Educação Não é Privilégio

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TEIXEIRA, Anísio. Educação não é privilégio. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília, v.70, n.166, 1989. p.435-462. SEGUNDA EDIÇÃO Educação não é privilégio * Anísio Teixeira * * Educação para a formação "comum" do homem Na análise da situação educacional brasileira, desejaria evitar toda tendenciosidade, e mostrar, tão imparcial e objetivamente quanto possível, o desenvolvimento da escola brasileira à luz dos conceitos e das forças que nela atuaram. Tratando-se de instituição que corporifica idéias e aspirações sociais, é imprescindível certa precisão em caracterizar tais conceitos e ideais, a fim de evitar as inúteis e estéreis confusões, tão comuns em nossas controvérsias, nas quais diferenças de pontos de partida e diferenças de conceituação geralmente impedem qualquer entendimento comum do problema e, portanto, qualquer progresso útil no esclarecimento da solução aceitável pelos participantes do debate. Preliminar indispensável à fixação de um ponto de partida comum é o exame da educação escolar antes de se estabelecerem as aspirações modernas da escola universal para todos, proclamadas, tão ruidosamente, na Convenção Revolucionária Francesa, como um novo estágio da humanidade. Antes desse período, toda educação escolar consistia na especialização de alguém, cuja formação já fora feita pela sociedade e em rigor pela "classe" a que pertencia, nas artes escolares, que mais não eram que tipos especiais de ofícios intelectuais e sociais. A sociedade formava os homens nas próprias matrizes estáveis das "classes" senão "castas", instituições que incorporavam a família e a religião, com as suas forças modeladoras e adaptadoras. Formado assim o homem, as aprendizagens mais específicas, relacionadas com o trabalho, se faziam pela participação direta na vida comum, ou, no caso de artesanato, pelo regime do mestre e aprendiz no ateliers e oficinas da época. A escola e a universidade eram, apenas, aspectos mais amplos dessa especialização do artesanato, com mestres e alunos vivendo em comum, nas corporações universitárias, em regime de aprendizagem associada das pequenas e grandes artes intelectuais. Quando, na Convenção Francesa, se formulou o ideal de uma educação escolar para todos os cidadãos, não se pensava tanto em universalizar a escola existente, mas em uma nova concepção de sociedade, em que privilégios de classe, de dinheiro e de herança não existissem, e o indivíduo pudesse buscar, pela escola, a sua posição na vida social. Desde o começo, pois, a escola universal era algo de novo e, na realidade uma instituição independente da família, da classe e da religião, destinada a dar a cada indivíduo a oportunidade de ser, na sociedade, aquilo que seus dotes inatos, devidamente desenvolvidos, determinassem. Desse modo, a educação escolar passou a visar - não a especialização de alguns indivíduos, mas a formação comum do homem e a sua posterior especialização para os diferentes quadros de ocupações, em uma sociedade moderna e democrática. Há, antes de tudo, uma transformação radical com a criação da nova escola comum para todos, em que a criança de todas as posições sociais iria formar a sua inteligência, a sua vontade e o seu caráter, os hábitos de pensar, de agir e de conviver socialmente. Essa escola formava a inteligência, mas não formava o intelectual. O intelectual seria das especialidades de que a educação posterior iria cuidar, mas não constitui objeto dessa escola de formação comum a ser, então, inaugurada. Por outro lado, além dessa total inovação, que representava a escola para todos, a própria educação escolar tradicional e ainda existente teria de se transformar, para atender à multiplicidade de vocações, ofícios profissões em que a nascente sociedade liberal e progressiva começou a desdobrar-se. http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/artigos/educacao8.html 1 de 17 27/04/2015 09:58

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  • TEIXEIRA, Ansio. Educao no privilgio. Revista Brasileira de Estudos Pedaggicos. Braslia, v.70,n.166, 1989. p.435-462.

    SEGUNDA EDIOEducao no privilgio *

    Ansio Teixeira * *

    Educao para a formao "comum" do homem

    Na anlise da situao educacional brasileira, desejaria evitar toda tendenciosidade, e mostrar, toimparcial e objetivamente quanto possvel, o desenvolvimento da escola brasileira luz dos conceitos edas foras que nela atuaram.

    Tratando-se de instituio que corporifica idias e aspiraes sociais, imprescindvel certa precisoem caracterizar tais conceitos e ideais, a fim de evitar as inteis e estreis confuses, to comuns emnossas controvrsias, nas quais diferenas de pontos de partida e diferenas de conceituaogeralmente impedem qualquer entendimento comum do problema e, portanto, qualquer progresso tilno esclarecimento da soluo aceitvel pelos participantes do debate.

    Preliminar indispensvel fixao de um ponto de partida comum o exame da educao escolarantes de se estabelecerem as aspiraes modernas da escola universal para todos, proclamadas, toruidosamente, na Conveno Revolucionria Francesa, como um novo estgio da humanidade. Antesdesse perodo, toda educao escolar consistia na especializao de algum, cuja formao j forafeita pela sociedade e em rigor pela "classe" a que pertencia, nas artes escolares, que mais no eramque tipos especiais de ofcios intelectuais e sociais.

    A sociedade formava os homens nas prprias matrizes estveis das "classes" seno "castas",instituies que incorporavam a famlia e a religio, com as suas foras modeladoras e adaptadoras.Formado assim o homem, as aprendizagens mais especficas, relacionadas com o trabalho, se faziampela participao direta na vida comum, ou, no caso de artesanato, pelo regime do mestre e aprendizno ateliers e oficinas da poca.

    A escola e a universidade eram, apenas, aspectos mais amplos dessa especializao do artesanato,com mestres e alunos vivendo em comum, nas corporaes universitrias, em regime de aprendizagemassociada das pequenas e grandes artes intelectuais.

    Quando, na Conveno Francesa, se formulou o ideal de uma educao escolar para todos oscidados, no se pensava tanto em universalizar a escola existente, mas em uma nova concepo desociedade, em que privilgios de classe, de dinheiro e de herana no existissem, e o indivduopudesse buscar, pela escola, a sua posio na vida social. Desde o comeo, pois, a escola universalera algo de novo e, na realidade uma instituio independente da famlia, da classe e da religio,destinada a dar a cada indivduo a oportunidade de ser, na sociedade, aquilo que seus dotes inatos,devidamente desenvolvidos, determinassem.

    Desse modo, a educao escolar passou a visar - no a especializao de alguns indivduos, mas aformao comum do homem e a sua posterior especializao para os diferentes quadros deocupaes, em uma sociedade moderna e democrtica.

    H, antes de tudo, uma transformao radical com a criao da nova escola comum para todos, emque a criana de todas as posies sociais iria formar a sua inteligncia, a sua vontade e o seu carter,os hbitos de pensar, de agir e de conviver socialmente. Essa escola formava a inteligncia, mas noformava o intelectual. O intelectual seria das especialidades de que a educao posterior iria cuidar,mas no constitui objeto dessa escola de formao comum a ser, ento, inaugurada. Por outro lado,alm dessa total inovao, que representava a escola para todos, a prpria educao escolartradicional e ainda existente teria de se transformar, para atender multiplicidade de vocaes, ofciosprofisses em que a nascente sociedade liberal e progressiva comeou a desdobrar-se.

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  • Resistncia do conceito de educao-seleo ou especializao

    Esses novos conceitos e aspiraes no se concretizaram imediatamente. Os moldes antigos eramresistentes e todo o sculo dezenove foi uma luta por tcnicas e processos novos, que permitissem aplena realizao dos ideais escolares da democracia. S muito lentamente a escola comum seemancipou dos modelos intelectualistas para dar lugar escola moderna, prtica e eficiente, com umprograma de atividades e no de "matrias", iniciadora nas artes do trabalho e do pensamentoreflexivo, ensinando o aluno a viver inteligentemente e a participar responsavelmente da sua sociedade.

    A nova escola comum, antes de mais nada, teve de lutar para fugir aos mtodos j consagrados daescola antiga, que, sendo especial e especializante, especializara os seus processos e fizera da culturaescolar uma cultura peculiar e segregada.

    A escola antiga era, com efeito, a oficina que preparava os escolsticos, isto , homens de escola,homens eruditos, intelectuais, crticos... Objetivos, mtodos, processos tudo passou nela a ser algo demuito especializado e, portanto, remoto, alheio vida quotidiana e indiferente s necessidades comunsdos homens. Da a pedagogia, os pedagogos, os didatas, gente de ofcios rebardativos, que s elesentendiam e eles s cultivavam. Movendo-se num crculo vicioso, essa raa de pedagogos no sepreocupava seno em passar adiante as mesmas coisas e os mesmos processos que, desse modo,repetidos noutras escolas, se conservavam em benefcio da sociedade tradicional. Essa escola,enrodilhada em si mesma, ensinando e praticando artes escolares e produzindo sem cessar outrasescolas, era a escola-corporao da Idade Mdia, destinada a formar "escolsticos", do mesmo modopelo qual as oficinas das artes prticas formavam os seus "oficiais"; alfaiates, sapateiros etc.

