Efeitos da violência

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Agosto 2008 150 >> ESPECIAL EXPOSICAO REVOLUCAO GENÔMICA V Por que as pernas falham com o fôlego curto Os limites da produção acadêmica brasileira Efeitos da violência Uma em cada dez vítimas desenvolve distúrbio emocional que afeta o trabalho e as relações familiares Agosto 2008 150 EXEMPLAR DE ASSINANTE VENDA PROIBIDA

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Pesquisa FAPESP - Ed. 150

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Agosto 2008 ■ Nº 150

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>> ESPECIAL EXPOSICAO REVOLUCAO GENÔMICA V

Por que as pernas falham com o fôlego curto

Os limites da produção acadêmica brasileira

Efeitos da

violênciaUma em cada dez vítimas desenvolve distúrbio emocional que afeta o trabalho e as relações familiares

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PESQUISA FAPESP 150 ■ AGOSTO DE 2008 ■ 3

IMAGEM DO MÊS*

Cerca de 7 mil quilômetros de viagem separam a ensolarada Salvador, na Bahia, das águas do sul da Argentina, onde vivem em colônias os pingüins-de-magalhães. Apesar da distância, pelo menos três centenas dessas aves marinhas, na maioria filhotes desnutridos, perderam-se em sua rota migratória e, em vez de alcançar a costa atlântica sul-africana, foram resgatados por banhistas nas praias quentes da capital baiana. O fenômeno não é inédito, mas, segundo biólogos da organização não-governamental Instituto de Mamíferos Aquáticos, da Bahia, nunca tantos pingüins desgarraram-se ao mesmo tempo. Os animais resgatados seriam transportados de avião até a costa fluminense e devolvidos ao mar.

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Perdidos nos trópicos

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150 AGOSTO 2008

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20 CAPA

> CAPA

20 Uma em cada dez vítimas de assalto, seqüestro ou outras formas de agressão desenvolve estresse pós-traumático

> ENTREVISTA

12 Crítico das usinas nucleares nos anos 1970 e defensor do etanol, José Goldemberg faz um balanço de seis décadas de vida acadêmica

> ESPECIAL V

51 REVOLUÇÃO GENÔMICA

Debates e embates da ciência

> POLÍTICA CIENTÍFICA

E TECNOLÓGICA

34 INDICADORES

Resultados divergentes em rankings acendem debate sobre os limites de crescimento da produção acadêmica brasileira

37 NEUROCIÊNCIA

PUC do Rio Grande do Sul lança instituto de pesquisa em doenças neurológicas

38 DIFUSÃO

Unicamp atrai 12 mil pessoas para a 60ª Reunião Anual da SBPC

> CIÊNCIA

44 FISIOLOGIA

Competição por oxigênio causa a fadiga comum na insuficiência cardíaca e pulmonar

48 FARMACOLOGIA

Componente da goma-guar alivia a dor e evita progressão dos danos nas articulações

50 GENÉTICA

Em laboratório, células-tronco restauram força de camundongos com distrofia

> SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 6 CARTAS 7 CARTA DO EDITOR 8 MEMÓRIA 28 ESTRATÉGIAS 40 LABORATÓRIO 76 SCIELO NOTÍCIAS .............................

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> EDITORIAS > POLÍTICA C&T > CIÊNCIA > TECNOLOGIA > HUMANIDADES WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

70 GENÔMICA

Simpósio internacional discute rumos da pesquisa canavieira no Brasil

72 GEOGRAFIA

A busca da nascente revela as peculiaridades do rio Amazonas, agora o mais longo do mundo

> TECNOLOGIA

82 QUÍMICA

Garrafas plásticas descartadas transformam-se em matérias-primas derivadas de petróleo

86 AGRICULTURA

Técnica de cultivo que substitui a queima pelo reaproveitamento da capoeira ganha mais espaço na Amazônia

......................... 78 LINHA DE PRODUÇÃO 110 RESENHA 111 LIVROS 112 FICÇÃO 114 CLASSIFICADOSCAPA MAYUMI OKUYAMA FOTO LALO DE ALMEIDA/FOLHA IMAGEM

90 BIOTECNOLOGIA

Embrapa lança novas variedades de soja transgênica adaptadas às condições de solo e clima do Norte e Nordeste

92 MEDICINA

Equipe da USP cria soluções inovadoras para próteses cirúrgicas na reconstrução óssea

> HUMANIDADES

96 DIPLOMACIA

O caráter flutuante das relacões entre o Brasil e o continente africano

102 HISTÓRIA

Estudo recupera personagem perseguido por Inquisição

106 BIOGRAFIA

Doutorado traça perfil de Darcy Vargas, mulher de Getúlio, precursora das políticas sociais na Presidência

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Revolução genômica

A humanidade parece ter desper-tado neste século para três gran-des desafi os: atender à crescente demanda por alimentos diante da constatada limitação de áreas agri-cultáveis, criar opções energéticas às tradicionais fontes oriundas de recursos não-renováveis e concreti-zar esses dois objetivos em conjunto com a imprescindível manutenção do equilíbrio ambiental. A edição 149 de Pesquisa FAPESP mostra co-mo a solução dessas questões apóia-se – e não poderia ser de outra forma – no trabalho da ciência. O professor Fernando Reinach apon-ta com muita clareza o impacto das inovações científi cas na otimização dos recursos conhecidos para a pro-dução de alimentos e na criação de novos, com destaque para os trans-gênicos, e sua harmonização com a proteção ambiental. Do mesmo modo, a reportagem de capa retrata os esforços dos pesquisadores bra-sileiros para extrair maiores bene-fícios no processo de obtenção dos combustíveis vegetais, também não descurando da preocupação ecoló-gica. É inegável a magnitude da res-ponsabilidade do Brasil na solução desses três desafi os mundiais. Infe-lizmente, aqui, além do tradicional atraso na atividade de pesquisa com relação aos países mais avançados, ainda há que vencer o preconceito e a ação dos sempre manipulados “movimentos sociais”.

Maria Said Rodrigues São Paulo, SP

Parabéns por todo o trabalho da FA-PESP. A revista é fantástica, as pales-tras da agenda cultural da exposição Revolução genômica são demais e os resultados das pesquisas têm coloca-do o Brasil na vanguarda em muitos campos.

Jean ZonatoSão Paulo, SP

[email protected]

■ Para anunciar Ligue para: (11) 3838-4008

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■ Edições anteriores Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Envie e-mail para [email protected] ou ligue (11) 3838-4304

■ Site da revistaNo endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis asreportagens em inglês e espanhol.

■ Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: [email protected]

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As reportagens de Pesquisa FAPESP mostram a construção do conhecimento essencial ao desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.

Revista

Quero parabenizá-los pelo excelen-te trabalho jornalístico de Pesquisa FAPESP. A cada número que chega as minhas mãos eu simplesmente devoro. De um modo simples e gos-toso de ler, a revista está sempre nos informando sobre a evolução social e tecnológica. Depois dôo à biblioteca municipal de minha cidade para que alunos possam utilizá-la como fonte de pesquisa em seus trabalhos.

Roberto Luiz de Godoy StraussPraia Grande, SP

Vinho branco

Gostaria de me solidarizar com outros leitores e cumprimentá-los pela excelência das reportagens pu-blicadas nesta revista. Apenas um pequeno detalhe que talvez tenha passado despercebido. Na reporta-gem “Quase como um tinto” (edição 149), sobre a técnica da Embrapa que descreve o aumento dos polife-nóis presentes num corte de vinho branco envolvendo as uvas Malvasia Bianca e Seyval, é mencionada que a primeira casta entra com 77% de sua “carga genética” e este termo está incorretamente aplicado, porque os geneticistas reservam a utilização da expressão “carga genética” para se re-ferir ao conteúdo de genes deletérios de uma dada espécie (seja de planta, de animal ou microorganismos). O correto numa situação como esta seria ter mencionado que a primei-ra casta participa com 77% de seu patrimônio genético ou ainda 77% de sua bagagem genética

Manoel Victor Franco LemosUnesp/Campus de JaboticabalJaboticabal, SP

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected], pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

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Doença de um país em guerra

Luiz Henrique Lopes dos SantosDiretor de Redação em exercício

À primeira vista a capa desta edição po-de causar certo desagrado aos nossos leitores habituais. Já não bastasse o

acompanhamento diário de mortes, assal-tos e seqüestros pela mídia ainda é preciso que Pesquisa FAPESP aborde o mesmo as-sunto? Sim, é preciso. Especialmente quan-do se trata de uma pesquisa ampla sobre o tema, realizada com critérios científi cos, que oferece dados valiosos para que se exijam políticas públicas de segurança mais efi ca-zes. No caso, a abrangente reportagem do editor de ciên cia, Ricardo Zorzetto, mostrou que uma em cada dez pessoas da cidade de São Paulo vítimas de episódios de violência no último ano (assalto, seqüestro, agressões físicas ou abuso sexual) apresenta sinais de transtorno de estresse pós-traumático – é o equivalente a 1,1 milhão de pessoas. Esse foi o primeiro levantamento sobre a ocorrência do problema no país, em trabalho feito por quase 50 pesquisadores de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Pernambuco e do Ceará.

Os pacientes com estresse pós-traumáti-co não conseguem seguir com a vida normal. Muitas vezes abandonam o trabalho e alte-ram o cotidiano de seus familiares. Quando se amplia o período analisado para a vida toda, vê-se que 26% dos paulistanos – 2,8 milhões de pessoas – apresentaram sinais compatíveis ao desse problema emocional disparado pela violência. Como bem notou um dos autores do estudo, os números são os de um país em guerra. No caso do Brasil, essa guerra urbana tem no homicídio de ho-mens jovens sua face mais violenta, típica de cidades como São Paulo, Rio e Recife, onde os números são estarrecedores e não param de crescer. Mas há também uma face domés-tica, quando a opressão ocorre em casa com brigas entre casais, violência contra fi lhos ou abuso sexual cometido por cônjuge ou parente. A reportagem de Zorzetto indica que os pesquisadores estão empenhados tanto em medir a ocorrência do problema na população como em buscar tratamentos mais efi cazes para os pacientes. Como se

vê, é um bom tema para a capa de Pesquisa FAPESP (página 20).

Outro bom assunto para discussão, dessa vez no âmbito acadêmico, é sobre os resulta-dos incongruentes em dois rankings de de-sempenho acadêmico (página 28). Um vem da base de dados Thomson Scientifi c e coloca o Brasil na 15ª posição com 2,02% do total da produção científi ca mundial em 2007 – em 2006 foi de 1,92%. Já o da base Scopus, comercializada pela editora Elsevier, deixa o país no mesmo 15º lugar, mas com 1,75% da produção do planeta. Os universos das duas bases são distintos e não dá para saber se a diferença é acidental ou uma tendência. Mas já há quem veja nos números o primeiro sinal de que o aumento exponencial da produção brasileira nas últimas décadas chegou ao limi-te, embora não haja consenso entre os espe-cialistas. De qualquer modo, a reportagem do editor de política, Fabrício Marques, antecipa uma questão que ainda renderá muito debate, análises e artigos nos próximos anos.

A doença pulmonar obstrutiva crônica, ao contrário dos textos citados acima, não provo-cará nenhuma polêmica ou debate. Ainda as-sim, o estudo apresentado pela editora assisten-te de Ciência, Maria Guimarães, traz uma nova abordagem de um velho problema. Ele mostra como a competição por oxigênio causa a fadiga comum na insufi ciência cardíaca e pulmonar e deixa nos praticantes de exercícios que têm a doença a sensação de “pernas de chumbo”. A novidade do trabalho se refere ao fato de tratar, nesta doença específi ca, a circulação e a respira-ção como sistemas interligados (página 44).

Na editoria de tecnologia, a editora as-sistente Dinorah Ereno fala de um projeto de reciclagem de embalagens plásticas que envolve três processos inovadores (página 82). De um deles, espera-se que leve à reu-tilização das garrafas plásticas, chamadas de PET, para obtenção de novos recipien-tes que possam ter, inclusive, contato direto com os alimentos. É algo alentador para um mundo cada vez mais preocupado com a sustentabilidade.INSTITUTO VERIFICADOR DE CIRCULAÇÃO

CELSO LAFERPRESIDENTE

JOSÉ ARANA VARELAVICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR

CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, HORÁCIO LAFER PIVA, JACOBUS CORNELIS VOORWALD, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ DE SOUZA MARTINS, JOSÉ TADEU JORGE, LUIZ GONZAGA BELLUZZO, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

RICARDO RENZO BRENTANIDIRETOR PRESIDENTE

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZDIRETOR CIENTÍFICO

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLERDIRETOR ADMINISTRATIVO

CONSELHO EDITORIALLUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, MÁRIO JOSÉ ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI

DIRETOR EM EXERCÍCIOLUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS

EDITOR CHEFENELDSON MARCOLIN

EDITORA SÊNIORMARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

EDITORES EXECUTIVOSCARLOS HAAG (HUMANIDADES), FABRÍCIO MARQUES (POLÍTICA), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA), RICARDO ZORZETTO (CIÊNCIA)

EDITORES ESPECIAISCARLOS FIORAVANTI, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE) EDITORAS ASSISTENTESDINORAH ERENO, MARIA GUIMARÃES

REVISÃOMÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO

EDITORA DE ARTEMAYUMI OKUYAMA

ARTEJÚLIA CHEREM RODRIGUES, LAURA DAVIÑA, MARIA CECILIA FELLI

FOTÓGRAFOSEDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN

SECRETARIA DA REDAÇÃOANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201

COLABORADORESANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), ANDRÉA DEL FUEGO, BRAZ, DANIELLE MACIEL, GEISON MUNHOZ, GONÇALO JÚNIOR, LAURABEATRIZ, LAURA DAVIÑA, THIAGO BALBI E YURI VASCONCELOS.

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GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DO ENSINO SUPERIOR

ISSN 1519-8774

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CARTA DO EDITOR

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MEMÓRIA( )

Caminhos paralelosHá 175 anos Hercule Florence se tornava, no interior de São Paulo, um dos muitos inventores da fotografia

Adescoberta da fotografi a é um daqueles momentos tecnológicos em que o olhar de múltiplos pesquisadores ou inventores converge para o mesmo ponto de interesse e os leva a conseguir resultados em períodos próximos uns dos outros. A procura por uma técnica efi caz de impressão utilizando a luz do sol ocorreu

simultaneamente na Alemanha, França e Inglaterra durante as três primeiras décadas do século XIX. Os franceses Joseph Niepce e Louis Daguerre conseguiram bons resultados, divulgação e fi caram com as glórias do invento por muitos anos. Ao mesmo tempo, o também europeu Hercule Florence realizou experiências bem-sucedidas com a camera obscura e com a fi xação de imagens em papel no Brasil, a partir de 1833. A diferença é que ele vivia isolado no interior de São Paulo, longe dos holofotes e das novidades trazidas pela literatura especializada publicadas além-mar.

“A fotografi a estava pronta para ser descoberta desde o fi nal do século XVIII porque já havia conhecimento sufi ciente da camera obscura e sobre os processos químicos”, diz o historiador e pesquisador da fotografi a Boris Kossoy, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Em 1972 Kossoy começou a resgatar a história das descobertas de Florence e foi quem levou à comprovação científi ca, 140 anos depois,

Neldson Marcolin

Cópia fotográfica de etiquetas de farmácia provavelmente de 1833: primeiras experiências

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Desenho de índios mandurucus feito durante a expedição Langsdorff e Florence por volta dos 70 anos

das principais experiências precursoras empreendidas pelo francês na então vila de São Carlos, atual Campinas.

O pesquisador obteve, em 1976, o apoio da tradicional Escola de Artes Gráfi cas e Fotografi a do Instituto de Tecnologia de Rochester, nos Estados Unidos, que reproduziu as experiências e confi rmou a validade das realizações de Florence, tal como registradas em seus diários. As pesquisas de Kossoy, que obtiveram repercussão internacional, foram reunidas no livro Hercule Florence – A descoberta isolada da fotografi a no Brasil (Edusp, reeditado em 2006), obra que circula também em espanhol numa edição do Instituto Nacional de Antropologia e História do México.

Os manuscritos de Florence, em número de seis, encontram-se em Campinas sob a guarda de Teresa Cristina Florence, trineta do inventor, que os herdou do pai, Arnaldo Machado Florence, entusiasta divulgador da obra do bisavô e a pessoa que apresentou a Kossoy o material original. “Mas os desenhos da camera obscura, da máquina de poligrafi a, as fotos das etiquetas de farmácia e dos diplomas de maçonaria foram roubados de minha casa em 1989”, lamenta Teresa, que mantém os diários. Como os originais foram reproduzidos numerosas vezes, há cópias dessa documentação.

Antoine Hercule Romuald Florence (1804-1879) chegou à fotografi a por caminhos tortos. Natural de Nice, tinha talento para o desenho e sonhava em se

aventurar pelo mundo. Em uma de suas viagens aportou no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1824, e fi cou na cidade, não se sabe exatamente por qual razão. Em 1825 ofereceu-se para participar como segundo desenhista da expedição ao interior do país comandada pelo naturalista e cônsul da Rússia no Rio, Georg von Langsdorff. O primeiro desenhista seria Johann Rugendas, que desistiu e foi substituído por Aimé Adrian Taunay.

A expedição foi um desastre sob vários aspectos, com muitos acidentes e a morte de Taunay. Mas ao menos Florence conseguiu fazer um bom trabalho documental. Ele registrou

os acontecimentos em seu diário e fez desenhos que revelam, de acordo com especialistas, certo pendor científi co, sem montagens ou idealização da paisagem, recursos comuns usados por artistas estrangeiros. Ao fi nal da expedição, Florence casou e fi xou-se na vila de São Carlos, onde residia a família de sua mulher.

Uma vez instalado, o francês começou a procurar meios de imprimir um de seus ensaios resultantes da expedição Langsdorff, sobre os sons produzidos por animais. Ocorre que havia apenas uma tipografi a na província de São Paulo em 1830. Foi naquele momento que iniciou as pesquisas com o objetivo de desenvolver um sistema diferente de impressão, que prescindisse das tradicionais máquinas impressoras. Essa invenção ele batizou de poligrafi a (polygraphie). Numa explicação simplifi cada, trata-se de pranchas de madeira embebidas em tinta capazes de imprimir.

Ao tentar aperfeiçoar a poligrafi a para torná-la mais efi caz, Florence chegou às experiências com a camera obscura. No dia 15 de janeiro de 1833, registrou em seu diário a possibilidade de “imprimir pela ação da luz”. Em suas experiências utilizou vidro, além de papel. Outros precursores da fotografi a fi zeram o mesmo, como Thomas Wedgwood, em 1800, e Niepce, em 1822. Fox Talbot chegou a comunicar a Royal Society que inventara uma técnica de copiar desenhos

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gravados sobre suporte de vidro, em 1834. “Como se vê, as descobertas caminhavam na mesma direção, em países diferentes, embora um não soubesse o que o outro fazia”, observa Kossoy.

A ainda não inventada fotografi a absorveu todo o interesse de Florence. Em seu diário ele relata a procura por agentes químicos que, aplicados ao papel, pudessem gravar imagens quando atingidos pela luz e escreve sobre as experiências com o nitrato de prata. De acordo com Kossoy, é certo que as informações sobre sais de prata foram passadas pelo boticário e botânico Joaquim Corrêa de Mello em 1832, que foi empregado e depois sócio da botica de Francisco Álvares Machado, sogro de Florence, na vila de São Carlos.

O inventor francês construía suas próprias cameras obscuras. Sua primeira foto, que não chegou até nós, mostrava uma janela com a vidraça fechada onde se viam os caixilhos e o telhado da casa em frente, em janeiro de 1833. Ao fi nal dessa primeira experiência, Florence descobriu que o papel embebido em nitrato de prata e com a imagem

gravada nele escurecia, mesmo quando lavado com água. Percebeu também que o que era escuro aparecia claro e o que era claro era representado escuro – ou seja, ele fez uma imagem em negativo no papel.

Florence teria de achar um agente químico para tornar permanente

a imagem e impedir o escurecimento total quando ela fosse exposta novamente à luz. Embora vivesse longe da Corte e com pouco acesso à informação, baseou-se em livros antigos de cientistas conhecidos para estudar a sensibilização de substâncias à luz. Nos seus diários há citações

de químicos e físicos como Jons Jacob Berzelius, Antoine François de Fourcroy, Johann Wilhelm Ritter, Nicholas-Théodore Saussure, Joseph Louis Gay-Lussac, Franz Joseph Muller e Claude Berthollet.

Três compostos fotossensíveis foram experimentados com mais freqüência pelo francês: nitrato de prata, cloreto de prata e cloreto de ouro. Os sais de prata eram conhecidos, mas os de ouro foram usados com sucesso pioneiramente por ele, embora os custos não aconselhassem a utilização correntemente. Também testou vários tipos de papel para impressão e optou pelo pergaminho da Holanda, usado para cartas.

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Verbo photographier (fotografar) achado em trecho de diário escrito em 1834

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Achar um bom agente fi xador que evitasse o escurecimento das imagens já gravadas era um dos outros grandes problemas a serem resolvidos pelos pioneiros da fotografi a. Como apenas lavar as cópias com água não resolvesse a questão, Florence chegou a recomendar que os originais das fotos fossem vistos“à noite, à luz de velas, e até durante o dia, à sombra ou à meia-luz, por cerca de meia hora”.

Na busca pelo fi xador, o francês experimentou substâncias diversas. Teve relativo sucesso com a mais inusitada delas, a urina. Com ela, conseguiu dissolver o cloreto não fi xado pela luz. “Podemos inferir que o pesquisador tinha conhecimento de que o amoníaco, presente na composição da urina, podia funcionar como fi xador”, sugere Kossoy. Foi um passo para começar a usar hidróxido de amônia.

Sem saber, Florence caminhava tão paralelamente aos outros inventores que foi o primeiro a usar o termo “fotografi a”. Niepce chamou o seu processo de heliographie, Daguerre de daguerreotypie, Talbot primeiro de photogenic drawings, depois de calotype e, por fi m, de talbotype. Entre os pioneiros a utilizar o termo “fotografi a” estão o alemão Johann Heinrich Mädler, os ingleses Charles Wheatstone e John Herschel e o francês Desmarets. Todos o fi zeram a partir de 1839, de acordo com os historiadores do setor. Boris Kossoy, no entanto, demonstrou que no primeiro manuscrito, na data de 21 de janeiro de 1834, Florence anotou

a seguinte frase: “Il est très probable que l’on pourra photographier...” (“É muito provável que se possam fotografar...”). No mesmo diário, na data de 19 de fevereiro do mesmo ano, ele escreveu photographie. Também na cópia fotográfi ca dos rótulos de farmácia empregou a palavra photographia (em português). Todos os demais precursores vieram a usar o mesmo termo cinco anos depois.

Com algum domínio da técnica de seu novo invento, Florence fotografou diplomas de maçonaria e etiquetas de farmácia a partir de 1833. Mas em 1839 desistiu defi nitivamente das experiências com a fotografi a quando chegou ao Brasil a notícia sobre os trabalhos de Niepce e Daguerre (que colaboraram um com o outro) e o reconhecimento do governo da França aos dois como inventores da técnica de imprimir pela

luz. Em comunicado ao jornal A Phenix, de São Paulo, em outubro do mesmo ano, Florence fala sobre suas invenções, mas não reivindica pioneirismo: “... não disputarei descobertas a ninguém, porque uma mesma idéia pode vir a duas pessoas, porque sempre achei precariedade nos fatos que eu alcançava, e a cada um o que lhe é devido”.

Todos os pioneiros realizaram suas experiências entre 1800 e 1839, ano do reconhecimento ao invento pelo governo da França. “O trabalho de Wedgwood, Niepce, Fox Talbot, Hippolyte Bayard, Florence e outros residiu na feliz conjugação de descobertas anteriores”, avalia Kossoy. “Esse conhecimento podia ser aplicado de forma mais ou menos efi caz por algum pesquisador seriamente determinado onde quer que ele se encontrasse, não importando o grau de ‘civilização’ de seu meio.”

Ao lado, equipamento de fotografia: desenho a lápis sobre papel da câmera escura (à esq.) e das pranchas para impressão. Abaixo, cópia fotográfica de diploma maçônico, provavelmente de 1833, embora apareça equivocadamente a data de 1832

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ENTREVISTA

José Goldemberg

De crítico a arautoVoz de oposição às usinas nucleares e um dos pioneiros na defesa do etanol, o ex-reitor da USP faz um balanço de 60 anos de vida acadêmica

Primeiro foi a revista Time que em dezembro de 2007 citou o físico e ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) José Goldemberg numa lista de heróis mundiais do meio ambiente, em reconhecimento a um artigo que ele escreveu em 1978 na revista Science antecipando as van-tagens ambientais do etanol. Depois foi a vez da

Asahi Glass Foundation, do Japão, que em junho laureou Goldemberg com seu prêmio Planeta Azul, com direito a 50 milhões de ienes (o equivalente a R$ 800 mil), por “ter dado grandes contribuições na formulação e im-plementação de diversas políticas associadas a melhoras no uso e na conservação de energia”, com destaque para um conceito formulado por ele segundo o qual, para se desenvolver, os países pobres não precisam repetir paradigmas tecnológicos trilhados no passado pelos ri-cos. No mesmo mês, o Instituto de Estudos Avançados da USP promoveu um colóquio para discutir o futuro da USP e do país e homenagear os 60 anos de carreira universitária de Goldemberg, abordando seus temas de interesse: ciência, energia, universidade, tecnologia, meio ambiente. A safra de homenagens deixou o físico satisfeito, mas algo constrangido. “Essa coisa é sempre embaraçosa. Por que escolhem você se outros também deram contribuições?”

Aos 80 anos, casado pela segunda vez, pai de quatro fi lhos e avô de cinco netos, o gaúcho José Goldemberg segue como uma das principais referências em plane-jamento energético do país. Conquistou esse status na década de 1970, depois de mais de 20 anos de trabalho como professor de física nuclear, para se tornar uma voz crítica à construção de usinas atômicas planejadas pelos governos militares. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Física e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), posições que o credenciaram a ocupar cargos importantes após a redemocratização: presidente

Fabrício Marques

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da Companhia Energética de São Paulo, de 1983 a 1986, reitor da Universidade de São Paulo, de 1986 a 1989, secretário do Meio Ambiente e de Ciência e Tecno-logia e ministro da Educação no governo Collor, de 1990 a 1992, isso sem que tais cargos tenham causado hiatos em sua produ-ção acadêmica. De 2003 a 2007 ocupou a Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Atualmente per-manece na ativa na USP, como pesquisador do Centro Nacio-nal de Referência em Biomassa do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE/USP), e coordena a Comissão de Bioenergia do governo paulista. Na entrevista a seguir, Goldemberg relembra sua trajetória acadêmica, fala do futuro do etanol e da energia nu-clear e discute as perspectivas da universidade brasileira.

■ Os organizadores do prêmio Pla-neta Azul destacaram a sua con-tribuição na pesquisa sobre racio-nalização do uso de energia, com ênfase no conceito de leapfrogging, ou “salto tecnológico” em energia que o senhor formulou. Qual a importância desse conceito? — Até a crise do petróleo, na década de 1970, os economistas achavam que a renda per capita

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usava isso como estratégia. Imaginava-se que os países em desenvolvimento deveriam introduzir tecnologias con-sagradas. Caso contrário não haveria gente para fazer a manutenção. Vi que repetir esse caminho não era necessá-rio, que se poderia pular na frente, daí o nome leapfrogging.

■ Que exemplos o senhor daria de “salto tecnológico”?— O melhor é o telefone celular. Como a telefonia fi xa é muito cara – é necessá-rio instalar cabos – freqüentemente ela não é fornecida de forma adequada nos países em desenvolvimento. Hoje, com uma antena, atende-se uma região rural que demoraria anos para receber cabos. Veja o caso da siderurgia. Ela foi intro-duzida no Brasil por Volta Redonda, que se tornou um lugar terrivelmente poluído. Depois o parque siderúrgico nacional foi se desenvolvendo e as side-rúrgicas se tornaram limpas porque o Brasil já não comprou mais dos Estados Unidos, comprou do Japão. Todo con-ceito, quando você desenvolve, chama atenção. Agora parece uma coisa trivial. Mas progresso é assim mesmo. Só é tri-vial depois. O álcool também foi uma maneira de saltar na frente. O Brasil desenvolveu um combustível renovável para substituir a gasolina. Não estamos repetindo a trajetória do passado.

■ Em 1978 o senhor escreveu um artigo que foi lembrado agora pela revista Time como premonitório, por mostrar as po-tencialidades ambientais do etanol. Que perspectiva vê para o etanol brasileiro? — A Time me colocou como um dos heróis do meio ambiente – como quem vê o que vai acontecer para a frente. Quero me justifi car. Havia outras pes-soas envolvidas nesse programa do álcool e eles escolheram a mim. Essa coisa é sempre embaraçosa, mas é a percepção dos outros. Minha visão é a seguinte: em 1978, o etanol foi pro-movido pelo governo porque o preço do açúcar no mercado internacional estava baixo. Além disso, o Brasil tinha uma conta de importação de petróleo enorme. Os usineiros e algumas pessoas do governo acharam que desviar um pouco do açúcar para produzir etanol seria bom, porque ia resolver o proble-ma dos usineiros e reduzir a impor-tação do petróleo. Refl etindo sobre o

assunto, eu me perguntei: “Tem vanta-gem para o usineiro e para a Petrobras, mas e do ponto de vista ambiental?”. Quis fazer um exercício numérico, coisa que físico sabe fazer. Quanta energia fóssil se está usando para produzir o etanol? O trabalho de 1978 é isso: um cálculo. Verifi camos uma coisa interes-sante. Para produzir um litro de etanol, gasta-se aproximadamente um décimo de litro de combustível fóssil. É pouco e há uma razão clara para isso. A energia necessária para produzir etanol vem do bagaço. Numa destilaria de álcool, não é preciso importar combustível – o combustível é o bagaço. Portanto, o etanol é, no fundo, energia solar: o sol bate, a gramínea cresce, você a liquefaz com um procedimento químico e gera etanol. Do ponto de vista ambiental é uma beleza, pois não tem as impurezas da gasolina e pouco contribui para o efeito estufa.

■ No artigo o senhor fez comparações com outras culturas, não é?— Sim, e a comparação deixou tudo evidente. Como o milho não tem ba-gaço, é preciso trazer energia de fora da destilaria. O etanol de milho é produ-zido nos Estados Unidos com carvão. Claro que existe uma vantagem, pois não se pode colocar carvão dentro do motor de seu automóvel. Mas, do ponto de vista ambiental, é como trocar seis por meia dúzia.

■ Quais são as perspectivas do etanol no médio e no longo prazos?— No momento o etanol ocupa uma fração pequena de terra. A agricultura no Brasil ocupa uma área de 60 mi-lhões de hectares. Em cana-de-açúcar, utilizam-se cerca de 6 milhões, ou seja, 10%. Metade disso é usado para eta-nol. Não é essa a impressão que se tem porque está muito concentrado em São Paulo, mas, olhando para o Brasil, não é muita coisa. O nosso etanol substi-tui 50% da gasolina usada no país, o que corresponde a 1,5% da gasolina que se usa no mundo todo. O que vai acontecer daqui a dez anos está mais ou menos traçado porque o sistema está em expansão. O etanol do Brasil, que representa 1,5% do consumo de gasolina no mundo, provavelmente vai subir para 7% ou 8%. Haverá cana-de-açúcar sufi ciente para isso usando

era ligada de maneira indissociável ao consumo de energia. Essa relação linear foi desacreditada naquela própria déca-da. Eu estava trabalhando em Princeton e nós começamos a perceber que a razão pela qual a energia crescia junto com a renda per capita era simples: não se otimizava o sistema. As lâmpadas eram inefi cientes, assim como as geladeiras e os automóveis. Quando se percebeu que as reservas de energia não eram infi ni-tas e representavam um peso crescente na economia e nos gastos pessoais, as pessoas começaram a otimizar e daí se desacoplaram energia e crescimento da renda. Foi feito um esforço muito grande nesse sentido nos países ricos. Acontece que sou de um país em desen-volvimento. Num país como o nosso, fazer a pregação de que é preciso usar menos energia simplesmente não pe-ga. Parece até um método de manter as pessoas na pobreza. Aí percebi um dos motivos pelos quais essa alegação era feita. Era que, a cada vez que se instala-va alguma coisa no Brasil, usava-se uma tecnologia antiga. O Banco Mundial

A idéia de que a cana vai avançar sobre outras culturas não é o que está ocorrendo. A expansão atinge pastagens que criam bois de forma muito inefi ciente

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provavelmente 10 milhões de hectares. Já há uma expansão, mas é sobre pas-tagens que criam bois de uma maneira extremamente inefi ciente. A idéia de que o álcool vai provocar o desmata-mento da Amazônia ou avançar em outras culturas não é, na prática, o que está ocorrendo. Se pensarmos em substituir 100% da gasolina no mundo, aí realmente é o caso de se preocupar. Nos próximos dez anos, acho que o Brasil ainda tem uma posição confor-tável. Nos Estados Unidos a situação é bem mais difícil.

