser humano confere igual duplicidade formao moral que visa formao do sujeito autnomo e livre, mas

    sempre na condio de ser poltico e social. Decises e aes so, oupelo menos deveriam sempre ser, gestos, a um tempo, solitrios e soli-drios de uma liberdade refletida que implica limites negociados. Oindivduo se desenvolve como ser autnomo e livre nos limites de suahumanidade poltica. O equilbrio dessa dupla condicionalidade en-contra garantias objetivas e democrticas nas normas e prescries queorganizam os desejos e os instintos, adaptando-os s exigncias da con-vivncia entre liberdades. A liberdade, portanto, tem sempre um car-ter poltico, como j sabiam os gregos. Liberdade significa no ser es-cravo de si, dos seus instintos e dos seus apetites e, ao mesmo tempo,no ser escravo dos outros. Mas no ser escravo dos outros significa tam-bm que o outro no pode ser meu escravo. A ao justa, diziaArsitteles (1999, p. 101), um meio termo entre o agir justamentee ser tratado justamente. Em conformidade com essa premissa, os su-jeitos no podem formar-se, conhecer-se, constituir-se independementede sua relao com os outros. liberdade do indivduo, portanto, inerente uma dimenso poltica e social. Disso podemos concluir que

    o comportamento moral est intrnsecamente relacionado ao conceitode democracia e de justia social. E assim voltamos pergunta deHobbes: Como convencer os homens a no perseguirem apenas os seus

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    interesses individuais? E nisso que reside a grande dificuldade, numapoca em que se privilegiam e se antepem os interesses individuais

    aos sociais e comunitrios.Essa relao entre o individual e o social liga-se a uma outra di-

    ficuldade presente na educao de modo geral, mas particularmente di-fcil no contexto da educao moral. Trata-se do problema da discipli-na e da autoridade. Todo o debate a respeito das relaes entre asgeraes defronta-se com essa questo. Pode-se dizer que qualquer ati-vidade humana que se prope alcanar certos objetivos exige discipli-na. Isso vale tanto para uma equipe desportiva, para uma orquestra,

    quanto para um grupo de pesquisa que queiram obter sucesso no seutrabalho. No entanto, desde a quebra do autoritarismo tradicional(Rousseau, 1992), tornou-se comum uma forte rejeio a qualquer tipode autoridade, a ponto de chegarmos hoje a uma sociedade que endeusaa inexistncia de limites. Particularmente a famila e a escola se defron-tam com esse problema. Filhos e alunos articulam uma difusareinvindicao de igualdade com relao aos pais e professores.

    Em outras palavras, h hoje uma forte resistncia em reconhecer

    o princpio da autoridade, em nome da qual se possa exigir disciplina.Teramos a um vasto campo de debates e discusses que no o mo-mento de explorar. No entanto, importante registrar que essa crisede autoridade e de disciplina afeta tambm a educao moral, na me-dida em que se questiona a autoridade da norma moral. Retorna aquio problema, j abordado anteriormente, da legitimao das normas evalores. Hoje, as normas e valores exigem uma legitimao racional, demodo que aqueles que so obrigados a segui-los possam compreenderpor que so obrigados a faz-lo.

    Acontece, no entanto, que esse processo de legitimao no podeser retomado a cada instante. A vida quotidiana pressupe uma certa du-rabilidade, um reconhecimento, em princpio, da autoridade, pelo fatode essa autoridade ter sido socialmente legitimada. No necessrio di-zer que isso no justifica o uso desptico dessa autoridade. preciso quefilhos e alunos estejam convencidos, primeiro, de que a disciplina e aautoridade so socialmente necessrias e, segundo, que a disciplina e aobedincia, embora imponham limites aos impulsos e desejos imedia-

    tos, so vantajosas em termos da convivncia civilizada. No entanto,essa argumentao pouco convincente no contexto cultural em quepredomina a eudaimonia, a busca do prazer, o sucesso e as vantagens