    Tal organizao no poderia existir sem uma alta especializao de conceitos a respeito de artesprticas e artes escolares ou intelectuais. Na realidade, prevalecia o dualismo grego entre oconhecimento emprico ou prtico e o conhecimento racional ou intelectual. Este no seria umadecorrncia daquele, mas um outro mundo, em que o ato de conhecer valia como fim em si mesmo ese destinava a nos dignificar e dar-nos os deleites da vida espiritual.

    A escola era a oficina do conhecimento racional. A oficina era a escola do conhecimento prtico. Umano conhecia a outra. Dois mundos parte. Podiam se admirar ou se odiar, mas no se compreendiamnem podiam se compreender.

    A aproximao entre esses dois mundos, com a transformao completa de um e outro, d-se com oaparecimento da cincia experimental. A cincia experimental, com efeito, nasce quando o homem doconhecimento racional resolve utilizar-se dos meios e processos do homem da oficina, no para fazeroutros aparelhos ou petrechos mas para elaborar "saber" para "produzir" outros conhecimentos.

    Quando Galileu constri o seu telescpio, para com ele confirmar Coprnico, estava revolucionando,alm do mundo das crenas cosmolgicas, os mtodos do conhecimento racional. O encontro doconhecimento racional com o mundo das oficinas constituiu fato muito mais significativo do que adescoberta do movimento da terra em torno do sol.

    Porque desse encontro entre o "intelecto" e a oficina que partiu todo o sistema de conhecimentocientfico moderno, que nada mais que o conhecimento racional tornado frtil e fecundo, pela sualigao com a realidade concreta do mundo e da existncia. Toda uma nova filosofia do conhecimentose estabeleceu em oposio formula grega de dualismo entre o racional e o emprico. O racional foisubmetido comprovao da experincia e se fez, na realidade, emprico. Efetivamente, as diferenasentre o experimental e o emprico passaram a ser antes de preciso de mtodos, segurana deobservao e de controle na verificao, do que de objeto ou de natureza. Na realidade, a diferenapassou a ser antes de grau de segurana no conhecimento do que da natureza do conhecimento.

    Com efeito, o dualismo institudo pelos gregos criara entre o conhecimento racional e o conhecimentoemprico um abismo intransponvel. O velho conhecimento do senso comum, de natureza emprica,dominava o mundo das artes e o conhecimento racional, o mundo do esprito. Tnhamos, assim, umduplo sistema: o conhecimento emprico produzia as artes empricas, com que resolvia o homem osseus problemas prticos; o conhecimento racional o conduzia ao mundo das essncias, em queaplacava a sua sede de compreenso e coerncia. Pelo conhecimento emprico, agia; peloconhecimento racional, pacificava-se, deleitava-se. No fundo, o conhecimento racional viera parasubstituir o pensamento mtico e religioso. A "razo" dos gregos era uma forma avanada de teologia.

    Quando os hbitos de especular racionalmente se transferiram, no sculo XVI, para as oficinas, cujosaparelhos e petrechos comeavam a ser usados no laboratrio, no para a arte de produzir, mas para aarte de conhecer, criou-se um novo tipo de conhecimento, o conhecimento experimental, destinado a

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  • substituir, no as crenas teolgicas do homem, mas as suas crenas prticas. O conhecimentoexperimental, misto de especulao racional e experincia prtica, iria tomar o lugar do conhecimentoemprico e produzir as tecnologias experimentais que, por sua vez, iriam substituir as artes empricas.Os dois sistemas de conhecimento se fundiram desse modo em um mtodo comum de pensamento eao, unificados e racionais. Em esquema, a mudana foi a seguinte:

    Vida

    e

    mundo grego

    Observao de senso comum - conhecimento emprico - artes empricas.1.

    2. Especulao racional - conhecimento racional compreenso do mundo.

    Vida

    e

    mundo moderno

    Especulao racional - observao e experimentao -conhecimento terico - artes ou tecnologias cientficas.

    As separaes entre o prtico e o racional ou o prtico e o terico desapareceram. Todo oconhecimento, em todas as suas fases, passou a ser prtico, tanto nos seus objetivos quanto em seusmtodos. Prtica, com efeito, era e a especulao racional, porque ela se tem de fazer fundada namais cuidadosa observao, que uma atividade material e prtica; prtica a teoria que essaespeculao elabora, porque tem de ser comprovada experimentalmente; e prtica, por fim, aaplicao dessa teoria nas artes e tecnologias cientficas da produo. Assim, nem pelo mtodo, nempela natureza ou objetivo da investigao diferem as fases da busca do conhecimento, da suaelaborao terica ou de sua aplicao, desaparecendo, assim tambm, toda diferena entre oshomens que estejam pesquisando, ensinando ou aprendendo, ou aplicando o conhecimento, no que dizrespeito s suas atividades, todas elas materiais e prticas.

    So simples divises de trabalhos, semelhantes s que se processam em todas as atividades seriadasou complexas. Tanto prtica a fase de observao e descoberta, como prtica a fase de formulaoterica, como prtica, a da aplicao da teoria aos projetos prticos dos homens.

    Em face dessa unificao, a escola teria de deixar de ser a instituio especial de preparo daqueles"homens racionais ou escolsticos", devotados s atividades do esprito, para se constiturem agnciade educao do novo homem comum para uma sociedade de trabalho cientfico e no "emprico", novelho sentido deste termo. Esta sociedade, est claro, teria de preparar trabalhadores para as trsfases do saber, isto , a pesquisa, o ensino e a tecnologia, mas todos teriam tudo em comum, exceto ogosto diferenciado por essas fases diversas do conhecimento cientfico, de sua natureza unitria. Trscampos de trabalho, diversos mas equivalentes, usando mtodo geral comum e articulado ematividades que se completam mutuamente, desde a pesquisa at a aplicao do conhecimento ou atecnologia.

    A nova "escola pblica" ou "escola comum"

    Em face da aspirao de educao para todos e dessa profunda alterao da natureza doconhecimento e do saber (que deixou de ser a atividade de alguns para, em suas aplicaes, se fazer anecessidade de todos), a escola no mais poderia ser a instituio segregada e especializada depreparo de intelectuais ou "escolsticos", e deveria transformar-se na agncia de educao dostrabalhadores comuns, dos trabalhadores qualificados, dos trabalhadores especializados em tcnicasde toda ordem, e dos trabalhadores da cincia nos seus aspectos de pesquisa, teoria e tecnologia.

    Dada a identificao do novo trabalho agrcola ou fabril com o trabalho cientifico, pois agricultura eindstria mais no so do que campos de aplicao da cincia, todas as escolas, do nvel primrio aouniversitrio, passaram a ser dominantemente escolas de cincia, j ensinando as suas aplicaesgeneralizadas, j as teorias e tcnicas especializadas, j o prprio trabalho de pesquisa, seja no campoterico, seja no campo da aplicao.

    Em todas essas modalidades, em face do carter novo do conhecimento cientfico, o ensino se tem defazer pelo trabalho e pela ao, e no somente pela palavra e pela exposio, como outrora, quando oconhecimento racional era de natureza especulativa e destinado pura contemplao do mundo.

    Se tudo isso se teria de dar em face to-somente da evoluo da teoria do conhecimento cientfico,

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  • ainda novos esclarecimentos nos viria trazer o progresso dos estudos de psicologia. Tais estudos, comefeito, vieram demonstrar que a aprendizagem puramente verbal no era realmente aprendizagem eque, mesmo nos setores de pura compreenso ou de apreciao, somente atravs da experinciavivida e real que a mente apreende e absorve o conhecimento e o integra em formas novas decomportamento.

    Os velhos mtodos da escola medieval, de exposio e pura memorizao, j seriam inadequados,mesmo que s tivessem de formar sucessores dos antigos "escolsticos", ou homens de culturaintelectual ou esttica, capazes de discretear com gosto e elegncia sobre qualquer assunto e nadasaberem fazer. Ainda, pois, que a escola conservasse os seus velhos objetivos, ainda assim se teria defazer ativa, prtica, de experincia e de trabalho.

    O "arcasmo" da escola brasileira

    Sendo esta a escola adequada aos dias de hoje, at que ponto a escola brasileira dela se aproxima?Temos do novo mtodo de trabalho escolar vrios exemplos. O Instituto Tcnico de Aeronutica, emSo Jos dos Campos, uma das melhores ilustraes. Algumas escolas de medicina esto em cheionesse esprito. Os institutos onde se faz, verdadeiramente, a pesquisa cientfica adotam os mtodosnovos. So assim os cursos do SENAI e alguns cursos profissionais de tcnicos industriais. Os cursosintensivos ou ps-graduados assumem, por vezes, esses aspectos atuais e prticos.

    Mas, tudo isso, de certo modo, ainda marginal e extraordinrio. Regulares e sistemticas so asformas arcaicas do ensino pela "exposio oral" e "reproduo verbal" de conceitos e nomenclaturas,mais ou menos digeridos por simples "compreenso", as quais dominam esmagadoramente a escolaprimria, a escola mdia, sobretudo a secundria, e a maior parte das escolas superiores.