■ Por conta da tecnologia que eles ado-tam e dos subsídios...— E também porque eles não têm para onde expandir. A agricultura norte-americana ocupa cerca de 100 milhões de hectares – um pouco menos do do-bro do Brasil. Eu perguntei para um amigo americano: “Por que vocês não expandem?”. Ele respondeu: “Expandir para onde?”. Nós não nos damos conta de que os Estados Unidos têm desertos imensos – a Califórnia praticamente toda, Nevada, é tudo deserto. Há ca-deias de montanhas enormes. O Bra-sil tem uma capacidade de expandir considerável.

■ Mas temos desafi os tecnológicos a ven-cer em relação ao etanol. Como o senhor vê as perspectivas do etanol de segunda geração, extraído da celulose?— Creio que num horizonte além de dez anos teremos a tecnologia de se-gunda geração. Os Estados Unidos es-tão numa situação difícil porque estão contando com a chegada da segunda geração dentro de três a quatro anos. Acho que isso não vai ocorrer.

■ Nos últimos anos, o Brasil não tem investido tanto quanto outros países no etanol de celulose...— É natural. Afi nal, o etanol de pri-meira geração do Brasil tem êxito, ao contrário de outros países. A produ-tividade cresceu quase 4% por ano durante três décadas, considerando os ganhos industriais e agrícolas. E sem usar manipulação genética, que é o que se busca agora. Tudo o que temos é primeira geração. Segunda geração é a celulose. A celulose é formada por uma longa cadeia de sacarose e o pro-blema é quebrar a celulose em sacarose

para depois fermentá-la. O Brasil está entrando nisso agora. Há muitos tra-balhos em busca do etanol de segunda geração, mas ainda fragmentados. Falta uma articulação e falta, sobretudo, che-gar a plantas piloto. Uma coisa é fazer uma experiência na bancada. Outra é produzir em grande escala. A FAPESP lançou um programa de bioenergia, o Bioen, para acelerar o desenvolvimento. Também está em preparação um pro-grama que o governo do estado deverá lançar – que é grande – e pelo menos dobraria os recursos que a FAPESP in-veste nessa área, também para acelerar o desenvolvimento de tecnologias de segunda geração. Sou o coordenador da Comissão Estadual de Bioenergia, que foi constituída pelo governador com essa fi nalidade. Nosso relatório está na fase fi nal de preparação e o gover-no deve tomar medidas nesse sentido brevemente. A idéia é estimular de uma maneira muito signifi cativa as pesqui-sas de segunda geração.

■ Queria falar um pouco do início da sua carreira. Não entendi a efeméride dos 60 anos de USP, pois o senhor ingressou no curso de física da universidade em 1946, há 62 anos. — A resposta da charada é a seguinte: só em 1948 eu me tornei bolsista e pas-sei a trabalhar para a USP.

■ Como é que era a universidade naquela época? — Vim para São Paulo em 1946. Fiz curso secundário em Porto Alegre nu-ma escola muito boa, o Colégio Esta-dual Julio de Castilhos, que foi o ber-ço do positivismo no Brasil. Quando estava no colégio, já era evidente que queria estudar física. E o lugar onde ti-nha física no Brasil era a USP. Isso em 1946. A universidade havia sido criada em 1934 – tinha 12 anos de vida. Nessa época, ainda estavam por aqui alguns daqueles professores estrangeiros que tinham vindo para o Brasil para escapar do nazismo e do fascismo. No Departa-mento de Física da Faculdade de Filoso-fi a, Ciências e Letras (FFCL) tinha um professor italiano, Gleb Wataghin, que acabou dando o nome para o Instituto de Física da Unicamp. Eu acho que aí houve uma injustiça histórica, porque o nome dele devia ter sido dado ao Ins-tituto de Física da USP. Wataghin tinha

sido estudante de Enrico Fermi, que teve um papel muito importante em desenvolver a energia nuclear. Era um indivíduo com uma visão muito boa de física e vim atraído por isso. Tinha outros professores que eram da segun-da geração, como o Mário Schenberg e o Marcello Damy de Souza Santos. Havia um sentimento de ciência viva na ocasião. Alguns desses professores já tinham estado no exterior, já tinham publicado, já faziam ciência de Primei-ro Mundo. Comecei a trabalhar com física nuclear experimental. A FFCL ainda estava em fase de ascensão, lu-tando contra as faculdades tradicionais. Havia um sentimento de estar no meio de uma batalha: a Faculdade de Direi-to era conservadora, a Politécnica não queria saber de ciência etc.

■ Ao mesmo tempo, essas unidades, que já existiam antes da fundação da USP, atraíam mais alunos do que os cursos oferecidos pela FFCL, não é isso?— É, era uma época heróica. O sucesso

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da evolução da universidade levou a uma melhoria das faculdades todas. A reforma universitária de 1968 co-laborou para que isso ocorresse. Mas logo depois, em 1952, eu fui para o exterior e comecei a desenvolver uma carreira parte no estrangeiro, parte aqui. Naquela época, se você escolhia uma carreira na área de ciências, isso era considerado até mesmo pela sua família como um voto de pobreza.

■ E era mesmo? Ainda hoje a carreira acadêmica traz recompensas que não seriam exatamente materiais...— Isso é mais recente. A USP, é cla-ro, foi pioneira em algo fundamental. Criou o regime de dedicação exclusiva. Ouça um ex-reitor falando: se tives-se que apontar uma coisa que tornou viável a USP, diria que foi o regime de dedicação exclusiva. Sem isso, não seria possível desenvolver atividades científi cas, porque o indivíduo, para se manter, precisava dar aulas numa porção de lugares. Depois das várias reformas que a universidade teve e de

alguns reitores muito agressivos – no bom sentido – como o Antônio de Ulhôa Cintra e o Miguel Reale, a USP cresceu e conquistou mais recursos. E, fi nalmente, na época em que fui reitor conseguimos autonomia fi nanceira, que fez uma diferença brutal. Isso não signifi ca que a universidade tenha que se desligar do resto da sociedade e do governo, mas é essencial que ela saiba com que recursos vai contar.

■ Por que o senhor mudou o eixo de sua carreira nos anos 1970, trocando a física de bancada pelo interesse em energia?— Em meados de 1960 passei dois anos na Universidade de Stanford, que tinha o melhor acelerador nuclear para elé-trons na época, e realizei trabalhos que tiveram uma repercussão signifi cativa. Recebi vários convites para trabalhar no exterior, com posições muito boas: fui convidado para ser professor titu-lar na Universidade de Toronto. Rece-bi também convite da Universidade de Paris e fui para Paris. É possível que, se não tivessem ocorrido eventos signifi -cativos na minha vida pessoal, teria me tornado professor titular da Universi-dade de Paris ou da de Toronto. Mas a minha primeira esposa faleceu. Voltei para o Brasil com meus fi lhos pequenos e achei que precisava construir minha vida no Brasil. Isso foi há mais de 40 anos. Era professor assistente e fi z con-curso para titular de física na Escola Politécnica. Quando começou a repres-são política do regime militar, já tinha responsabilidades administrativas. Me tornei diretor do Instituto de Física, que foi criado em 1970. Ele englobou todas as atividades de física da USP, incluindo a Escola Politécnica.

■ Foi aí que teve início a sua militância?— Não era uma militância partidá-ria. Mas não podia fi car cego diante do que estava acontecendo no país e passei a me envolver em questões da sociedade. Me tornei presidente da Sociedade Brasileira de Física, depois presidente da SBPC e me envolvi muito no debate nuclear. Por causa da minha formação, sabia o que estava se discu-tindo. Depois o Franco Montoro foi eleito governador de São Paulo e me nomeou presidente da Cesp. E, em seguida, me tornei reitor. Uma coisa positiva é que consegui manter minha

atividade científi ca. Minha lista de pu-blicações não sofreu hiatos. Só deixei, a certa altura, de publicar em revistas de física para fazê-lo em publicações mais abrangentes.

■ Neste mesmo espaço, na edição de julho de Pesquisa FAPESP, o ex-ministro do Planejamento João Paulo dos Reis Velloso abordou uma série de mudanças positivas no ambiente acadêmico brasileiro imple-mentadas na época da ditadura, como o sistema de pós-graduação. O senhor, que foi uma voz de oposição naquela época, concorda com essa análise? — Apesar da repressão, o movimento dos militares tinha fortes componen-tes modernizadores. Talvez por isso a relação dos militares com a ciência e a tecnologia foi sempre dúbia e com-plexa. Eles queriam um país grande, militarmente forte, e tinham o bom senso de identifi car que, para chegar lá, precisariam dos cientistas. Eles ini-ciaram o programa nuclear – de uma forma equivocada, mas começaram –, o programa espacial, e acabaram aceitando essas idéias para a pós-gra-duação, que foram medidas efetivas de modernização. Mas o governo mi-litar também estava preocupadíssimo com a ameaça do comunismo e com os fantasmas da Guerra Fria. Perseguiu professores como o Mário Schenberg, aposentaram o Fernando Henrique. Mas o foco eram as ciências sociais. Vários de nós contudo não precisaram sair do país, eu inclusive. Fiz oposição clara ao programa nuclear. As pessoas perguntam: “O governo aposentava to-do mundo, por que não se livraram de você?”. Eles devem ter achado que, eli-minando esse tipo de pessoa, estariam perdendo um tipo de competência de que precisariam. Mas o sistema criado por eles acabou fi cando muito distan-te da atividade industrial. Lembra um pouco, sob esse ponto de vista, a ex-tinta União Soviética, que manteve os cientistas relativamente bem cuidados mas afastados da indústria. Embora tenha se tornado uma grande potência militar, era uma potência de terceira qualidade no que se refere a bens de consumo. Aqui no Brasil não chegamos a isso, mas o sistema científi co ainda está longe de atividades em escala in-dustrial. Creio que esse problema está ligado a essa herança.

A relação dos militares com a ciência foi dúbia e complexa. Eles queriam um país grande e tiveram o bom senso de identifi car que, para chegar lá, precisariam dos cientistas

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■ Nos anos 1970 o senhor se manifestou fortemente contra a construção de usi-nas nucleares, que hoje começam a ser reabilitadas em vários países. A opção da energia nuclear seria oportuna para o Brasil hoje? — Na década de 1970 eu me opus ao desenvolvimento nuclear em grande escala com a total tranqüilidade de que estava certo. Em 1992 realizou-se o Rio-92, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente. Essa conferência durou 15 dias e eu estava lá – era secretário de Ciência e Tecnologia do governo federal e acumulava o Meio Ambiente. Estava no Rio passeando na praia, no calçadão, e encontrei o general Costa Cavalcanti, que tinha sido ministro das Minas e Energia e do Interior nos governos militares. Ele me disse: “Olha aqui, professor, vocês tiveram um papel muito importante no desenvolvimento energético no Brasil, maior do que vocês pensam. Em 1975 eu era o presidente da Itaipu Binacional e estava começando a cons-trução de Itaipu. A grande discussão que havia dentro do governo era se nós devíamos completar Itaipu ou de-dicar os recursos só para a área nuclear. A oposição dos cientistas reforçou a nossa posição dentro do governo”. Foi um testemunho não solicitado e mostrou que nós tínhamos razão. A tentativa de introduzir a energia nuclear no Brasil naquela época era intempestiva. Havia essas enormes possibilidades, como Itaipu, que é a maior hidrelétrica do mundo. Agora, passados 30 anos, a energia nuclear está sendo reavaliada. Mas ela ainda é extremamente cara por causa da com-plexidade e das preocupações com a segurança. Sem dúvida, ela tem vanta-gens. Não emite gases de efeito estufa, praticamente. As objeções de caráter ambiental diminuíram porque desde 1986 não há nenhum acidente grande. Mas creio que ainda não é tempestivo para o Brasil. Se o governo colocar uma grande quantidade de dinheiro em energia nuclear, que é cara, deixará de fazer outras coisas.

■ E hidrelétricas na Amazônia? O senhor as considera tempestivas?— Sim. Acho que a utilização desse potencial hidrelétrico da Amazônia – não todo, mas parte dele – é inevi-

tisfazer grupos políticos ou corporati-vos, mas não resolve os problemas da universidade. O que uma universidade precisa é de uma gestão que funcione. Na reforma de 1988 nós ampliamos muito a participação nos colegiados. Foi ampliada a participação dos alunos e dos docentes de nível inicial. Mas a gestão continuou de uma maneira clara nas mãos do pessoal mais ex-periente e permanente. Isso continua válido. Ter uma grande participação de estudantes, que vão embora depois de cinco anos, é problemático. E os funcionários acabaram se caracteri-zando como muito ligados a partidos políticos, uma coisa muito ruim. Eu não acompanhei em detalhes a nova estatuinte, mas achei que as teses le-vantadas tinham um sabor de déjà vu. Não vi nenhuma idéia muito criativa que ajude a rejuvenescer a USP. Acho que há problemas mais importantes e não vai ser mudando a estrutura de poder que se vai resolver.

■ Se o senhor tivesse que citar um proble-ma a ser enfrentado, qual seria? — A burocracia e a falta de liderança. A universidade acabou fi cando lenta, parecendo uma dama de idade avança-da. As pessoas se queixam da lentidão dos processos e da burocracia envolvi-da que tem aumentado ao longo dos anos. Isso tem um pouco a ver com os problemas do país. Como a corrupção virou um problema endêmico no país, cada vez inventam mais controles – e quanto mais controles surgem, maior é a lentidão.

■ Na época em que o senhor foi reitor houve aquela celeuma famosa a respeito da divulgação de uma relação de profes-sores que não tinham produção acadê-mica, que fi cou conhecida como “lista dos improdutivos”. Como avalia aquele episódio hoje?— Vejo como extremamente positivo, porque introduziu na universidade a idéia de que é preciso ter aferição. Se há uma característica que norteou o meu trabalho a vida toda é o conceito de mérito e qualidade. Um professor precisa produzir e ser avaliado por juízes independentes. Nos países desenvolvi-dos é assim. Na época havia setores da universidade que publicavam pouco e se recusavam a ser avaliados. Reivin-

tável. Mas temos alguns problemas: elas ficam muito longe dos grandes centros consumidores e, portanto, há que se fazer linhas de transmissão e a energia não será barata. Mas não tem jeito. Também há o problema ambien-tal. É preciso fazer direito. Problemas ambientais existem sempre, porque não se pode construir coisas sem mudar o ambiente. É preciso achar maneiras de minimizar o impacto ou, se isso não for possível, de oferecer compensações.

■ Quando o senhor foi reitor da USP realizou-se uma reforma nos estatu-tos que, na época, ajudou a oxigenar a universidade. Agora se discute uma nova reforma. Que o senhor acha desse debate?— Naquela época, como agora, havia uma pressão grande para uma par-ticipação maior de poder. Era uma discussão sobre gestão de poder e is-so está naturalmente muito ligado ao que tinha ocorrido em 1968, quando surgiram as idéias de gestão paritária. Gestão paritária não dá certo. Pode sa-

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dicavam que a avaliação fosse interna, dentro dos próprios departamentos. Isso criava compadrio. Esse cenário mudou completamente, não só den-tro da USP mas no Brasil todo. Hoje, se você é professor da USP, a Comissão de Pós-Graduação, a Capes, o CNPq, a FAPESP estão exigindo o tempo todo que você prepare relatórios anuais com suas publicações. A nota que a Capes dá depende do nível de publicações – têm publicações que valem, outras que não valem –, que fi cou sofi sticadíssimo. Sob esse ponto de vista, a batalha pela aferição e pela avaliação da qualidade foi vitoriosa.

■ Que balanço o senhor faz da Confe-rência Rio-92 ?— Foi importante e abriu caminho para uma nova visão dos problemas ambientais, que passaram a ser respon-sabilidade dos governos. O fato de que os governos tinham que tomar medidas fi cou claramente confi gurado naque-la ocasião. Tanto que da Conferência de 92 surgiu o Protocolo de Kyoto em

1997. Com a postura difícil dos Estados Unidos, a implementação dos acordos sofreu um atraso enorme. Há uma luta em andamento. Eu tenho acompanha-do esta luta e estou convencido de que o Itamaraty não é sufi cientemente pró-ativo nessas questões.

■ Que postura o senhor esperava da di-plomacia brasileira? — Os Estados Unidos se recusaram a assinar o Protocolo de Kyoto pelo seguinte: eles não querem tomar as medidas para reduzir as emissões se os outros não tomarem, inclusive os países em desenvolvimento. Por quê? Porque se eles as tomarem sozinhos, vai se criar imediatamente um pro-blema de competitividade comercial. Alguns produtos vão fi car mais caros nos Estados Unidos do que nos outros países. Em contrapartida, os países em desenvolvimento argumentam: “Isso não é justo porque nós chegamos tar-de ao desenvolvimento e agora temos direito a mais emissões”. Acontece que não há mais espaço para isso. A China está emitindo tanto quanto os Estados Unidos. Não importa se o consumo per capita é diferente. Se você se colocar no lugar da atmosfera, o que vem da Chi-na até superou o que vem dos Estados Unidos. O Brasil fi ca defendendo uma tese obsoleta, de que historicamente nós não somos responsáveis pelo pro-blema e, portanto, temos o direito a nos desenvolver dessa maneira. Lembro o meu conceito de leapfrogging: não é verdadeira a idéia de que o Brasil não pode crescer se adotar metas e reduzir as emissões. Basta adotar tecnologias modernas. Temos uma matriz energé-tica limpa e o governo poderia tomar uma posição mais pró-ativa. O Brasil está tirando as castanhas do fogo para a China, não para si mesmo – exceto pelo que ocorre na Amazônia. E o que está ocorrendo na Amazônia é uma situa-ção vergonhosa que tem que acabar.

■ Em sua passagem pelo Ministério da Educação (MEC), o senhor teve as uni-versidades federais sob o seu comando. Hoje elas estão se esforçando para au-mentar o número de vagas. Há um pro-grama forte no sentido de dar acesso a mais gente. Elas têm condição de crescer com característica de universidades de pesquisa?

— Como ministro da Educação, tentei aplicar o modelo da USP para o Brasil. Também tentei dar às universidades federais um pouco mais de autonomia fi nanceira. Não funcionou. Sob esse ponto de vista, minha gestão não teve resultado. Eu achava que, sem autono-mia fi nanceira, o reitor é um funcio-nário de terceira categoria do MEC. Os reitores estavam o tempo todo no meu gabinete dizendo que a verba ti-nha acabado. Era verdade, porque ha-via infl ação. Como era muito difícil arrumar dinheiro dentro do governo, eles iam ao Senado e conseguiam que se aprovasse uma emenda aqui, outra lá. Ou seja, viraram despachantes de luxo para conseguir mais verbas. Is-so os impedia de fazer planejamento. Eu descobri, no processo, que essas universidades na verdade não que-riam autonomia. Era só conhecer um senador infl uente para arrumar uma verba especial. Eu me lembro de um caso concreto em que eu tinha dado dinheiro para certa universidade, fora do orçamento, para construir uma bi-blioteca. Uns meses depois fui lá e quis olhar a biblioteca. Ela não tinha sido construída. O dinheiro foi usado para fazer um restaurante para os estudan-tes. Na visão do reitor, o bandejão era mais importante porque os estudantes estavam pressionando. Eu disse: “Pois é; mas isso aqui não é o Ministério de Assistência Social”. Aprendi que o modelo da USP não pode ser aplicado para todas as universidades federais.

■ Por quê?— O modelo da USP é um modelo de elite. E não é que eu a reconheça como elitista. É que querem entrar na USP 100 mil alunos por ano e só há 7 mil vagas. Então tem que haver uma seleção. Os outros vão para faculdades particulares. A impressão que tenho, e compartilho com colegas que se de-dicavam mais a isso, como a Eunice Durham, é que o sistema universitário brasileiro precisa ser repensado. Além da USP, temos poucas universidades de nível internacional, como a Unicamp. Depois, as universidades particulares têm dois terços dos alunos. As universi-dades federais fi caram num limbo entre essas duas categorias. Não conseguem se transformar em universidades de pesquisa nem se dedicam ao ensino

Nossa diplomacia defende a tese de que o Brasil não vai crescer se adotar metas de redução de gases. Não é verdade. Basta adotar tecnologias modernas

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de massa. Alguns dos meus colegas acham que se deviam criar colleges aqui no Brasil, a idéia de que as uni-versidades de todos os estados sejam iguais à USP, pelo menos como meta, não é realista.

■ O senhor participou do governo Collor, que foi bastante criticado pela comuni-dade científi ca por iniciativas como a tentativa de extinguir a Capes. Como o senhor avalia o período?— No que se refere ao meio ambiente, o governo Collor teve um papel bom. Apoiou a Conferência Rio-92. Na oca-sião eu acabei sendo secretário de Meio Ambiente, com status equivalente ao de ministro. Foi um período ótimo. Criamos reservas indígenas contíguas quando muitos desejavam retalhá-las. Na área de ciência e tecnologia, acho que também foi bom. Acabamos com esse negócio de produzir armas nu-cleares escondido e acabamos com a reserva de mercado da informática, o que ajudou a modernizar o país. Es-sa questão da Capes era da esfera do Ministério da Educação e foi defi ni-da antes de o governo começar. Um pessoal que veio de fora achava que tinha uma duplicação entre a Capes e o CNPq, pois os dois davam bolsas para o exterior. Era uma idéia de ad-ministrador de empresa. Tenho duas pessoas fazendo a mesma coisa – man-da uma embora. Depois tudo foi es-clarecido e o governo voltou atrás. Eu não conhecia o Collor antes de o go-verno começar. Recebi um telefonema no dia 14 de março, véspera da posse. Houve episódios menos conhecidos. Em dado momento, o governo estava pensando em emendar a Constituição num esforço para modernizar o país.

Surgiram várias propostas e uma delas propunha a eliminação do ensino gra-tuito das universidades. Eu me opus violentamente dentro do governo e a idéia foi abandonada.

■ Foi a que altura do governo?— Na metade de 1991. Porque 1992 já foi tomado pela crise que levou ao impeachment. Mas me lembro que argumentei e a idéia foi abandona-da. Os economistas acham isso: “Ah, ensino gratuito é elitista”. Achar que os problemas da universidade serão resolvidos com os alunos pagando é uma idéia completamente irrealista. São coisas que apareceram na ocasião, mas a presença de pessoas como eu e a professora Eunice Durham foi im-portante. E é claro que nós não tive-mos absolutamente nada que ver com a corrupção do Collor. Ela envolvia outras áreas. E não era nem por vir-tude. Na nossa área de atuação não havia dinheiro sufi ciente para atrair o interesse daquele pessoal.

■ O fato de o governo Collor ter termi-nado como terminou prejudicou-o de alguma forma?— Não creio. Fui o único ministro que pediu demissão no meio da crise. Em setembro fi cou evidente que aquela Operação Uruguai era uma coisa ar-mada e eu pedi demissão. Na época nenhum outro ministro fez isso. O único impacto que houve na minha ida ao governo federal é ter me in-compatibilizado com alguns colegas da universidade e com a SBPC. Na ocasião, o conselho da SBPC emitiu um manifesto se associando às pro-postas de impeachment do presidente. Eu era o ministro e fui à reunião da

sociedade explicar que eu estava lá co-mo um cientista que tinha se tornado ministro por escolha do presidente e achava que a SBPC não tinha nada que se manifestar em assuntos políticos. Ela se manifestou pedindo o impeach-ment e pouco depois eu me demiti. Na minha opinião, a SBPC não foi criada para isso, mas para defender os cien-tistas e a ciência. E não tem nada que ter muita aproximação com o governo – o que ocorreu recentemente, algo que não vejo com nenhum prazer. Isso me magoou um pouco. Mas não creio que tenha me prejudicado, pois traba-lhei com vários governos. O governo Fernando Henrique Cardoso porém sistematicamente me evitou. Em 2003 o governador Geraldo Alckmin me convidou para ser secretário estadual do Meio Ambiente.

■ Neste hiato o senhor se dedicou à car-reira acadêmica?— Foi um período bom. Primeiro fui para a Suíça e depois para os Estados Unidos. Não fi quei o tempo todo. Sem-pre fi quei indo e vindo, mas na Suíça eu fi quei um ano.

■ Os colóquios do IEA que homenagea-ram o senhor trataram de diversos assun-tos como ciência, energia, universidade, tecnologia, meio ambiente e o futuro. O senhor acha que esses temas resumem as suas preocupações, seus interesses, ou faltou algum?— Não. A organização fez um esfor-ço para promover uma discussão em cada uma das áreas em que eu atuei. Naturalmente, as perguntas sobre o futuro fi caram sem resposta. Algo que emanou do simpósio porém foi uma discussão sobre o que precisa ser feito nos próximos dez anos para puxar a universidade do 150º lugar do ranking internacional para o 50º. Acho que é uma boa meta.

■ É factível?— Acho que sim. Mas isso também vai depender de ousadia. O fato é que a universidade ainda está muito distante do setor produtivo, ao contrário do que acontece com as grandes universida-des de pesquisa do exterior. O sistema universitário brasileiro está crescendo, mas não está conseguindo atender aos interesses da sociedade. ■

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CAPA

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Uma em cada dez vítimas de assalto, seqüestro ou outras formas de agressão desenvolve estresse pós-traumáticoRicardo Zorzetto | ilustrações Laura Daviña

O inferno de José Orleans Cruz começou em um fi nal de tarde tranqüilo sete anos atrás. Ele saiu por volta das 17h40 para buscar a mulher no trabalho e chegar a tempo da primei-ra aula no curso pré-vestibular que havia iniciado meses antes – duas décadas depois de concluir o ensino médio e ajudar os irmãos a estudar, planejava fi nalmente se formar advogado. Ao reduzir a marcha para cruzar um obstáculo,

uma seqüência rápida de eventos virou sua vida de pernas para o ar e desfez seus sonhos. Quatro homens surgiram em duas motocicletas como se tivessem brotado do asfalto e cercaram seu carro. Apontando armas, ordenaram aos gritos que abrisse as portas. Cruz se tornara vítima de seqüestro, algo que pensava ser improvável acontecer a um cidadão de classe média e só atingisse os grandes empresários. No caminho para o cativeiro, levou coronhadas e foi abandonado na entrada de uma favela depois que os seqüestradores souberam que a polícia os seguia. Antes de o liberarem, bateram mais. Cruz recebeu chutes e socos e fi cou caído na lama, com as pernas dormentes e a visão embaçada, sem conseguir se mexer. Só recobrou a consciência quando três pessoas o ajudaram. Um casal de namorados o levou para tomar água com açúcar e avisou a polícia. A terceira pessoa, um jovem, se propôs a resgatar o carro, mas tentou furtar o toca-CD de Cruz. “Eu estava muito fragilizado e aquele rapaz agiu daquela ma-neira”, conta Cruz. O desapontamento foi tão profundo que mudou sua vida. “Passei a desconfi ar de todo mundo.”

Durante a recuperação em casa na semana seguinte, Cruz começou a receber ameaças de morte por telefone e aos poucos não se sentia mais seguro em lugar nenhum. Trancou-se em casa e passou quatro anos sem visitar os irmãos no bairro vizinho. Nem sequer tinha cora-gem de chegar ao portão. “Quando alguém se aproximava, eu suava frio e tinha palpitações”, conta. Uma vez desmaiou na calçada ao perceber um motoqueiro por perto. Preso em sua própria casa, passou a comer

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compulsivamente. Em pouco tempo ganhou mais de 50 quilos e se tornou diabético e hipertenso. Três anos atrás concluiu que não valia mais a pena viver. Subiu ao 15º andar do prédio para o qual se mudara e sentou no parapeito, pronto para pular. Só não se jogou porque se lembrou da mãe, que nas aulas de catecismo ensinava às crianças que o suicídio é o maior dos pecados.

Dois dias depois de escapar pela segunda vez da morte Cruz foi a uma consulta no Programa de Atendimento e Pesquisa em Violência (Prove) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), levado pela mulher, com quem está casado há 16 anos. Ali descobriu que, além das dores físicas das primeiras semanas, o seqüestro relâmpago havia deixado feridas emocionais profundas que levariam bem mais tempo para cicatrizar. O psiquiatra que o atendeu explicou que ele estava sofrendo o chamado transtorno de estresse pós-traumático, um distúrbio emocional altamente incapacitante em geral apresen-tado por ex-combatentes de guerra, que apenas nos últimos anos começou a ser investigado no Brasil.

Nas sessões de terapia em grupo Cruz fi cou mais tranqüilo ao saber que não estava so-zinho, nem era o único a não se livrar das lembranças daquela noite que insistiam em aparecer apesar de seu esforço para esquecê-las ou do pavor que passou a sentir de estra-nhos. Na cidade de São Paulo uma em cada dez

pessoas que no último ano sofreu episódios de violência que pôs em risco suas vidas (assalto, seqüestro, agressões físicas ou abuso sexual) apresenta os sinais de transtorno de estresse pós-traumático, de acordo com o primeiro levantamento sobre a ocorrência do problema realizado no país. Coordenado pelo psiquiatra Jair de Jesus Mari, da Unifesp, esse estudo se baseou na avaliação de 2.530 moradores de diferentes regiões e segmentos socioeco-nômicos da capital paulista (amostra representativa da população paulistana) e foi apresentado em São Paulo no fi nal de junho no 1º Simpósio Internacional sobre Violên-cia e Saúde Mental. “Esses dados fornecem um argumento valioso para que se exijam políticas públicas de segurança mais efi cazes”, afi rma a antropóloga Alba Zaluar, da Uni-versidade do Estado do Rio de Janeiro, estudiosa das causas da violência no Brasil.

Extrapolada para a população da maior metrópole da América do Sul, esses 10% de portadores de estresse pós-traumático correspondem a 1,1 milhão de pessoas que nos últimos 12 meses sofreram ou testemunharam situações violentas e desenvolveram problemas emocionais debilitantes o sufi ciente para impedi-las de seguir com a vida normal, muitas vezes levando-as a abandonar o trabalho e a alterar também o cotidiano de seus familiares. É como se a cada ano a população de uma cidade como Campinas, a segunda mais populosa do estado, adoecesse a ponto de necessitar de aten-dimento médico e psicológico. Quando os pesquisadores am-pliaram o período analisado para a vida toda, a ocorrência de estresse pós-traumático mais que dobrou: 26% dos paulistanos

Aumento da violência expõe população a

distúrbio emocional comum em guerras

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transtorno de estresse pós-traumático e membro da rede brasileira que in-vestiga os efeitos da violência sobre a saúde mental da população. O co-mentário de Mello não é apenas uma metáfora. A ocorrência de distúrbio psiquiátrico nas duas cidades brasi-leiras com os mais elevados índices absolutos de violência é próxima – e algumas vezes superior – à obser-vada em países que recentemente passaram por guerras ou confl itos armados internos como Argélia, Camboja e Etiópia. Nessas nações a taxa de estresse pós-traumático na população é, respectivamente, 37%, 28%, 16%.

Só que o Brasil não está em guerra, ao menos não uma guerra declarada. “Enquanto nos Estados Unidos e na Europa a violência é decorrente de ataques terroristas ou da participação de militares em confl itos no exterior, no Bra-sil é conseqüência de uma espécie de guerra urbana”, comenta Ma-ri. Ainda que seja difícil medir

essa forma de violência em toda a sua extensão, estudos recentes conseguem detectar ao menos sua face mais evi-dente e letal: os homicídios.

Dados de mortalidade do Saúde Bra-sil 2006, documento compilado pelo Mi-nistério da Saúde, indicam que um em cada 20 mortos no país é vítima de ho-micídio, na maioria dos casos assassinatos envolvendo o uso de armas de fogo, que tiraram a vida de quase 50 mil brasileiros apenas em 2004. É um problema que vem crescendo nas últimas décadas: o índice de pessoas que perdem a vida vítimas de agressão passou de 14,1 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes em 1980 para 27,2 por 100 mil em 2004. Três vezes supe-rior à média mundial de homicídios calcu-lada pela Organização Mundial da Saúde, essa taxa refl ete apenas a média nacional. Em cidades brasileiras como Rio, São Paulo e Recife esse índice é bem mais elevado, em especial entre os jovens do sexo masculino, alcançando por vezes valores superiores aos de Cali, na Colômbia, que no início da déca-da de 1990 era considerada uma das cidades mais violentas do mundo.

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EZ– o equivalente a 2,8 milhões de pes-

soas ou quase a população de Salvador, a terceira cidade mais populosa do país – apresentaram sinais compatíveis ao desse problema emocional disparado pela violência. Nem Mari nem mui-tos do grupo por ele coordenado, que inclui quase 50 pesquisadores de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Ceará, esperavam taxas tão elevadas, cerca de três vezes mais altas do que a estimada para a população norte-americana.

Iniciada em 2006 essa pesquisa não se restringe a coletar informações sobre a população paulistana. Na Universi-dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a equipe do psiquiatra Ivan Figueira está concluindo um levantamento se-melhante com 1.500 moradores de di-ferentes pontos da capital fl uminense, dos prédios na orla aos morros cario-cas. A expectativa é de que o resultado seja semelhante.