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    pessoais. Ocorre nesse ambiente um notvel dissenso entre virtude efelicidade. Est posta, assim, essa ltima questo: Por que praticar a

    virtude se ela no conduz felicidade?Nas sociedades tradicionais havia um forte consenso a respeito

    do cdigo de regras e dos fins sociais que deviam orientar a vida decada um. Esse consenso se fundava na relao entre virtude e felicida-de: o sacrifcio da virtude era recompensado pelo ganho de felicidade.A relao entre virtude e felicidade, que preservava coesas tanto a plisgrega quanto a comunitasmedieval, parece romper-se na sociedade con-tempornea.De um lado, sobrevivem os ideais tradicionais de hones-

    tidade, respeito e eqidade, formulados na Grcia como forma de vidafeliz na plise, na Idade Mdia, como caminho para a felicidade eter-na e, de outro, surgem os ideais da posse, do consumo e do poder queprometem a felicidade no sistema capitalista. A promessa de felicida-de, que justicava as virtudes tradicionais, perdeu credibilidade e a feli-cidade contempornea no necessita de virtude.

    Nas sociedades em que se dissociam virtude e felicidade, a edu-cao moral tende a constituir-se num repertrio de admoestaes

    acompanhado de promessas de felicidade que desfrutam de poucacredibilidade. Disso resulta o que poderamos chamar de uma moralcnica do capitalismo contemporneo, ou seja, uma moral que exige umcomportamento virtuoso como, por exemplo, obedecer s leis, subme-ter-se aos preceitos da ordem pblica, pagar impostos, dizer a verdade,ser honesto etc., sem que tais comportamentos tragam a felicidade pes-soal e social nos termos da eudaimoniadominante. Pior que isso, a feli-cidade, muitas vezes, encontra-se do lado daqueles que burlam os prin-

    cpios dessa moral. A ambivalncia mais perversa desse moralismo cnicoda sociedade capitalista que esse divrcio entre regras e fins, entre vir-tude e felicidade, atinge particularmente as parcelas menos favorecidasda populao, que no podem aproveitar-se dos benefcios do sistema al-canados pela burla da norma. Essa parte da populao tem que obede-cer s normas, tem que ser virtuosa para garantir o funcionamento deum sistema que, na verdade, apenas a aflige, reprime e exclui.

    No modelo cristo, o comportamento virtuoso garantia a felicida-

    de eterna para todos os que agiam em conformidade com a lei. Na in-teno, pode-se dizer o mesmo do modelo secularizado da modernidade,pois a obedincia de todos s normas do contrato social deveria garantir

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    o bem-estar e a felicidade de todos. Com o surgimento do capitalis-mo, esta perspectiva foi alterada, na medida em que, enquanto perma-

    nece a exigncia da virtude de todos, a felicidade fica reservada aos pou-cos que antepem os interesses privados aos sociais. Na situao atualdo capitalismo neoliberal, em que a felicidade consiste na busca do pra-zer imediato, chegamos ao ponto extremo no apenas da desconexoentre virtude e felicidade, mas da inverso dessa relao em antagonis-mo: a realizao social, o sucesso, o bem estar so facilitados pela con-traveno, pelo poder, pela explorao das pessoas e do meio. Uma vezocorrida esta desconexo entre virtude e felicidade, o perigo reside em

    se manter a virtude na forma de pura coao ou represso. Com isso,elimina-se a seduo da recompensa, que justifica o sacrifcio, e a mo-ral perde o sentido.

    Parece ser esse o risco que corremos numa sociedade em que asvirtudes tradicionais j no so o mecanismo para alcanar a felicidade,pelo menos no nos termos hedonistas em que formulada hoje. Numcontexto em que o virtuoso no raro considerado otrio, a educaomoral est condenada a enfrentar enorme dificuldade. Esses coment-

    rios nos permitem retornar nossa tese inicial de que a reforma moraldo indivduo depende essencialmente de uma simultnea reforma mo-ral de sociedade como um todo. Como esta reforma no possvel semos indivduos, tarefa primeira da formao moral estimular a forma-o de sujeitos polticos que tenham a justia como seu bem maior.