    A atividade escolar consiste em "aulas", que os alunos "ouvem", algumas vezes tomando notas, e nos"exames", em que se verifica o que sabem, por meio de provas escritas e orais. Marcam-se alguns"trabalhos" para casa e na casa se supe que o aluno "estuda", - o que corresponde a fixar de memriaquanto lhe tenha sido oralmente ensinado nas aulas.

    Esta pedagogia podia perfeitamente funcionar numa escola da Idade Mdia. A sua filosofia doconhecimento a de que o conhecimento um corpo de informaes sistematizadas sobre as coisas,que se aprendem, compreendendo-as e decorando-as para a reproduo nos exames.

    E chamamos a isso educao de "cultural geral" e, algumas vezes, educao humanstica, - sendo quemuitos pensam que, se a modificarmos, destruiremos a nossa civilizao, humanista e crist...

    Ensinam-se, por esse mtodo expositivo, conhecimentos tericos sobre as lnguas (latim, portugus,francs, ingls, espanhol), sobre a geografia e a histria, sobre as cincias, e at sobre a msica e otrabalho manual. Como a escola de "cultura geral", nada tem carter prtico. Raramente se consegueler ou escrever qualquer daquelas lnguas, inclusive o portugus, mas sabe-se de cor uma poro, svezes considervel, de noes gramaticais sobre essas lnguas e alguns trechos familiares podem sertraduzidos ou vertidos pelos alunos, desde que os trechos tenham sido "dados" nas aulas.

    Em matemtica, aprende-se largamente a manipulao algbrica, sem nenhum cuidado com a suaaplicao. Trata-se de algo como matemtica pura, sendo, de certo modo, a prpria aritmticaconsiderada talvez demasiado aplicada e portanto insuscetvel de servir cultura geral.

    Histria, geografia e as prprias cincias fsicas e naturais tambm so ensinadas por exposio oral ecom particular nfase nos conhecimentos informativos ou na terminologia cientfica. Nem a funo, nema aplicao do conhecimento tem a o menor sentido. O conhecimento algo de absoluto em simesmo, a ser ensinado para ser repetido nas ocasies determinadas pelos exames.

    Est claro que tal ensino no sequer o ensino das escolas da Idade Mdia, mas o importante queele o que em virtude de uma teoria medieval do conhecimento.

    Entre os escolsticos, herdeiros do saber grego, o saber era um saber absoluto e completo. Na IdadeMdia, sabia-se tudo. O mundo havia ficado conhecido pela revelao divina e pela revelaoaristotlica. O desenvolvimento acaso possvel nesse saber no traria propriamente nada de novo, masnovas distines, novas discriminaes, novos comentrios e refinamentos de classificao.

    Aprender essa "cultura" consistiria em compreender e fixar suas categorias, suas classificaes, suasdistines e habilitar-se algum a poder falar sobre o mundo e ns mesmos, com erudio e elegncia,

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  • e contemplar as belezas desse conhecimento, belezas que se encontravam nas obras dos grandesmestres. Todo esse saber se achava em livros definitivos, cuja leitura daria toda a cultura possvel. O"lente" era o leitor. Os alunos ouviam e aprendiam.

    Somente semelhante teoria do saber poderia produzir a escola brasileira, com seus curtos perodos deaulas, seus pobres livros esquemticos e seus exames para reproduo do aprendido nas aulas.Acrescentamos uma novidade teoria: na Idade Mdia o "lente" era um especialista desse tipo desaber, nada mais fazia do que lidar com os seus alfarrbios, era mestre de uma arte hermtica, de queo aluno seria o aprendiz. Entre ns, o "professor" pode ser qualquer pessoa que saiba mais ou menosler. Encurtamos o perodo de aulas, encurtamos os professores. Nessa escola brasileira, tudo pode serdispensado: prdio, instalaes, biblioteca, professores... Somente no pode ser dispensada a listacompleta de matrias. Qualquer daquelas disciplinas tem de existir no currculo. Uma s queretiremos, por abaixo todo o edifcio da nossa cultura! Ai de quem pensar em tirar uma s daquelaslnguas, ou fundir uma disciplina na outra!...

    Seria talvez exagerado pensarmos que, nesse caso brasileiro, ainda estamos lidando apenas com avelha noo do "conhecimento completo", total, da Idade Mdia, porque a verdade que os currculosenciclopdicos decorrem, em grande parte, do medo dos professores de "perderem" aulas, que so oseu ganha-po, com a simplificao dos currculos... Mas, abaixo ou acima dessa razo "prtica", esta racionalizao de que a cultura algo de completo e que nada pode ser ignorado, sem grave defeitopara a cultura.

    Se nada pode ser ignorado porque o saber algo de "completo". Seria, ento, loucura no o dar todoem nossos famosos cursos de "cultura geral", eufemismo em que escondemos a nossa concepomedieval de cultura como Suma Cultural.

    Longe de mim pensar que no exista cultura geral, mesmo em nossos dias. Mas cultura geral no cultura superficial, e sim exatamente o contrrio. Cultura geral seria o ltimo grau de generalizao doconhecimento. Todo conhecimento especial. Quando tomo esse conhecimento especial no seu ltimograu de generalizao, tenho o conhecimento filosfico, que me daria uma cultura geral. evidente queme terei de especializar nesse conhecimento geral...

    Poder-se-ia tambm considerar cultura geral a cultura comum a todos, mas essa cultura seria umacultura de uso comum e no, propriamente, uma cultura especializadamente intelectual. Seria umatraduo popular e geral das culturas especializadas, que constituem hoje o mundo sem fim e emeterno crescimento do saber. Salvo pelos livros chamados de popularizao da cincia e da cultura,no vejo outro modo de se poder buscar esse tipo de cultura na escola.

    Na realidade, ou teremos cultura geral como a mais alta expresso da cultura, como a praticam osfilsofos, e s longos anos de estudos, altamente especializados, nos levaro a ela, ou teremos umacultura geral popularizada, a ser dada pelos chamados vulgarizadores das cincias, das artes e dasfilosofias.

    No primeiro caso, poderemos, com determinados alunos de alta capacidade, trein-los no uso dasidias, familiariz-los com o jogo dos conceitos matemticos, cientficos, literrios e artsticos, ehabilit-los a ser especialistas nas idias fundamentais com que a mente humana vem elaborando osseus extensssimos conhecimentos experimentais, em todos os setores do saber humano. Estes seriamos estudiosos de cultura geral, e na realidade, filsofos das cincias, das artes, das letras e da religio.

    Aos demais alunos, a cultura geral s poder ser ministrada pelos livros de popularizao da cultura. Asnossas escolas no so uma coisa nem outra. Arcaicas nos seus mtodos e seletivas nos currculos,no so de preparo verdadeiramente intelectual, no so prticas, no so tcnico-profissionais, nemso de cultura geral, seja l em que sentido tomarmos o termo.

    Mas so, por fora da tradio, escolas que "selecionam", que "classificam" os seus alunos. Passarpela escola, entre ns, corresponde a especializar-nos para a classe mdia ou superior. E a est a suagrande atrao. Ser educado escolarmente significa, no Brasil, no ser operrio, no ser membro dasclasses trabalhadoras.

    A escola como formao do "privilegiado"

    Mesmo no ensino primrio vamos encontrar a nossa tendncia visceral para considerar a educao umprocesso de preparo de alguns indivduos para uma vida mais fcil e, em rigor, privilegiada. Como esseensino no chega a formar o "privilegiado", aquela tendncia provoca a deteriorao progressiva deste

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  • ensino, sobretudo depois que passou ele a contar realmente com esmagadora freqncia popular.

    Para isto demonstrar no preciso mais do que apresentar algumas cifras.

    Tnhamos, em 1900, 9.750.000 habitantes de mais de 15 anos, dos quais 3.380.000 eram alfabetizadose 6.370.000 analfabetos. Em 1950, 14.900.000 eram alfabetizados e 15.350.000, analfabetos.Diminumos a percentagem de analfabetos de 65% para 51%, em cinqenta anos, mas em nmerosabsolutos, passamos a ter bem mais do dobro de analfabetos.

    Se considerarmos o analfabeto, como seria lcito considerar, um elemento mais negativo do quepositivo na populao, a situao brasileira, do ponto de vista da educao comum, tornou-se em 1950pior do que em 1900. Mas, se tomarmos o ponto de vista de que o processo educativo um processoseletivo, destinado a retirar da massa alguns privilegiados para uma vida melhor, que se far possvelexatamente porque muitos ficaro na massa a servio dos "educados", ento o sistema funciona,exatamente, porque no educa todos, mas somente uma parte.

    Bendito seja o nosso crescimento demogrfico que anula o nosso pequeno esforo em aumentar asoportunidades de educao primria, sem lhe tirar, por isto mesmo, o carter de educao seletiva!

    Tomemos, porm, apenas a populao de menos de 15 anos, isto , a populao em processo dealfabetizao e vejamos se a escola vem dando conta da tarefa em relao a esses futuros adultos.