“São números de um país em guer-ra”, afi rma Marcelo Feijó de Mello, psiquiatra da Unifesp especialista em

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É uma guerra urbana em que todos perdem. Perdem os

que morrem e também os que sobrevivem ao bangue-bangue

das metrópoles brasileiras – só na capital paulista houve 36 mil

crimes violentos (assassinatos, roubos e estupros) no primeiro

trimestre de 2008 – e mais tarde têm de enfrentar os efeitos colaterais da

violência, como ansiedade, depressão e também o estresse pós-traumático.

O avanço da violência nas últimas décadas se encarregou de trazer para

as cidades um problema emocional que até meados do século passado se imaginava ser exclusivo dos campos

de batalha. O que hoje os manuais diagnósticos de saúde mental tra-tam como transtorno de estresse pós-traumático, um quadro grave

de ansiedade decorrente de uma si-tuação extrema de estresse, com amea-

ça à vida, foi descrito inicialmente no fi nal do século XIX pelo neurologista e psicólogo

francês Pierre Janet. Marcado por pesadelos, insônia, irritabilidade e lembranças recorrentes

e indesejadas da situação que o gerou – ou ainda pela reação exagerada a sons e imagens associa-

dos a essa situação –, esse quadro mais tarde se tornaria conhecido como neurose de guerra ou

estresse de combate e atrairia o interesse de ou-tro renomado neurologista, o austríaco Sigmund Freud, criador da psicanálise.

Durante a Primeira Guerra Mundial, Freud e outros psicanalistas puderam monitorar combatentes que chegavam aos hospitais com paralisia, tremores, pesadelos recor-rentes, perda de desejo sexual. Em comum esses pacientes haviam passado por uma situação traumática, em geral a perda de

companheiros ou a proximidade da própria morte du-rante os combates, além de privação intensa e esgotamento

físico. Por infl uência dos veteranos do Vietnã, o estresse de combate entraria em 1980 pela primeira vez para o manual

de diagnóstico de saúde mental, o Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders (DSM), com o nome de transtorno

de estresse pós-traumático.Nas trincheiras ou nas ruas das metrópoles o transtorno

de estresse pós-traumático é disparado por uma característica específi ca: a ameaça de morte. “Durante o episódio violento, as

pessoas que desenvolvem estresse pós-traumático têm a percepção nítida de que vão morrer ou de que, no mínimo, algo se perdeu

para sempre e a vida mudou”, conta o psiquiatra José Paulo Fiks, da equipe da Unifesp que realizou o levantamen-to em São Paulo. Do ponto de vista da psicanálise, uma ameaça extrema e imprevista como a de morte pode produzir no sujeito um impacto afe-tivo tão intenso que ele não consegue assimilar e incorporar à história de sua vida, explica Sidnei Casetto, professor de teoria freudiana do Departamento de Ciências da Saúde da Unifesp na Baixada Santista. Como resultado, ele passa a rever repetidamente o evento que gerou o trauma na tentativa de dar-lhe um signifi cado e o esquecer, deixando de ser uma espécie de pri-sioneiro do tempo.

Assim como Freud, muitos dos que estudam atualmente o estresse pós-traumático acreditam que o episódio violento que o dispara, na realidade, não é sua causa primordial. Sua origem estaria escondida no passado, muitas vezes em algum trauma ocorrido na infância, que seria novamente trazido à tona. “A situação recente em que a vida esteve em risco resgataria uma situação anterior, que permaneceu encapsula-da”, comenta a psicóloga Mariana Pupo, também da Unifesp.

Os dados clínicos corroboram esse raciocínio. Avaliando a história de cem portadores de estresse pós-traumático atendidos no Prove, Mariana, Ali-ne Schoedl e Marcelo Feijó de Mello constataram que metade deles havia

1. Transtorno do estresse pós-traumático: epidemiologia, fisiopatologia e tratamento2. O Impacto da violência na saúde mental da população brasileira

MODALIDADE

1. Projeto Temático2. Instituto do Milênio

CO OR DE NA DORES

1. RODRIGO AFFONSECA BRESSAN – Unifesp2. JAIR DE JESUS MARI – Unifesp

INVESTIMENTO

1. R$ 1.060.744,27 (FAPESP)2. R$ 4.204.400,00 (CNPq)

OS PROJETOS>

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passado por situação extremamente violenta na infância ou na adolescência: 48% sofreram abuso sexual antes dos 18 anos. Feito em parceria com Linda Carpenter e Lawrence Price, da Universidade Brown, nos Estados Unidos, esse trabalho mos-trou ainda que o risco de desenvolver estresse pós-traumático está intimamente relacionado à fase da vida em que ocorreu o abuso. Vítimas de violência sexual na adolescência (entre 13 e 18 anos) apresentaram risco dez vezes maior de desen-volver transtorno de estresse pós-traumático na vida adulta do que as que haviam passado pela mesma situação antes dos 12 anos. Já o abuso sexual na infância (até os 12 anos) aumentou a probabilidade de desenvolver depressão numa fase posterior da vida, segundo artigo a ser publicado em breve na Child Abuse and Neglect.

O levantamento com 2.530 moradores de São Paulo indicou também que nem sempre são os eventos violentos considerados mais graves, a exemplo dos assaltos à mão armada ou de seqüestros com tortura como o vivenciado por José Orleans Cruz anos atrás, que dispa-ram o estresse pós-traumático. A maior parte

dos casos identifi cados na capital paulista decorre de agressão doméstica (brigas entre casais, violência contra os fi lhos ou abuso sexual cometido por côn-juge ou parente), segundo o psiquiatra Sergio Baxter Andreoli, responsável pelos dados epidemiológicos do estudo na cidade de São Paulo.

Grupos específi cos da população parecem correr maior risco de desenvolver estresse pós-traumático que os demais. Em 2004 Deborah Maia e Ivan Figueira, da UFRJ, analisaram a ocorrên-cia de estresse pós-traumático entre policiais da tropa de elite de Goiás. Dos 155 policiais que participaram do estudo, 9% apresentavam no momento da entrevista os sintomas que carac-terizam o quadro de estresse pós-traumático – e outros 16% manifestavam parte dos sinais, que se tornaram conhecidos da população no esgotamento apresentado pelo Capitão Nas-cimento, do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), interpretado pelo ator Wagner Moura no fi lme Tropa de elite, de José Padilha. Esses policiais com sintomas de estresse pós-traumático relatavam se en-contrar com a saúde mais debilitada e ter passado por mais consultas e internações médicas que os demais, como detalharam os pesquisadores em artigo publicado em 2007 no Journal of Affective Disorders.

Durante um assalto à mão armada, se-qüestro ou estupro, o impacto emocional da violência pode ser tão intenso que a vítima manifesta um recurso extremo de defesa. Como se congelasse instantanea-mente, o corpo paralisa, sem forças para reagir ou gritar. Comum entre presas ante seus predadores – a exemplo de

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predispõem ao desenvolvimento do estresse pós-traumático ou protegem dele; além de tratamentos medicamen-tosos e psicológicos mais efi cientes.

Analisando amostras de saliva coletadas durante a entrevista com a população da capital paulista, Marcelo Feijó Mello constatou que as pessoas com sinais de transtorno do estres-se pós-traumático também

apresentavam um desequilíbrio hormonal importante, seme-lhante ao observado em es-tudos realizados em outros países. Provavelmente em con-seqüência do estresse e da ansie-dade prolongada provocados pelo episódio violento, o organismo delas produz níveis mais baixos do hormônio cortisol, associado ao estresse. Parece contraditório, mas não é. Esse resul-tado sugere que elas se tornaram mais sensíveis à ação desse hormônio. Por essa razão, taxas menores na corrente sangüínea provocam efeitos mais exa-cerbados, como as palpitações e o alerta redobrado que Cruz sentia ao avistar

um motoqueiro. Esse efeito, que pode fazer a diferença entre a vida e a morte por preparar o organismo para esca-par de um agressor, é extremamente danoso quando dura mais que alguns instantes porque provoca a morte de células cerebrais.

Os resultados ainda são prelimi-nares, mas essa morte celular parece afetar uma área cerebral associada à aquisição da memória, o hipocampo. A anatomista Andrea Jackowski compa-

rou imagens de ressonância nuclear magnética do cérebro de 55 pessoas vítimas de violência em São Paulo (35 haviam desenvolvido estresse pós-traumático e 20 permaneciam

saudáveis) e observou uma redução de até 10% no volume do hipocam-po, possivelmente associada à morte celular. “Ainda não sabemos dizer se o estresse pós-traumático provoca a diminuição do hipocampo ou, ao con-trário, se as pessoas que já apresenta-vam hipocampo menor eram mais propensas a desenvolver o problema”, explica Andrea.

Esse é outro achado aparentemente contraditório. Mas já é de esperar que

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O exemplo da Primeira Guerra: combatentes adoecem ante a perda de companheiros e o risco de morte

um rato atacado por uma águia –, essa reação involuntária pode ajudar a pre-dizer como evoluirá o tratamento do in-divíduo, em geral baseado em sessões de psicoterapia associadas ao uso de me-dicamentos antidepressivos que agem sobre o neurotransmissor serotonina e ajudam em 80% dos casos. Em um estu-do com 23 pessoas vítimas de violência urbana (na maioria dos casos assalto à mão armada), publicado recentemen-te no Journal of Affective Disorders, dez desenvolveram paralisia e responderam pior ao tratamento com antidepressi-vos, constataram Figueira e a psiquiatra Adriana Fiszman, da UFRJ.

O trabalho dos grupos coordena-dos por Jair Mari e Ivan Figueira não se restringe a verifi car os índices de estresse pós-traumático nas popula-ções das principais metrópoles bra-sileiras. As equipes de São Paulo e do Rio também buscam compreender melhor aspectos ainda obscuros des-se transtorno emocional: as alterações que provocam no funcionamento do organismo muitos anos depois do episódio violento; a identifi cação de fatores biológicos e ambientais que

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não haja resposta sim-ples para uma enfer-midade que pode ser provocada por diver-sos fatores e que envol-ve um órgão tão complexo como o cérebro. Se o centro associado à aquisição da memória é menor nos portadores de estresse pós-traumático, eles não deveriam se lembrar menos do que se passou? Na verdade não. É que eventos de forte conteúdo emocional – um revólver engatilhado apontado para a cabeça, por exemplo – acionam também outra área cerebral chamada amígdala, responsável pela aquisição da memória de eventos desagradáveis. Em uma pessoa saudável, o funcionamen-to da amígdala é inibido pelo córtex frontal, a região mais anterior do cé-rebro, situada próximo à testa. Andréa tenta agora identifi car se as pessoas com estresse pós-traumático também apresentam uma redução no volume do córtex frontal, o que explicaria o fun-cionamento exagerado da amígdala e o estado de hipervigilância.

Em uma vertente pouco usual nos estudos de doenças psiquiátricas, a ge-neticista Camila Guindalini está anali-sando cerca de 1.500 amostras de saliva coletadas durante as entrevistas com os moradores de São Paulo de pessoas vítimas de violência que desenvolveram ou não estresse pós-traumático. Ela ten-ta identifi car alterações específi cas nos quase 21 mil genes humanos que afetam o funcionamento do sistema nervoso central e possam favorecer o desenvol-vimento do estresse pós-traumático ou mesmo aumentar a resistência a esse distúrbio emocional. Estudos inter-nacionais sugerem uma contribuição de aproximadamente 30% dos fatores genéticos para o desenvolvimento do estresse pós-traumático – os outros 70% fi cariam por conta do ambiente (condições socioeconômicas, educacio-nais e suporte social). Camila também pretende ver como se comportam na população brasileira variações em genes específi cos ligados ao funcionamento de neurotransmissores ou ao desenvol-vimento de células cerebrais e à fi xação da memória. “Com uma amostra tão grande, conseguiremos identifi car efei-tos pequenos provocados pelos genes”, diz. Ainda que não expliquem tudo, po-dem ajudar a entender o problema.

Enquanto não se chega a um qua-dro mais claro sobre possíveis fato-res biológicos associados ao estresse pós-traumático, capazes de levar a mudanças nos tratamentos atuais, a equipe da Unifesp testa uma terapia psicológica alternativa em grupo de pessoas no qual os antidepressivos e as terapias psicológicas mais usuais não surtiram o efeito desejado. Em vez de expor o indivíduo a situações semelhantes àquela que gerou o trau-ma, como propõe a terapia cognitivo-comportamental, a equipe de Rosaly Braga Campanini tenta restaurar, com a chamada terapia interpessoal de grupo, os laços sociais (na família, no trabalho e na comunidade) que os portadores de estresse pós-traumático em geral perderam. Até o momento as 30 pessoas que passaram por sessões semanais de terapia interpessoal apre-sentaram melhora importante, com

redução das lembranças do trauma e recuperação da relação com familiares e amigos.

Apesar dos avanços, Mari afi rma que ainda é preciso trabalhar muito mais para tentar compreender por que a maior parte das vítimas de violência não desenvolve estresse pós-traumático ou conseguir alternativas de tratamento que devolvam aos portadores desse dis-túrbio emocional a vida em sociedade como aconteceu com José Orleans Cruz. Hoje recuperado, Cruz voltou a dirigir e retomou os passeios com a mulher. Toda semana vai à feira, comer pastel e olhar os produtos barraca por barraca. Até já faz planos para o futuro. Pretende se aposentar em alguns anos e retor-nar para Itapagé, no interior do Ceará, de onde, com os pais e irmãos, veio adolescente para São Paulo. “Vou criar ovelhas”, diz. “Quero esquecer a cidade grande e o que aconteceu comigo.” ■

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Segunda Guerra: devastação material e psicológica

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28 ■ AGOSTO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 150

ESTRATÉGIAS MUNDO>>

de aumento de crédito associava-se a um aumento de 0,9% na mortalidade. Quando o país deixava de precisar do FMI, as taxas de mortalidade caíam em média 31%. “São muitas as correlações e elas se repetem em todos os países”, disse Stuckler ao jornal The New York Times. “Isso é ciência charlatã”, rebateu William Murray, porta-voz do FMI. “A tuberculose leva tempo para eclodir. O aumento na mortalidade tem a ver com eventos anteriores aos empréstimos.” O estudo avaliou estatisticamente o impacto de outros fatores sobre a incidência de tuberculose, como a Aids, a urbanização e o desemprego.

Um gigantesco cintu-

rão de árvores de 7 mil

quilômetros de exten-

são por 15 quilômetros

de largura deverá ser

erguido para deter o

avanço do Saara sobre

a região do Sahel, faixa

de savanas limítrofe ao

grande deserto africano

que protege as terras

férteis do sul. Graças

a um investimento de

US$ 3 milhões articula-

do pela União Africana,

que congrega 53 países

do continente, a criação

do escudo verde terá

início em duas frentes.

O Comitê para Controle

da Seca na Região do

Sahel já está traba-

lhando com consultores

científi cos de Burkina

Faso, Mali, Mauritânia,

Níger, Nigéria e Senegal

para lançar projetos piloto a partir de setembro. Outra frente

do programa, que contempla Chade, Djibuti, Eritréia, Etiópia e

Sudão, deve começar a operar em dois meses. A participação

da comunidade científi ca da região foi apontada como fun-

damental. “É importante que o trabalho seja coordenado por

especialistas de cada país porque eles conhecem melhor do

que ninguém as espécies que crescem no solo local”, disse

à agência SciDev.Net Joséa Dossou Bodjrènou, do Museu de

Ciências Naturais do Benin. “E as populações precisam ser

sensibilizadas sobre a importância de preservar as árvores,

caso contrário o projeto irá fracassar”, afi rmou.

> A luta pela água

Os Emirados Árabes Unidos criaram uma entidade científi ca destinada a enfrentar a escassez de água no país, que pode aumentar em decorrência das mudanças climáticas. A Academia Árabe da Água

vai receber US$ 1 milhão do governo de Abu Dhabi, emirado que sediará a iniciativa, US$ 300 mil do Banco Mundial e outros US$ 200 mil do Banco de Desenvolvimento Islâmico. Segundo o jornal GulfNews, a academia buscará desenvolver tecnologias de tratamento e dessalinização

> O FMI e a tuberculose

David Stuckler, pesquisador da Universidade de Cambridge, publicou um artigo na revista PLoS Medicine em que sugere uma relação entre o avanço de casos de tuberculose em países do Leste Europeu e os cortes nos gastos de saúde decorrentes das exigências do Fundo Monetário Internacional para emprestar dinheiro a essas nações. Foram estudados registros de saúde em 21 países. Observou-se que a obtenção de um empréstimo foi seguida de elevações de 13,9% nos novos casos de tuberculose. Segundo o artigo, cada 1%

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Nuvens sobre o Saara vistas da Estação Espacial Internacional

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PESQUISA FAPESP 150 ■ AGOSTO DE 2008 ■ 29

que a intenção é competir com a Universidade Stanford e o Massachusetts Institute of Technology (MIT), que estão na vanguarda da conexão entre ciência básica e aplicada.

> Fim da moratória dos transgênicos

Após uma moratória que durou 18 meses, o governo do Uruguai anunciou que voltará a avaliar pedidos de plantio e comercialização de alimentos transgênicos no país. A proibição vigorava desde janeiro de 2007. Segundo o jornal La Diaria, uma nova política nacional de biotecnologia será lançada e prevê a criação de duas estruturas. Uma delas, integrada por técnicos e pesquisadores, fará avaliações de risco de novos pedidos de transgênicos e ajudará a elaborar um projeto de lei que regule o tema. Também será montado um comitê, com instituições ligadas à área de biotecnologia, que irá monitorar as licenças.

> O gigante se move

A Universidade Harvard deve inaugurar em 2011 um novo campus no subúrbio de Allston, em Boston, que tem a ambição de estreitar os laços entre pesquisa básica e aplicada. Entre outras novidades, o complexo vai concentrar disciplinas de ciências e engenharias sob um mesmo

teto. O objetivo é estimular a pesquisa colaborativa, hoje difi cultada pela separação geográfi ca e a autonomia das faculdades que compõem a instituição. O projeto é visto por críticos como uma ameaça à tradição de patrocinar pesquisa movida apenas pela curiosidade dos cientistas. Steven Hyman, responsável pelo projeto, disse à revista Science

O governo espanhol recriou o

Ministério de Ciência e Inova-

ção, que fora extinto em 2004.

Num gabinete em que as pas-

tas são divididas equanimemente entre homens e mulheres, não

causou surpresa o convite feito a Cristina Garmendia Mendizábal,

46 anos, bióloga molecular e ex-executiva de um conglomerado

de biotecnologia, para assumir a função. A recriação do minis-

tério agitou o ambiente acadêmico espanhol, porque promoveu

mudanças estruturais. A nova pasta absorveu os centros nacio-

nais de pesquisa biomédica, antes vinculados ao Ministério da

Saúde, além de universidades que respondiam ao Ministério da

Educação. Cristina defende as mudanças e rejeita os rumores

de que as universidades serão pressionadas a atender inte-

resses de empresas. “Mas queremos fortalecer a geração de

conhecimento nas universidades para que ela também possa

reverter em benefício da sociedade na forma de produtos ou

serviços”, disse à revista Nature.

DO SETOR PRIVADO AO MINISTÉRIO

Cristina Garmendia: mudanças

O complexo de Allston: nova mentalidade

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da água e a exploração de reservas subterrâneas. A entidade vai oferecer bolsas de pós-graduação em universidades da região e organizar programas de treinamento para cientistas, ambientalistas e técnicos. Também irá criar um banco de dados com as pesquisas de recursos hídricos e lançar uma revista científi ca para disseminação do conhecimento gerado.

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30 ■ AGOSTO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 150

ESTRATÉGIAS MUNDO>>

governo na gestão do ex-premiê Tony Blair, e pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPPC), da ONU. A produção declarava-se porta-voz da minoria de cientistas que se mantém cética em relação ao vínculo entre aquecimento global e produção de gases poluentes pelo homem.

> A trapaça dos céticos

A Ofcom, agência que regula as telecomunicações no Reino Unido, repreendeu a emissora de televisão britânica Channel 4 por ter distorcido o trabalho de climatologistas ao produzir um documentário afi rmando que o aquecimento global é uma fraude e fruto de uma conspiração. Segundo o jornal The Guardian, queixas contra o documentário intitulado A grande trapaça do aquecimento global foram apresentadas por David King, cientista-chefe do

> A primazia de voltar à Lua

É possível que os primeiros homens a voltar à Lua desde a última missão Apollo, em 1972, fi nquem na superfície do satélite uma bandeira vermelha com cinco estrelas amarelas. Michael Griffi n, diretor da Nasa, a agência espacial norte-americana, admitiu que a China poderá enviar uma missão tripulada à Lua antes dos Estados Unidos. “Certamente é possível que a China queira colocar gente na Lua. Se desejar fazer isso antes dos Estados Unidos, não falta capacidade técnica”, disse Griffi n, segundo a agência de notícias BBC. A Nasa programou uma nova viagem tripulada à Lua em 2020, a bordo da Orion, nave que sucederá os atuais ônibus espaciais. A China já enviou duas missões tripuladas ao espaço. A primeira foi em 2003 e manteve em órbita durante mais de 20 horas o astronauta Yang Liwei, da nave Shenzhou 5. No mês passado, Liwei, convertido em herói nacional, conquistou a patente de general. Na segunda viagem, dois chineses a bordo da Shenzhou 6 passaram cinco dias em órbita. Uma terceira missão ao espaço deve partir em outubro. Autoridades chinesas informaram que ainda não há um cronograma para a missão que pretendem mandarvv à Lua.

Um artigo publicado

na revista Science con-

testa a idéia de que a

criação de um parque

ecológico é socialmen-

te injusta com a popu-

lação de sua região por

restringir o acesso à

área. George Wittemyer,

pesquisador da Univer-

sidade da Califórnia em

Berkeley, investigou a

situação de 306 áreas

protegidas na África e

na América Latina e

concluiu que a taxa de

crescimento populacio-

nal nas bordas das re-

servas, num raio de até

10 quilômetros de seus

limites, é duas vezes

maior do que em outras

áreas rurais das redon-

dezas. “As pes soas se

concentram perto dos

parques porque vêem

benefícios nisso. Se

fossem prejudicadas,

procurariam outro lugar”, disse Wittemyer. Há várias causas

para o fenômeno. As pessoas são atraídas por oportunidades

de emprego nas reservas, por ganhos de infra-estrutura, como

a construção de estradas de acesso, e por vantagens geradas

por investimentos na preservação da biodiversidade. O estudo

alerta, contudo, que as reservas com grande concentração

populacional em seus limites têm difi culdade maior de evitar

invasões e de garantir a preservação da natureza.G

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O problema não foi esse, mas o fato de que até mesmo pesquisadores que auxiliaram na produção denunciaram distorção de dados. Apesar da repreensão, a agência considerou que a divulgação do documentário não ofendeu a legislação por não ter causado danos diretos aos espectadores.

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PESQUISA FAPESP 150 ■ AGOSTO DE 2008 ■ 31

ESTRATÉGIAS BRASIL>>

que pretendam estudar na China. O instituto funcionará no prédio da Editora Unesp, na praça da Sé, centro de São Paulo. A administração do Icunesp fi cará a cargo da universidade. Já os professores e um diretor serão selecionados pelo Instituto Confúcio chinês, vinculado ao Ministério da Educação da China, que tem sede em Pequim e mais de cem unidades espalhadas pelo mundo, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa.

> De Pequim para a praça da Sé

O reitor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Marcos Macari, e o embaixador da China no Brasil, Chen Duqing, assinaram o convênio para a instalação, em São Paulo, do Instituto Confúcio da Unesp (Icunesp), voltado para formar professores de mandarim, patrocinar atividades acadêmicas e prestar serviços de consultoria para brasileiros

O Instituto Nacional de Pes-

quisas Espaciais (Inpe) vai

abrigar um dos mais podero-

sos supercomputadores do

mundo, com capacidade de

processamento de 15 trilhões

de operações matemáticas

por segundo, para pesquisa

de mudanças climáticas. Is-

so graças a um investimento

de R$ 48 milhões, sendo R$

35 milhões do Ministério da

Ciência e Tecnologia (MCT) e

R$ 13 milhões da FAPESP. O

investimento conjuga a priori-

dade ao estudo das mudanças

climáticas defi nido pelo MCT

com o Programa de Pesquisa

sobre Mudanças Climáticas

Globais da FAPESP, que de-

verá ser lançado nas próximas

semanas. “Com esse tipo de

instrumento computacional

altamente potente será possível coordenar o clima como ninguém imaginou há 60 anos”, afi rmou

o titular do MCT, Sérgio Rezende. “Com a colaboração entre MCT e FAPESP, a expectativa é que

se possa em São Paulo desenvolver modelos climáticos globais orientados às particularidades

e aos interesses específi cos do Brasil”, disse o diretor científi co da FAPESP, Carlos Henrique

de Brito Cruz. O Inpe já começa a se preparar para receber o supercomputador, que deverá

começar a operar em 2009. A nova máquina será instalada no CPTEC (Centro de Previsão de

Tempo e Estudos Climáticos) em Cachoeira Paulista e será utilizada pelo recém-inaugurado

Centro de Ciência do Sistema Terrestre do Inpe, dirigido pelo climatologista Carlos Nobre.

no município dedicado à indústria aeronáutica. “A União Européia é um de nossos maiores e mais importantes mercados, tanto para a compra de equipamentos e insumos quanto para a venda de aeronaves”, disse o diretor presidente da Embraer, Frederico Fleury Curado, na solenidade de lançamento das unidades em Lisboa, que teve a presença do premiê português José Sócrates e do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva.

> Embraer vai a Portugal

A Embraer vai construir duas fábricas na cidade de Évora, em Portugal, uma dedicada à fabricação de estruturas metálicas e outra à de conjuntos em materiais compósitos, utilizados na construção de aviões. Elas representarão investimentos estimados em € 148 milhões (o equivalente a R$ 365 milhões) ao longo dos próximos seis anos. Os materiais produzidos nas fábricas portuguesas serão vendidos para as unidades de produção de aviões da empresa. A escolha de Évora, a 130 quilômetros de Lisboa, resultou de fatores como acesso à mão-de-obra qualifi cada e infra-estrutura logística, além da existência de um parque tecnológico

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32 ■ AGOSTO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 150

ESTRATÉGIAS BRASIL>>

O Grande Prêmio Capes de Teses de 2007 foi dominado pelas

mulheres em suas três categorias. Maria Laura Schuverdt,

32 anos, do Programa de Pós-graduação em Matemática

Aplicada da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),

venceu na categoria Lobo Carneiro (engenharias e ciências

exatas), com uma tese de doutorado que resultou na criação

de um método capaz de solucionar problemas com um nú-

mero enorme de variáveis e restrições, próprio a ser usado

em ciências aplicadas e na tomada de decisões. Na categoria

Johanna Döbereiner (ciências agrárias e biológicas, meio am-

biente e medicina), a vencedora foi Ana Lia Parra-Pedrazzolli,

34 anos, do Programa de Pós-graduação em Entomologia da

Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universi-

dade de São Paulo (USP). Ela isolou e identifi cou o feromônio

sexual (substância química que a fêmea libera para atrair o

macho no acasalamento) do inseto Phyllocnistis ci-

trella. Trata-se de uma pequena mariposa originária

da Ásia, que infestou pomares de laranja do interior

paulista, Triângulo Mineiro e outras regiões do Brasil

nos últimos dez anos. Solange Maria Teixeira, 42 anos,

do Programa de Pós-graduação de Políticas Públicas da

Universidade Federal do Maranhão (UFMA), conquistou

o prêmio na categoria Celso Furtado (ciências sociais

e humanidades). O estudo premiado analisa a questão

social do envelhecimento do trabalhador e as formas

de respostas do Estado e da sociedade a essa proble-

mática. O Grande Prêmio Capes de Teses é oferecido

pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

Nível Superior (Capes) e pela Fundação Conrado Wessel

(FCW). As três vencedoras receberam bolsa de pós-

doutorado no exterior além de US$ 15 mil. Na edição

de 2007 da premiação foram inscritas 417 teses. DO

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> Inovação potiguar

A Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Norte (Fapern) lançou um edital para apoiar projetos que estimulem a atividade inovadora de micro e pequenas empresas. Poderão concorrer empresas com faturamento de R$ 1,2 milhão a R$ 10,5 milhões. Os recursos são de R$ 4 milhões, oriundos do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e do governo potiguar. Estima-se que sejam fi nanciados 35 projetos, com valores de R$ 100 mil e R$ 150 mil. São considerados prioritários projetos em áreas como agronegócio, aqüicultura, fruticultura, processamento de alimentos, medicamentos, controle de poluentes, biocombustíveis, energias

alternativas, nanotecnologia e neurociência, entre outros. O edital faz parte do programa Inova RN, que busca reduzir a distância entre os pesquisadores e o setor produtivo e melhorar a competitividade das empresas.

> Aulas de física na internet

Os professores de física dispõem agora de uma página na internet com material de apoio ao processo de ensino, como simulações, aulas, textos, imagens e links. O portal Píon (www.pion.sbfi sica.org.br) foi desenvolvido pela Sociedade Brasileira de Física (SBF) com patrocínio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi co e Tecnológico (CNPq).O nome do portal é uma homenagem ao físico brasileiro Cesar Lattes (1924-2005), um dos descobridores da partícula elementar conhecida por méson pi ou píon. A página tem uma seção de artigos com adaptações de textos originalmente da revista Física na Escola, da SBF. Já a seção “Você sabia” oferece uma seleção de desafi os em física, elaborados para professores e estudantes. O coordenador do portal é o físico Nelson Studart, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).L

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PESQUISA FAPESP 150 ■ AGOSTO DE 2008 ■ 33

– que formulam, implementam e avaliam as políticas de ciência e tecnologia ao se dedicarem à docência e à pesquisa em universidades públicas ou a atividades burocráticas em institutos públicos de pesquisa e agências dedicadas ao fomento e ao planejamento das atividades de ciência e tecnológica. Isso não ocorre só no Brasil, mas aparentemente em toda a América Latina. Nos países avançados, segundo Dagnino, o modelo é diferente e mais sofi sticado.

Com investimento estimado

em US$ 130 milhões nos pró-

ximos cinco anos, foi lançado

no dia 3 de julho o Programa

FAPESP de Pesquisa em Bioe-

nergia – Bioen, voltado para

aprimorar a produtividade

do etanol brasileiro e avan-

çar em ciência básica e em

desenvolvimento tecnológi-

co relacionados à geração de

energia a partir de biomassa

(ver Pesquisa FAPESP nº 149).

A chamada de projetos prevê

investimentos de cerca de R$

38 milhões, divididos entre a

FAPESP (R$ 19 milhões) e o

Conselho Nacional de Desen-

volvimento Científi co e Tecno-

lógico (CNPq). Também foram

celebrados convênios no âm-

bito do Bioen que articulam o

esforço de pesquisa com em-

presas e outras entidades. Um

deles é a primeira chamada de propostas para o Convênio

FAPESP/Dedini para Apoio à Pesquisa sobre Processos In-

dustriais para a Fabricação de Etanol de Cana-de-açúcar, que

investirá inicialmente R$ 20 milhões em projetos cooperati-

vos envolvendo especialistas da empresa e de universidades

e instituições de pesquisa paulistas. Outra é a chamada de

propostas no valor de R$ 5 milhões para o convênio entre a

FAPESP e a Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais

(Fapemig) de pesquisa em biocombustíveis. "O programa se

sustenta sobre uma sólida base de pesquisas desenvolvidas

na área há quase dez anos”, disse o diretor científi co da FA-

PESP, Carlos Henrique de Brito Cruz. ”A posição de liderança

científi ca, no entanto, não permanece por si só: é preciso

continuar avançando. O Brasil não está acostumado a ser um

dos melhores do mundo quando o assunto é ciência e tecno-

logia. Mas em bioenergia nós estamos na liderança e preci-

samos ter uma atitude diferenciada", afi rmou. O presidente

da FAPESP, Celso Lafer, lembrou que a pesquisa científi ca

e tecnológica na área de bioenergia tem importância estra-

tégica também sob o ponto de vista diplomático. "O Brasil

tem feito esforços no sentido de argumentar em defesa do

etanol nacional, afi rmando sua sustentabilidade ambiental e

social. Só teremos condições de sustentar essa articulação

diplomática se ela vier acompanhada de um conhecimento

sólido, com publicações de abrangência internacional, legi-

timando nossa posição", disse. No evento também estavam

presentes o vice-governador de São Paulo, Alberto Goldman,

o professor Marco Antônio Zago, presidente do CNPq, a pro-

fessora Lucia Carvalho Pinto de Melo, presidente do Centro

de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), e o secretário de

Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Estado de Minas

Gerais, Alberto Duque Portugal.