    Concluso

    Essa reflexo mostra com bastante clareza que a tarefa da educa-o moral no apenas um compromisso dos pais, da escola ou de umaoutra instncia qualquer, mas um compromisso da sociedade como umtodo e de todas as suas instituies polticas, jurdicas, miditicas etambm educacionais. Afirmar isso representa alimentar certa utopia,no seu sentido negativo, uma vez que, no momento, nada indica que asociedade venha a iluminar-se em todos os seus ambientes de um novoconsenso de moralidade. A sociedade ser sempre plena de contradi-es e no interior delas que se estabelece a luta por prticas individu-

    ais e sociais que favoream o bem-estar e a felicidade de todos. nessaperspectiva que deve ser vista a tarefa da educao moral realizada nointerior da escola: uma tarefa rdua que se encontra entre paradoxais e

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    Educao moral hoje: cenrios, perspectivas e perplexidades

    Educ. Soc., Campinas, vol. 28, n. 100 - Especial, p. 737-762, out. 2007

    Disponvel em

    contraditrias exigncias. De um lado, sabe-se que ela precisa da tradi-o como condio educativa para o presente e para o futuro e, de ou-

    tro, reconhece-se que ela necessita adaptar-se ao ritmo e celeridadedas mudanas e transformaes. Se no passado o prprio acontecer his-trico tinha o sentido alegrico que ilustrava as grandes idias de Ho-mem, de Deus, da Natureza, idias estas que orientavam o mundo erepresentavam o sentido da vida, agora o movimento no smbolo denada, ele pura e simplesmente movimento, mudana sem significadoexterior a si mesmo. Com o esvaziamento dos grandes cenrios de sen-tidos e significados teleolgicos, o homem perdeu sua condio de

    dominador e foi jogado para o interior do prprio movimento, trans-formando-se em parte igual a todas as outras do todo em movimento.Adorno disse, certa vez, que a grande mquina da cincia e da tecno-logia cuspiu seu maquinista e criador. Talvez se possa dizer, desde umoutro ponto de vista, que o ser humano no foi ejetado, mas est ame-aado de ser absorvido pela grande mquina, no interior da qual estsendo consumido pelas chamas ardentes de um progresso que avanasozinho sem dar ateno aos sentidos transcendentes do humano. Pa-

    rece, ento, que nos encontramos bastante distantes do homem aut-nomo e socialmente responsvel, que o objetivo maior de toda a edu-cao tica. Trata-se, sem dvida, de um ambiente muito adverso parauma educao moral, mas o imponente movimento por uma novamoralidade individual e social nos convence primeiro de que ela ab-solutamente necessria e, segundo, de que ela possvel.

    O caminho certamente no nem curto nem fcil. Nem se deveimaginar que seja possivel formar os sujeitos para depois termos uma

    sociedade mais moralizada. A formao das pessoas e o repensar das es-truturas profundas de nossa sociedade so duas faces de um mesmo pro-cesso. preciso empreender um grande debate da coisa pblica, doespao pblico como o mbito de discernimento moral, em que o con-ceito de justia assume centralidade e se torna o conceito definidor damais elevada virtude da tica contempornea. E a escola, em todos osseus nveis, tem uma fundamental contribuio a dar: promover a re-novao moral do indivduo e da sociedade, no sentido de uma ordem

    mais justa.

    Recebido e aprovado em julho de 2007.

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    761Educ. Soc., Campinas, vol. 28, n. 100 - Especial, p. 737-762, out. 2007Disponvel em

    Pedro Goergen

    Notas

    1. Sigo aqui as teses da tica do discursoque, de um lado, probe que, em nome de uma au-toridade filosfica, se privilegiem e se fixem de uma vez por todas numa teoria moral de-terminados contedos normativos e, de outro, afirma que os juzos morais tm um con-tedo cognitivo; eles no se limitam a dar expresso s atitudes afetivas, preferncias ou de-cises contingentes de cada falante ou ator (Habermas, 1989, p. 147-148).

    2. Mesmo os autores considerados precursores ou ps-modernos, em sentido estrito, no co-locam em dvida a necessidade de valores. Veja-se o que diz Vattimo (1996, p. 5-6), aoanalisar as posies de Nietzsche e de Heidegger: Como essa definio coincide com oDeus est morto e com a desvalorizao dos valores supremos de Nietzsche? Pode-seperceb-lo ao se atentar para o fato de que tambm para Nietzsche no desapareceram osvalores tout court, mas os valores supremos, resumidos precisamente no valor supremopor excelncia: Deus. Tudo isso, porm, longe de tirar sentido da noo de valor, comoHeidegger bem viu, liberta-a na sua potencialidade vertiginosa: somente onde no h ins-tncia terminal e interruptiva, bloqueadora, do valor supremo-Deus, os valores podemmanifestar-se em sua verdadeira natureza, que a convertibilidade, e a sua transforma-bilidade/processualidade indefinida.

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