    QUADRO 1 - DISTRIBUIO, POR IDADE, DA POPULAO DE MENOS DE 15 ANOS

    IDADE

    TOTAL ALFABETIZADOS ANALFABETOS E SEMDECLARAO

    8 anos

    9 anos

    10 anos

    11 anos

    12 anos

    13 anos

    14 anos

    TOTAL

    1 389 175

    1 259 533

    1 436 438

    1 189 571

    1 351 233

    1 157 404

    1 173 921

    8 957 275

    281 832

    388 735

    487 541

    520 075

    583 930

    574 225

    592 954

    3 429 392

    1 107 243

    870 798

    948 897

    669 496

    767 303

    583 179

    580 967

    5 227 883

    % de alfabetizados s/total - 38,2%

    Numa populao por alfabetizar de 8.950.000, conseguimos alfabetizar 3.400.000, isto , 38%,conservando analfabetos, para engrossar a grande fileira dos que vo nos ajudar a sermos"privilegiados", 5.500.000 brasileiros. Estamos, com efeito, a aumentar o analfabetismo no Brasil e noa reduzi-lo a despeito do aparente crescimento vegetativo das escolas. Digo aparente, porque esseprprio crescimento vegetativo, na realidade, no chega a ser crescimento. Em face do crescimento dapopulao, estamos a congestionar as escolas e no a aument-las, estamos a reduzir o ensino e noa aument-lo.

    Todos os ndices confirmam essa minha severidade. Tomemos, por exemplo, a matrcula efetiva dasescolas primrias em relao com as concluses do curso, em 20 anos, de 1933 a 1953:

    Quadro 2 - Concluses de curso no ensino primrio(cursos de 3 e 4 sries)

    1933 1940 1950 1953

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  • Matrcula efetiva

    Concluses de curso

    % s/matrcula na 1 srie

    1 794 335

    124 208

    7%

    2 555 191

    202 603

    8%

    3 709 887

    283 874

    7%

    4 142 318

    316 986

    7%

    Se isso no basta para provar a estagnao do ensino primrio, tomemos a percentagem do corpodocente, diplomado por escolas normais: tnhamos, em 1933, 53.000 docentes com 57,8% dediplomados. H trs anos, em 1953, 134.000 eram estes docentes, dos quais apenas 53% diplomados.

    Se no bastar o nmero crescente de analfabetos, se no bastar o aumento da percentagem deprofessores no diplomados, tomemos o progresso dos alunos atravs das sries, em dez anos, entre1944 e 1953:

    Quadro 3 - Percentagem dos alunos pelas cinco sries

    Anos

    Matrcula

    geral

    1 srie 2 srie 3 srie 4 srie 5 srie

    1944

    1945

    1946

    1947

    1948

    1949

    1950

    1951

    1952

    1953

    100.0

    100.0

    100.0

    100.0

    100.0

    100.0

    100.0

    100.0

    100.0

    100.0

    53,4

    53,9

    54,9

    54,7

    56,6

    56,4

    56,3

    56,5

    56,9

    56,9

    21,9

    21,8

    21,2

    21,6

    21,1

    21,2

    21,1

    20,8

    20,6

    20,6

    14,9

    14,5

    14,5

    14,4

    14,0

    14,0

    14,1

    14,1

    14,0

    14,0

    8,3

    8,3

    7,9

    8,2

    7,8

    8,0

    8,0

    8,0

    8,1

    8,1

    1,5

    1,5

    1,5

    1,1

    0,5

    0,4

    0,5

    0,5

    0,4

    0,4

    Como se v, a situao dolorosamente estacionria, como estacionria e at decrescente, na ltimasrie, tambm a taxa de aprovao por srie:

    Quadro 4 - Aprovaes pelas sries

    Anos

    Matrcula

    geral

    1 srie 2 srie 3 srie 4 srie 5 srie

    1944

    1945

    1946

    1947

    1948

    1949

    1950

    1951

    1952

    1953

    1 477 192

    1 503 118

    1 604 481

    1 691 231

    1 824 034

    1 903 650

    2 027 944

    2 152 375

    2 258 004

    2 357 207

    610 767

    628 333

    684 395

    730 157

    790 580

    852 077

    913 478

    989 023

    1 039 199

    1 098 017

    379 291

    393 528

    407 857

    434 969

    471 722

    475 942

    513 382

    526 991

    557 680

    570 012

    282 439

    275 837

    299 751

    309 212

    339 783

    347 914

    360 543

    382 540

    390 995

    412 138

    174 543

    175 846

    180 662

    193 889

    209 328

    217 124

    225 606

    239 508

    253 797

    262 844

    30 152

    29 574

    31 816

    23 004

    12 621

    10 593

    14 935

    14 313

    16 333

    14 196

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    7 de 17 27/04/2015 09:58

  • Diante disto, j no tem a mesma eloqncia o crescimento em nmeros absolutos. No exageramos,pois, quando afirmamos a franca deteriorao do ensino primrio, com a exarcebao do carterseletivo da educao, no seu vezo de preparar alguns privilegiados para o gozo das vantagens declasse e no o homem comum para a sua emancipao pelo trabalho produtivo.

    Com efeito, se deixarmos o ensino primrio e passarmos a analisar o ensino mdio e o superior, j aexpanso perfeitamente acentuada. E em relao ao ensino mais acentuadamente de classe - que o secundrio - essa expanso chega a ser espetacular.

    Antes, porm, de passarmos anlise da situao do ensino secundrio, tomemos o quadro abaixo,relativo matrcula e distribuio por sries dos alunos do curso primrio entre 1944 e 1953:

    Quadro 5 - Distribuio por srie dos alunos na escola primria

    Anos

    Matrcula

    total

    1 srie 2 srie 3 srie 4 srie Concluso

    de curso

    1944

    1945

    1946

    1947

    1948

    1949

    1950

    1951

    1952

    1953

    2 631 451

    2 741 725

    2 887 960

    3 063 775

    3 301 084

    3 479 056

    3 709 887

    3 860 593

    3 964 905

    4 142 318

    1 402 647

    1 478 113

    1 583 585

    1 675 887

    1 864 987

    1 960 732

    2 087 964

    2 180 131

    2 239 859

    2 352 093

    577 130

    597 384

    613 349

    662 148

    698 408

    736 666

    784 546

    805 060

    833 329

    854 480

    391 610

    398 180

    419 779

    440 372

    462 459

    487 585

    519 911

    545 737

    549 096

    581 476

    219 674

    226 577

    228 365

    151 137

    258 534

    279 903

    299 009

    310 615

    322 010

    336 196

    127 468

    127 151

    133 591

    149 725

    185 251

    193 822

    206 380

    219 241

    236 089

    243 652

    Dos alunos de 4 srie, concluem-na com xito os constantes da ltima coluna. Por conseguinte, todo oensino primrio brasileiro frutifica, afinal, nos 243.652 doutorezinhos aprovados na 4 srie. A proporode alunos que passam em cada ano para a srie seguinte pode ser vista no Quadro 3. Esto na 1srie 57% dos alunos matriculados no ensino primrio, na 2 srie - 20%, na 3 - 14% e na 4 - apenas8%. Que sucede a esses 8%? Longe de conservarem a tendncia reduo na srie seguinte,encontram-se quase todos no ensino mdio, pois, com efeito, a matrcula 1 srie do ginasial de180.000, que somados a 24.000 do comercial e 6.000 do industrial, elevam a freqncia 1 srie doensino mdio a 210.000 alunos, sem contar os do curso normal. Enquanto entre a 3 srie primria e da4, a queda brusca de 580.000 para 330.000, ou da 4 srie primria para a 1 srie secundria,tomados os aprovados naquela srie, temos que dos 243.000 chegam ao secundrio 210.000 alunos.

    Bem sabemos que, no havendo articulao entre o ensino primrio e o mdio, aqueles 210.000 alunosno so rigorosamente os mesmos que terminam o primrio. Isto, porm, torna ainda mais significativoo fato. Na realidade, se atentarmos em que o ensino secundrio e mdio s existe nas capitais e em1/3 dos municpios do interior e apesar disto logra essa matrcula, que a escola secundria muitomais desejada do que a escola primria. E por que? Porque "classifica" o aluno e o lana entre osprevilegiados e semiprevilegiados da nao.

    A transigncia ou compromisso do dualismo escolar

    Dir-se- que, assim, deve realmente ser. As escolas no foram afinal criadas para renovar associedades, mas para perpetu-las e, por isso mesmo, a sua relao com as estruturas sociais declasse havia de ser a mais estrita. Nenhum sistema de escolas foi jamais criado com o propsito desubverter a estratificao social reinante.

    A realidade, porm, que a idia da escola comum ou pblica, nascida com a revoluo francesa - amaior inveno social de todos os tempos, no dizer de Horace Mann - importa exatamente emsobrepor-se ao conceito de classe e prover uma educao destinada a todos os indivduos, sem ainteno ou o propsito de prepar-los para quaisquer das classes existentes.

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    8 de 17 27/04/2015 09:58

  • Na prpria Frana, entretanto, tal escola s se estabeleceu, mediante uma transao. Criou-se, certo,um sistema popular de educao, mas conservou-se, ao lado, o sistema de educao de classe. Aescola primria, a escola primria superior, as escolas normais e as profissionais constituam o sistema"popular". As classes prparatoires, o liceu, as "grandes escolas" e a universidade, o sistema deeducao de classe, ou para elite. O dualismo era perfeito, no havendo possibilidade sequer decomunicao. O esprito "primrio" dominava o sistema popular, o esprito "secundrio" dominava osegundo.