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O livro de Dagnino:processo decisório

> A política da ciência

Quem elabora e como é feita a política científi ca brasileira? Quase exclusivamente a própria comunidade científi ca, sem participação importante do Estado ou do setor empresarial ou industrial e tampouco da sociedade civil, segundo o engenheiro e economista Renato Dagnino, especialista em estudos sociais da ciência e tecnologia. No livro Ciência e tecnologia no Brasil: o processo decisório e a comunidade de pesquisa (Editora Unicamp), Dagnino, professor do Departamento de Política Científi ca e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), compara a evolução do pensamento sobre a política científi ca e tecnológica no Brasil nas últimas décadas e conclui: são os pesquisadores – ou professores-pesquisdores

Brito, Portugal, Goldman, Lafer e Zago no lançamento do programa

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34 ■ AGOSTO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 150

INDICADORES

O fôlego na berlindaResultados incongruentes em dois rankings abrem debate sobre os limites do crescimento da produção acadêmica brasileira

próximos anos entre zero e 2% – que é o limite do crescimento vegetativo da população de cientistas de verdade. Em outras palavras, estamos no ponto de saturação da curva de crescimento no número de papers do Brasil”, disse. Já Rogério Meneghini, coor-denador científico da biblioteca eletrônica SciELO Brasil, considera necessário esperar mais um ano para avaliar qual é a tendência. “É precipitado afirmar que a produção brasileira bateu no teto”, diz Meneghini, especialista em cienciometria, disciplina que busca gerar informações para estimular a superação dos desafios da ciência. “Não houve um refreamento nos investimentos que justifique uma queda, ainda que o Brasil invista menos do que países como a China e a Coréia do Sul, cuja produção acadêmica cresce justificadamente em velocidade mais alta que a nos-sa”, avalia Meneghini. Enquanto a produção brasilei-ra cresceu 133% nos últimos dez anos, a da China avançou 300%. No Brasil, as áreas ligadas à biologia e às ciências médicas, como medicina, agricultura, bioquímica, genética e biologia molecular, seguida pela física e a astronomia, são as mais produtivas. As cinco instituições com maior número de artigos publicados são a Universidade de São Paulo (USP), a Estadual de Campinas (Unicamp), a Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Federal de Minas Gerais (UFMG).

Jacqueline Leta, pesquisadora da UFRJ, chama a atenção para o fato de que, a despeito do crescimento da produção científica brasileira, não está avançando a participação relativa de artigos brasileiros em revis-tas internacionais de alto impacto, do nível de Science e Nature. “Os indicadores mostram a visibilidade internacional de uma parte da produção brasileira, mas eles são influenciados por uma série de fatores e não podem ser tomados ao pé da letra como sinais

Dois rankings de produção científica mundial divulgados em julho apresentaram resultados incongruentes em relação ao desempenho acadêmico do Brasil em 2007. A tradicional base de dados Thomson Scientific indica que o Brasil continua a ganhar fôlego, embora mantenha a 15ª posição no ranking mundial

conquistada no ano passado. Foram 19.428 artigos publicados nos periódicos científicos indexados na base de dados, 2.556 a mais do que em 2006. Com isso, o país respondeu em 2007 por 2,02% do total da produção científica mundial, diante de 1,92% no ano anterior. Segundo os dados, o Brasil está um pouco à frente da Suíça e da Suécia e se aproxima da Holanda e da Rússia. Já a base de dados Scopus, comercializada pela editora Elsevier, registrou 26.369 artigos brasilei-ros em publicações estrangeiras, 292 a menos do que em 2006, com o país ocupando também a 15ª posição no ranking, mas com 1,75% da produção mundial. Como as duas bases de dados contemplam universos distintos, é difícil afirmar se a divergência é acidental e qual é a tendência atual. A ferramenta Web of Science, da Thomson Scientific, cobre cerca de 10 mil periódi-cos, ante 15 mil da ferramenta SCImago, da Scopus. Nos anos cobertos pela base de dados SCImago – de 1996 a 2008 – a Scopus contém até 45% mais registros que a Thomson. Ainda assim, a divergência animou um debate sobre o futuro e os limites de expansão da produção acadêmica brasileira.

O biólogo Marcelo Hermes-Lima, professor da Universidade de Brasília (UnB) e co-editor do perió-dico on-line PLoS One, afirmou em seu blog Ciência Brasil que a oscilação detectada pela Scopus pode ser o primeiro sinal de saturação. “A meu ver, o au-mento da produção científica brasileira chega ao seu limite. Ou seja, a taxa de crescimento poderá ser nos

>POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

Fabrício Marques

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PESQUISA FAPESP 150 ■ AGOSTO DE 2008 ■ 35

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de qualidade”, ela afirma. “Uma ques-tão que se coloca, a meu ver, é se essas publicações estariam interessadas em ampliar o número de artigos de paí ses emergentes como o Brasil. Creio que não, o que tem a ver mais com regras comerciais desse mercado editorial do que com a oferta de estudos qualifica-dos”, disse Jacqueline.

Um dado relevante na discussão diz respeito ao número de doutores formados no Brasil, que cresceu dez vezes entre 1980 e 2006, passando de mil para cerca de 10 mil profissionais ao ano. O diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, destaca o fato de a curva do aumento da pro-dução científica estar sincronizada, nos últimos anos, com a do crescimento do número de doutores e com a qualifi-cação das instituições acadêmicas. “O aumento no número de artigos cientí-ficos se correlaciona muito bem com o crescimento na formação de doutores. E em São Paulo a razão entre o número de artigos e o número de cientistas é comparável com aquele de países da OECD (Organização para a Coopera-ção e Desenvolvimento Econômico), indicando que para aumentarmos a produção científica precisamos de mais cientistas”, diz Brito Cruz. O nú-mero de doutores continua a crescer, mas não na velocidade de uma década atrás. Entre meados dos anos 1990 e o ano de 2003, a taxa de crescimento dos

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Page 36: Efeitos da violência

36 ■ AGOSTO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 150

A Demos, uma organização inglesa de estudos estratégicos, lançou um relatório que chama a atenção para a vitalidade do panorama de ciência, tecnologia e inovação no Brasil. Assinado pela pesquisadora Kirsten Bound, o documento Brazil, the natural knowledge economy sugere que o país, cuja força de inovação ainda se vincula fortemente à exploração de recursos naturais, já possui competências diversifi cadas em áreas como biocombustíveis, genômica e software – no que se confi guraria a “economia natural do conhecimento” sugerida no título do relatório. O texto destaca fatos e indicadores positivos, como o 15º lugar do Brasil nos rankings mundiais de produção acadêmica e o crescimento nos orçamentos de pesquisa – tudo isso num ambiente de estabilidade política e econômica.

Bound discute por que o Brasil é pouco conhecido pelo mundo desenvolvido. As causas seriam o pouco alarde que o país faz de seus avanços e também o fato de o Brasil, colonizado por europeus, não ser visto como uma cultura ameaçadora como as da Índia e da China.

O relatório faz recomendações para que o Brasil tire maior proveito das qualidades que tem. Uma delas é ampliar a discussão sobre temas controversos, como a tensão entre gastar dinheiro com ciência ou combater as desigualdades. Organizar uma rede de apoio internacional a partir dos cientistas brasileiros vivendo no exterior e implementar com fi rmeza as políticas públicas já existentes completam as sugestões.

O Brasil que inova

Redução de marcha

doutorados defendidos a cada ano era de 16% ao ano. Já de 2003 em diante houve um arrefecimento nesta taxa de crescimento para um patamar de 4% ao ano. O comportamento dos indica-dores permite supor que essa perda de fôlego projete um impacto na produção acadêmica. Essa vinculação é reforçada por dados da Coordenação de Aperfei-çoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), segundo os quais 85% da pro-dução científica nacional é realizada pelo sistema de pós-graduação.

Patamar - Países com sistemas de ciên-cia e tecnologia maduros tendem a es-tabilizar o crescimento de sua produção acadêmica e do número de doutores, mas este seria o caso do Brasil? Em números absolutos, os 10 mil doutores formados anualmente no Brasil estão em patamar semelhante ao de países como a Inglaterra, Índia e Coréia do Sul. Já em números relativos, a situação é diversa. O Brasil forma 5 doutores por grupo de 100 mil habitantes, diante de índices de 12,1 do Japão, 13,6 da Coréia do Sul; 14 dos Estados Unidos, 24 do Reino Unido e 30 da Alemanha.

Segundo o presidente da Capes, Jor-ge Guimarães, o país precisa de mais pesquisadores. “Somos referência na área agrícola e odontológica e isso precisa ser valorizado. Mas, em com-paração com outras nações, o nosso número de pesquisadores é drama-ticamente baixo. Temos de melhorar muito”, afirmou, em palestra na 60ª Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), no mês passado. Enquanto os estados da Região Sudeste ostentam uma proporção de 30

a 35 doutores por 100 mil habitantes, no Norte e no Nordeste ela não ultra-passa 10. O índice mais elevado é do Distrito Federal, com 41,3 doutores por 100 mil habitantes. O mais baixo é o de Tocantins, com 3,8 doutores para 100 mil moradores. Para Guimarães, o grande desafio é formar especialistas nas regiões desfavorecidas. “Não há ou-tra forma de atacar o problema senão pela formação de quadros”, avaliou.

A concentração da pós-graduação no Brasil também é visível na quanti-dade de doutores formados nas univer-sidades estaduais paulistas. A USP, com 2 mil doutores por ano, e a Unicamp, com 870, formaram mais do que qual-quer universidade norte-americana. A média da Universidade da Califórnia em Berkeley foi de 769 doutores, ante 702 da Universidade do Texas, em Aus-tin, e 664 da Universidade da Califórnia em Los Angeles.

Outro problema conhecido é a ainda restrita permeabilidade do setor produtivo brasileiro aos doutores for-mados no país. Do total de cientistas brasileiros, apenas 23% (menos de 20 mil) desenvolvem pesquisas em labora-tórios industriais, enquanto na Coréia do Sul e nos Estados Unidos, por exemplo, cerca de 54% (94 mil) e 80% (790 mil) dos cientistas, respectivamente, estão empregados nas indústrias para o de-senvolvimento de produtos e processos inovadores. “Há dois desafios igualmente importantes: aumentar ainda mais a ca-pacitação para ciência básica e formação de pessoal nas universidades e acelerar a capacitação para a pesquisa aplicada e desenvolvimento tecnológico na empre-sa”, disse Brito Cruz, da FAPESP. ■

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A taxa de crescimento do número de doutores formados no Brasil perdeu velocidade a partir de 2003

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PESQUISA FAPESP 150 ■ AGOSTO DE 2008 ■ 37

NEUROCIÊNCIA

Por dentro do cérebroPUC do Rio Grande do Sul lança instituto de pesquisa em doenças neurológicas

A Região Sul vai ganhar um grande instituto de pesquisa e de tratamento de doenças neurológicas. Começa a fun-cionar em 2010 o Instituto do Cérebro do Estado do Rio Grande do Sul (Inscer), em

Porto Alegre, vinculado à Pontifícia Uni-versidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). O custo inicial do projeto será de R$ 35 milhões, bancados pelo governo federal, pela Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul, pela própria universidade e pela iniciativa privada. O Inscer atenderá pacientes de diversas ori-gens, com prioridade pa-ra os do Sistema Único de Saúde (SUS), e terá uma abordagem interdiscipli-nar, envolvendo também especialistas em física, farmácia, biociências e ciências humanas.

O complexo do insti-tuto terá dois edifícios e uma área de 6 mil metros quadrados. Estruturas que já existem no hospital uni-versitário e no Instituto de Pesquisas Biomédicas (IPB) da PUC-RS serão incorporadas à iniciativa. São exemplos o Labora-tório de Neurociências e o Centro de Memória, criado pelo neurocientis-ta Iván Izquierdo, pioneiro no estudo da neurobio-logia da memória e do aprendizado, que há qua-tro anos se aposentou da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e foi trabalhar na PUC-RS.

De acordo com o neurologista Jaderson da Costa, diretor do IPB e coordenador do projeto, a decisão de criar o Inscer foi tomada por du-as razões. “O envelhecimento da po-pulação e o conseqüente aumento na incidência de doenças neurodegenera-tivas criaram uma demanda crescente por atendimento médico e pesquisa. E percebemos que tínhamos massa crí-tica para suprir essa necessidade”, afi r-ma. Mas os estudos não vão limitar-se a doenças como Alzheimer, Parkinson e esclerose lateral amiotrófi ca. Pesquisas

sobre sono e epilepsia, assim como es-tudos sobre o comprometimento neu-rológico de bebês prematuros também terão espaço no Inscer. “No caso dos prematuros, a idéia é produzir estudos que ajudem a compreender como pre-venir lesões cerebrais nos bebês”, diz.

A criação do Inscer soma-se a ou-tras iniciativas que buscam estimular o desenvolvimento da neurociência no país. Segundo Jaderson da Costa, o modelo do Inscer tem semelhan-ças com o programa CInAPCe (sigla para Cooperação Interinstitucional

de Apoio à Pesquisa sobre o Cérebro), da FAPESP, que conjuga pesquisa avançada em diversos ramos na neurociência, com ênfase no estudo da epilepsia, e tratamento de pacientes em ambulató-rios e hospitais. “Uma di-ferença importante é que teremos uma estrutura fí-sica unifi cada, enquanto o CInAPCe envolve uma rede de várias instituições”, diz Jaderson. “Mas está em nossos planos promover colaborações com outros grupos do Brasil e do ex-terior”, afi rma. No ano pas-sado começou a funcio nar no Rio Grande do Norte o Instituto Internacional de Neurociências de Na-tal (IINN), liderado por Miguel Nicolelis, profes-sor brasileiro da Univer-sidade Duke, autor de pesquisas pioneiras envol-vendo a comunicação en-tre o cérebro de macacos e próteses robóticas. ■

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Neurônio: combate a moléstias degenerativas

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DIFUSÃO>

Ao longo de uma ensolarada semana de julho, 12 mil pessoas estiveram em Campinas para participar de uma maratona científi ca que debateu temas estratégi-cos para o desenvolvimento nacional, como o futuro do etanol e os desafi os da inovação. A 60ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) foi realizada entre 13 e 18 de julho na

mesma cidade que abrigou, em 1949, a primeira edição do que se consagraria como o maior encontro científi co da América La-tina. Se o encontro de 59 anos atrás teve lugar no Instituto Agro-nômico (IAC), o campus da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) foi o cenário da reunião de 2008, que contou com 7 assembléias, 80 conferências, 55 mesas-redondas, 7 sessões espe-ciais, 71 simpósios e 43 minicursos. Na avaliação do presidente da SBPC, Marco Antonio Raupp, um dos resultados positivos da reunião foi a discussão por núcleos temáticos, tais como etanol de cana-de-açúcar; conhecimento, desenvolvimento e inovação tecnológica; aquecimento global; biodiversidade e conservação; experimentação com animais de laboratório; pesquisa científi ca e legislação brasileira; educação para a ciência no ensino básico; e saúde pública: doenças endêmicas, entre outros.

Das 12 mil pessoas que prestigiaram o evento, 6.264 estavam ofi cialmente inscritas na programação científi ca. Desse total, 2.020 eram do estado de São Paulo. Em 2º lugar havia 375 participantes do Pará, que sediou a reunião da SBPC em 2007; seguido por Minas Gerais, com 368 inscritos. O público pôde circular por um ginásio que exibiu mais de 3 mil pôsteres com trabalhos de jovens pesquisadores e estudantes de iniciação científi ca, além de uma Feira do Livro, com estandes de 25 editoras, e a Exposição de Tecnologia e Ciência (ExpoT&C),

que contou com mais de 60 expositores. O estande da FAPESP da ExpoT&C apresentou ao público as principais áreas de atuação, programas e projetos apoiados pela Fundação.

O núcleo temático “Etanol de cana-de-açúcar” foi um dos que mais atraí-ram a atenção, com palestras, confe-rências e mesas-redondas sobre vários aspectos do biocombustível animadas por nomes como o do botânico Mar-cos Buckeridge (USP), Isaías Macedo e Cylon Gonçalves da Silva (Unicamp), entre outros. Também foram concor-ridos os eventos do núcleo temático sobre aquecimento global, entre os quais a conferência de Carlos Nobre, meteorologista do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e mem-bro do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU. O presidente do Inpe, Gilberto Câmara, fez um desabafo ao explicar os sistemas de monitoramento do des-matamento da Amazônia, que aponta-ram uma elevação nas áreas devastadas neste ano – e foram postas em dúvida por autoridades. Câmara disse que o tempo dará razão ao Inpe. “A relação entre poder e ciência é muito interes-

Unicamp atrai 12 milpessoas para a 60ª Reunião Anual da SBPC

SOB O SOL DA CIÊNCIA

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PESQUISA FAPESP 150 ■ AGOSTO DE 2008 ■ 39

sante”, afi rmou. “Não é uma relação entre iguais, mas a desigualdade muda com o tempo. Em curto prazo, o po-der tem a capacidade de prejudicar a ciência. A longo prazo, no entanto, a ciência é mais forte. A verdade aparece e nem sempre é agradável para quem tentou prejudicar a pesquisa.”

Os entraves ao desenvolvimento da ciência também foram objeto de discussão. A necessidade de criar uma legislação que regule a experimentação científi ca com animais foi discutida em diversas palestras e mesas-redon-das. A queda do interesse dos jovens brasileiros por cursos de computação animou uma mesa-redonda “Futuro da computação e robótica”. Desde 2004, entrou em declínio a curva do número de alunos de graduação, mes-trado e doutorado e total de alunos nas áreas de robótica, engenharia de software e microeletrônica. A única ex-ceção é o doutorado em microeletrô-nica, em que os números não sofreram alteração. Isso apesar do crescimento da produção científi ca nacional em tecnologia da informação. Segundo Dante Barone, secretário da SBPC, o caráter teórico dos currículos é um

raíba (leia mais na página 31). Rezen-de também anunciou a criação de 50 Institutos Nacionais de Pesquisa em até três anos, que substituirão os Institutos do Milênio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi co e Tecno-lógico (CNPq). Segundo Rezende, está previsto o investimento de R$ 270 mi-lhões até 2010, fi nanciado pelo CNPq e a Finep. Serão selecionados até 30 institutos por edital para atuação nas seguintes áreas estratégicas: biotecno-logia e nanotecnologia; tecnologia da informação e comunicação; insumos para saúde; biocombustíveis; energias renováveis; petróleo; agronegócio; biodiversidade e recursos naturais; meteorologia e mudanças climáticas; programa espacial; programa nuclear; e defesa nacional. Outros 20 institutos trabalharão temas gerados por deman-da. De acordo com Rezende, a iniciati-va representa uma fase de transição no sistema de fomento federal para ciência e tecnologia. “Os Institutos do Milê-nio conseguiram excelentes resultados, mas têm recursos muito limitados. Os Institutos Nacionais vão substituí-los com mais sustentabilidade”, disse Re-zende à Agência FAPESP.

No encerramento do evento, o reitor da Unicamp, José Tadeu Jorge, elogiou a qualidade dos debates e se disse or-gulhoso pela chance de a universidade abrigar a principal reunião científi ca brasileira. O governador do Amazonas, Eduardo Braga, participou do encer-ramento do evento com uma palestra sobre o sistema de ciência e tecnologia montado com sucesso no Amazonas. “Sem tecnologia não será possível im-plementar o desenvolvimento necessá-rio para vencer o desafi o da Amazônia brasileira”, disse Braga, ao convocar a comunidade científi ca a prestigiar a 61ª reunião, que será realizada em Manaus, em julho de 2009. ■

fator desmotivador dos alunos. “Os conteúdos das faculdades nem sem-pre contemplam, em cadeiras ofi ciais, cursos de webdesign e linguagens espe-cífi cas, o que também contribui para afastar alunos”, diz.

Aliada – Dois ministros de Estado es-tiveram no encontro. Carlos Minc, do Meio Ambiente, expôs os principais projetos de sua pasta e admitiu que há exageros nas exigências feitas pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) para permitir o acesso de pesquisadores em reservas ambientais. “A atividade científi ca não pode ser vista como nossa adversária. No meu ponto de vista, ela é a nossa principal aliada”, disse. O ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, anunciou a aquisição de um supercomputador pa-ra simulações avançadas das mudanças climáticas globais. O sistema, que será adquirido por meio de uma parceria entre a Financiadora de Estudos e Pro-jetos (Finep) e a FAPESP, será instalado no Centro de Previsão de Tempo e Es-tudos Climáticos (CPTEC), na cidade de Cachoeira Paulista, no Vale do Pa-

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Ginásio da Unicamp: 3 mil pôsteres apresentados

Fabrício Marques

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40 ■ AGOSTO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 150

LABORATÓRIO MUNDO>>

Os pesquisadores mostraram a lista de palavras novamente aos voluntários, com algumas a mais, e pediram a lista original. O grupo insone deu mais respostas falsas que o bem-dormido e insistia que as novas palavras estavam na lista original. Café (lembra-se?) pode salvar o dia. Voluntários privados de sono que tomaram café uma hora antes do teste das palavras inventaram 10% menos palavras.

Aumentaram as terras degradadas

no planeta. Hoje 24% das superfícies

dos continentes estão poluídas, pobres

em nutrientes ou erodidas a ponto de

serem incapazes de manter ecossiste-

mas naturais ou agricultura. Eram 15%

duas décadas atrás, segundo o relató-

rio da Organização das Nações Unidas

para a Alimentação e a Agricultura

(FAO) lançado em julho. Esse resulta-

do indica que áreas antes produtivas

foram afetadas. Atualmente 20% das

áreas cultivadas, 30% das fl orestas e

10% dos campos estão degradados.

A perda de produtividade dessas áreas

afeta 1,5 bilhão de pessoas que depen-

dem da terra para produzir alimento.

E suas conseqüências vão além. A

degradação da terra pode aumentar

a fome, a migração de populações,

reduzir a biodiversidade e a disponi-

bilidade de recursos naturais como a água. “A degradação da

terra pode afetar de modo importante a capacidade de reduzir

o impacto das mudanças climáticas e de adaptação a elas,

uma vez que a perda de biomassa e de matéria orgânica do

solo libera carbono para a atmosfera”, disse Parviz Koohafka,

diretor da Divisão de Terra e Água da FAO.

(lembra-se?). Um grupo da universidade alemã de Lübeck pediu a voluntários que memorizassem grupos de palavras, e viu que testes de memória após uma noite com ou sem sono tiveram resultados diferentes.

> Vinho, bom desde o começo

Combinar carne vermelha com vinho tinto pode indicar mais do que bom gosto. Uma equipe da Universidade de Jerusalém liderada por Joseph Kanner verifi cou que compostos do vinho impedem a formação de substâncias químicas prejudiciais que surgem ao longo da digestão da carne. Vinhos tintos são ricos em polifenóis, antioxidantes que protegem contra câncer e doenças cardíacas. A resposta sobre como os polifenóis atuam pode estar no próprio estômago. Kanner verifi cou que a digestão de carnes vermelhas espalha toxinas oxidantes, associadas a câncer, diabetes e outras doenças. Ele imaginou que os polifenóis, se chegassem na hora certa, poderiam

> A falta de sono e as falsas memórias

Dormiu pouco e lembra de coisas que não aconteceram? Não se desespere, o cérebro está em ordem. Deve ser culpa da noite sem dormir

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Novos usos: um quarto do solo do planeta está degradado

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PESQUISA FAPESP 150 ■ AGOSTO DE 2008 ■ 41

experimento com homens e mulheres e pediu que participassem de um teste de salto. Mesmo que tivessem recebido uma injeção inócua os homens pulavam mais alto, comentou Ho durante o congresso de endocrinologia em junho, nos Estados Unidos. Para ele, os resultados indicam que muitos dos feitos esportivos se devem mais à mente do que ao corpo (Science News).

barrar a entrada dessas toxinas na corrente sangüínea. Um experimento com ratos alimentados de modos diferentes mostrou que a idéia tinha sentido. Vem daí outra conclusão: os antioxidantes não precisam estar na corrente sangüínea para serem benéfi cos, porque começam a agir a favor do organismo já no estômago. Além disso, comer frutas no fi nal de uma refeição é realmente saudável: muitas frutas são ricas em polifenóis, que podem agir da mesma forma no estômago (ainda que os enólogos torçam o nariz com tamanha simplifi cação, o próprio vinho não é nada mais que suco de fruta fermentado).

> Sobrevivem os mais abundantes

Quase todo mundo já ouviu que a evolução favorece a sobrevivência dos mais aptos. Talvez seja o caso de rever essa certeza, pelo menos no que diz respeito aos genes. Pesquisadores da Universidade do Texas em Austin, nos Estados Unidos, desenvolveram um modelo em computador para analisar seqüências genéticas e afi rmam: a seleção natural favorece traços que possam ser produzidos por diferentes seqüências de DNA. Para os autores, a idéia apóia a hipótese de que a natureza privilegia a ascensão dos abundantes, mesmo que não sejam mais aptos (PLoS Computational Biology).

> Infecção pegajosa

Tão logo alcança a corrente sangüínea o parasita Plasmodium falciparum, causador da forma mais agressiva da malária, penetra nas células vermelhas do sangue e começa a se reproduzir. Grávidas de parasitas, as células humanas tornam-se rígidas e pegajosas e aderem aos vasos sangüíneos, burlando o sistema de defesa. A equipe de Alan Cowman, do Instituto de Pesquisa Médica Walter e Eliza Hall em Melbourne, Austrália, identifi cou a maquinaria usada pelo Plasmodium: oito genes produzem proteínas que levam a proteína adesina para a superfície das hemácias, tornando-as pegajosas (Cell). Basta faltar uma dessas proteínas e as células deixam de aderir aos vasos. Pode ser o caminho para novos tratamentos contra a malária.

> Saltos da imaginação

Se um pesquisador, com seu respeitável jaleco branco, supostamente injeta hormônio de crescimento numa pessoa, é muito mais provável que a pessoa acredite ter recebido hormônio se for homem. O endocrinologista Ken Ho, da Universidade de Nova Gales do Sul, na Austrália, fez esse

Tempos atrás pa-

leontólogos ha-

viam sugerido que

penas fossilizadas

seriam traços de bactérias que as comem. Agora ou-

tros paleontólogos mostraram que não é nada disso.

Comparando uma pena fóssil listrada de um pássa-

ro-preto-da-asa-vermelha (Agelaius phoeniceus) e

uma de bacurau (Caprimulgus vociferous), Jakob

Vinther, da Universidade de Yale, Estados Unidos,

verifi cou que as penas escuras preservam muito

mais carbono do que as descoloridas. As estruturas

antes classifi cadas como bactérias são na verdade

melanossomos, que produzem o pigmento melanina.

Os especialistas de Yale consideram provável que

os melanossomos sejam a fonte de carbono nas

penas fósseis. Diferentes cores, incluindo preto,

marrom, vermelho e amarelo, parecem resultar de

diferentes formas e arranjos de melanossomos nas

penas de aves. No futuro talvez seja mais fácil des-

cobrir a cor das penas de animais extintos.

A COR DAS PENAS FÓSSEIS

Mulheres: menos suscetíveis ao efeito placebo

Cor fóssil: penas preservam melanina

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Page 42: Efeitos da violência

LABORATÓRIO BRASIL>>

mais sustentável é extrair óleo de plantas mais jovens, que têm uma produtividade mais constante. Árvores maiores produzem até 14 vezes mais óleo do que as menores, mas demoram mais para repor o estoque.

do micologista Eduardo Bagagli e do dermatologista Sílvio Alencar Marques, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu. A doença, causada por um organismo parecido com um fungo chamado Pythium insidiosum, produz lesões na pele que se transformam em nódulos parecidos com tumores. Com freqüência confundida com micoses comuns, a pitiose muitas vezes se agrava e tratá-la requer cirurgia e até amputação. Para agilizar o diagnóstico, a equipe descreveu oP. insidiosum em termos morfológicos e moleculares. Também mencionou o cheiro de carniça exalado pelo P. insidiosum no meio de cultura. A análise molecular do pseudofungo indica que cavalos e pessoas são infectados pelo mesmo organismo (Medical Mycology).

> Contra dores e bactérias

Usado para combater bactérias e parasitas ou tratar dores, infl amações e tumores, o óleo de copaíba (Copaifera multijuga) é uma fonte de renda valiosa na Amazônia. Mas até agora pouco se sabe sobre como e por que essas árvores produzem óleo. Raquel Medeiros e Gil Vieira, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, estão mudando esse quadro. Mostraram que a produção está mais relacionada a fatores bióticos, como infestação por cupins e competição por recursos com outras árvores, do que às estações do ano ou à qualidade do solo (Forest Ecology and Management). A dupla sugere que a estratégia

Estes dados deveriam interessar

aos formuladores de políticas pú-

blicas. Há tempos se sabe que o

número de fi lhos que as brasileiras

têm diminuiu muito. Baixou de, em média, 5,8 em 1970 para 2,6

em 2000. A queda não foi homogênea nem ocorreu ao mesmo

tempo em todo o país. A diminuição na fecundidade foi intensa no

Sul e no Sudeste na década de 1970 e só depois caiu nas outras

re giões. Alguns demógrafos explicam a queda pela dissemi-

nação de um perfi l de família entre as pessoas, processo cha-

mado contágio ou difusão. Agora Suzana Cavenaghi, da Escola

Nacional de Ciências Estatísticas, no Rio de Janeiro, comparou

a redução na fecundidade com indicadores de desenvolvimento

social e econômico (taxa de eletrifi cação, taxa de mortalidade

infantil e educação materna) em 500 microrregiões. Consta-

tou que a redução é explicada pelo desenvolvimento social e

econômico (Population Research and Policy Review). A difusão

pode ter ajudado, mas só no início.

REPRODUÇÃO EM BAIXA

Copaíba: árvores jovens produzem mais

rápido estoque de óleo

Brasil: mais educação e renda, menos fi lhos

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> O ataque dos fungos falsos

A pitiose, uma grave micose mais conhecida em cavalos e em humanos na Tailândia, foi em 2005 detectada em brasileiros pelo grupo

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PESQUISA FAPESP 150 ■ AGOSTO DE 2008 ■ 43

> Duro de comer

Um macaco-prego (Cebus libidinosus) é capaz de segurar com as duas mãos uma pedra com cerca de um terço de seu próprio peso, erguê-la acima da cabeça e atingir com força um fruto apoiado numa pedra no chão. Uma equipe que reúne pesquisadores da Itália, do Brasil (Universidade de São Paulo) e dos Estados Unidos mediu a força necessária para quebrar os quatro frutos mais duros consumidos pelos macacos-prego da fazenda Boa Vista, no Piauí (American Journal of Primatology). Esses industriosos primatas de quatro quilogramas conseguem quebrar cocos de piaçava, tão duros quanto alguns dos frutos que chimpanzés, dez vezes mais pesados, abrem. Vale a pena tanto esforço? O estudo mostrou que esses cocos, muito mais resistentes do que os de catulé, catuli

e tucum – que também fazem parte da dieta desses macacos piauienses –, são menos ricos em polpa. Enquanto não fazem estudos nutricionais mais detalhados, os pesquisadores têm um palpite: metade dos cocos de piaçava examinados continha larvas de besouros, um pitéu para macacos-prego.

> De onde vêm os meteoritos

A astrônoma Thais Mothé Diniz, do Observatório Nacional, no Rio de Janeiro, conseguiu evidências fortes da origem dos meteoritos mais freqüentes na superfície da Terra: os chamados condritos ordinários, rochas de uns poucos centímetros de diâmetro que contêm

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Os planos do governo para o de-

senvolvimento da Amazônia bra-

sileira – que incluem a constru-

ção de milhares de quilômetros

de estradas e dez represas hidrelétricas – ameaçam parte da

biodiversidade dessa região, que abriga por volta de um sexto

de todas as espécies de aves, mamíferos e anfíbios do mundo.

Durante o doutorado na Universidade Duke, nos Estados Unidos,

a ecóloga Mariana Vale fez uma projeção do que pode acontecer

com 39 espécies de aves amazônicas até 2020, caso os planos

de desenvolvimento se concretizem. Ela prevê que oito dessas

espécies, com nomes inspiradores como choca-de-garganta-

preta, dançador-de-coroa-dourada e pica-pau-anão-da-várzea,

se tornem ameaçadas de extinção. Outras oito deverão perder

pelo menos metade do ambiente natural em que vivem no Brasil.

Detalhadas em um artigo a ser publicado na Conservation Biolo-

gy, essas projeções trazem um alerta: aves que vivem perto de

rios e em fl orestas de várzeas – zonas que já sentem o impacto

do desenvolvimento e há tempos são palco de exploração ma-

deireira – são as mais ameaçadas.

OS RISCOS DO PROGRESSO

Macaco-prego: força e habilidade com frutos

Amazônia: desmatamento segue estradas

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grânulos em sua estrutura. Esses objetos muito provavelmente vêm do cinturão de asteróides situado entre as órbitas dos planetas Marte e Júpiter. Já se suspeitava dessa origem, mas os astrônomos ainda não haviam conseguido encontrar nesse cinturão formado por 1 milhão de asteróides objetos com composição semelhante à dos condritos. Thais encontrou. Eles estavam lá, só que recobertos por uma camada de poeira espacial que impedia de conhecer a composição mais interna dos asteróides. Thais e David Nesvorny conseguiram analisar a composição interna desses asteróides ao apontar o telescópio para os mais jovens, formados há menos de 1 milhão de anos, que acumularam menos poeira em sua superfície (Astronomy and Astrophysics). “Esse resultado permite conhecer um pouco mais da nuvem de gás e poeira que originou os planetas do Sistema Solar”, diz Thais.

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44 ■ AGOSTO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 150

FISIOLOGIA

PERNAS DE CHUMBOCompetição por oxigênio causa a fadiga comum na insufi ciência cardíaca e pulmonar

Maria Guimarães

No laboratório, o ciclista parece uma marionete, tal a quan-tidade de fi os que saem de seu peito, costas, mão e perna. Ele sofre de doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), uma doença causada pelo tabagismo que combina danos irreversíveis nos alvéolos pulmonares com sintomas de bronquite crônica, como estreitamento das vias aéreas e tosse. Até agora o estudo da doença se concentrou nos

pulmões, apesar das queixas dos pacientes de que, junto com a falta de ar, era freqüentemente o cansaço nas pernas que os impedia de subir um lance de escadas sem descansar. Ao fazer testes de esforço em bicicletas ergométricas, alguns pacientes agora têm a chance de fazer mais do que explicar seus sintomas: ajudar o pneumologista José Alberto Neder, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a entender as relações entre pulmões e pernas.

A aparelhagem que parece enredar o paciente, um conjunto único no país, dá a Neder um quadro completo que o põe em situação privilegiada para entender como funciona a defi ciência pulmonar. Eletrodos no peito e nas costas monitoram os bati-mentos cardíacos e registram o volume de sangue que o cora-ção do paciente bombeia a cada contração; um grampo no dedo

indicador mede o teor de oxigênio no sangue; a máscara, além de ajudar na respiração quando regulada para isso, também mede quanto oxigênio o ciclista exala e permite ao pesquisador calcular quanto o organismo absorveu; e um de-tector na perna lança um facho de luz (espectroscopia por raios quase-infra-vermelhos) que mede quanto oxigênio chega aos músculos da coxa. Tudo isso sem a necessidade de espetar uma agu-lha que seja no paciente. Até agora ne-nhum estudo tinha reunido todos esses parâmetros. Com essa visão integrada, Neder demonstrou que pacientes com DPOC têm algo em comum com atletas de elite: os pulmões roubam o sangue das pernas, que não conseguem manter o esforço físico sem o oxigênio trazido pelos glóbulos vermelhos circulantes.

>CIÊNCIA

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O estudo é inovador porque trata a circulação e a respiração como sistemas interligados, embora normalmente se-jam estudados por especialistas diferen-tes. É em sua passagem pelos pulmões que o sangue se abastece do oxigênio que em seguida leva a todas as células do corpo. Quando uma pessoa está em atividade física intensa, correndo ou subindo uma ladeira de bicicleta, a maior parte do sangue precisa ser man-dada para os músculos em ação, que para manter o movimento precisam de grandes quantidades de oxigênio. O corpo enfrenta então o desafi o de manter um equilíbrio delicado: suprir as pernas e, ao mesmo tempo, mandar uma quantidade sufi ciente de sangue para os músculos que movem os pul-mões, onde é oxigenado.

Usando o aparato completo do laboratório, o grupo da Unifesp sub-meteu dez homens com DPOC a tes-tes de esforço e avaliou os parâmetros circulatórios e respiratórios. Os resul-tados, em processo de publicação na revista Journal of Applied Physiology, mostram que a doença reduz o volume de sangue bombeado a cada batimento cardíaco e leva a uma perda rápida de oxigênio na musculatura das pernas – como a oxigenação é defi ciente, todo oxigênio que chega aos músculos é ra-pidamente consumido, causando uma

A oxigenação muscular periférica durante o exercício dinâmico em pacientes com DPOC: efeitos da redução do trabalho ventilatório induzido pela ventilação não-invasiva com pressão positiva

MODALIDADE

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa

CO OR DE NA DOR

JOSÉ ALBERTO NEDER SERAFINI - (EPM/Unifesp)

INVESTIMENTO

R$ 277.572,52

O PROJETO>sensação de peso nas pernas, como se estivessem recheadas de chumbo. Mais surpreendente, o trabalho revela o que há de comum entre esses pacientes e atletas de elite.

Esportistas como velocistas pro-fi ssionais desenvolvem sua técnica e musculatura – inclusive os músculos respiratórios e cardíacos – para atin-gir o rendimento máximo exigido nas competições. Mas às vezes exageram na dose e o esforço ultrapassa a velo-cidade com que o sangue pode levar oxigênio aos tecidos. Há cerca de dez anos a equipe do pneumologista norte-americano Jerome Dempsey, da Uni-versidade de Wisconsin, descreveu o que acontece quando esses atletas exce-dem sua capacidade de fazer exercício. Nesse ponto, a encruzilhada que repar-te o fl uxo de sangue entre pulmões e pernas funciona quase como a de uma ferrovia, em que um mecanismo su-bitamente altera a trajetória do trem. Os músculos dos pulmões produzem substâncias que, quando atingem uma determinada concentração, mandam um aviso ao cérebro. O órgão central

do sistema nervoso age instantanea-mente reduzindo o calibre dos vasos das pernas. O fl uxo de sangue é então desviado em grande parte para os pul-mões. Com menos sangue – e menos oxigênio – as pernas se tornam pesa-das. “Quando surge uma competição entre os músculos das pernas e os da respiração, estes últimos ganham”, ex-plica Neder. “De nada adianta manter o sangue fl uindo para os músculos que estão se exercitando se faltar sangue pa-ra os músculos que movem os pulmões, justamente os órgãos que fornecem o oxigênio tão vital para a musculatura.” Órgãos fundamentais para manter o organismo funcionando – como o cé-rebro, o coração e os pulmões – têm preferência na hierarquia do corpo.

Atletas frustrados – Neder mostrou que esse mesmo mecanismo limita a capacidade de os pacientes com DPOC se exercitarem, mas neles bastam al-guns degraus ou uma caminhada até a padaria da esquina para que os múscu-los respiratórios reclamem um volume maior de sangue. Entender isso abre

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o caminho para buscar maneiras de proporcionar uma vida mais ativa para as pessoas que sofrem de defi ciências respiratórias e cardíacas.

No setor de pneumologia da Uni-fesp, Neder vem testando alternativas para que esses pacientes tenham mais facilidade nas atividades cotidianas como trabalhar ou fazer compras. Por enquanto já obtiveram bons resultados no laboratório. Ajudar o paciente com uma máscara por onde entra ar normal sob pressão ou heliox – ar menos den-so por ser rico em hélio, um gás mais leve – reverte o processo e lhe devolve a vitalidade na bicicleta ergométrica. Em termos mensuráveis, o tempo em que agüentam manter exercício intenso triplica ou até quadriplica, com menos sensação de falta de ar e cansaço nas pernas. O tratamento não aumenta o teor de oxigênio respirado, ele simples-

mente lança o ar nas vias respiratórias de maneira que reduz o esforço exigido dos músculos pulmonares. O efeito do heliox é mais intenso porque o ar me-nos denso se difunde com mais facilida-de pelas vias respiratórias. “O ar entra como uma fl echa”, conta Neder. Mas tem um efeito colateral que restringe ainda mais o tratamento ao laborató-rio: o hélio tem um efeito temporário sobre as cordas vocais que deixa a voz parecida com a do Pato Donald nos desenhos animados. Por isso, o pneu-mologista recomenda que o paciente não fale durante o tratamento. O artigo, em processo de publicação na Thorax, deixa claro que basta facilitar o aces-so do ar aos pulmões para aumentar a proporção de sangue oxigenado em circulação e nos músculos.

O mesmo vale para quem sofre de insufi ciência cardíaca crônica (ICC). Ao contrário do que se acreditava, o que limita a capacidade física desses pacientes não é o coração, mas a oxi-genação dos músculos. Neder testou o mesmo tratamento nesses pacientes e mostra, em artigo disponível des-de março no site da revista American Journal of Physiology – Heart and Cir-culatory Physiology, que a respiração assistida aumenta a quantidade de oxigênio que chega às pernas e tor-na possível o exercício. Essa melhora, porém, não refl ete um aumento no teor de oxigênio geral no sangue – es-te continua o mesmo, conforme me-dido pela presilha no dedo indicador. Os autores postulam que o auxílio à respiração elimina os sinais de cansaço dos músculos respiratórios, que por isso deixam de induzir o fechamento dos vasos sangüíneos que alimentam as pernas. A circulação mais efi ciente leva consigo mais oxigênio.

O tratamento com respirador é limitado às sessões de exercício no

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MANTER O SANGUE

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OS ÓRGÃOS QUE

FORNECEM OXIGÊNIO”

laboratório ou, no futuro, em sessões de fi sioterapia e reabilitação. Mas seus efeitos são duradouros e se fazem tam-bém sentir nas atividades cotidianas normais dos pacientes tratados. “Os músculos dessas pessoas se tornam atrofiados pela falta de uso, o que agrava cada vez mais suas condições físicas”, explica o pneumologista. Tor-nar a musculatura mais efi ciente lhes permite usar o oxigênio de maneira mais efi caz, o que acelera a melhora.

Neder não pretende parar por aí e agora tenta desenvolver um tratamen-to mais acessível às pessoas. “Já come-çamos a testar uma forma de treinar os músculos respiratórios”, conta o pneumologista. Os pacientes são ins-truídos a fazer várias sessões diárias em que respiram usando um aparelho que exige maior esforço, como um ca-nudo levemente entupido. Algo como uma musculação respiratória que, segundo os testes preliminares, pode ser uma solução efi caz para melhorar a oxigenação de quem tem defi ciência pulmonar. Outra terapia que Neder co-meçará a testar em breve é o sildenafi l – o princípio ativo do Viagra. “É uma droga que dilata os vasos sangüíneos e melhora a circulação sangüínea, então esperamos que ajude a difundir o oxi-gênio de maneira mais efi ciente pelos músculos do corpo”, explica. ■

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FARMACOLOGIA

Com açúcar, sem artroseComponente da goma-guar alivia dor e evita progressão dos danos nas articulações

Carlos Fioravanti

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A goma-guar, quando ingerida, espanta a fome. Por ser rica em fi bras, acredita-se que ajude a conter o colesterol, o diabetes e a obesidade. É um espessante comum em alimentos industrializados e em cosméticos e medicamentos. Mas não param aí as propriedades dessa substância obtida da semente de uma planta originária da Índia e Paquistão, a Cyamopsis tetragonolobus, que parece ter mil e uma utilidades. Em experimentos realizados com ratos, uma equipe da Universidade Federal do Ceará (UFC) verifi cou que um dos

componentes da goma-guar, um açúcar conhecido como galactose, pode reduzir a dor e conter a perda da cartilagem nas articulações e reconstituir ao menos parte dos movimentos perdidos com a artrose, uma doença que acompanha o envelhecimento e tende a deformar e imobilizar principalmente mãos, quadris, joelhos e pés.

Francisco Airton Castro da Rocha, professor do Departamento de Medicina Clínica, e Judith Pessoa de Andrade Feitosa, de Química Orgânica e Inorgânica, começaram a investigar juntos em 2002 as possibilidades de uso da goma-guar como anestésico. A goma-guar é um galactomanano, um açúcar complexo ou polissacarí-

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expertise, nem é esse meu projeto de vida.” Rocha conta que visitou cinco empresas, inclusive uma multinacional, mostrou o gel e os artigos científi cos, mas a conversa não avançou porque todas queriam ver os resultados dos testes em seres humanos, que só podem ser feitos depois dos testes em animais.

O botânico Marcos Buckeridge, da Universidade de São Paulo (USP), viveu uma experiência seme-lhante. Em 2001 ele encontrou galactomananos em abundância na semente de uma árvore típica do Cer-rado, o barbatimão (Dimorphandra mollis). Como esses açúcares eram quimicamente idênticos aos da goma-guar, imaginou que as sementes de barbatimão poderiam ser uma fonte alternativa ao goma-guar. Em seguida criou um processo de extração de ga-lactomananos o mais simples possível que, em vez de patentear, tornou público por meio de um artigo científi co na Revista Brasileira de Ciência e Tecnologia de Alimentos. “Eu pretendia incentivar o uso susten-tável das sementes e colaborar com a conservação do Cerrado”, diz Buckeridge. “Para explorar as sementes, as árvores teriam de ser preservadas.”

Em 2004 Buckeridge e sua equipe identifi caram nas folhas do capim-favorito (Rynchelytrum repens) outro açúcar, o betaglucano, que nos experimentos preliminares em camundongos reduziu pela metade a taxa de glicose no sangue – portanto, poderia ser uma alternativa para o tratamento de diabetes. Até hoje não conseguiu avançar nessa pesquisa, mas logo depois ele descobriu outro açúcar, desta vez um xiloglucano, na goma da semente do jatobá

(Hymenaea coubaril), que poderia ser usado em cremes para pele. Em vez de torturar-se com expe-rimentos com animais e deixar que a descober-ta se tornasse um peso, tomou outro rumo: so-licitou uma patente e a cedeu a uma empresa de cosméticos em troca de equipamentos para o la-boratório que ele estava montando na USP. ■

deo formado por manose e galactose, na proporção de dois para um. Se usada in natura, descobriram os pesquisadores da UFC, a goma-guar provoca infl ama-ção nas juntas corroídas pela artrose, uma das áreas de trabalho de Rocha. Depois retiraram a proteína e verifi caram que os açúcares restantes poderiam deter a dor na artrose. Mais um tanto de trabalho e isolaram o açúcar responsável por essa ação, a ga-lactose, encontrada em frutas e, em abundância, no café. Os experimentos feitos até agora sugerem que a goma-guar poderia funcionar tanto como gel quanto em solução. “Os resultados mais recentes mostram que a galactose pode proteger contra a destruição da cartilagem que reveste os ossos”, diz Rocha. “Ainda não existe nenhuma medicação que impeça a pro-gressão da artrose.”

A caracterização química, os experimentos de re-tirar ou acrescentar componentes e os testes de efi cá-cia em animais tomaram a forma de quatro artigos científi cos publicados em revistas científi cas interna-cionais, duas teses de mestrado e duas de doutorado, um prêmio concedido pela Sociedade Brasileira de Reumatologia em 2004 e a uma patente solicitada no ano seguinte com o propósito de assegurar os direitos de uso do conhecimento gerado na universidade. Aí é que apareceram os problemas ainda não superados, começando pelos testes de toxicidade em animais de laboratórios, que, se bem-sucedidos, poderão permi-tir os testes em seres humanos.

Rocha acredita que a goma-guar, por ser constituí-da por açúcares que circulam continuamente pelo organismo, não é tóxica nem despertará reações alérgicas. Mas terá de provar, por meio de uma série de trabalhos rigidamente padronizados, para cumprir a árdua traje-tória de desenvolvimento de um novo medicamento, de acordo com as regras inter-nacionais. “Não temos como fazer aqui na universidade”, diz. “Pensei em criar uma empresa [para fazer os testes pré-clínicos], mas não tenho Açúcar derivado da goma-guar ampliado 500 vezesU

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GENÉTICA

De gordura a músculoEm laboratório, células-tronco restauram força de camundongos com distrofi a

Com as patas dianteiras agarra-das a um varal em miniatura, o camundongo ergue o corpo até que as traseiras também agarrem o arame, evitando assim a queda. O pequeno acrobata é a mais recente espe-

rança do grupo da geneticista Mayana Zatz, do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP) – um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão fi nanciados pela FAPESP –, para combater a distrofi a muscular, doença genética que atinge um em cada 2 mil brasileiros. Ainda sem cura, a distrofi a muscular causa a degeneração progressiva dos músculos a partir da infância, levando à perda dos movimentos e à necessidade de aparelhos para auxiliar a respiração.

Nos últimos anos a equipe de Mayana vem testando diferentes tipos de células-tronco adultas, extraídas da gordura descartada na lipoaspiração, de dentes de leite e do cordão umbilical, em modelos animais que desenvolvem um problema semelhante à distrofi a muscular humana.

No caso do camundongo acrobata, células-tronco de gordura humana fi ze-ram jus à sua versatilidade e se transfor-maram em músculo. A equipe da USP usou 21 camundongos, divididos em três grupos. Um deles recebeu células-tronco indiferenciadas, que não foram manipu-ladas depois de extraídas do corpo huma-no. No segundo foram injetadas células um pouco mais maduras, tratadas em laboratório para se transformarem em células musculares. O terceiro grupo não recebeu tratamento e serviu para compa-ração com os outros dois.

O resultado foi surpreendente. A me-lhora mais marcante se deu nos animais tratados com as células indiferenciadas, segundo dados publicados na revista Stem Cells. “Parece que as células se de-senvolvem melhor no organismo do que no laboratório”, comenta Mayana.

O efeito do tratamento pode ser no-tado até mesmo por quem não é pes-quisador. Os camundongos do grupo de controle (não-tratados) permane-ceram cerca de um minuto pendura-dos no varal antes de cair. Já os que receberam injeção de células-tronco se saíam bem no teste – esses animais apresentaram em média um aumento de 15% na força muscular.

Há ressalvas, porém, quanto a usar camundongos como modelo para

investigar a distrofi a muscular humana. Mutações no ge-ne produtor de distrofi na, proteína responsável pela maior parte dos casos da doença em seres humanos,

não causam uma fraqueza visível nos roedores. Por isso a equipe da USP usou nos testes camundongos com distrofi a muscular causada por defi ciência na pro-dução da proteína disferlina, que provoca nos animais os sintomas mais visíveis da doença humana. A melhora não foi só clínica: “As células-tronco humanas se transformaram em músculo e passaram a produzir todas as proteínas musculares, inclusive a disferlina e a distrofi na”, conta a geneticista Natássia Vieira, autora prin-cipal do trabalho. É um indício de que as proteínas humanas cumprem sua função também em outros mamíferos.

A equipe de Mayana procura supe-rar as restrições dos estudos com ca-mundongos trabalhando, em parceria com o grupo de Maria Angélica Migli-no, da Faculdade de Medicina Veteri-nária da USP, com cães da raça golden retriever. Esses animais apresentam sinais de distrofi a mais próximos aos das crianças que procuram o Centro de Estudos do Genoma Humano. Mas nem tudo é perfeito: os cachorros ocu-pam mais espaço, comem mais ração e não se reproduzem tão rapidamente quanto os roedores, motivo pelo qual o trabalho com eles é mais lento.

O avanço mais recente no trata-mento dos cães já está disponível no site do Journal of Translational Medici-ne. Encabeçado pela geneticista Irina Kerkis, do Instituto Butantan, e pelo veterinário Carlos Ambrosio, da USP, o grupo comparou o efeito de duas for-mas distintas de aplicação de células-tronco: diretamente no músculo ou na corrente sangüínea. Irina e Ambrosio aplicaram injeções de células-tronco retiradas de dentes-de-leite humanos em quatro fi lhotes de golden retriever – dois machos e duas fêmeas – e constata-ram que as células injetadas no sangue têm mais chances de se incorporar ao músculo do animal afetado.

Mayana ainda não comemora o re-sultado. Dos quatro animais tratados, só um macho continua vivo e saudável após o fi nal do estudo. “Ele pode estar vivo só por ser parente do Ringo”, refl e-te a geneticista, referindo-se ao cão que aos 5 anos de idade não tem sintomas apesar de geneticamente ter a doen-ça. Descobrir o porquê pode mudar o combate à distrofi a muscular. ■

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Células (no detalhe) produzem distrofi na humana em cães e roedores Maria Guimarães

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Ciência, embates e debates

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52 Apresentação

53 Wen-Hsiung LiUma visão genômica da evolução humana

56 José Eduardo KriegerGenômica, saúde e reparação cardíaca utilizando células-tronco

60 Robin BuellArroz: um exemplo de como a genômica pode mudar as abordagens da ciência

63 Emilio MoranExpansão internacional da antropologia ambiental: experiências na Amazônia

66 Mayana Zatz e Cristiane Segatto

Células-tronco embrionárias e mídia

especial: revolução genômica v

Ciência, embates e debates

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Promessa cumprida

Apresentação

Um chinês radicado nos Estados Unidos ajuda a entender, com base genética, como chimpanzés, orangotangos e ou-tros grandes primatas se diferenciaram da espécie humana. Um médico brasileiro mostra as promissoras experiências com células-tronco para regenerar lesões cardíacas. Uma especialista em biologia vegetal norte-americana fala como a genômica pode mudar as abordagens da ciência e detalha o trabalho em torno do seqüenciamento do arroz. Um antro-pólogo cubano naturalizado americano defende como saída para problemas ambientais a interação entre pesquisadores das ciências naturais e sociais. E, por fim, uma geneticista brasileira debate com uma jornalista a visão da mídia sobre o uso de células-tronco embrionárias para pesquisa.

Traduzindo em nomes, Wen-Hsiung Li, José Eduardo Krieger, Robin Buell, Emilio Moran, Mayana Zatz e Cristia-ne Segatto participaram da última rodada da programação paralela dentro da exposição Revolução genômica, encerrada em São Paulo em julho. Ao examinar os nomes acima e suas especialidades, Pesquisa FAPESP crê ter cumprido o prometido no primeiro encarte, em abril deste ano (edição 146): “... o que vamos procurar pôr em cena é a palavra dos respeitados cientistas, dos pesquisadores ligados a múltiplas áreas e dos variados especialistas (...). Palavra de quem tem algo significativo a dizer quando o que está em questão são as fronteiras do conhecimento e o lugar da ciência e da tecnologia na construção das culturas e das sociedades nas quais já estamos imersos ou que estamos projetando para um lugar chamado futuro”.

No total, falaram na programação paralela 31 palestrantes, entre pesquisadores, curadores e jornalistas. Destes, 10 cien-tistas vieram do exterior. Nem todos falaram apenas sobre o impacto da genética e da genômica na ciência e na vida cotidiana. Alguns miraram temas igualmente importantes e atuais, como as mudanças climáticas, os desafios da divulgação da ciência e as relações entre neurociência e psicanálise.

Um evento desse porte tem que vencer percalços, e o ciclo de palestras não foi exceção. O último palestrante estrangeiro não conseguiu chegar a tempo e optou por adiar, em vez de cancelar. A palestra do geneticista norte-americano Michael Lynch, sobre a complexidade de organismos e genomas, não acontece a tempo de integrar este suplemento especial, mas será trazida ao leitor em oportunidade próxima.

Algumas palestras atraíram mais público do que outras, mas, acima do número de pessoas, festejamos a diversida-de dos que compareceram. A programação cultural serviu como um ponto de encontro para pesquisadores e uma convergência entre especialistas e interessados. A exposição recebeu cerca de 150 mil pessoas no período em que ficou em São Paulo, de 29 de fevereiro a 13 de julho, e agora visitará outros estados.

Luiz Henrique Lopes dos Santos

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Wen-Hsiung LiGeneticista explica como macacose seres humanos seguiram caminhos evolutivos diferentes

Carlos Fioravanti

a entender, com base na genética, como chimpanzés, orangotangos e outros grandes primatas seguiram caminhos diferentes dos da espécie humana, mesmo com uma carga genética muito semelhante.

Foi Li quem mostrou que o reló-gio molecular – a taxa de transfor-mação da molécula de DNA – não era tão constante ao longo do tempo, mas poderia variar com o tempo de vida de uma espécie: anda mais devagar na espécie humana e mais rápido entre os camundongos, por exemplo. “Graças aos avanços da biologia molecular, da genética e de genômica”, comentou Li na palestra do dia 12 de julho no Ibirapuera,

“podemos ter uma compreensão razoavelmente boa da evolução hu-mana”. Melhor ainda, segundo ele, é que podemos ver nossa história com menos preconceitos: “Os primeiros europeus a chegarem à África viram os africanos, que tinham outra cor, e os consideraram indivíduos de outra espécie. Achavam que não seria possível o acasalamento, mas os humanos não se diferem tanto assim uns dos outros”. Ele próprio reconheceu que evidentemente ainda há muitos mistérios a serem resolvidos, como o fato de muitos primatas andarem tocando o solo com as quatro mãos, enquanto o

Li e Sandro de Souza, do Instituto Ludwig: evolução com menos preconceitos

Normalmente a evolução é vista por fora, considerando prioritaria-mente a aparência e a forma dos animais. O chinês Wen-Hsiung Li prefere olhar por dentro e buscar os artifícios genéticos que favoreceram (ou atrapalharam) a diferenciação de espécies, em especial a humana. Desse modo, carrega para a biolo-gia o conhecimento que acumulou ao longo de uma peculiar trajetó-ria acadêmica, que começou em Taiwan, onde ele nasceu em 1942, com um curso de engenharia e mestrado em geofísica, e prosseguiu nos Estados Unidos com doutorado em matemática aplicada à genética. Desde 1998 na Universidade de Chi-cago, Li ajudou a criar os métodos de análise estatística que ajudam

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antes ou logo depois da Segunda Guerra Mundial, por não terem sido bem nutridas, têm baixa estatura. Já as que nasceram depois da guerra se alimentaram adequadamente e crescem mais. Uma geração é mais alta que a outra não em razão da evolução, porque as pessoas que nascerem em Taiwan serão nova-mente baixas se houver outra vez limitação de alimentos.

Em seguida Li tratou do dar-winismo, um conjunto de idéias fundamentais para a biologia. De acordo com o darwinismo, a evolu-ção dos seres vivos resulta da seleção natural, segundo a qual sobrevivem principalmente os indivíduos mais bem adaptados ao ambiente. As di-ferenças entre as espécies, ressaltou, são uma conseqüência da seleção natural, de modo que todas as es-pécies têm uma origem comum.

“É difícil aceitar essa idéia de que chimpanzés, macacos e nós temos

um ancestral comum”, observou. “Por esse motivo, Darwin chegou a ser ridicularizado. Esse aspecto do darwinismo é o mais polêmico. Atualmente, entretanto, acredito que já se aceitou completamente a idéia de que todos os primatas, incluindo todos os humanos, têm a mesma origem.”

Para mostrar de onde vieram essas duas espécies, Li expôs su-cessivas árvores genealógicas apresentando relações mais pró-ximas ou mais distantes entre as famílias – a categoria mais abran-gente na classificação de animais e plantas – de quatro espécies de grandes primatas (orangotango, gorila, chimpanzé e bonobo) e da espécie humana. As seqüências de DNA, ele lembrou, são ótimas pa-ra tentar descobrir quando surgiu cada uma dessas espécies: a simples troca de uma seqüência pode levar a espécies diferentes, que podem ou não cruzar entre si, dependendo da semelhança genética.

Como ele mostrou em seguida, o genoma humano difere apenas 1,2% do genoma do chimpanzé, 1,62% do gorila e 3,08% do oran-gotango. O orangotango e o gorila, com uma taxa de divergência de 3,09%, são mais distantes genetica-mente entre si do que o homem e o chimpanzé. Li arrancou novamente risadas ao mostrar um chimpanzé e Bush fazendo caretas. “Um chim-panzé pode fazer quase tudo o que os homens fazem”, comentou o geneticista. Já entre um rato e um camundongo, apesar das semelhan-ças, a divergência genética é muito maior: 20%.

Linguagem e cor da pele Mas o que exatamente faz de um macaco um macaco e de um ho-mem um homem? Esta pergunta inevitável leva a incertezas: as dife-renças, do ponto de vista genético, poderiam resultar das seqüências de proteínas formadas a partir dos genes, os mecanismos de regulação dos genes ou ambos. A regulação dos genes, ele lembrou, determina o momento de ligar ou desligar um gene, além de controlar a quantida-de desse gene e em que tecido será produzido. “Essa regulação afeta o desenvolvimento, a fisiologia e a saúde”, disse Li. Com outras árvores

ser humano consegue andar ereto; a evolução da inteligência ainda é outro conjunto de perguntas à es-pera de boas respostas.

Li abriu a palestra intitulada “Uma visão genômica da evolução humana” com uma rápida revisão dos conceitos básicos de DNA, RNA e gene. Antes de deixar a platéia pensar que havia começado uma aula tediosa, mostrou sua habili-dade em fazer rir ao mostrar uma cena de um chimpanzé acenando ao lado do atual presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, também acenando. “Eles parecem muito di-ferentes porque seus genomas são diferentes”, acentuou. Mas, exata-mente, quão diferentes? Não muito, considerando que a evolução é um acúmulo de mudanças genéticas ao longo do tempo. “Sem alterações genéticas, não há evolução”, afir-mou, lembrando que as pessoas naturais de Taiwan que nasceram

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filogenéticas ele mostrou em seguida que o homem e os grandes primatas se separaram – ou divergiram – de um ancestral comum há pelo menos 15 milhões de anos. Uma divergência mais recente, entre 4,8 milhões e 6,4 milhões, teria feito a espécie humana e os chimpanzés tomarem caminhos biológicos próprios.

A possibilidade de existir um ge-ne para a linguagem pode ajudar a responder a essa pergunta inevitável. Trabalhando com a carga genéti-ca transmitida de uma geração a outra de uma mesma família na Irlanda, os geneticistas encontra-ram um gene, o FOXP2, que con-trola a linguagem: os portadores de versões defeituosas desse gene perderam a habilidade de falar e de se comunicar. Por outro lado, contou Li, o desenvolvimento da linguagem depende de duas versões funcionais do FOXP2. “O FOXP2 é o único gene capaz de influenciar o desenvolvimento da linguagem”, observou. Sutis diferenças em uma versão original desse gene aparece-ram há pelo menos 14 milhões de anos, levando os seres humanos a terem um vocabulário muito mais rico que o dos chimpanzés. “Nossa hipótese é que esse gene foi selecio-nado por causa da vantagem que a linguagem pode proporcionar.”

Genes que determinam as di-ferentes tonalidades da pele e dos cabelos, como o MC1R, também foram selecionados ao longo de milhões de anos, favorecendo a migração e se mantendo à medida que poderia beneficiar a sobrevi-vência da espécie humana. Não é um privilégio de nossa espécie. Há cerca de 10 mil anos uma glaciação isolou em grandes poças d’água dis-tantes entre si uma espécie de peixe, o peixe-espinho (Gasterosteus acu-leatus), que a partir daí começou a se diferenciar em espécies distintas, alguns com escamas escuras, outros com escamas claras, determinadas pela expressão ou não do gene Kitlg. Os seres humanos, embora tenham seguido outros caminhos evoluti-vos, também carregam esse gene, mais comum entre africanos do que entre escandinavos. Ao longo de nossa evolução esse gene deve ter favorecido a migração e a produção de pigmentos que protegiam do sol intenso. ■

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José Eduardo KriegerBons resultados da reparação cardíaca comcélulas-tronco não iludem pesquisador

Neldson Marcolin

Pesquisas clínicas com células-tronco vêm sendo feitas em vários centros do mundo como uma es-perança para resolver problemas cardíacos graves. Aprender como reconstruir músculo e vasos san-güíneos do coração utilizando essa terapia é um objetivo perseguido pelos pesquisadores porque infartos e isquemias estão entre as doenças que mais matam. Em São Paulo, José Eduardo Krieger, um especialista em novas abordagens terapêuticas para regeneração cardíaca, dirige o Laboratório de Genética e Cardio-logia Molecular do Instituto do Co-ração da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor/FMUSP), um dos locais de excelên-cia onde ocorrem algumas das pes-quisas mais promissoras nesse setor. No dia 26 de junho, ele falou sobre o tema “Genômica, saúde e reparação cardíaca utilizando células-tronco” durante a agenda cultural da expo-sição Revolução genômica.

Nos últimos oito anos Krieger tem estudado o uso de células-tron-co adultas na regeneração cardíaca, mas sempre de olho na pesquisa com as células-tronco embrioná-rias. “Trabalhar com a segunda é fundamental para entender todo o processo. Para as pesquisas de aplicação pré-clínica em animais de experimentação e no homem usamos as adultas, das quais temos mais conhecimento e experiência”, disse. Para explicar a importância que a terapia celular poderá vir a ter, o pesquisador começou sua expo-sição lembrando que o Brasil gasta cerca de 5% do Produto Interno Bruto (PIB) em saúde. Os Estados Unidos despendem 15% e outros países desenvolvidos entre 6% e 12%. Apesar do gasto diferencia-do, a insatisfação com os diversos sistemas de saúde é mais ou menos comum em todos eles. Para Krieger, uma das razões para isso é que dois terços do dinheiro são usados em

Krieger: anos de pesquisa com células-tronco adultas e embrionárias

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Como se sabe que as embrioná-rias são um bom hardware se ainda não existe um programa conhecido que a faça funcionar? “É fácil de-monstrar: seleciono uma célula-tronco embrionária do camundon-go, que pode ser armazenada em temperaturas muito baixas, des-congelada e cultivada novamente no laboratório e, finalmente, inje-tada em outro camundongo. O que ocorre é a formação de um tumor chamado teratoma”, explicou. O teratoma tem células de todo tipo, como pele, pêlo e pedaço de den-te. “Essa é uma evidência direta de que uma célula-tronco embrioná-ria, mantida em laboratório, que foi congelada e descongelada, dá origem a componentes de todas as células.” No entanto, esse conhe-cimento ainda é insuficiente para servir como terapia celular por-que os pesquisadores estão longe de controlar todo o processo. Hoje eles sabem apenas que é possível fazer, mas não sabem como.