    Apesar de havermos copiado as instituies polticas Amrica do Norte, no lhe copiamos asinstituies educativas. Fomos antes buscar inspirao na Frana. A escola primria, a escolacomplementar, a escola normal e as escolas "profissionais" constituam o nosso sistema popular deeducao. O "ginsio" e a "academia", o nosso sistema de educao de classe ou de elite.

    Tal dualismo, graas ao qual, recusvamos a nossa adeso escola comum, coammom schoolamericana ou a cole unique francesa - a que tambm a Frana recusou a adeso, a despeito dasmaiores campanhas - impediu sempre, entre ns, o florescimento da "escola pblica comum". Estaescola - fosse a primria ou a "mdia-profissional", em que pese a certo empenho do Governo, jamaisgozou de verdadeiro prestgio social.

    A sociedade brasileira que contava, isto , a sociedade de "classe", no sentido de classe dominante,dela no precisava. Em alguns casos, freqentava a "escola primria", mas, quando o fazia,transformava tambm essa escola em escola de classe, exigindo condies econmicas satisfatriaspara que se pudesse freqent-la: o uniforme e os sapatos, s vezes, bastavam para delas afastar opovo.

    As escolas refletiram, assim, de acordo com o velho estilo, o dualismo social brasileiro, entre os"favorecidos" e os "desfavorecidos". Por isso mesmo, a escola comum, a escola para todos, nuncachegou, entre ns, a se caracterizar, ou a ser de fato para todos. A escola era para a chamada elite. Oseu programa, o seu currculo, mesmo na escola pblica, era um programa e um currculo para"privilegiados". Toda a democracia da escola pblica consistiu em permitir ao "pobre" uma educaopela qual pudesse ele participar da elite.

    Ora, a idia de "educao comum", da escola pblica americana ou da cole unique francesa, no eranada disso. No se cogitava de dar ao pobre a educao conveniente ao rico, mas, antes, de dar aorico a educao conveniente ao pobre - pois, a nova sociedade democrtica no deveria distinguir -entre os indivduos, os que precisavam dos que no precisavam de trabalhar, mas a todos queriaeducar para o trabalho, distribuindo-os pelas ocupaes, conforme o mrito de cada um e no segundoa sua posio social ou riqueza.

    No se tratava, com efeito, de generalizar a educao para os "privilgios", mas de acabar com tais"privilgios", em uma sociedade hierarquizada nas ocupaes, mas desierarquizada socialmente.

    Entre ns, porm, apesar de havermos tido o cuidado de criar o sistema de educao "popular", distintodo sistema de educao da elite, a classe dominante, mais dominante do que rica, ocupou at muitorecentemente a prpria "escola primria pblica", dando-lhe a ela prpria o carter de escola de classe,no que muito a ajudou, sobretudo nas grandes cidades, o recrutamento do magistrio primrio naclasse mdia e, s vezes, at na superior.

    Fora as "escolas profissionais", nenhuma outra escola brasileira escapou a esprito de educao de"elite", profundamente arraigado em nossa sociedade e agravado ainda pelo preconceito contra otrabalho manual, que nos deixou a escravido.

    O dualismo escolar entra em crise

    Tudo isso funcionou, entretanto, sem maior gravidade, enquanto perdurou na vida brasileira o dualismopacfico entre os "favorecidos" ou "privilegiados" e os desfavorecidos ou desprivilegiados.

    Com a formao de uma conscincia comum de direitos em todo o povo brasileiro, cuja emancipaoveio afinal a se processar, nos ltimos vinte e cinco anos, deparamo-nos com um sistema escolar detodo inadequado para lidar com o verdadeiro problema educativo de um povo j agora uno e indiviso.

    O nosso sistema arcaico de educao, - destinado ao preparo das nossas diminutas classes de lazer ede mando, mando muito mais decorrente do "prestgio" social dessas classes do que de suacompetncia, e por isto mesmo fcil de ser exercido - podia ser puramente "decorativo" e, ainda assim,

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    9 de 17 27/04/2015 09:58

  • atingir os seus objetivos.

    J agora, porm, no lhe basta isto. o povo brasileiro que tem ele de educar. Este povo no podeviver do "prestgio", que lhe d o fato de haver alisado os bancos escolares, mesmo porque "prestgio"se goza contra algum ou custa de algum e j no h esse algum contra o qual se possaexerc-lo.

    O primeiro movimento do povo brasileiro est sendo o de conquista dessa educao decorativa, antesdestinada elite. A chamada expanso educacional brasileira nada mais do que a generalizao paratodos da educao da elite. Como todos, que a esto buscando, no podem ter padres mais lcidosdo que os da prpria elite, eles ainda a aceitam mais decorativa, mas simulada do que a prpria elite.

    J vimos como o ensino primrio nos confirma, pela sua perda crescente de prestgio social, a falta deinteresse pela educao comum e a preferncia pelo ensino seletivo. Mas o ensino mdio e o superior,por sua prpria natureza seletivos, que nos revelam o grau de exacerbao a que chega a nossabusca de "prestgio" e no de eficincia pela educao.

    A expanso desses dois nveis de ensino , de algum tempo para c, absolutamente incoercvel.Existem 2.363 escolas de nvel mdio, sendo que 1.887 mantm o curso secundrio, 628, o comercial,873, o normal, 86, os cursos industriais e 17, o curso agrcola. A matrcula geral de 780.639, sendo579.781 no secundrio, 114.000 no comercial, 67.000 no normal, 19.000 no industrial e 1.200 noagrcola. Na primeira srie encontram-se 180.000 no secundrio, 24.000 no comercial, 24.000 nonormal e 6.200 no industrial, ao todo 234.000, nmero equivalente aos dos que terminam o cursoprimrio.

    Todas as cifras so reveladoras da preferncia manifesta pelo tipo de educao verbal, decorativa,destinada a permitir a vida que no seja a comum do brasileiro e sobretudo em que no haja esforomanual. Os cursos industriais l esto com menos de 3% da matrcula geral, o agrcola com 1,1% e ocomercial com pouco mais de 14%. O que todos procuram o curso secundrio acadmico,preparatrio para o ensino superior.

    A energia improvisadora posta a servio dessa expanso do ensino propedutico ao superior pode serverificada na constituio do seu magistrio. Apenas 16% dos seus professores so licenciados dasescolas de filosofia, embora estas tenham j mais de 20 anos de existncia. As demais escolassuperiores forneceram 24% do corpo docente. Com diplomas de escolas mdias - metade normalistas -h 41% dos professores. Os restantes 19% no tm diploma algum. O professorado do ensino mdio jatinge a mais de 47.000 docentes, nmero superior em quase o dobro ao de qualquer outra profissoliberal tomada isoladamente.

    Tal expanso - como audcia educacional - s superada pela do ensino superior, onde estamos hojecom 73.000 alunos e 12.672 professores, quando tnhamos em 1929 apenas 13.239 alunos e 2.116professores.

    O sistema de ensino primrio somente existe para abastecer de alunos esses dois sistemas seletivos,em que estamos a formar quadros de nvel superior muito acima, - no de nossas necessidades, masda nossa capacidade de utiliz-los e remuner-los. Porque, tais quadros s se devem expandirlegitimamente, quando a produtividade individual chega a tal ponto que os quadros de servios sefazem maiores do que os da produo propriamente dita.

    Na Amrica do Norte, para um quadro de 13 milhes de operrios, h quadros de servios da ordem de50 milhes. Mas isto, porque o operrio chegou a uma produtividade que se mede pelo salrio mnimode um dlar por hora.

    Entre ns, porm, com o operrio mais ou menos bisonho, pois somente continua operrio quem noconsegue "educar-se", onde iremos buscar recursos para pagar a todos que, "educados", apenas sepodero dedicar aos "servios" intermedirios da civilizao?

    Se a isto acrescentarmos que a educao ministrada por essa inflao de escolas no tem qualquergrau de eficincia, veremos que considerar essa educao como a educao para os servios de umacivilizao, apenas fora de expresso. Na realidade, a educao, como se vem fazendo entre ns,d direitos, graas ao diploma oficial, mas no prepara nem habilita para coisa alguma. O diplomado um candidato penso do Estado ou dos particulares. Alguns se faro, depois, profissionais, portirocnio e prtica, no pela escola, salvo as excees conhecidas das melhores escolas de medicina,engenharia e direito.

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    10 de 17 27/04/2015 09:58

  • Necessidade de uma nova poltica educacional

    Outra seria a situao, se houvssemos conseguido criar realmente um autntico sistema de educaopblica, destinado "educao "comum". Como nos Estados Unidos, onde foi mais vigoroso e correto odesenvolvimento da common school, veramos a ascenso do povo brasileiro, graas sua unificao,para nveis econmicos cada vez mais altos, sem perda, porm, das suas condies de ocupao etrabalho.

    As escolas brasileiras esto, com efeito, a ser buscadas pelo povo com ansiedade crescente, havendofilas para a matrcula da mesma natureza das filas para a carne. Os turnos se multiplicam, os prdiosse congestionam, os candidatos aos concursos de admisso so em nmero muito superior aos dasvagas e as limitaes de matrcula constituem graves problemas sociais, s vezes at de ordempblica.

    A conscincia da necessidade da escola, to difcil de criar em outras pocas, chegou-nos, assim, deimprevisto, total e sfrega, a exigir, a impor a ampliao das facilidades escolares. No podemosludibriar essa conscincia. O dever do governo - dever democrtico, dever constitucional, deverimprescritvel - o de oferecer ao brasileiro uma escola primria capaz de lhe dar a formaofundamental indispensvel ao seu trabalho comum, uma escola mdia capaz de atender variedade desuas aptides e das ocupaes diversificadas de nvel mdio e uma escola superior capaz de lhe dar amais alta cultura e, ao mesmo tempo, a mais delicada especializao. Todos sabemos quanto estamoslonge dessas metas, mas o desafio do desenvolvimento brasileiro o de atingi-las, no mais curto prazopossvel, sob pena de perecermos ao peso do nosso prprio progresso.

    A educao primria j se distribui no pas por mais de 70.000 unidades, com cerca de 140.000professores, abrigando cerca de 4 milhes de crianas, custando nao cifra que no inferior a trsbilhes de cruzeiros. Estes os nmeros que, em si, parecero significativos.

    Mas, por trs dos nmeros esconde-se, como vimos, uma realidade bem pouco animadora. Estesalunos no se conservam na escola, em mdia, mais que 2 anos e pouco. Em todo o pas, apenas 8 a10% deles chegam quarta srie primria. Com a matrcula em muito superior sua capacidade, aescola se divide em turnos, oferecendo ao aluno meio dia escolar e, em muitos casos, um tero do diaescolar, com a conseqente reduo de programa.

    Com programa assim reduzido pela angstia de tempo, sofre ainda a escola uma administraocentralizada e rgida, que lhe dificulta a adaptao a condies cada vez mais difceis defuncionamento. Por outro lado, o professor, integrado em quadro nico pertencente a todo o Estado,desligou-se da escola, para pertencer s secretarias de educao, onde vive numa competiodolorosa por promoes, remoes e comisses, que se fazem os objetivos da profisso.

    Com esse professorado extremamente mvel seno fluido e as matrculas duplicadas ou triplicadas, aescola entra a funcionar por sesses, como os cinemas, e a se fazer cada vez menos educativa, porisso mesmo que sem continuidade nem seqncia.

    Com efeito, a instituio que, por excelncia, deve ser estvel a fim de contrabalanar a instabilidademoderna, faz-se ela prpria incerta e instvel, com administrao e professorado em mudanapermanente e os alunos na ronda dos turnos cada vez mais curtos.

    Tais circunstncias fazem com que a escola primria venha perdendo a funo caracterstica de ser agrande escola comum da nao, a escola de base, em que se educa a grande maioria de seus filhos,para se constituir simples escola de acesso, preparatria ao ginsio, para onde se dirige a maior partedos alunos que logram chegar quarta srie.

    Este desvirtuamento da escola primria concorreu, junto com outras circunstncias, para exacerbar oanseio pela escola secundria de tipo acadmico, que entrou a ser improvisada de todos os modos, afim de continuar a educao preparatria, que a escola primria iniciara nos seus fugidios turnos deensino.

    Tais escolas secundrias, como as primrias funcionando em turnos, como as primrias, improvisadas,como as primrias, de puro ensino verbalstico, e, ainda, como as primrias, puramente preparatriasprosseguem com os seus alunos num esforo, no de formao, mas de seleo e acabam comapenas dezessete mil alunos na ltima srie de colgio. Sobreviventes de um sistema escolarinadequado e frustro, no tm estes poucos milhares de alunos outra coisa a fazer seno aspirar escola superior, para cujo exame vestibular se precipitem em levas muito superiores ao nmero de

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  • vagas existentes... A os espera um concurso altamente seletivo, que se vem tornando suplciosemelhante a dos arcaicos exames chineses. No final de contas, dos quatro milhes de alunosprimrios, reduzidos a setecentos mil de ensino secundrio, emergem os sessenta mil alunos dasescolas superiores que, mal ou bem, se vo diplomar para as carreiras de nvel mais alto.

    Tudo estaria, talvez, bem se efetivamente no visssemos formao de todos os brasileiros para osdiversos nveis de ocupaes de uma democracia moderna, mas to-somente seleo de ummandarinato de letras, das cincias e das tcnicas.

    Nenhum pas vive, porm, de um tal mandarinato intelectual, ainda que realmente capaz, o que no ocaso brasileiro, mas dos quadros numerosos e eficazes do trabalhador comum, formado na escolaprimria, dos quadros do trabalhador qualificado, treinado diretamente pela indstria e pelos cursos decontinuao, dos quadros do especialista de nvel mdio preparado nos cursos mdios, mltiplos evariados, e dos quadros de especialistas de nvel alto, formados pela universidade e pelas escolassuperiores.

    A escola primria que ir dar ao brasileiro esse mnimo fundamental de educao no ,precipuamente, uma escola preparatria para estudos ulteriores. A sua finalidade , como diz o seuprprio nome, ministrar uma educao de base, capaz de habilitar o homem do trabalho nas suasformas mais comuns. Ela que forma o trabalhador nacional em sua grande massa. , pois, umaescola, que o seu prprio fim e que s indireta e secundariamente prepara para o prosseguimento daeducao ulterior primria. Por isto mesmo, no pode ser uma escola de tempo parcial, nem umaescola somente de letras, nem uma escola de iniciao intelectual, mas uma escola sobretudo prtica,de iniciao ao trabalho, de formao de hbitos de pensar, hbitos de fazer, hbitos de trabalhar ehbitos de conviver e participar em uma sociedade democrtica, cujo soberano o prprio cidado.

    No se pode conseguir essa formao em uma escola por sesses, com os curtos perodos letivos quehoje tem a escola brasileira. Precisamos restituir-lhe o dia integral, enriquecer-lhe o programa comatividades prticas, dar-lhe amplas oportunidades de formao de hbitos de vida real, organizando aescola como miniatura da comunidade, com toda a gama de suas atividades de trabalho, de estudo, derecreao e de arte.

    Ler, escrever, contar e desenhar sero por certo tcnicas a ser ensinadas, mas como tcnicas sociais,no seu contexto real, como habilidades, sem as quais no se pode hoje viver. O programa da escolaser a prpria vida da comunidade, com o seu trabalho, as suas tradies, as suas caractersticas,devidamente selecionadas e harmonizadas.

    A escola primria, por este motivo, tem de ser instituio essencialmente regional, enraizada no meiolocal, dirigida e servida por professores da regio, identificados com os seus mores, costumes.

    A regionalizao da escola que, entre ns, se ter de caracterizar pela municipalizao da escola, comadministrao local, programa local e professor local, concorrer em muito para dissipar os aspectosabstratos e irreais da escola imposta pelo centro, com programas determinados por autoridadesremotas e distantes e servida por professores impacientes e estranhos ao meio, sonhandoperpetuamente com redentoras remoes.

    Tal escola com horrios amplos, integrada no seu meio e com ele identificada, regida por professoresprovindos das suas mais verdadeiras camadas populares, percebendo os salrios desse meio, seruma escola reconciliada com a comunidade e j sem o carter ora dominante de escola propeduticaaos estudos ulteriores ao primrio. Esta ser a escola fundamental de educao comum do brasileiro,regionalmente diversificada, comum no pela uniformidade, mas pela sua equivalncia cultural.

    Assim que os recursos permitirem, ela se ir ampliando em nmero de sries e entrando pelo nvel dasescolas de segundo grau, sem perder os caractersticos de escola mais prtica do que intelectualista eos de integrao regional to perfeita quanto possvel.

    Est claro que essa escola, nacional por excelncia, a escola da formao do brasileiro, no pode seruma escola imposta pelo centro, mas o produto das condies locais e regionais, planejada, feita erealizada sob medida para a cultura da regio, diversificada, assim, nos seus meios e recursos, emborauma nos objetivos e aspiraes comuns.

    tempo j de esquecermos o nosso hbito de pensar que os brasileiros residentes fora das metrpolesprecisam das lies e das cautelas do centro para se fazerem brasileiros, ou nacionais, como de certogosto totalitrio afirmar. Todos os brasileiros so to bons brasileiros quanto os funcionrios federais,

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  • nada havendo que nos garanta serem tais funcionrios mais seguros em definir o que seja nacional doque os servidores estaduais ou municipais.

    O pas um s, com uma s lngua, uma s religio dominante ou majoritria, uma s cultura, emboracom diversas subculturas, e em caminho para a unificao social em um s povo, distribudo porclasses, mas classes abertas e de livre e fcil acesso. Alm disto, ligado j por uma extensa e intensarede de comunicao, pelo avio e pelo rdio, que permita a livre, ampla e rpida seno simultneacirculao de idias e notcias. Nenhum motivo j existe para as cautelas centralistas e centralizantes,que se poderiam justificar em outras pocas, embora nem sempre com os mais puros propsitos.