No laboratório do InCor já se conseguiu fazer cultura de células embrionárias se diferenciar em célula cardíaca. O problema é que elas estão juntas com outros tipos de célula. Para dar certo, a dife-renciação tem de ser realizada de forma controlada, caso contrário é inútil como terapia. Quando os pesquisadores conseguirem enten-der exatamente como essas células são programadas talvez nem seja preciso usá-las – o conhecimento adquirido com o estudo das células embrionárias poderá ser aplicado em outros tipos de célula. “Daí a importância da decisão do Supremo Tribunal Federal de reafirmar a lei que permite pesquisa com células-tronco embrionárias”, enfatizou.

A equipe do InCor trabalha tam-bém com outro curinga, a célula-

doenças crônico-degenerativas com resultados insatisfatórios.

“Estou falando das doenças pre-valentes, como hipertensão arterial, câncer, doença coronária, diabetes, obesidade e outras que têm carac-terísticas multifatoriais”, disse. Ou seja, não é um único defeito genéti-co que pode determinar esses males, mas vários deles, simultaneamente. Além, claro, dos fatores ambientais. Outra característica delas é o apare-cimento tardio justamente na fase em que o custo para tratar é mais alto, quando o paciente precisa ser internado. Uma das formas de melhorar significativamente essa situação e, conseqüentemente, o modelo de saúde é tentar entender como as variações genéticas deter-minam não só as diferenças entre os indivíduos, mas também como essa variação vai fazer com que al-guém seja mais ou menos suscetível a desenvolver as doenças.

“Se pudéssemos saber em uma fase muito precoce da vida quais os problemas de saúde mais prováveis que uma pessoa terá, poderíamos colocá-la próxima do sistema e, as-sim, torná-lo mais racional”, disse. A prática dessa medicina individua-lizada ou preditiva é a grande meta a ser alcançada para melhorar de modo efetivo a vida das pessoas e o modelo atual de saúde. Krieger aler-tou que esse é só um dos conceitos do setor que deve mudar. Além da medicina preditiva, ele aposta na medicina regenerativa. Para ilustrar o conceito, o pesquisador usou o coração, sua especialidade, como exemplo. “Quando alguém tem um infarto, várias células de músculo do coração são destruídas e, ao con-trário da musculatura esquelética,

elas não se regeneram”, explicou. Se perder muitas células, ele deixa de funcionar. Hoje a isquemia cardíaca é tratada com medicamentos, cirur-gia de revascularização (ponte de safena) e com a introdução de um cateter dentro do organismo para desobstruir o vaso sangüíneo. Mais recentemente esse cateter leva com ele um tipo de malha chamada stent, com medicamento, para manter o vaso aberto.

Ainda assim, um grande número de pessoas não se beneficia desses tratamentos e é preciso novas pes-quisas médicas. É aí que aparece a reparação cardíaca biológica, ob-jeto de estudo da equipe liderada por Krieger no InCor. “Em vez de apenas desobstruirmos os vasos sangüíneos, agora sabemos que o melhor a fazer é reconstruir vasos e músculo”, disse ele. A formação de novos vasos e a substituição de células musculares ainda estão numa fase muito precoce, mas já existem estratégias de ação. Uma delas é usar as células-tronco, que Krieger chama metaforicamente de curinga, aquele mesmo dos jogos de baralho. “Já se fala há mais de 40 anos de engenharia de tecidos, mas o desenvolvimento de novos mate-riais junto com a possibilidade de os combinarmos com células-tronco está revolucionando essa área.”

CuringasNo jogo de baralho, quando o jo-gador não tem a carta que precisa ele pode usar um curinga genérico, que entra em qualquer lugar da canastra. Ou pode ser um curin-ga específico, que só entra em um determinado local. Os curin-gas biológicos de Krieger são as células-tronco embrionárias, que serviriam em qualquer parte da ca-nastra, e as células-tronco adultas que só entram em alguns lugares.

“Se a embrionária um dia precedeu todas as nossas células é porque ela tem a receita para fazer isso, mas para ser útil devemos saber fazê-la se diferenciar no tecido que quere-mos.” Ele usa outro exemplo para mostrar como funciona esse tipo de célula: ela é como um compu-tador que tem um hardware com-pleto. Ocorre que ele só funciona se tiver um programa que o faça trabalhar como queremos.

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tronco adulta, encontrada em várias partes do organismo. A diferença é que, ao contrário da embrionária, ela só se encaixa em determinados tecidos. “Isso não é ruim se sou-bermos exatamente qual o proble-ma que temos”, disse. Um desses curingas específicos são as células da medula óssea, já bem conheci-das. Há décadas os hematologistas conseguem regenerar a medula de um indivíduo que tem câncer fa-zendo transplante de medula. Nos últimos anos surgiram evidências de que esse conjunto de células que estão dentro dos ossos longos, como o fêmur ou a bacia, além de fazer células da corrente sangüínea tam-bém pode se diferenciar em células de músculo ou da parede de vasos.

“A grande vantagem desse curinga é que por ter sido muito testado pode ganhar um uso prático mais rapidamente. Sabemos que mal ele não faz.” É por isso que a medula óssea é utilizada para pesquisa em seres humanos no mundo inteiro, incluindo InCor e outras institui-ções brasileiras.

Pode-se também obter células indiferenciadas da musculatura es-quelética e da gordura. Estas últimas já são objeto de estudo na equipe de Krieger. As células de gordura são colocadas em meio de cultura. Aí começam os problemas: como fazê-las virar músculo cardíaco e vaso sangüíneo de forma controlada? O pesquisador explicou que, quando o sangue viaja dentro dos vasos, existe uma força física que é exercida pela corrente sangüínea. Essa força de arrastamento (ou shear stress, como é chamada em inglês) funciona para mudar o calibre dos vasos e alterar sua estrutura a médio e longo prazo.

“É como se mudássemos a espessura da mangueira de jardim de acordo com a água que corre por ela.”

“Usando um aparelho específico conseguimos mimetizar de maneira controlada a shear stress em labo-ratório e reproduzir na célula o que acontece em diversos pontos da nossa circulação”, disse. O que se quer fazer é estimular a célula-tronco de gordura a virar célula cardíaca colocando-a sob condi-ções que imitam a circulação do sangue no coração e nos vasos. “Se conseguirmos, já teremos andado meio caminho para utilizar essa

O próximo passo, em curso, é testar essa célula treinada em labo-ratório para saber se ela consegue fazer um reparo cardíaco eficiente. Para isso, os pesquisadores usam ratos, nos quais é provocado infarto. Eles são separados em três grupos. Nos primeiros ratos infartados nada é injetado; no segundo é injetada a célula sem ser submetida ao shear stress; e no terceiro é introduzida a célula submetida ao shear stress. O objetivo é ver se o último grupo rea-girá melhor que os outros. “Estamos em uma fase que o conhecimento não permite fazer avaliações defi-nitivas e dizer se um procedimento é melhor do que o outro.”

Os avanços conseguidos suscitam novas dúvidas. Quando houver uma célula-tronco que funcione a con-tento, quantas serão necessárias para reparar músculo e vasos do coração? A injeção será dada diretamente no músculo cardíaco, via circulação periférica, ou será preciso que um cateter leve as células até dentro do ventrículo do coração? Se o indiví-duo tiver um infarto, a terapia terá de ser aplicada imediatamente ou será melhor depois de alguns dias ou semanas? “Todas essas dúvidas que se referem à reparação do sis-tema cardiovascular valem também para o tratamento de outras doenças crônico-degenerativas.”

Krieger conta uma pequena história que ajuda a explicar sua

célula como um agente terapêutico.” Ao fazer essa experiência viu-se que essa célula parecia não ter mudado. Há uma série de marcado-res moleculares utiliza-dos e os pesquisadores não notaram diferença depois dos testes. “Mas continuamos olhando cuidadosamente e no-tamos que essa célula passou a produzir duas substâncias. Uma delas é o gás óxido nítrico (NO), típico de uma cé-lula endotelial, um dos componentes da parede do vaso”, contou. Como a célula de gordura nor-malmente não produz NO, ela pode não ter se transformado totalmen-te em endotelial, mas de alguma maneira se comportava como tal. A segunda descoberta é que ela produziu a substância VEGF (fator angiogênico), que esti-mula a formação de no-vos vasos. Ou seja, sob o mesmo estímulo dentro da máquina que simu-la a circulação, a célula indiferenciada passou a produzir VEGF.

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“Quando entendermos exatamente como a célula-tronco embrionária é programada, talvez nem seja preciso usá-la”

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cautela quanto aos resultados. “Em 2001 saiu publicado um artigo na revista Nature que mostrou pela primeira vez que injetando célu-las-tronco da medula óssea em um ratinho após um infarto o animal melhora”, disse. “Mas, além disso, a célula teria virado músculo e vaso.” O trabalho se tornou um dos mais conhecidos naquela época, mas três anos depois surgiram outros dois papers também na Nature sobre a mesma experiência. Os autores não contestavam o fato de o rato ter melhorado, mas a explicação dos pesquisadores para isso. Ou seja, o mecanismo de ação é que não havia sido realmente esclarecido.

Dúvidas e cuidadosMesmo com todas as dúvidas e cuidados, Krieger vê razões para ser otimista. Ele deu exemplos do que sua equipe está fazendo com animais de experimentação. “Ti-ramos uma célula de um ratinho, uma célula de fibroblasto da pele ou do músculo, por exemplo, e a modificamos geneticamente no laboratório para que ela produ-za substâncias que estimulem a formação de vasos sangüíneos ou músculo. Em seguida provocamos um infarto e depois de 24 horas o animal recebe o tratamento e vive por mais quatro semanas. Ao final desse período nós analisamos se o tratamento influenciou a estrutu-ra e função do coração”, disse. O resultado mostrou que os animais que receberam as células modifi-cadas para produzir o fator angio-gênico conseguiram estimular a formação de capilares (vasos mais simples). Além disso, a quantidade de fibrose no músculo reduziu-se, algo altamente positivo.

“Esses resultados foram de certa maneira tão espetaculares que, em vez de tentar entender melhor o que havia sido feito, iniciamos a mesma experiência com um animal intermediário, o porco, que é bem mais parecido com o homem do que o rato.” Se ocorrer o mesmo sucesso, aí sim haverá empenho dobrado para entender o processo e partir para o homem.

Para fazer qualquer experiência parecida no ser humano é preciso ter, pelo menos, uma probabilida-de muito grande que não haverá

nenhum mal em usar a terapia. É preciso que haja uma janela de opor-tunidade ética para poder injetar as células-tronco. Mas não qualquer uma – neste momento os pesquisa-dores estão limitados a célula-tronco de medula, pois é a única onde a experiência acumulada mostra que os riscos são mínimos. Restava sa-ber quando e em quem se poderia usar. “No InCor identificamos uma oportunidade para agir. Por exem-plo, uma pessoa que teve infarto não se recuperou inteiramente e deverá ser submetida à cirurgia para colocar pontes de safena. Às vezes ocorre de, por razões técnicas, não ser possível colocar todas as pontes e uma região que se beneficiaria da revasculari-zação não será tratada. Essa é uma excelente janela de oportunidade ética”, disse. Nesse lugar do coração onde não dá para colocar a ponte os pesquisadores poderão injetar as células. O procedimento tem de ser aprovado por comitês, internos e externos.

Em uma primeira experiên-cia com o paciente nas condições requeridas, quando ele chega ao centro cirúrgico e é anestesiado, os médicos retiram 100 mililitros do conteúdo da medula, que se-guem para o laboratório alguns

andares acima. O objetivo é deixar a população de células da medula um pouco mais homogêneas, um procedimento feito em duas horas, durante o período em que a pessoa estava sendo operada para a coloca-ção das pontes. “Assim que termina a cirurgia para a revascularização, o cirurgião injeta cerca de 140 mi-lhões de células na região indica-da.” Durante o acompanhamento pós-cirúrgico foram feitos diversos exames como, por exemplo, de res-sonância magnética para checar a situação do coração.

“Nesse caso, constatamos que os pacientes melhoraram e o efeito persistiu por 12 meses depois da cirurgia. Mas é preciso não se iludir porque nesse estudo os pacientes também receberam as pontes e a melhora era esperada. Não dá para saber se as células injetadas real-mente tiveram influência ou se foi efeito das pontes.” Krieger ressal-tou dois pontos importantes como saldo do trabalho feito até agora. Primeiro, que o procedimento de injetar células-tronco durante a ci-rurgia é seguro. Segundo, exami-nando cuidadosamente a região do coração que recebeu somente as células, observou-se um aumento da perfusão de sangue na região.

Ainda que isso não seja uma “prova” de que a terapia funciona, é um dado encorajador. “Agora se-rão necessários estudos com maior número de pacientes, realizados por diferentes instituições, e de um modo que chamamos de aleatori-zado e duplo-cego; ou seja, pacien-tes com as mesmas características serão tratados com as pontes e no local onde a ponte não pode ser colocada será injetada a célula ou não”, disse. Nem o médico que fará as avaliações nem o paciente saberão naquele momento o que foi feito. Somente ao final de 12 meses de acompanhamento é que o código será quebrado e se saberá se o tratamento com as células foi benéfico. Este estudo, patrocinado pelo Ministério da Saúde, com a participação de vários hospitais e coordenado pelo InCor, está em curso. “Será preciso muita pesquisa e paciência para ter certeza de que estamos no caminho certo.” No momento, Krieger se diz muito otimista. Mas cauteloso. ■

“Todas as nossas dúvidas com relação às células-tronco usadas no sistema cardiovascular valem para o tratamento de outras doenças crônico-degenerativas também”

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de Biologia Vegetal da Universida-de Estadual de Michigan (EUA), em palestra realizada no dia 22 de junho. A apresentação fez parte da agenda cultural da exposição Revo-lução genômica, que esteve em car-taz até meados do mês de julho no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Robin falou sobre o tema “Arroz: um exemplo de como a genômica pode mudar as abordagens da ciência”. A

pesquisadora teve papel de destaque no trabalho do consórcio público internacional que seqüenciou em 2005 o genoma quase completo da subespécie japonica do arroz (Oryza sativa), a primeira planta cultivável a ter o seu DNA mapeado. Antes do cereal, apenas o genoma da Arabi-dopsis thaliana, planta modelo da biologia, tinha sido seqüenciado em sua integridade.

Se o século passado viu a pri-meira revolução verde, que permitiu o aumento generalizado de produ-tividade na agricultura devido ao emprego de fertilizantes e pesticidas e à introdução de cultivares criadas pela genética clássica, o século atual vai precisar de uma segunda revo-lução verde, com um perfil distinto da anterior. “Isso pode ocorrer com o uso dos mesmos métodos que uti-lizamos no passado, mas também será necessário um novo método para atendermos à demanda de ali-mentos da população”, disse Robin. “Acreditamos que, na maior parte dos casos, serão introduzidas novas características nos cultivos agrícolas por meio da genômica e da biotec-nologia.” Com o auxílio das mo-dernas técnicas desenvolvidas pela biologia molecular, é possível alterar simultaneamente um número ex-pressivo de traços de uma cultivar, como a resistência a doenças, a mu-danças ambientais e níveis de pro-dutividade. Esse processo é muito mais rápido e direcionado do que o trabalho de melhoramento genético levado a cabo de maneira clássica (sem transgenia). Com a biotec-nologia, acredita a pesquisadora, será possível elevar a produtividade agrícola praticamente sem precisar aumentar as terras destinadas ao cultivo de grãos, hoje escassas em praticamente todo o mundo.

Segundo Robin, a genômica tem a capacidade de causar um gran-de impacto na agricultura porque permite observar o “projeto arqui-tetônico” da construção e do fun-cionamento de uma célula, de um organismo ou até mesmo de um órgão. “Dessa forma, conseguimos informações que explicam como a célula foi construída, o que ela faz em resposta ao ambiente ou a patógenos”, afirmou. “Conseguimos entender como as células funcio-nam, de modo que podemos to-M

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A genômica mudou o modo como se faz pesquisa e o próprio enten-dimento do que é a biologia. Seus efeitos atuais são comparáveis aos produzidos nos anos 1940 pela des-coberta da penicilina, que então mu-dou a medicina. “A genômica é hoje responsável pelo mesmo fenômeno, só que em todas as áreas da biologia e na agricultura”, disse a pesquisa-dora Robin Buell, do Departamento

Robin BuellBióloga da Universidade Estadual de Michigan fala da importância do genoma do arroz

Marcos Pivetta

Robin: papel de destaque no grupo que seqüenciou o genoma do arroz

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mar decisões inteligentes e fazê-las funcionar melhor.” A pesquisado-ra também disse que a genômica permitiu passar do estudo de um gene isolado para o de vários ge-nes (centenas, dezenas ou milhares deles) ao mesmo tempo. “Essa foi a maior mudança de paradigma que tivemos. Isso ocorreu somente nos últimos dez anos, e tudo foi muito rápido”, comentou.

DNA menorMembro da família das Poaceae, as populares gramíneas, o arroz, ao lado do trigo e do milho, figura entre os cereais mais cultivados do mundo, de importância inques-tionável para alimentação. Metade da população do planeta consome arroz diariamente, em especial na Ásia. Mas essa não foi a única razão que o levou a ser a primeira cultura agrícola a ter o genoma comple-tamente seqüenciado. Pesou tam-bém um motivo prático: seu DNA é bem menor do que o dos outros cereais. Essa característica, explicou Robin, foi decisiva, já que o custo do trabalho de seqüenciamento é diretamente proporcional ao tama-nho do genoma. Como o estudo do DNA de plantas não costuma obter o mesmo nível de financiamento que os trabalhos com o genoma humano, é preciso ser seletivo na hora de montar um projeto de pes-

quisa. Com 430 milhões de pares de bases (as letras químicas que for-mam o código genético), o genoma do arroz tem menos de um quinto do tamanho (17%) do genoma do milho e é 40 vezes menor que o do trigo. Confrontado com o genoma da Arabidopsis, o do arroz é apenas três vezes maior. “As plantas podem ter genomas bastante grandes, pois elas têm trechos repetidos de DNA e múltiplas cópias de seus cromos-somos”, disse a bióloga.

A opção pelo arroz era tão ób-via que, além do consórcio público internacional, duas empresas de bio-tecnologia, a Monsanto e a Syngenta, e os chineses produziram, ainda no início desta década, versões não-finalizadas do genoma do cereal. Diferentemente dos outros grupos, que trabalharam com a subespécie japonica do arroz, muito cultivada no Japão, Coréia e Estados Unidos, os chineses preferiram estudar a su-bespécie indica, justamente a mais disseminada em seu país. “O arroz se beneficiou do fato de haver diversos projetos de seqüenciamento do seu genoma”, disse Robin. De acordo com os resultados do trabalho publi-cado pelo consórcio internacional, o arroz tem 12 cromossomos e cerca de 41 mil genes, sendo provavel-mente o organismo vivo conheci-do com maior número de genes até hoje determinados. “Infelizmente, sabemos a função de apenas 50% desses genes. O maior desafio para as pesquisas futuras é determinar a função dos outros 50%.”

Ainda há muitos detalhes do genoma do arroz que precisam ser entendidos. Mas o que se sabe já o coloca como modelo para o estudo do DNA de outras espécies de gra-míneas. “Seqüenciar o genoma de uma espécie permite compreender o funcionamento do genoma das demais espécies da família”, explicou a pesquisadora. Há cerca de 10 mil espécies diferentes de gramíneas no planeta, adaptadas às mais diversas condições ambientais, desde zonas de clima quente e árido até regiões mais frias, com altitudes elevadas. Algumas dessas plantas são cultiva-das em boa parte do planeta devido a três motivos principais: uso dos frutos comestíveis, os grãos, para produzir alimentos (caso dos cereais milho, trigo, arroz, cevada, centeio,

“A genômica permitiu passar do estudo de um gene isolado para o de vários genes ao mesmo tempo. Essa foi a maior mudança de paradigma que tivemos e só ocorreu nos últimos dez anos”

Diversidade do arroz: formas e cores distintas nos distintos ambientes em que o cereal se adaptou

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sorgo, entre outros); extração de açúcar, como ocorre com a cana; produção de biomassa, que é o pro-duto bruto do vegetal.

Os primeiros estudos compara-tivos feitos pelos cientistas já reve-lam informações interessantes. Eles analisaram dados genômicos de 180 plantas e verificaram que 90% dos genes do arroz podem ser encon-trados em outras espécies vegetais. Muitos desses genes estão ligados a processos básicos de todas as plan-tas, como o controle da fotossíntese, do crescimento e da reprodução. “O arroz não possui um conjunto exclusivo de genes que o definem como arroz”, explicou. “Ele partilha muitos genes com outras plantas e apenas uma pequena parte desses genes lhe são exclusivos.”

Num dos slides da palestra, Ro-bin mostrou, como exemplo do que os biólogos moleculares chamam de conservação genética, um gene do arroz, bastante grande, que tam-bém pode ser encontrado no milho, no sorgo, na Arabidopsis e em 50 outras espécies vegetais. Quando descobrem esse gene numa planta, os cientistas logo se perguntam em que local do genoma ele se encon-tra. Eles querem saber se, além de ser comum a várias espécies, o gene também ocupa a mesma posição dentro do genoma dessas plantas. Em alguns casos, grandes trechos de DNA de uma espécie, com-preendendo um cromossomo ou muitos genes, se mantêm intactos em outras espécies aparentadas. O fenômeno também ocorre com o arroz e o trigo. “Isso mostra que, ao longo da evolução, não somente os genes foram mantidos nas duas espécies, mas também a sua ordem”, comentou a pesquisadora. “Esse da-do é muito importante, por exem-plo, para os biólogos que estudam o trigo, que tem um genoma muito grande e ainda não seqüenciado. Eles podem usar os genes do ar-roz para compreender o genoma do trigo.”

Apesar de ter muito em comum com o DNA de outras gramíneas, o genoma do arroz também exibe especificidades. Aproximadamente 5 mil dos 41 mil genes são exclusivos de cereais, não tendo sido até agora encontrados em outras espécies. Ro-bin quer saber qual a importância

desses genes para o surgimento das propriedades que favorecem o culti-vo dos cereais. A função da maioria desses genes exclusivos de cereais ainda permanece desconhecida. “Na minha opinião, esses são os genes mais intrigantes, pois provavelmen-te são os que definem um cereal co-mo tal”, afirmou Robin.

ContinuidadeA exemplo do que a biologia fez com a Arabidopsis, da qual já foram seqüenciadas 90 variedades distintas da planta, Robin defende a conti-nuidade dos trabalhos genômicos com mais variedades de arroz. “O seqüenciamento do genoma de um tipo de arroz não basta”, disse. “Agora queremos mais genomas, para que esse que já foi feito (da subespécie japonica) possa ser com-parado com outros.” Há um projeto chamado Oryza SNP Project, toca-do por um consórcio público inter-nacional, que pretende definir toda a variação genética presente nesse cereal. A iniciativa busca seqüenciar o genoma de 20 variedades de arroz e utilizar esse conhecimento para o melhoramento genético dessa im-portante cultura agrícola. O objetivo do projeto é identificar no genoma do arroz todos os polimorfismos de um único nucleotídeo, os SNPs, na sigla em inglês. Trata-se de muta-ções caracterizadas pela variação

de apenas uma das letras químicas, os tais pares de base ou nucleotí-deos, num determinado segmento de DNA. O projeto também quer definir como e se esses SNPs modi-ficam a aparência e as características físicas do arroz.

A variedade de formas que os diversos tipos de arroz podem assu-mir é surpreendente. Robin exibiu à platéia um slide do Instituto Inter-nacional de Pesquisa do Arroz, das Filipinas, com diferentes cultivares de arroz. Algumas plantas eram al-tas, outras pequenas. Certos tipos de arroz floresciam cedo, outros mais tarde. Há grãos de arroz com várias colorações, indo das mais claras às mais escuras. Além de compreen-der as bases genéticas do arroz, os cientistas tentam entender melhor o rendimento, a reprodução, a morfo-logia e a qualidade do grão de cada variedade de arroz. “Também esta-mos analisando como as variedades respondem a situações de estresse, como a privação de água e o exces-so de sal, e ao ataque de patógenos ou pestes”, afirmou Robin. Enfim, como mostrou a pesquisadora da Universidade Estadual de Michi-gan, há hoje um esforço científico internacional que, sem fazer muito alarde ou ser muito badalado, tenta assegurar a produtividade agrícola de um dos alimentos mais básicos da humanidade, o arroz. ■

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Para Robin, seqüenciar só uma variedade de arroz não basta. É preciso analisar mais tipos do cereal

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Emilio MoranSegundo antropólogo, saída para problemas ambientais depende da interação das ciências naturais com as sociais

Ricardo Zorzetto

mental não são as disciplinas, mas a formulação da pergunta científica a responder, que deve ser feita em conjunto por pesquisadores das ciências naturais e sociais.

Moran falou com a experiên-cia de quem teve uma formação essencialmente multidisciplinar e nas últimas décadas esteve à frente de projetos internacionais como o Land Use and Land-Cover Chan-ge (Lucc) e o Global Land Project (GLP), que investigam como as ati-vidades humanas vêm alterando os processos biológicos, químicos e físicos do planeta. E exemplificou a importância da interdisciplinarida-de para compreender as alterações ambientais apresentando o trabalho que desenvolve há quase quatro dé-cadas na Amazônia brasileira.

Nascido em Cuba e vivendo nos Estados Unidos desde os 14 anos, Moran começou a enveredar pelas ciências naturais durante o douto-rado na Universidade da Flórida, no início da década de 1970. Em uma palestra, seu orientador, o an-tropólogo Charles Wagley, contou que estavam abrindo uma grande estrada na Amazônia capaz de ge-rar impactos ambientais e sociais em toda a América do Sul pelos 30 anos seguintes e que alguém deveria estudar essa questão. Essa estrada era a Transamazônica – planeja-da pelo governo militar de Emílio Garrastazu Medici para cortar o Brasil de leste a oeste e promover o desenvolvimento da Amazônia –, e o único candidato que procurou

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Se a atividade humana gerou os problemas ambientais de hoje, é dela que deverão surgir as soluções. Mas para que se alcancem saídas eficazes do ponto de vista ambien-tal, econômico e social será preciso primeiro compreender como o ser humano se relaciona com a nature-za. Esse entendimento depende da integração do conhecimento das ciências naturais com o das ciências sociais, de modo semelhante ao que ocorre na chamada antropologia ambiental ou ecologia humana, que estuda a interação entre as popula-ções humanas e o ambiente físico, defendeu o antropólogo Emilio Mo-ran na palestra “Expansão interna-cional da antropologia ambiental: experiências na Amazônia”, apre-sentada em 21 de junho no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, como parte da programação cultural da exposição Revolução genômica.

“No Brasil não se pensa que a antropologia também estude o ambiente”, disse Moran, diretor do Centro Antropológico para Trei-namento e Pesquisa em Mudanças Ambientais Globais da Universi-dade de Indiana, nos Estados Uni-dos. A falta de reconhecimento à contribuição da antropologia para compreender questões ambientais não é um problema só brasileiro. Também é comum na Europa e nos Estados Unidos, onde há tempos a antropologia ambiental é reco-nhecida como disciplina e ensinada nas universidades. Moran deu uma idéia do desequilíbrio entre ciências naturais e ciências sociais nos Es-tados Unidos ao citar o volume de recursos que essas áreas recebem para pesquisar mudanças globais e ambientais: as ciências naturais levam 97% das verbas e as sociais

3%. Para Moran, apesar dessa di-ferença, em parte justificada pelo emprego de tecnologias mais caras pelas ciências naturais, deve haver um intenso esforço de integração entre essas áreas, caso se deseje compreen der em profundidade as razões que levaram à intensa alte-ração do ambiente, como a que se observa na Amazônia brasileira.

O principal desafio a essa inte-gração está nas próprias universi-dades, onde a estrutura dos cursos para diferentes carreiras dificultam a interdisciplinaridade. Segundo Moran, muitas vezes se criam bar-reiras para que as pessoas não pos-sam cruzar as linhas e, por exemplo, o antropólogo estudar biologia ou o aluno de ciências políticas aprender sensoriamento remoto. Ou seja, na formação acadêmica exige-se uma pureza disciplinar excessiva. “Não precisamos de pureza, precisamos nos sujar para resolver o proble-ma”, disse Moran. Para ele, o funda-

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“Temos que conectar duas ou três áreas que liguem o mundo biofísico com o social para enfrentar a realidade do meio ambiente”, disse Moran

Wagley para estudar seu impacto foi Moran. Quando Moran perguntou o que deveria saber para começar o trabalho, Wagley o mandou estu-dar ecologia de sistemas, geografia e também solos tropicais, pois na época se pensava que a qualidade do solo limitava o desenvolvimen-to das sociedades amazônicas. “Ele queria que eu soubesse se era ver-dade ou não e coletasse amostras de solo”, contou Moran. “Wagley me permitiu criar um programa individual que misturava pedologia, ecologia, geografia e antropologia para enfrentar a pergunta.”

Moran fez sua primeira viagem ao Brasil em 1972, quando veio as-sistir à abertura da Transamazônica no estado do Pará. Acompanhou os trabalhadores da empreiteira que construía a estrada do município de Marabá, no leste do estado, a Itaituba, no oeste, e viu muita coisa diferente do que os livros contavam ou os planos do governo sugeriam. Encontrou os solos pobres (latosso-los) que os livros descreviam, mas, bem próximo, identificou trechos de terra extremamente fértil (ter-ra roxa estruturada eutrófica). As agrovilas prometidas pelo governo

– que deveriam ser implantadas a cada dez quilômetros ao longo da estrada, com escolas, água tratada e serviço de saúde – simplesmente não existiam e as pessoas tinham de morar em tapiris, casas simples cobertas de folhas, construídas por elas próprias, contou Moran, que em 1973 e 1974 morou por 14 meses em uma agrovila no município de Altamira com os colonos.

Acidentes e maláriaDois problemas afetavam os colo-nos e os trabalhadores que abriam a estrada, constatou o antropólogo. Um deles era a malária, que atingia entre 20 e 70 pessoas por mês. O outro eram os ferimentos graves provocados pela queda de árvores ou pelos acidentes com caminhões que tombavam nas pontes impro-visadas ao longo da estrada, feitas com troncos de madeira deitados sobre valas ou o leito de riachos. Moran iniciou seus estudos com-parando a energia que os colonos ingeriam com a que gastavam para derrubar árvores, plantar alimentos ou coletar frutos. Também reuniu

e analisou amostras de solo nas agrovilas e descobriu que, diferen-temente do que mostrava um levan-tamento inicial dos solos ao longo da Transamazônica, o da região não era exclusivamente pobre. De 15% a 20% das terras eram terra roxa, boas para a agricultura. O gover-no federal havia encomendado um mapa de solos que teve de ser feito em pouco tempo, razão por que se baseou em amostras coletadas a cada 500 metros ao longo da estrada. Mas esse mapa, o melhor possível obtido no prazo exíguo de dois anos, mostrava a composição do solo ape-nas no traçado da Transamazônica e não dava idéia do que havia um pouco além da estrada. Até hoje, se-gundo Moran, não há estudos que aprofundem as descobertas iniciais daquele levantamento e os morado-res da região continuam a agir sem orientação adequada.

Comparando as características dos diferentes tipos de solo, o pes-quisador demonstrou que as pes-soas naturais da Amazônia sabiam identificar as áreas de terra fértil melhor do que os colonos vindos

de outras regiões do país. “Tentei mostrar que o caboclo da Amazônia, aquele que o governo havia falado que não prestava, só caçava onça e não sabia cultivar, na verdade conseguia escolher a melhor terra”, disse. Além do critério visual – as áreas com solo mais escuro em ge-ral são mais férteis –, os nativos da Amazônia avaliavam características da vegetação diferentes das levadas em consideração pelas pessoas que haviam migrado do Sul ou do Nor-deste. Os imigrantes pensavam que o solo era mais fértil nas áreas em que as árvores são mais altas. Esse critério podia ser verdadeiro em outras regiões, mas não na Ama-zônia, onde a floresta é menos densa nas áreas férteis. Segundo Moran, os colonos naturais da Amazônia usavam outras características da ve-getação para escolher as melhores terras e obtinham os índices mais altos de produção agrícola. Com base nesse resultado, o antropólogo perguntou a técnicos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) por que não usavam esse conhecimento para instalar os

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imigrantes de outras regiões. Ouviu como resposta que a taxa de migra-ção era tão alta que não havia tempo de selecionar apenas as terras boas.

“Cada um tinha que se virar e esco-lher uma terra sem saber se era boa”, contou Moran, que em junho lan-çou no Brasil seu livro mais recente Nós e a natureza, sobre a redução do consumismo como estratégia para a preservação do planeta.

Após uma interrupção de qua-se uma década – período em que escreveu seu primeiro livro em português, Ecologia humana das populações da Amazônia –, o pes-quisador retornou à Amazônia no início dos anos 1990 quando os meios de comunicação afirmavam que as queimadas levariam à deser-tificação do ecossistema. “Eu não acreditava porque, quando pergun-tava aos colonos qual o principal problema com a terra, eles nunca falavam que se tornava deserto, mas que havia uma invasão rápida da mata secundária”, contou.