    A descentralizao, assim, contingncia da nossa extenso territorial e de nosso regime federativo edemocrtico, hoje uma soluo - alm de racional e inteligente - absolutamente segura. Tenhamos,pois, o elementar bom senso de confiar no pas e nos brasileiros, entregando-lhes a direo dos seusnegcios e, sobretudo, da sua mais cara instituio - a escola, cuja administrao e cujo programa deveser de responsabilidade local, assistida e aconselhada tecnicamente pelos quadros estaduais efederais.

    Organizados que sejam, assim, os sistemas municipais de educao e ensino, as escolas passaro aser instituies nutridas pelo orgulho local, vivas e dinmicas, a competir com os demais sistemasmunicipais e a encontrar nessa competio as suas foras de progresso e de gradual unificao, poiscompetir emular e toda emulao importa em reconhecer o carter e as foras comuns que inspirama instituio.

    Presidindo a essa saudvel e construtiva rivalidade regional e local, o Estado e a Unio, equipados decorpos profissionais e tcnicos de alta competncia e liberados de absorventes nus administrativos,exercero os seus deveres de assistncia supervisora, no pela imposio, mas pela lideranainteligente, tornando comum para todos, pela informao, a experincia de cada um, facilitando ointercmbio de valores e de progressos e orientando e coordenando os esforos para o avano e aunidade, dentro, repetimos, das diversidades regionais e locais.

    A assistncia dos centros no se exercer somente pela atuao direta dos seus tcnicos, mas,sobretudo, pela formao dos professores, que lhes poder ficar afeta, uma vez assegurado queEstado ou Unio respeitaro as caractersticas regionais das escolas a que se destinaro os mestresque, assim, iro preparar.

    No pensamos, pois, reformar a escola brasileira com a imposio de modelos a priori formulados porum centro ou por alguns poucos centros dirigentes, mas antes liberar as foras locais de iniciativa eresponsabilidade e confiar-lhes a tarefa de construir a escola nacional, sob os auspcios de umainteligente assistncia tcnica dos Estados e da Unio. No somos nao a ser moldadanapolenicamente do centro para a periferia, mas um grande e variado imprio a ser assistido e,quando muito coordenado pelo centro, a fim de poder prosseguir no seu destino de criar, nos trpicos,uma grande cultura, diversificada nas suas caractersticas regionais e una nos seus propsitos easpiraes de civilizao e democracia.

    A descentralizao educacional que, assim, propugnamos no representa apenas medida tcnica queest, dia-a-dia, mais a se impor, por uma srie de motivos de ordem prtica, mas tambm um atopoltico de confiana na nao e de efetivao do princpio democrtico de diviso do poder, a impediros estrangulamentos da centralizao e dificultar a concentrao de fora que nos poderia levar aregimes totalitrios.

    Toda unificao imposta e forada , nesse sentido, uma fragilidade e trabalho no sentido daossificao de nossa cultura, dificultando-lhe a diversificao saudvel e revitalizante.

    A grande reforma da educao , assim, uma reforma poltica permanentemente descentralizante, pelaqual se criem nos municpios os rgos prprios para gerir os fundos municipais de educao e os seusmodestos mas vigorosos, no sentido de implantao local, sistemas educacionais. Tais sistemas locais,em nmero equivalente ao dos municpios, constituiro, em cada Estado, o sistema estadual, o qualcompreender, alm das escolas propriamente locais, de administrao municipal, as escolas mdias esuperiores, inclusive as de formao do magistrio, de sua prpria administrao. Pela formao domagistrio e pela vigorosa e ampla assistncia financeira e tcnica aos municpios, exercer o Estado aao supervisora, destinada a promover a unidade do ensino sem perda das condies revitalizantes econstrutivas do genius-loci.

    Em esfera ainda mais ampla atuar a Unio, com a sua rede de escolas mdias, profissionais,

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  • superiores, de experimentao e demonstrao, todas visando a mais alta qualidade e se destinando aagir nos sistemas estaduais e locais como exemplos de desenvolvimento e aperfeioamento. Estesistema federal s por si j operaria como fora unificadora, mas ter ainda a Unio duas grandesforas de estmulo e coordenao: a assistncia financeira e tcnica s escolas e a atribuio deregulamentar o exerccio das profisses. Com estes dois instrumentos, o seu poder continuar, dentrodo sistema descentralizado e vivo da educao nacional, to forte e de tamanhas potencialidades, queantes ser de recear a sua ao excessivamente uniformizante, suscetvel de bloquear iniciativasfelizes, locais e estaduais, do que qualquer imaginrio perigo da liberdade que se dar ao Estado e aoMunicpio, muito mais para lhes permitir assumir a responsabilidade do seu ensino e com ela apossibilidade de faz-lo real e vivo, do que, efetivamente, para organiz-lo sua discrio.

    Com efeito, embora as instituies escolares tenham objetivos prprios, todas elas se articulam em umsistema contnuo de educao, em que os graus mais altos influem na organizao e sentido dosmenos altos, determinando isto que o ensino mdio condicione o primrio e o superior condicione omdio.

    a unidade vital, em oposio desagregao mineralizada dos sistemas unitrios e uniformes. OMunicpio, com o seu sistema de escolas locais, primrias e mdias, enraizadas no solo fsico ecultural do Brasil, brasileiras como as que mais o sejam, o Estado, com as suas escolas mdias,superiores e profissionais, exercendo e sofrendo a influncia das escolas locais e detendo o poder deformar o magistrio primrio, e a Unio, com o sistema federal supletivo de escolas superiores, escolasprimrias e mdias de demonstrao, rgos de pesquisa educacional e o poder de regulamentar asprofisses, - atuaro em diferentes ordens, independentes mas articuladas, constituindo a ao trplice,mas convergente, dos trs poderes, algo de dinmicamente sistemtico e unificado. De tal modosistemtico e unificado, que somente no ser excessivamente rgido, porque o jogo de influnciasdominantes das ordens superiores sobre as inferiores s se exerceria continuamente pela assistnciatcnica - propulsionada pela assistncia financeira - graas qual o poder talvez ainda demasiadogrande do Estado e da Unio se adoar sob formas de ao mtua, em que o jogo de influncia nose faa somente no sentido descendente, mas de maneira recproca, recebendo a ordem superior oinfluxo da inferior para maior eficcia e fertilidade de sua prpria atividade.

    Muito do carter mecnico, irreal e abstrato de nossas escolas desaparecer em virtude dessas altasmedidas polticas e administrativas, ressurgindo, em seu lugar, as virtudes to brasileiras do seu gniocriador que, em outras esferas, vem produzindo as adaptaes to caractersticas de sua civilizao emformao, em que se misturam traos to complexos e delicados de influncias de toda ordem,sobressaindo mais que todos os aspectos de um dinamismo criador e otimista, sem as durezas docompetivismo americano, mas equilibrado, em sua febre, por um gro de sal humanstico que nos vmda doura essencial do nosso temperamento tropical e mestio.

    Institudos que sejam os rgos locais, estaduais e federais de propulso, financiamento eadministrao do imenso empreendimento escolar para a formao e o preparo do brasileiro, cujasbases se encontram lanadas em nossa Constituio, com o reconhecimento expresso das trs ordensde atribuies - municipal, estadual e federal - e a separao compulsria do mnimo de dez por centode toda a tributao para os servios educacionais, postos todos eles em funcionamento numa aoindependente, mas sinrgica e harmnica - que perspectivas no se abriro para a escola brasileira eque segurana no ter o pas de ver, afinal, a sua populao servida das oportunidades educativasnecessrias para a plena ecloso de sua cultura e de sua civilizao?

    Aspectos administrativos dessa nova poltica

    Assim como procuramos, numa viso de conjunto, encarar apresente situao educacional brasileira,em suas deficincias, ensaiemos agora prever os novos desenvolvimentos que a descentralizao e aliberdade de organizao, pelo plano aqui esboado, podero trazer aos servios escolares brasileiros.

    Primeiro que tudo teremos criado com o novo plano cerca de trs mil unidades administrativasescolares em todo o pas, que tanto so os municpios, com os seus conselhos de administraoescolar representativos da comunidade, paralelos aos conselhos municipais ou cmaras de vereadores,com poderes reais e no-fictcios de gesto autnoma do fundo escolar municipal e direo das escolaslocais.

    Tais conselhos disporo no somente dos recursos locais, equivalentes a vinte por cento dos recursostributrios dos municpios, mas tambm, dos recursos estaduais e federais que forem atribudos aomunicpio na proporo de sua populao escolarizvel. O total das trs contribuies seradministrado pelo conselho municipal escolar obedecendo a dispositivos orgnicos, pelos quais se

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  • estabelecer que esse dinheiro pertence s crianas de sua comuna, no abstratamente consideradas,mas a cada uma das crianas, segundo a quota-parte que lhe couber na diviso do monte por todaselas. Este princpio determinar que o sistema de escolas a ser organizado dever condicionar-sefinanceiramente ao limite dessa quota-parte por aluno, ficando o salrio do professor, as despesas deadministrao, de material didtico e geral, e do prdio, contidas dentro desse limite, em proporesfixadas como as mais razoveis.

    As vantagens dessa organizao so, sobretudo, as de sua progressividade. O municpio, com aresponsabilidade de manter as escolas para a sua populao escolar, ter, de ano para ano maioresrecursos, podendo traar um plano de progresso orgnico e real. As trs quotas que lhe alimentam osistema sero cada ano maiores e por se distriburem em percentagens definidas, para o pagamento domagistrio, administrao e ao material e prdio, passaro a oferecer as condies indispensveis daviabilidade do plano. Confiado esse plano responsabilidade local e deste modo ao natural entusiasmoda comunidade, a escola, cuja necessidade comea a ser to vigorosamente sentida pela populaobrasileira, far-se- no s a sua instituio mais cuidada e mais querida, como o verdadeiro orgulho dacidade ou do campo. Em outros tempos, quando a educao escolar era uma imposio de outracultura, podia-se compreender a escola organizada e dirigida distncia pela metrpole "colonizadora".Hoje, a escola flui e decorre de nossa prpria cultura, dinmica e em transformao, mas comum e,embora em estgios diversos de desenvolvimento, toda ela una e brasileira.

    Restitudas, assim, as condies necessrias vitalidade da instituio escolar, teremos estabelecidoas condies que faltam ao progresso educacional. Isto, entretanto, no ser tudo, pois, alm daquelascondies, precisaremos de esforos e direo inteligente. O esforo dever decorrer do interesse locale a inteligncia, da direo, do esprito de estudo, que dominar a assistncia tcnica a ser dada aosistema pelo Estado e a Unio, assistncia tcnica fortalecida e motivada pela assistncia financeira.

    Ao sistema esttico mecnico de hoje, com escolas desenraizadas, organizadas distncia, comprofessores vindos do centro e a este centro ligados pelos vencimentos e pelas ordens que recebem,opor-se- o sistema imperfeito, mas vivo, de escolas locais, dirigidas e mantidas por rgos locais,ansiosas de assistncia, mas conscientes de sua autonomia, prontas a colaborar com o Estado e aUnio, dos quais recebem os recursos suplementares para o seu progresso e a assistncia tcnicapara o seu aperfeioamento.

    Alm disto, no esqueamos de que o Estado, pela formao do magistrio - mediante um sistema debolsas oferecidas a cada municpio para o suprimento, por elementos locais, do seu corpo docente -ter em cada um dos sistemas locais de ensino as mestras, suas representantes, no como parcelasdo seu poder, mas como filhas da escola normal estadual, alma-mater de todo o magistrio.

    H, portanto, motivos para acreditar que o plano aqui esboado pode concorrer para a revitalizao domovimento de expanso escolar, sem que a revoluo de mecanismos administrativos que encerratraga outros resultados seno os de promover as insuspeitadas energias que a autonomia edescentralizao iro, por certo, desencadear, para o desenvolvimento dinmico e harmonioso daescola primria brasileira.

    Acima ou base de uma tal educao fundamental e comum, a mais importante sem dvida das queir proporcionar a nao aos seus filhos, se erguer o sistema de escolas mdias, destinadas acontinuar nos trabalhos prticos e industriais ou nos trabalhos intelectuais, todos eles equivalentescultural e socialmente, pois os alunos se distribuiro, segundo os interesses e aptides, para aconstituio dos quadros do trabalho de nvel mdio, sejam as ocupaes de natureza intelectual ou denatureza prtica.

    O velho debate entre ensino de letras, de cincias ou de tcnicas desfaz-se luz da novascircunstncias na vida moderna, pois todos eles so necessrios, constituindo problema apenas o desaber quais e quantos alunos devem ter formao cientfica e terica e quais e quantos alunos devemreceber formao tcnica e de cincia aplicada. Em cada um desses ramos, o currculo variar para aformao diversificada e variada, at mesmo no currculo clssico, em que se formaro helenistas,latinistas e especialistas de letras modernas, como j acontece nos cursos predominantementecientficos ou tcnicos.

    Todas as escolas mdias, que se organizaro com uma alta dose de liberdade, sero consideradasequivalentes e objeto no de "equiparao" a modelos legais, mas de "classificao" pelos rgostcnicos do Governo, segundo o grau em que atinjam os objetivos a que se prope.

    A validade dos seus resultados ser apurada por exames de estado, feitos em determinados perodos

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  • do curso, exames de estado que se destinam, do ponto de vista legal, apenas habilitao ao concursovestibular para as escolas superiores e universidades.

    Suprimido o currculo rgido e uniforme, imposto pela legislao federal, de esperar que a ansiedadepor educao ps-primria, que est a marcar a fase educacional presente, se oriente melhor,buscando os diferentes caminhos de ensino mdio e alargando a "escada educacional" com melhor emais adequada distribuio dos adolescentes, segundo as suas reais aptides e as maioresnecessidades do trabalho nacional.

    Chegamos, assim, ao ensino superior, tambm ele em expanso insofrida, em funo mais ou menosdo desenvolvimento brasileiro. Sobem hoje a mais de 360 os estabelecimentos do ensino superior, comcerca de 700 cursos diferentes e mais de 70 mil alunos. No parece fcil deter-lhe a expanso. Alegislao dever antes buscar controlar-lhe os efeitos, substituindo os processos de "equiparao" porprocessos de "classificao" das escolas, organizando um sistema paralelo de exames de estado denvel superior, para aprovao nas sries finais dos seus cursos bsicos e profissionais, permitindo eestimulando a variedade de currculos e de cursos profissionais, com o objetivo de permitir escolasuperior o mais amplo uso de seus recursos humanos e materiais, na formao dos quadros variadosem nvel e em especializao do seu trabalho de teor mais alto.

    Uma lei feliz de regulamentao do exerccio profissional, entregando, talvez, a licena definitiva para oexerccio da profisso, aos sindicatos e associaes de classe, viria, possivelmente, permitir a liberdadedo ensino superior sem os perigos de uma inadequada inflao de diplomados. Os sindicatos eassociaes de classe, altamente conscientes dos interesses econmicos dos grupos profissionais eespontaneamente prevenidos contra a quebra de padres de ensino e formao, atuariam como freioscontra a improvisao de escolas superiores e a m distribuio de profissionais pelas diferentesespecialidades.

    O Governo manteria os servios de "classificao" das escolas superiores e os de levantamento eestatstica em relao aos profissionais de nvel superior, seu mercado de trabalho, sua distribuiopelo pas, faltas e excessos, e necessidades novas criadas pelo desenvolvimento nacional.

    O esprito geral da legislao de ensino superior seria o mesmo que inspiraria a legislao geral daeducao: fixao de objetivos e condies exteriores, pela lei, e determinao dos processos,currculos e condies internas do ensino, pela conscincia profissional dos professores e especialistasde educao.

    Com a diviso de atribuies proposta entre as trs ordens de poderes pblicos, teremos criado ascondies, por meio das quais a nao ir manter um autntico sistema escolar nacional, geral epblico, para a infncia, a juventude e os adultos brasileiros, sistema que, no seu jogo de foras econtroles mltiplos e indiretos, poder indefinidamente desenvolver-se.

    Ser um verdadeiro reajustamento institucional da escola, abrindo oportunidade para um perodo deampla experimentao social, em que o pas se descobrir e se construir para os seus destinossoberanos e prprios.

    A educao para o desenvolvimento, a educao para o trabalho, a educao para produzir, substituira educao transplantada e obsoleta, a educao para a ilustrao, para o ornamento e, no melhor doscasos, para o lazer.

    Alm disto, a educao ajustada s condies culturais brasileiras se far autntica e verdadeira,identificando-se com o pas e ajudando a melhor descobri-lo, para cooperar, como lhe cabe, na grandetarefa de construo da cultura brasileira, flor mais alta da sua civilizao.

    A reconstruo educacional da nao se ter de fazer com essa liberdade a esse respeito pelas suascondies, como afirmao suprema da nossa confiana no Brasil, a cujo povo, hoje unificado eenrgico, devemos entregar, com o mximo de autonomia local, a obra de sua prpria formao.

    Sumrio

    Procuramos analisar a situao educacional brasileira luz dos conceitos de "educao seletiva", paraa formao de elites, e "educao comum", para a formao do cidado comum da democracia.

    Mostramos como essa "educao comum" no s um postulado democrtico, mas um postulado donovo conceito de conhecimento cientfico, que tornou comuns as atividades intelectuais e de trabalho,

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  • ou sejam de saber e de fazer, que se distinguem como divises, equivalentes, do mesmo esforosempre inteligente e especializado ou tcnico.

    Salientamos, entretanto, que entre ns, a despeito dessa evoluo do conhecimento e das sociedades,as resistncias aristocrticas da nossa histria no permitiram que a escola pblica, de educaocomum, jamais se caracterizasse integralmente. Toda nossa educao se conservou seletiva e de elite.

    A expanso educacional brasileira participa desse vcio, quase diria, congnito. Indicamos, entretanto, oque nos parece deveria ser a nova poltica educacional para o Brasil e, a fim de promov-la,bosquejamos um sistema de administrao em que se casem as vantagens da descentralizao eautonomia com a da integrao e unidade dos trs poderes - federal, estadual e municipal - do pas.

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