Para estudar esse problema, o antropólogo teve mais uma vez de recorrer a outras áreas do conheci-

maior a variedade de culturas, co-mo cacau, cana-de-açúcar e ou-tras. Duas décadas após o início da colonização, as pessoas haviam aprendido a melhor forma de usar a terra, concluiu Moran.

Nesse trabalho, realizado com cerca de 400 proprietários em Al-tamira, Moran descobriu ainda que um fenômeno comum na Amazônia – a venda das propriedades obtidas durante o início da colonização – também estava essencialmente li-gado à qualidade do solo. Quem tinha propriedades com maior pro-porção de solos férteis não vendia suas terras, enquanto os outros as negociavam com freqüência. Como apenas 20% das terras na Amazônia são terra roxa, essa constatação le-vantou, segundo Moran, a seguinte dúvida: não seria melhor identificar inicialmente as áreas de terra fértil, que podem ser usadas para a agri-cultura, em vez de sair desmatando indiscriminadamente para depois se descobrir que a terra é fraca? “Os caboclos sabem proteger a área que não merece ser desmatada”, afirmou Moran, para quem tentar proteger tudo não é uma estratégia realista nem do ponto de vista político nem prático. Para ele, esse conhecimento poderia orientar o desenvolvimento agrícola da Amazônia e a definição de áreas a serem protegidas.

Nesse trabalho, em que obser-vou ainda que a floresta se recupera em ritmos diferentes segundo as características do solo, o antro-pólogo constatou que no Brasil o desmatamento progride em função da economia: nos períodos de hipe-rinflação e crédito rural apertado dos anos 1980 o desmatamento e a migração para a Amazônia caíram, mas aumentaram com a estabiliza-ção da economia.

Ferramenta adequada O uso de ferramentas de outras áreas do conhecimento levou Moran a identificar outro fator que influen-cia a derrubada da floresta: o per-fil das populações que chegam às frentes de colonização. Ele decidiu investigar esse efeito ao notar que a trajetória do desmatamento havia sido a mesma nas diferentes regiões estudadas, embora a origem dos co-lonos fosse diversa. Segundo Moran, os livros de ecologia sempre colocam

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Fronteira:colono trabalha na abertura da

Transamazônica, em 1973

mento. Foi aprender sensoriamento remoto e, com mais financiamento e uma equipe maior, analisar em sete regiões da Amazônia um fe-nômeno que preocupava os pes-quisadores naquela época: a capoei-rização, substituição da floresta por vegetação secundária, que ressurge após o corte – atualmente se acredi-ta que, com o aumento da tempera-tura média do planeta nas próximas décadas e a redução da umidade na Amazônia, parte da floresta possa se tornar savana.

Com Mario Dantas, da Embra-pa-Pantanal, Moran usou imagens de satélite, entrevistas com os colo-nos, análises de solo e observações locais das áreas de estudo para ava-liar o efeito da intervenção humana sobre a floresta e o uso do fogo para o manejo da terra. Constatou que a forma de uso do solo dependia da fertilidade. Nas propriedades em que prevaleciam os solos po-bres (latossolos eram mais de 75% da área), os colonos só plantavam pasto. Quanto maior a porção de terra fértil (50% ou mais), menor era a área dedicada à pastagem e

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a população como culpada dos pro-blemas ambientais. “Incorporei um demógrafo ao grupo e entrei no as-sunto para ver até que ponto a demo-grafia podia nos ajudar a esclarecer essa culpa humana”, disse.

O antropólogo e sua equipe pas-saram a investigar se o número de membros, o gênero e a idade dos integrantes das famílias dos colonos afetavam o desmatamento na Ama-zônia. Um fato que influenciou a decisão de estudar esse efeito foi que no início da colonização de Altami-ra, no Pará, o perfil da população era distinto do de outras frentes de colonização. No mundo todo es-sas frentes são compostas por gente jovem, na faixa etária dos 20 aos 25 anos, e sem filhos. Em Altamira era diferente. O Incra estimulou a ida para a Amazônia de pessoas com mais idade e mais filhos, pois o objetivo era povoá-la. Mais tarde, durante a Presidência do general Ernesto Geisel, o governo parou de escolher quem migraria para a Amazônia e a estrutura etária dos colonos se tornou mais próxima à das populações de fronteira.

Moran desejava saber se a es-trutura dessas diferentes levas de migrantes alteraria o ritmo do des-matamento. Constatou que, de mo-do geral, cada frente de colonização produzia dois surtos de desmata-mento intercalados por uma queda. Esse padrão se repetiu em diversos períodos analisados. Para explicar o fenômeno, Moran propôs a teoria do ciclo doméstico. Na fase inicial da colonização, os pais desmatam e se dedicam à agricultura para a subsistência da família, formada por vários filhos pequenos. À medida que os filhos crescem, passam a aju-dar na agricultura e aumentam a produção e a venda para o mercado, permitindo o acúmulo de capital. Mais tarde, com os filhos adultos, as famílias mudam as culturas para mais perenes e os que se casam pas-sam a querer sua própria lavoura. Esse fenômeno ocorre nas regiões de terras férteis, enquanto nas áreas de solos mais pobres as famílias se dedicam à criação de gado.

Na Amazônia também não se observa outro fenômeno comum em regiões de fronteira, onde as famílias têm sempre muitos filhos para ajudar na lavoura: a elevada ta-

xa de fertilidade. Em duas décadas a fertilidade caiu de 6 filhos por casal para cerca de 2, padrão semelhan-te ao das outras regiões brasileiras. Moran atribui essa queda à urba-nização do país, que, imagina-se, atingirá as regiões de fronteira.

O uso de ferramentas de diferen-tes áreas do conhecimento permitiu à equipe de Moran ver que os fatores que influenciam o desmatamento na Amazônia são muitos e de diferentes ordens (biofísicos, demográficos e econômicos). “Temos que conectar pelo menos duas ou três áreas que liguem a parte do mundo biofísico

com a parte social para poder en-frentar a realidade do meio ambien-te de hoje”, disse Moran.

O antropólogo concluiu sua apresentação lembrando uma re-comendação que fazia aos membros de sua equipe em Indiana: “Quando você entrar por aquela porta para uma reunião, deixe suas ferramen-tas e armas, seus métodos e suas teorias lá fora. Depois que defini-mos a pergunta científica, manda-mos procurar a ferramenta mais adequada para respondê-la, sem nos preocupar com quem trouxe a ferramenta”. ■

Mayana Zatz e Cristiane Segatto

Geneticista e jornalista discutem erros e acertos da mídia na cobertura das células-tronco embrionárias

Fabrício Marques

O apoio de amplos setores da mídia foi fundamental para a aprovação em 2005 da lei que autorizou estu-dos com células-tronco embrioná-rias e também para a derrubada no Supremo Tribunal Federal (STF), há três meses, da Ação Direta de Inconstitucionalidade que tentou neutralizar a lei e barrar as pesquisas. Mas a imprensa também cometeu deslizes, alardeando esperanças de tratamento com as células-tronco que a ciência não autorizava pro-pagar. Esse diagnóstico emergiu no debate “Células-tronco embrioná-rias e mídia”, que reuniu no dia 6 de julho a geneticista Mayana Zatz, pró-reitora de Pesquisa da Univer-sidade de São Paulo (USP) e coor-denadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, e a jornalista Cristiane Segatto, repórter especial da revista Época, dentro da programação cultural da exposição Revolução genômica organizada pela revista Pesquisa FAPESP. “A impren-sa esteve escandalosamente ao nosso

lado e isso fez toda a diferença”, disse Mayana, conhecida como uma ati-vista da liberdade nas pesquisas.

Segundo ela, a mídia cumpriu um papel inestimável ao dar voz aos cientistas e ajudar a explicar para a população o que eram essas pesquisas. “E também mostrou para os políticos a importância dessas pesquisas”, completou. Mayana re-lembrou no debate as origens de seu interesse pelas células-tronco embrionárias. “Trabalho com doen-ças genéticas, especificamente com moléstias neuromusculares, que atingem uma em cada mil pessoas. Por causa de um defeito genético, essas doenças levam a uma degene-ração progressiva da musculatura”, explicou. Segundo ela, são mais de 50 doenças diferentes e as formas mais graves causam morte na pri-meira ou segunda década de vida.

“O envolvimento com esses pacien-tes me motivou a batalhar pelas pesquisas com células-tronco. Isso porque, pela primeira vez, comecei a

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à medula óssea, aos músculos, ao coração e aos vasos. E o ectoderma que vai formar pele, neurônios, hi-pófise, olhos, orelhas. “Até 14 dias, não há nenhum resquício de célula nervosa. É a partir do décimo quar-to dia que elas começam a se formar. Por isso, os países que aprovaram essas pesquisas permitiram que se utilizassem embriões de até 14 dias”, disse a professora. Após essa fase, tem início a diferenciação em tecidos. Forma-se, então, o tecido adiposo, ósseo, músculo e depois os órgãos. “Descobrir os mecanismos que norteiam a diferenciação é a grande interrogação dos pesquisa-dores. Controlar esse processo é o que as pesquisas no mundo todo estão fazendo agora”, afirmou a pes-quisadora. O que se sabe, segundo ela, é que após a diferenciação todas as células seguintes têm as mesmas características. “As filhas da célula de fígado vão ser todas células de fígado e assim por diante”, afirmou. Embora os genes sejam os mesmos em todos os tecidos, a expressão desses genes é diferente entre um tecido e outro. “Alguns genes ficam ativos e outros ficam silenciados. Esse silenciamento faz um tecido ser diferente do outro e isso é um processo extremamente bem con-trolado, caso contrário não teremos uma célula funcional”, explicou.

FraudeA esperança dos cientistas é conse-guir manipular as células-tronco a ponto de gerar células pancreáticas

sob medida capazes de devolver aos diabéticos a capacidade de produ-zir insulina, ou produzir neurônios motores para regenerar as vítimas de lesões de medula, para citar dois exemplos. “Até hoje, ninguém conseguiu fazer isso com células-tronco adultas”, disse Mayana. A pesquisadora explicou a diferença entre células-tronco embrionárias e adultas. As embrionárias podem ser obtidas de embriões congelados que sobram em clínicas de fertilização. Ou então pela chamada clonagem terapêutica, que é a transferência de núcleo de uma célula diferenciada para um óvulo sem núcleo. “Houve uma equipe de cientistas coreanos que afirmaram ter conseguido, e chegaram a publicar suas experién-cias em revistas de alto impacto, mas depois se viu que era uma fraude”, afirmou Mayana. Se bem-sucedida, a clonagem terapêutica permitiria gerar células-tronco com as mesmas características genéticas de um in-divíduo do qual foi retirada a célula, com o objetivo de substituir órgãos ou tecidos doentes sem risco de re-jeição. “Trata-se de uma tecnologia muito difícil e ainda não alcançada em seres humanos, que, creio, será o futuro da terapia celular por me-dicina regenerativa. A boa notícia é que algumas células do nosso corpo permanecem com características de células-tronco. São as chama-das células-tronco adultas. Temos células-tronco adultas na polpa do dente-de-leite, na medula óssea, no tecido adiposo, no cordão umbilical e em outros tecidos e órgãos, pân-creas, fígado”, afirmou Mayana. A má notícia, ela lembrou, é que as células-tronco adultas não têm o mesmo potencial que as células-tronco embrionárias, embora sejam importantes para formar alguns te-cidos. “Nós estamos trabalhando ati-vamente com elas. As embrionárias podem formar todos os tecidos do corpo, enquanto as adultas formam alguns, mas não todos”, afirmou.

A clonagem da ovelha Dolly, em 1996, foi essencial para abrir essa perspectiva. “A revolução foi mos-trar que células já diferenciadas de um mamífero poderiam voltar a ser reprogramadas, voltar a ser totipo-tentes e formar um animal com-pleto”, disse Mayana. Ela explicou como a ovelha foi clonada. Primeiro,

Cristiane e Mayana: o desafi o de

informar sem gerar falsas

expectativas

ver nessas pesquisas uma esperança de tratamento”, disse Mayana.

De forma didática, a pesquisa-dora propiciou aos espectadores a chance de relembrar ou tomar o primeiro contato com os conceitos científicos que embasam o debate. Iniciou descrevendo o surgimento das células-tronco embrionárias.

“Cada um de nós surgiu a partir da fecundação de um óvulo que sobre-viveu. A célula começa a se dividir, primeiro em duas, duas viram qua-tro, e aí temos um embrião de oito células. Essas oito células são chama-das células-tronco totipotentes. Por que totipotentes? Porque qualquer uma delas, caso seja inserida num útero, tem potencial para tornar-se um ser completo”, disse Mayana. O embrião, prosseguiu a professora, se-gue se dividindo, até que, na fase de 64 a cem células, aproximadamente cinco dias depois da fecundação, for-ma o chamado blastocisto. “Ocorre uma primeira diferenciação. As cé-lulas externas vão se transformar em placenta e membranas embrionárias, enquanto as células internas são cha-madas células-tronco pluripotentes. Elas têm o potencial de formar todos os tecidos do corpo, mas já não têm o potencial de formar um ser com-pleto”, explicou Mayana.

Depois, com 14 a 16 dias, des-ponta uma estrutura chamada de gástrula, com os três folhetos embrionários. O endoderma, que é a parte mais interna, vai formar o pâncreas, o fígado, a tireóide, o pulmão. O mesoderma dará origem

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retirou-se o núcleo de uma célula da glândula mamária de uma ove-lha. Depois, esse núcleo celular foi introduzido num óvulo sem núcleo. Ocorreu a fusão e formou-se o em-brião, que foi colocado no útero de uma outra ovelha. Esse processo deu origem a Dolly, cópia idêntica da ovelha que cedeu o núcleo da célula mamária. Não foi, contudo, uma tarefa simples. Houve 277 tentativas até que se chegasse a uma ovelha viável. “Além disso, Dolly morreu precocemente, aos seis anos de idade. Ela tinha artrite e embora os pesqui-sadores que fizeram a Dolly garan-tam que sua morte não foi por causa da clonagem, ela tinha doenças de ovelha mais velha”, afirmou Mayana. Após a experiência da clonagem da ovelha e de outros bichos, segundo a pesquisadora, começou-se a falar em clonagem de seres humanos. Um médico italiano, Severino Antinori, anunciou em abril de 2002 que o primeiro clone ia nascer em no-vembro daquele ano. “Como seria a clonagem reprodutiva humana?”, perguntou Mayana à platéia, para responder: “Vamos imaginar um bebezinho, ou pode ser um adulto, do qual se tira uma célula, tira-se o núcleo, coloca-se em um óvulo sem núcleo e se houver fusão, você tem também um embrião, insere-se em um útero humano, e aí você vai ter n cópias do bebezinho”. Um outro grupo, a seita dos raelianos, também anunciou que estava fa-zendo clonagem reprodutiva e até se propunha a vender equipamen-tos pela internet para fazer a clo-nagem em casa. “A proposta deles era ótima”, disse Mayana. “Diziam que você poderia se clonar e ter um corpo novo e manter a sabedoria das vidas anteriores. Que maravilha: eu quero ser a Gisele Bündchen! Bom, quais seriam as implicações éticas da clonagem reprodutiva humana? O risco biológico é enorme, pelo que a gente viu das pesquisas com animais. A tecnologia não está nem disponível em humanos, mas se ti-vesse disponível é impensável o risco de fazer uma clonagem reprodutiva humana”, afirmou.

Em meio àquele frisson, a Acade-mia Brasileira de Ciências pediu que Mayana ajudasse a escrever um do-cumento que estava sendo redigido por pesquisadores de vários países

sugerindo o banimento da clonagem reprodutiva. “Estava todo mundo muito preocupado com a clonagem reprodutiva. E eu disse: estou muito menos preocupada com isso, porque há consenso entre os pesquisadores de que isso é uma loucura. E acho muito mais importante permitir as pesquisas com células-tronco em-brionárias”, lembra-se. A geneticista e outros colegas ajudaram a escrever o documento condenando a clona-gem reprodutiva, mas apoiando as pesquisas com células-tronco em-brionárias. O texto foi subscrito por 63 países. “A revolução da Dolly mostrou realmente que clonagem reprodutiva é uma loucura, mas ela abriu novas perspectivas de trata-mento com células-tronco que po-dem ser obtidas tanto de embriões congelados que sobram nas clínicas de fertilização quanto por clonagem terapêutica”, disse Mayana.

No CongressoDepois disso Mayana Zatz envol-veu-se na mobilização pela apro-vação da Lei Nacional de Biosse-gurança no Congresso Nacional, que permitiria as pesquisas com células de embriões, mas foi rejeitada pela Câmara. “Teve início a minha peregrinação em Brasília. Comecei a participar de audiências públicas e a conversar com senadores, porque

a lei voltou ao Senado para ser re-escrita. Nós visitamos os senadores, um por um, para tentar explicar a importância dessa lei. E ela acabou aprovada no Senado no final de 2004 com 96% dos votos favoráveis”, ela lembra. O próximo passo era uma nova votação na Câmara dos Depu-tados, mas o então presidente da Ca-sa, o deputado Severino Cavalcanti, ligado à Igreja Católica, hesitava em colocar o projeto em pauta. “Tive-mos uma reunião com o Severino e ele prometeu que ia colocar a lei para votar’”, disse a pesquisadora.

Em março de 2005 a lei foi apro-vada por 85% dos deputados e, em seguida, sancionada pelo presidente da República. Proibia a clonagem de embriões sob qualquer hipótese, mas autorizava a pesquisa com embriões congelados que seriam descartados nas clínicas de fertilização in vitro. Mas uma ação de inconstituciona-lidade contra o uso de embriões apresentada em maio de 2005 pe-lo procurador-geral da República, Claudio Fonteles, voltou a trazer insegurança para os pesquisadores

– e Mayana retomou a mobilização, no Supremo Tribunal Federal. Ela participou ativamente da audiência pública em que o relator da ação, o ministro Carlos Ayres Britto, ouviu médicos, especialistas em bioética e pacientes sobre o uso das células-

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Células neuronais geradas a partir de células-tronco embrionárias

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tronco. A pesquisadora também es-tava em Brasília, acompanhada de seus pacientes, nos dois momentos em que o Supremo avaliou a ação, até a vitória em maio passado.

A jornalista Cristiane Segatto disse que, em 13 anos de experiência acompanhando assuntos de saúde e de ciência, jamais cobriu um tema que tenha despertado um debate tão grande, polêmico e emocionante quanto as células-tronco. “Não é difícil entender por que esse tema mexeu com os corações e mentes do Brasil”, afirmou a jornalista. “Ima-ginem as células-tronco, aquelas coisinhas minúsculas que têm o potencial de se transformar em qualquer tecido do corpo humano. Isso, por natureza, já é uma coisa espetacular. Agora imaginem a pos-sibilidade de um cientista interferir nesse processo e domar essas células para que elas se transformem no tecido desejado e com isso poder restaurar corações, fígados, curar doenças. Isso parece mágica. Agora imaginem que essas células só estão disponíveis em embriões congela-dos nas clínicas de fertilização, o que atrai uma forte oposição dos grupos religiosos. Isso cria uma tensão entre vários direitos, como o direito à liberdade de pesquisa, à saúde, à expressão religiosa, à vida”, disse Cristiane. Esse enredo, ela dis-se, é tão maravilhoso que a impren-sa não escaparia de investir nele. A questão é a forma como a imprensa brasileira cobriu isso. “Será que ela informou ou criou falsas esperan-ças?”, indagou a jornalista.

Na opinião dela, a cobertura foi bastante heterogênea. Em alguns veículos, como as redes de televi-são e de rádio, obrigados a dar in-formação de uma forma rápida e sintética, muitas vezes os conceitos ficavam mal explicados e, segundo Cristiane, tendiam um pouco para o espetáculo. “As reportagens davam a impressão de que as células eram sementes mágicas que os cientistas tinham total domínio sobre elas e que só não estavam podendo tra-balhar porque havia uns ogros, uns atrasados ligados à Igreja, que impe-diam o avanço da ciência. Mas que assim que os cientistas pudessem co-locar as mãos nessas células, logo os pacientes seriam salvos. Isso é uma simplificação bárbara da realidade”,

ela exemplificou. Cristiane afirmou, porém, que ao longo do tempo a imprensa foi ganhando domínio sobre o assunto e a qualidade das informações melhorou. “Nos jornais, principalmente, a qualidade da in-formação melhorou muito. Mas às vezes pendia para o outro extremo, que era o hermetismo”, afirmou.

A jornalista convidou a platéia a refletir sobre o trabalho das três principais revistas semanais de in-formação: Veja, Época e IstoÉ. “De todos os tipos de veículos da mídia, eu acho que as revistas semanais são que teoricamente têm mais tem-po e atraiam condições para fazer um trabalho mais completo, mais profundo, ir além da notícia, fazer uma coisa mais analítica”, explicou. Segundo Cristiane, o problema para este segmento da imprensa tem si-do a dificuldade de criar chamadas de capa que traduzam o conteúdo da reportagem e ao mesmo tempo atraíam o leitor. “Muitas vezes, o conteúdo da matéria é bom. Ela não induz a falsas esperanças e faz

“A imprensa esteve ao nosso lado. Deu voz aos cientistas, esclareceu a população e mostrou aos políticos a importância das pesquisas”, disse Mayana Zatz

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todas as ressalvas necessárias. Mas a capa vai em sentido contrário, às vezes até vendendo ilusões”, afirma. Utilizando o telão do auditório, ela passou a exibir algumas capas de re-vistas semanais sobre células-tronco. A primeira foi uma capa da revista Veja, que estampava a imagem de duas crianças, filhas da atriz Luisa Thomé, e trazia a seguinte mensa-gem: Estes bebês são pioneiros de uma revolução da medicina. Ao nascer eles tiveram armazenadas células-tronco, terapia que já está sendo usada para tratar doenças como diabetes, infarto, derrame, Alzheimer, Parkinson, es-clerose múltipla. “As células-tronco até agora são uma promessa, mas revolução de fato ainda não dá para afirmar”, disse. “E, além disso, es-sa idéia de congelar as células do cordão para uso dos filhos é algo bastante discutível, porque a proba-bilidade de que essas células sejam úteis para as próprias crianças é bem baixa”, afirmou.

Em seguida, apresentou uma capa publicada por Época, de sua autoria, com uma imagem do mú-sico Herbert Viana numa cadeira de rodas e as chamadas Células da vida. Perspectivas: como os embriões podem gerar tratamentos para males cardíacos, paralisia, diabetes, câncer, Alzheimer. Em que estágio estão os estudos sobre cada doença. Congresso: quem é a favor e quem se opõe. “Essa capa repercutiu muito porque foi publicada num momento político importante. Depois ganhou um prêmio de jornalismo, foi conside-rada bem-sucedida. O conteúdo está completo, mas sempre que olho para ela fico pensando: será que as células-tronco são a esperança?”, perguntou.

“Tudo bem, entendo que elas são a es-perança das pessoas retratadas, mas até que ponto contribui com essa capa para gerar falsas esperanças em outras pessoas? Será que o Herbert Viana e as outras pessoas vão assistir a algum avanço que possa ser útil para eles? Porque a gente sabe que até hoje não existe nenhum estudo clínico realizado com células de em-brião, em nenhum país do mundo”, disse. Cristiane seguiu comentando outras capas, como uma da revista IstoÉ publicada na mesma semana em que o STF aprovou as pesquisas no Brasil. A capa exibia a imagem de uma menina e a chamada Células-

tronco, nova chance de vida. Júlia, 10 anos, e mais uma centena de outros pacientes poderão ser os primeiros beneficiados pelas terapias com célu-las-tronco embrionárias, finalmente liberadas no Brasil. “Será mesmo?”, perguntou a jornalista . “Já tem uma terapia prontinha para ser testada? Ela vai se curar? De novo eu acho que tem um exagero”, disse Cristia-ne, que, ao final, apresentou uma outra capa de Veja com a chamada Tratamentos com células-tronco no Brasil, a medicina que faz milagres. “Aí eu acho que eles jogaram pesado, porque não tem milagre. A medicina nunca faz milagre”, disse.

LiberdadeCristiane Segatto ponderou que sua intenção, ao apresentar as ca-pas, não era desqualificar o trabalho da imprensa. “Eu quis mostrar isso tudo até para fazer uma espécie de mea culpa aqui e para mostrar que a imprensa cometeu sim seus exces-sos. Mas eu não queria deixar uma mensagem pessimista, pois acho que a imprensa, embora possa ter errado em alguns aspectos, deu uma colaboração valorosa para o debate sobre as pesquisas com embriões no Brasil”, afirmou. Segundo ela, fo-ram escritos artigos e reportagens muito bons, muito esclarecedores, com argumentos muito bem alinha-vados. “A imprensa contribuiu sim para a educação da sociedade. E não podia ser de outra forma, porque o que estava em jogo lá no STF era a liberdade da expressão científica e o direito que os casais têm de dar o destino que julguem melhor a esses embriões congelados. A imprensa contribuiu muito para a defesa des-sas liberdades fundamentais e por isso acho que ajudou a fazer história. Nunca antes o STF havia promovido uma audiência pública para discutir qualquer assunto que estivesse em pauta”, diz, referindo-se à iniciativa do ministro Ayres Britto de ouvir a opinião de cientistas, pacientes, religiosos e especialistas em bioé-tica. “Com a exposição desse tema das células-tronco na mídia, o STF decidiu ouvir a sociedade e isso foi bom. A decisão do STF reiterou a separação entre Igreja e Estado e é muito importante que essa discussão tenha sido suscitada por um tema da ciência”, disse, para concluir: “Eu não

sei se as células-tronco embrionárias vão dar origem a algum tratamento. Acho que só daqui a uns 20 anos a gente vai poder olhar para trás e ver o que era perspectiva real e o que era fantasia. Torço pelos pacientes, fico extremamente sensibilizada pela gar-ra, pela força deles, mas não sei se te-rão de fato uma nova chance de vida. O que sei é que, com essas pesquisas, o Brasil vai ganhar um patrimônio inestimável, que é o conhecimento. Com seus erros e acertos, a imprensa pode se orgulhar de ter contribuído para isso”, afirmou.

Mayana Zatz concordou com o diagnóstico de Cristiane. Explicou que levou ao plenário do STF pa-cientes que esperam beneficiar-se de tratamentos criados a partir de células-tronco embrionárias. Mas ressaltou que todos eles sabem do es-tágio ainda inicial das pesquisas. “Eles sabem que não há tratamentos, mas tentativas terapêuticas com células-tronco adultas, não as embrionárias”, disse a geneticista. “Não se sabe se um dia as células-tronco embrionárias resultarão em tratamentos, mas se aposta que a pesquisa poderá resultar em avanços do conhecimento, cujo impacto hoje nem sequer podemos imaginar”, afirmou Mayana. ■

Cristiane Segatto: “A imprensa pode ter cometido excessos, mas contribuiu para a educação da sociedade”

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GENÔMICA

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Simpósio internacional discute rumos da pesquisa canavieira no Brasil

Oproduto máximo da cana-de-açúcar ainda está por vir. São os desdobramentos do proje-to conhecido como Genoma Cana, fi nanciado em parte pela FAPESP, que catalogou os genes ativos da cana-de-

açúcar. Para dar os próximos passos com segurança, a geneticista Marie-Anne Van Sluys, da Universidade de São Paulo (USP), organizou uma reunião entre pesquisadores brasileiros e inter-nacionais no Workshop de Genômica da Cana, realizado na FAPESP nos dias 4 e 5 de agosto. Parte dos convidados são pesquisadores dos Estados Unidos e da França com experiência em projetos genômicos de outras gramíneas, família que inclui a cana, o sorgo, o milho e o arroz. “Os erros e os acertos desses projetos nos ajudarão a avançar mais depressa”, explica Marie-Anne.

A história da cana-de-açúcar é lon-ga e deu origem a um genoma com-plexo. Já na Antiguidade os asiáticos mastigavam as hastes doces da espécie Saccharum offi cinarum. Mas quando a população aumentou e chegou a era da agricultura em ampla escala foi preci-so tornar mais efi ciente a produção do caldo doce. A solução foi cruzar a es-pécie original com uma mais resistente a doenças, pragas e condições climáti-cas adversas: Saccharum spontaneum. Em seguida, ao longo dos séculos os agricultores selecionaram plantas mais resistentes e que produziam mais açú-car, dando origem à planta que desde o século XVI é importante para a eco-nomia brasileira. O genoma refl ete essa história de cruzamentos e seleção de características: há cerca de dez cópias de cada gene, em vez do par que carac-teriza a maior parte dos animais.

Entre as várias cópias dos genes estão os elementos de transposição, trechos de DNA que se duplicam e mudam de lugar no genoma. O gru-po de Marie-Anne vem seguindo esses fragmentos errantes de DNA, até recen-temente considerados nocivos ao orga-nismo. A equipe da USP seqüenciou todos os elementos de transposição en-contrados e verifi cou que alguns deles existem também no arroz, que há 50 milhões de anos segue uma trajetória evolutiva independente da cana. “Isso signifi ca que são antigos na evolução das gramíneas, portanto não devem ser

nocivos”, conclui a geneticista. Outro indício de que os elementos de trans-posição têm participação benéfi ca na biologia da planta é que são, em mui-tos casos, tão ativos quanto os demais genes. O grupo continua em busca de descrever essas funções.

Ciência aplicada - Conhecer em de-talhe o genoma da cana não é mera curiosidade. A cada ano, o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC) testa 1 milhão de mudas em busca de plantas mais produtivas do que as existentes. É um processo lento: demora 12 anos para que, desse imenso canavial, surjam duas ou três variedades promissoras.

A pesquisa genômica agiliza essa busca ao fornecer listas de genes ativos da cana-de-açúcar – os mapas funcio-nais, que podem ajudar a reduzir à me-

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que fazer seu próprio mapa para a va-riedade que estuda.” Para facilitar o tra-balho, ela e Garcia publicaram no ano passado um programa de computador para construção de mapas genéticos que também já foi usado para outras plantas como o maracujá e a laranja.

Para Anete, reunir-se com pesqui-sadores internacionais com experiência em outros sistemas é uma oportuni-dade de delinear estratégias para con-tinuar o seqüenciamento do genoma da cana, além de abrir caminhos para estabelecer colaborações com aqueles que usam tecnologias ainda não com-pletamente conhecidas ou disponíveis no Brasil. Com experiência no genoma do sorgo, o geneticista Andrew Pater-son, da Universidade Cornell, nos Es-tados Unidos, afi rma que seu trabalho pode ser útil para pesquisas em cana.

“A grande vantagem do sorgo é que não passou pelas duplicações do genoma e por hibridização, como a cana, por isso tem um genoma muito mais simples”, explica. Isso faz com que o genoma do sorgo ainda tenha uma organização mais próxima à de seu ancestral, en-quanto a cana sofreu embaralhamen-tos causados pelas duplicações e pelos elementos de transposição.

Projetos não faltam entre os pes-quisadores brasileiros envolvidos nas pesquisas canavieiras, que contam com fi nanciamento dentro do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), lançado em julho. Mas, para levar a cabo uma tarefa de tal monta, a melhor estratégia é mesmo reunir esforços e mentes. ■

Maria Guimarães

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tade o número de clones analisados pe-lo CTC. Um grande avanço nessa área vem da parceria entre os geneticistas Anete Pereira de Souza, da Universida-de Estadual de Campinas (Unicamp), e Antonio Augusto Franco Garcia, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, que no ano passado publicaram na revista Molecu-lar Breeding o primeiro mapa funcional da cana-de-açúcar. Eles descreveram mais 400 marcadores genéticos funcio-nais, em artigo em processo de publi-cação. São partes do DNA responsáveis por produção de sacarose, resistência a doenças e outras características es-senciais para o valor econômico das plantas. “Estamos fornecendo essas informações para toda a comunidade mundial que trabalha com cana-de-açúcar”, conta Anete. “Cada grupo terá

Extraindo o caldo: pesquisa genômica revela as riquezas da cana-de-açúcar

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GEOGRAFIA

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águas de um rioA busca da nascente revela as peculiaridades do rio Amazonas, agora o mais longo do mundo

Em algumas semanas, Paulo Ro-berto Martini contará a outros geólogos em um congresso na capital de Cuba, Havana, como ele e sua equipe do Instituto Nacional de Pesquisas Espa-ciais (Inpe) concluíram que o

rio Amazonas pode ser o mais extenso do mundo. Por meio de imagens de satélite e levantamentos de campo, ve-rifi caram que ele deve ter exatos 6.992 quilômetros, 140 a mais que o Nilo, durante séculos considerado o mais longo. Martini provavelmente ouvirá sugestões de ajustes nas medidas, mas difi cilmente terá tempo para apresentar as outras descobertas sobre o modo de funcionamento de um rio de muitas personalidades, ora ágil e impetuoso, ora lento e sereno.

Um rio quase sempre exagerado: nasce como um fi o de água que escorre em meio de rochas a 5.500 metros de altitude em um ponto próximo de uma montanha conhecida como o nevado Mismi, nos Andes peruanos, forma ca-choeiras monumentais e acolhe águas turvas, cristalinas e escuras de outros 7 mil rios. É eixo de uma bacia hidro-gráfi ca do tamanho de dois Méxicos, que despeja no Atlântico 3 milhões de toneladas de sedimentos por dia, como se corroesse e carregasse em quase um mês um morro como o Pão de Açúcar, a rocha mais famosa do Rio de Janeiro.

“O Amazonas é mais do que um rio”, pensa Martini, que aprendeu com sua equipe a entender e admirar o rio enquanto procuravam a nascente.

“É um monumento vivo, um agente planetário.” Por enquanto o rio que aparentemente não fala pode apenas insinuar o que pretende. Ao buscar a trajetória mais longa possível para as águas do Amazonas e do Nilo com base no mesmo banco de imagens de dois satélites, o sino-brasileiro Cbers e o norte-americano Landsat, Marti-ni notou que a possível nascente do Amazonas encontra-se a menos de 250 quilômetros do Pacífi co, como se pre-tendesse unir os dois oceanos e rasgar a América do Sul.

As primeiras águas já começam a entalhar as rochas íngremes mal des-cem dos Andes como neve derretida. Seguem suaves nos primeiros 100 qui-lômetros cortando planícies andinas quase desérticas com os nomes de Llo-queta e Ene. Mais adiante formam um riozinho que encorpa, parece acordar e, com o nome de Tambo, torna-se um rio de corredeiras que desabam afoitas do alto da montanha. Prossegue ago-ra sinuoso com o nome de Apurimac, caindo por mais 150 quilômetros de cascatas e cachoeiras. “O volume de sedimentos retirados dos Andes e depositados na bacia amazônica faz desta garganta uma das mais erodidas do planeta”, conta Martini. O rio en-tão se infi ltra e serpenteia pelas terras baixas tomadas pela Floresta Amazô-nica, já com o nome de Ucayali, mais e mais caudaloso à medida que ganha as águas de outros rios. Em Amazonas – Águas, pássaros, seres e milagres, o poeta Thiago de Mello apresenta essa

Carlos Fioravanti | fotos Oton Barros

Jardins inundados: ilhotas de matéria orgânica nos trechos iniciais do Amazonas, na cordilheira dos Andes

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imensa planície verde, “ramifi cada em milhares de caminhos líquidos”, como um “mágico labirinto que de si mesmo se recria incessante”. O Amazonas, para ele, é a pátria da água.

Eis finalmente o Amazonas que conhecemos: gordo, sonolento, en-volvente. O agora convertido em rio de planície escapa de um imenso lago do Ucayali e segue a leste, entrando no Brasil com outro nome, Solimões, que vale por mais 1.700 quilômetros, até as águas barrentas se entenderem com as águas cor de coca-cola do rio Negro, após uma longa negociação que começa em Manaus; sai daí, fi nalmente, o Ama-zonas. O rio calmo é ainda inquietante, porque sua habilidade de deslizar em um terreno tão plano a uma velocidade de 6 quilômetros por hora a partir de Tabatinga, a primeira cidade brasileira de seu percurso, intrigou a equipe do Inpe por muito tempo. “Pelo tamanho dele, deveria ser muito mais lento”, diz Martini, que talvez tenha encontrado uma explicação depois de muita con-versa com Valdete Duarte, Egídio Arai, Janari de Moraes e Oton Barros, para ci-tar apenas os colegas mais próximos.

São os estreitos, eles concluíram, que controlam o rio e o fazem andar rápido. Logo depois de Tabatinga, a

distância entre as margens do rio é de 2,2 quilômetros. Pouco depois, em dez minutos de barco, o rio se alarga e a largura entre as margens passa a 12 qui-lômetros. Mais adiante, outro estreito, em São Paulo de Olivença, a três horas de barco, com 2,5 quilômetros de lar-gura, depois vêm outro e mais outro, entremeados por áreas mais largas até o último estreito, em Óbidos, no Pa-rá, com apenas 1.800 metros entre as margens, que comprimem um volume impressionante de água, 200 mil metros cúbicos por segundo, o sufi ciente para encher a Baía de Guanabara em três minutos e meio.

Sob as ordens dos Andes – “O rio se estreita e se espraia, acelerando ou represando as águas, como se cada seg-mento dele próprio fosse uma bacia hi-drográfi ca”, comenta Martini. Forma-dos por rochas elevadas, os estreitos que defi niram o trajeto do rio funcionam como as válvulas das veias que contro-lam o fl uxo do sangue no corpo huma-no. Possivelmente foi na época em que se formaram as bases geológicas desses estreitos, há cerca de 6 milhões de anos, que o rio inverteu seu trajeto, outro-ra rumo ao Pacífi co, e embicou para o Atlântico, cedendo às novas ordens

dos Andes que haviam recomeçado a crescer e mudaram o trajeto de muitos outros rios sul-americanos.

Mesmo no Brasil o Amazonas não deixa de ser um rio andino, rico em se-dimentos trazidos das montanhas do leste até encontrar as águas do Xingu, no Pará, já próximo da foz. Nos arredo-res do arquipélago de Marajó, formado pelos sedimentos do Amazonas, parte da terra dos Andes cessa a longa jorna-da, mergulha no Atlântico e pressiona a matéria orgânica de origem marinha que em alguns milhões de anos podem se transformar em petróleo. Se caírem nas correntes marinhas, os sedimentos mais fi nos do que areia podem chegar ao litoral do Suriname, a 2 mil quilômetros da foz, e fertilizar plantações de arroz.

Nos meses de cheia, quando as águas sobem em média 18 metros, o Amazo-nas invade a fl oresta, faz as madeiras apodrecerem e libera uma quantida-de colossal de gás carbônico, um dos responsáveis pelo aquecimento global. “Parte do carbono que falta pode estar sendo gerada nas várzeas durante as cheias do Amazonas”, diz Martini, com base em estudos da Nasa que indicam que a cada ano as cheias do Amazonas geram 6 gigatoneladas de gás carbônico, o equivalente a 60 milhões de elefantes

Entre um precipício e uma lagoa: o Amazonas se formando a 5.200 metros de altitude

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mortos deixados a céu aberto. Em outro fenômeno próprio deste rio, a água das cheias deslocando-se ao longo da calha infi ltra-se pelos canais subterrâneos e faz quilômetros de terras próximas às margens afundar quase 8 centímetros, de tão encharcadas, de acordo com medições realizadas nos arredores de Manaus. Mesmo as rochas que formam o leito cedem sob o peso da água.

De Nova York a Roma – Antes de ser candidato a rio mais extenso do mun-do, que se colocado em linha reta iria da cidade de Nova York a Roma, o Amazo-nas já era o rio de maior vazão de água que, somado com os afl uentes, contém 20% de toda a água doce da Terra. É tanta água que, estando lá no meio, não conseguimos ver as margens. “As águas do Amazonas sobem no horizonte, e a gente afunda, como se estivesse no mar”, conta Martini, hoje com 60 anos, que viu o rio pela primeira vez quando tinha 22 anos, de um cais de Belém, quando ainda estava no terceiro ano do curso de geologia. Achou que era o mar. Mas como não se deixar iludir por um rio cujas margens desaparecem, a 10 quilômetros uma da outra?

Só há 15 anos é que Martini decidiu sair em busca da nascente do Amazonas.

Ele e os colegas do Inpe também des-confi avam que o ponto de partida do rio não estava no norte, mas no sul do Peru. A análise das imagens de satélite avançou a ponto de indicar em 1995 que o Amazonas seria, sim, o mais extenso, com 7.100 quilômetros, pouco mais de 100 quilômetros a mais que a medição atual, mas depois entrou em um ritmo mais lento, por falta de tempo, gente, di-nheiro, equipamentos ou informação.

Há dois anos as circunstâncias come-çaram a se tornar novamente favoráveis. Foi quando o grupo do Inpe conheceu um arquivo de imagens da Nasa cha-mado Geocover, que ajuda a analisar e a corrigir imagens de satélite e seria usado para mapear áreas desmatadas da Amazônia em conjunto com pesquisa-dores de instituições peruanas. Martini voltou então a se entender com o rio e, em maio do ano passado, recebeu o con-vite para participar de uma expedição à nascente do Amazonas, organizada pelos produtores de programas de TV Paula Saldanha e Roberto Werneck, que visitaram as primeiras águas do Ucayali em 1994 e pretendiam voltar, agora em uma expedição formal, com represen-tantes do Inpe, da Agência Nacional das Águas (Ana), do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística (IBGE) e do

Instituto Geográfi co Nacional (IGN) do Peru. Martini tinha assumido outro compromisso que impedia sua partici-pação, lembrou que subir os Andes era perigoso (Janari de Moraes, alpinista experiente, havia morrido meses antes enquanto percorria uma trilha inca nos Andes peruanos) e, mesmo apaixonado pelo rio, desistiu.

Duas semanas depois, quem embar-cou para o Peru no lugar de Martini foi outro integrante da equipe, Oton Bar-ros, engenheiro agrônomo de 42 anos e esportista amador que percorre 50 qui-lômetros de bicicleta sempre que pode. Por ter vivido em Manaus dos 9 aos 21 anos e percorrido a Amazônia, sempre quis ver onde o Amazonas nascia. Mas o que sentiu no alto dos Andes, em sua primeira aventura como alpinista, em vez do encanto que esperava, foi um enjôo permanente e uma leve ressaca por causa da altitude e por ter comido muito pouco nos três dias subindo até lá: a maioria dos quase 20 integrantes do grupo já havia tido diarréia, por terem estranhado a alimentação nas monta-nhas, com molhos à base de creme de leite. Estava tenso e cansado sob o frio e o vento forte. “É um lugar inóspito, que inspira respeito e medo”, descreve Barros. Por causa do ar pobre em oxi-gênio, sentia o cérebro funcionando em câmera lenta.

A expedição ajudou a estabelecer o consenso entre os especialistas do Brasil e do Peru de que o rio Amazonas nasce nas vertentes do rio Ucayali. O ponto exato de que partem as águas do maior curso de água do mundo talvez ainda custe a ser fi xado. “É muito difícil defi -nir qual a água principal, já que a água escorre de tudo que é lado e só vai virar um riozinho três quilômetros abaixo”, conta Barros. Os peruanos já estabele-ceram por lei que a nascente encontra-se em uma quebrada chamada Carhua-santa, um vale em forma de U com uma base de 300 metros. Barros e a equipe do Inpe ainda analisam a possibilidade de a nascente estar em outra quebrada, a Apacheta, a um quilômetro de distân-cia, com uma área maior de captação de água e turfas e liquens que armazenam água o ano inteiro. Dilema difícil: aci-ma da Carhuasanta ergue-se o nevado Mismi, uma montanha sagrada para os peruanos desde os tempos em que os incas viviam por lá. ■

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internetwww.scielo.org

Notícias

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de Janeiro, e Philippe Michelon, da Université d’Avignon et des Pays de Vaucluse, apresenta o desenvolvimento de uma meto-dologia de planejamento logístico para prevenção e combate à dengue, baseada em sistemas Geográfi cos de Informação e sistemas de Apoio a Decisão com modelos incorporados de otimização. É apresentada também uma ferramenta compu-tacional, baseada em web, desktops e palms e poquets, capaz de aplicar tal metodologia. Estudos e testes piloto, nas cidades de Sobral e Fortaleza, no Ceará, foram realizados. Os resultados dessa aplicação computacional forneceram, após os testes, uma melhor visualização da dimensão do problema de coordenação do combate para os gestores da dengue, ou seja, alcançaram êxito pleno nesses experimentos pioneiros.

Pesquisa Operacional – v. 28 – nº 1 – Rio de Janeiro – jan./abr. 2008

■ Produção científi ca

Motivação para escrever

O trabalho “Por que publicar?”, de Fabio Rubio Scarano, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, opina acerca das motivações de autores e periódicos para publicar. Motivações pessoais e institucionais são listadas e discutidas e, em relação às ciências da biodiversidade, é proposto que uma motivação nacionalista é também pertinente em países ricos em biodiver-sidade como o Brasil. A combinação de curiosidade e compe-titividade leva ao alcance de melhores resultados. Finalmente, são discutidas originalidade e inovação sob uma perspectiva pós-moderna, e como o mero ato da redação científi ca pode ser o início de revoluções tanto científi cas quanto sociais.

Revista Brasileira de Botânica – v. 31 – nº 1 – São Paulo – jan./mar. 2008

■ Administração

Benefícios da TI

A tecnologia de informação (TI) é um dos componentes mais importantes do ambiente empresarial atual, oferecendo grandes oportunidades para as empresas que têm sucesso no aproveitamento de seus benefícios. O estudo “Benefícios do uso de tecnologia de informação para o desempenho empre-sarial”, de Alberto Luiz Albertin e Rosa Maria de Moura Al-bertin, da Fundação Getúlio Vargas/ Escola de Administração

■ Ensino médico

Angústia de estudante

O artigo “A angústia na formação do estudante de medi-cina”, de Alberto Manuel Quintana, Arnaldo Teixeira Ro-drigues, Dorian Mônica Arpini, Luis Augusto Bassi, Patrícia da Silva Cecim, da Universidade Federal de Santa Maria, e Maúcha Sifuentes dos Santos, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, objetivou conhecer as situações que se apresentam ao estudante de medicina como angustiantes durante a sua formação e os fatores que ele identifi ca como originários desse sentimento. Foi empregada uma abordagem etnográfi ca, utilizando-se entrevistas semi-estruturadas, ob-servação e grupos de discussão. Os dados foram analisados por meio de análise de conteúdo. Os alunos identifi caram a dissociação entre o ciclo básico e o profi ssionalizante como responsável pela angústia suscitada em face do primeiro contato com o paciente, além de apresentarem estresse psi-cológico por terem que trabalhar com a dor e o sofrimento. Os discentes identifi caram também como fator estressante o fato de que sua aprendizagem implica a utilização de outro ser humano. Além disso, em algumas situações, a difi culdade de relacionamento com os professores é apontada como geradora de angústia.

Revista Brasileira de Educação Médica – v. 32 – nº 1 – Rio de Janeiro – jan./mar. 2008

■ Gestão em saúde

Combate à dengue

O uso do conhecimento da ciência moderna no sentido de aprimorar os esforços de combate a doenças transmiti-das por animais, denominadas zoonoses, em regiões tropicais é uma preocupação considera-da de grande relevância pelos gestores da Organização Mun-dial da Saúde (OMS). O artigo “Integração de sistemas computacionais e modelos logísticos de otimização para prevenção e combate à dengue”, de Marcos José Negreiros, Airton Fontenele Sampaio Xavier, José Wellington de Oliveira Lima, da Universidade Estadual do Ceará, Adilson Elias Xavier e Nelson Maculan, da Universidade Federal do Rio

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de Empresas de São Paulo, apresenta as dimensões do uso de TI e a relação entre os benefícios oferecidos pelo seu uso e o desempenho empresarial. A metodologia utilizada é o estudo de caso numa empresa líder de seu setor, com investimento signifi cativo em TI e que, a partir do estudo, passou a utilizar tal instrumento para a avaliação e acompanhamento dos gastos e investimentos nessa tecnologia.

Revista de Administração Pública – v. 42 – nº 2 – Rio de Janeiro – mar./abr. 2008

■ Oftalmologia

De olho nas informações

Os objetivos do estudo “Nomenclatura anatômica em of-talmologia”, de Ricardo Lamy e Adalmir Morterá Dantas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é informar os oftalmo-logistas sobre as diferenças existentes entre as listas em língua inglesa e portuguesa de termos equivalentes para as estruturas do olho, ambas aprovadas pela Comissão Federativa Interna-cional de Terminologia Anatômica. Também visa apresentar os termos anatômicos incluídos na lista de descritores publicada pela Biblioteca Nacional de Medicina Norte-Americana e pro-por uma lista de termos de uso comum pelos oftalmologistas.

Arquivos Brasileiros de Oftalmologia – v. 71 – nº 3 – São Paulo – maio/jun. 2008

■ Antropologia

Reavaliação de Freyre

Após um longo período, durante o qual sua obra foi negli-genciada ou desprezada pela academia brasileira e admirada principalmente por não-brasileiros com pouco conhecimento sobre o Brasil, uma reavaliação das idéias e do estilo de Gilberto Freyre teve início durante a década de 1990, separando o caráter incisivo de algumas de suas idéias do caráter superfi cial de outras e tentando distinguir fatos de mitos criados sobre ele. O estudo “Gilberto Freyre: a reavaliação prossegue”, de David Lehmann, da Universidade de Cambridge, Reino Unido, descobre a he-terogeneidade da leitura do jovem Freyre, que pode explicar por que ele desconcertou seus leitores por tanto tempo, já que era difícil colocar um simples rótulo nesse indivíduo que era claramente anti-racista, embora também conservador.

Horizontes Antropológicos – v. 14 – nº 29 – Porto Ale-gre – jan./jun. 2008

■ Energia

Poder dos ventos

Diversos estudos realizados nos últimos anos têm aponta-do as implicações e impactos socioambientais do consumo de energia. As fontes renováveis são apresentadas como a principal alternativa para atender as demandas da socie-

dade com relação à qualidade e segurança do atendimento da necessidade de eletricidade com a redução dos danos ambientais decorrentes do consumo de energia. O artigo “O aproveitamento da energia eólica”, de F.R. Martins, R.A. Guarnieri e E.B. Pereira, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), apresenta uma revisão dos conceitos físi-cos relacionados ao emprego da energia cinética dos ventos na geração de eletricidade. Ini-cialmente, o estudo descreve a evolução do aproveitamento da energia eólica, incluindo dados e informações sobre a situação atual do uso desse re-curso para geração de energia elétrica. A modelagem e a pre-visão dos ventos são discutidas apresentando os principais resultados obtidos com as me-todologias empregadas no Brasil. Os aspectos relacionados à estimativa e previsão da potência eólica são abordados ressaltando a importância de uma base de dados de vento de qualidade para a determinação da confi abilidade dos resultados fornecidos pelos modelos numéricos.

Revista Brasileira de Ensino de Física – v. 30 – nº 1 – São Paulo – 2008

■ Economia

Emprego de jovens

Após a estabilização da infl ação com o Plano Real em 1994, a taxa de desemprego dos jovens no Brasil aumentou signifi ca-tivamente em relação aos adultos. De acordo com o argumento proposto no artigo “Desemprego dos jovens no Brasil: os efeitos da estabilização da infl ação em um mercado de trabalho com escassez de informação”, de Mauricio Cortez Reis e José Márcio Camargo, da Fundação Getúlio Vargas, a maior rigidez salarial provocada pela estabilização da infl ação e o elevado grau de incerteza dos empregadores sobre a produtividade dos tra-balhadores mais jovens foram importantes para explicar esse resultado. Como parte das informações sobre a produtividade é revelada com a experiência no mercado de trabalho, a estabi-lização deve ter limitado a capacidade das fi rmas de ajustarem o salário real à medida que adquirem mais informações sobre os trabalhadores jovens. Com isso, os ajustes nas situações em que a produtividade do trabalhador se revela inferior ao salário real passam a ser feitos através do emprego. Usando dados da PNAD para o período de 1981 a 2002 são encontradas evidên-cias consistentes com esse argumento, já que reduções na taxa de infl ação parecem ter aumentado o desemprego e reduzido a duração média do emprego de todos os grupos etários, mas de maneira mais acentuada para os trabalhadores jovens.

Revista Brasileira de Economia – v. 61 – nº 4 – Rio de Janeiro – out./dez. 2007

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> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão dis-poníveis no site de Pesquisa FAPESP, www.revistapesquisa.fapesp.br

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78 ■ AGOSTO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 150

LINHA DE PRODUÇÃO MUNDO>>

muito leve de apenas 30 gramas e com potência de 12 watts, que gera energia elétrica a partir do hidrogênio. Para conseguir criar um artefato tão

A bactéria Escherichia coli

pode se tornar uma fi el trans-

formadora de glicerina, um

subproduto da fabricação do

biodiesel, em etanol ou em

formiato e succinato, substân-

cias químicas usadas na in-

dústria. A descoberta é de

pesquisadores da Universida-

de Rice, nos Estados Unidos,

e deve resolver um problema

dos produtores norte-ameri-

canos e brasileiros (leia em

Pesquisa FAPESP n° 149), oca-

sionado pelo excesso de glice-

rina, também usada na indús-

tria química mas já com o

mercado saturado. Os pesqui-

sadores liderados pelo profes-

sor Ramón González desen-

volveram um novo processo

de fermentação que usa a

bactéria para produzir etanol

mais barato que o extraído do

milho, nos Estados Unidos,

além de outros produtos quí-

micos. Os trabalhos científi cos

estão nas revistas Current Opinion Biotechnology e Metabo-

lic Engineering e a tecnologia já está licenciada para a Glycos

Biotechnologies, uma nova empresa que tem González e o

pesquisador Syed Yazdani como sócios. As pesquisas foram

fi nanciadas pelo Departamento de Agricultura dos Estados

Unidos e pela Fundação Nacional de Ciência (NSF).

> Helicópteros multimissão

Um pequeno helicóptero não tripulado, de apenas 20 centímetros, deverá se transformar no mais novo aliado das autoridades de vários países em operações as mais variadas, como na busca por sobreviventes em escombros de terremotos, na supervisão do tráfi co de drogas ou na investigação

de terrenos contaminados por agentes químicos. A novidade do aparelho é que ele será alimentado por meio de uma célula a combustível, equipamento

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OGlicerina do biodiesel: aproveitar o excesso

> Coletores nas janelas

Pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, criaram um sistema de energia solar que deve baratear a produção de eletricidade num ambiente residencial. No lugar das placas coletoras no telhado, que encarecem o sistema, a captação de energia será feita pelas janelas do imóvel. Para isso, os pesquisadores propõem o emprego de um concentrador formado por uma cobertura de tintas especiais sobre o vidro para absorver a energia. As moléculas da tinta absorvem a luz solar e a reenviam em forma de diferentes ondas eletromagnéticas para células solares instaladas na estrutura lateral da janela onde fi ca também um pequeno dispositivo semicondutor que produz a eletricidade. De acordo com os autores da pesquisa, liderada pelo engenheiro Marc Baldo, o concentrador é capaz de gerar dez vezes mais energia elétrica que os equipamentos tradicionais. Para transformar o conhecimento em produto, os pesquisadores criaram a empresa Covalent Solar.

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PESQUISA FAPESP 150 ■ AGOSTO DE 2008 ■ 79

pequeno, cientistas da Universidade Técnica de Berlim, em conjunto com colegas do Instituto Fraunhofer, da mesma cidade, substituíram as placas de metal geralmente usadas no desenvolvimento de células a combustível por lâminas de plástico extremamente fi nas. O próximo desafi o do grupo é ajustar a produção de hidrogênio às necessidades energéticas de cada situação de vôo.

> Grafeno, o resistente

O material mais resistente já estudado é o grafeno. Esse é o resultado a que chegaram os pesquisadores da Escola de Engenharia e Ciência Aplicada (Seas, na sigla em inglês) da Universidade Colúmbia, nos Estados Unidos. O grupo de pesquisadores liderados por Changgu Lee demonstrou que esse material é 200 vezes mais duro que o aço. O grafeno é formado por um fi no fi lme de átomos de carbono arranjado em forma hexagonal e similar a uma colméia. Ele tem

duas dimensões e pode ser enrolado como um nanotubo, e todos os átomos estão expostos na superfície em contato com outras substâncias. Os pesquisadores mostraram em microscópios de força atômica o que se estimava em modelos teóricos. Assim, eles abrem caminho para uma maior aceitação do grafeno na fabricação de nanoartefatos ou aplicados em materiais para deixá-los mais robustos e resistentes à oxidação e à fadiga.

É difícil imaginar, mas os teclados de com-

putadores podem “esconder” cerca de 10

milhões de microorganismos, número 400

vezes maior do que a média encontrada em

assentos sanitários. Um equipamento com esse nível de contaminação

se torna um problema dentro de um hospital. Para reduzir contamina-

ções em instituições de saúde, a fabricante norte-americana Seal Shield

lançou uma família de teclados com proteção antimicrobiana e uso de

nanotecnologia. Seus principais diferenciais são a resistência à água,

o que permite a lavagem, e a presença de uma camada protetora anti-

bacteriana à base de prata. Segundo a Seal Shield, o metal é integrado

ao plástico criando uma solução antimicrobiana inorgânica, segura e

efetiva, capaz de oferecer proteção contra vários microorganismos,

como o superbug MRSA (sigla em inglês para estafi lococo áureo resis-

tente à meticilina), que apresenta elevada resistência a antibióticos.

TECLADO SEMBACTÉRIAS

Uma nova forma de

moldar metais nu-

ma escala de nanô-

metros, igual a um

milímetro dividido

por 1 milhão de ve-

zes, foi desenvolvida

por pesquisadores

da Universidade de

Cornell, nos Estados

Unidos. Eles criaram

um método para “au-

tomontar” materiais

metálicos em confi -

gurações complexas

com detalhes estru-

turais cerca de 100

vezes menores do

que uma bactéria.

Durante o processo,

eles utilizam recursos

da nanometalurgia para guiar metais para a forma desejada

usando polímeros. As aplicações da nova técnica incluem a fa-

bricação de catalisadores, substâncias para acelerar reações

químicas, mais efi cientes e baratos para células a combustível

(aparelho que transforma hidrogênio em eletricidade), além

de servir na construção de delicadas estruturas metálicas

sobre superfícies capazes de transportar mais informações

no interior de microchips. A “automontagem” começa com o

recobrimento de nanopartículas metálicas de cerca de 2 na-

nômetros (entre 10 e 20 átomos de diâmetro) por um material

orgânico conhecido como ligante. Em seguida, os átomos de

metal são dissolvidos em uma solução contendo polímeros

em estruturas feitas de duas longas cadeias diferentes de

moléculas conectadas entre si. O material é aquecido a

altas temperaturas para conversão dos polímeros em uma

armação de carbono, que é resfriada em seguida. O suporte

de carbono é, por fi m, lixiviado (lavado) com ácido, deixando

intacta a estrutura de metal sólido.

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Nanoporos na estrutura de platina

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80 ■ AGOSTO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 150

LINHA DE PRODUÇÃO BRASIL>>

Transpor as fases da

colheita de cana-de-

açúcar e da produção

de etanol, o álcool

combustível, para uma

competição com pe-

quenos robôs foi o de-

safio proposto pela 19ª

edição da Competição

de Design Internacio-

nal (IDC na sigla em

inglês), a Robocon’08.

Realizado em julho na

Escola Politécnica da

USP, o evento reuniu

estudantes de engenharia de seis países – Estados Unidos,

Japão, Coréia, Tailândia, França e Brasil – vindos de universi-

dades como Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT)

e Instituto de Tecnologia de Tóquio (Titech), do Japão. As

equipes foram formadas obrigatoriamente com estudantes de

diferentes nacionalidades. Eles tinham a missão de construir e

levar os robôs a cortar a cana, identificada por pequenos tubos

verdes, levar o material para a usina e transportar tonéis de

álcool até um barco localizado num porto simulado. Além da

capacidade técnica demonstrada na construção e operação

dos robôs, o IDC contribui na formação de engenheiros glo-

bais, que possam trabalhar em equipes com pessoas de vários

países. Essa foi a segunda competição realizada no Brasil, a

anterior aconteceu em 1998.

Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara e pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com apoio da FAPESP.

> Olimpíada da inovação

Aproveitando o clima de Olimpíada, a Universidade de São Paulo (USP) também criou a sua competição interna. Mas nada de esportes, o tema é inovação. Até 5 de setembro, toda a comunidade USP, formada por cerca de 80 mil alunos, 5,3 mil professores e 15 mil funcionários, pode apresentar à Agência USP de

> Proteção hospitalar

O selo de proteção antimicrobiana NanoxClean, fruto de nanotecnologia desenvolvida pela empresa Nanox, de São Carlos, no interior paulista, será utilizado pela linha hospitalar da Marcatto Fortinox, fabricante de mais de 40 produtos de aço inoxidável, como bandejas, bacias, cubas e estojos, entre outros. A função bactericida é propiciada pela incorporação de nanopartículas de dióxido de titânio, depositadas nos materiais em forma de uma camada fi na e transparente. Os produtos que recebem a nanotecnologia são certifi cados por laboratórios credenciados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que seguem normas internacionais. A tecnologia foi desenvolvida pela empresa em parceria com o Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos, formado pela Universidade

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Robôs simulam o corte da cana com tubos verdes e transportam álcool em tanques de metal

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Inovação projetos de planos de produtos que possam interessar a uma empresa. “Queremos incentivar a colaboração entre a academia e o mercado”, diz o professor

José Antônio Siqueira, da Escola Politécnica e coordenador da Olimpíada USP de Inovação. “Muito conhecimento é gerado na universidade e nós queremos

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PESQUISA FAPESP 150 ■ AGOSTO DE 2008 ■ 81

torná-lo disponível para a sociedade.” Os projetos podem ser inscritos em sete áreas: saúde, agronegócio, tecnologias sociais e ambientais, tecnologia de processos industriais, tecnologia de equipamentos domésticos, biotecnologia e tecnologias da informação e comunicação. Em cada área serão ofertados aos primeiros colocados R$ 5 mil, R$ 2 mil e R$ 1 mil. Entre todos os premiados, um será escolhido para ganhar um automóvel Prisma,da General Motors, um dos patrocinadores. Mais informações no site: www.inovacao.usp.br/olimpiada.

> Argamassa feita de resíduos

A água utilizada no corte das rochas ornamentais no município de Santo Antônio de Pádua, no Rio de Janeiro, está sendo reaproveitada no processo de produção e o pó residual transforma-se em 20 mil toneladas de argamassa por mês na fábrica Argamil, do Grupo Mil, inaugurada em junho. A tecnologia foi desenvolvida por meio de uma parceria entre o Instituto Nacional de Tecnologia (INT) e o Centro

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de um acordo assinado entre a empresa e o Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe) da Unicamp, que vai estudar e implementar as inovações na moto.

Silenciosa, não poluente e autonomia

futura de 150 km

de Tecnologia Mineral (Cetem), com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). O Cetem desenvolveu o processo de separação dos resíduos da água, captando-os em tanques, o que permite o acúmulo do pó fi no para utilização posterior.

> Moto na tomada

Causou surpresa a apresentação de uma motoneta elétrica na Universidade Estadual de Campinas, em julho, capaz de gastar apenas R$ 0,01 por quilômetro (km) rodado com autonomia para 50 km. A moto é da CPFL Energia e vai passar por modifi cações que aumentem a autonomia para 150 km e a façam gastar apenas duas horas na recarga contra quatro da versão atual. Ela faz parte

Reator de produção de biodiesel

A usina de biodiesel de

Candeias, na Bahia, da

Petrobras, com capa-

cidade para produzir

57 milhões de litros

de bicombustível por

ano e beneficiar a

agricultura familiar

da região, entrou em

operação no fi nal de

julho. Até agora estão

cadastrados 28.922

agricultores de 215

municípios da Bahia e

49 de Sergipe para o

fornecimento de olea-

ginosas. A estimativa

é que os agricultores

possam colher e fornecer à

empresa, ainda este ano, 48

mil toneladas de grãos, dos

quais 30 mil toneladas de ma-

mona e 18 mil de girassol. Para

garantir maior produtividade,

a Petrobras forneceu para os

agricultores 205 toneladas de

sementes de mamona e giras-

sol certifi cadas pela Empresa

Brasileira de Pesquisa Agrope-

cuária (Embrapa). A empresa

também está comprando óle-

os e gorduras residuais pro-

venientes dos processos de

fritura de alimentos. U

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82 ■ AGOSTO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 150

QUÍMICA

A rota inversa da reciclagemGarrafas plásticas descartadas transformam-se em matérias-primas derivadas de petróleo

Dinorah Ereno

TECNOLOGIA>

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PESQUISA FAPESP 150 ■ AGOSTO DE 2008 ■ 83

Um retrato do desperdício no Brasil descortina-se na análise do lixo produzido em Indaiatuba, cidade de 175 mil habitantes na região de Campinas, feita durante um ano por pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Sorocaba, no interior de São Paulo. O levantamento revela que cerca de 90% dos resíduos poderiam ser uti-lizados e reciclados e apenas 10% das 135 toneladas de lixo produzidas diariamente, como fraldas descartáveis, lixo de banheiro, pilhas e ou-

tros materiais capazes de causar contaminação, teriam obrigatoriamente como destino o aterro sanitário. O estudo, publicado em dezembro de 2007 na revista Waste Management & Research, periódico ofi cial da Associação Internacional de Resíduos Sólidos, é parte de um projeto de desenvolvimento de processos alter-nativos de reciclagem de embalagens plásticas feitas a partir de poli (tereftalato de etileno), o conhecido PET das garrafas de refrigerante, água mineral e óleo de cozinha, coordenado pelo professor Sandro Mancini, da Engenharia Ambiental da Unesp Sorocaba, com fi nanciamento da FAPESP.

Três processos de reciclagem de plástico estudados pelo grupo de Mancini apresentaram resultados alentadores. Um deles propõe uma rota inovadora para a obtenção do ácido tereftálico – um dos reagentes importados utilizados na produção do PET – a partir de garrafas plásticas usadas e descartadas, uma matéria-prima barata e abundante. Dados da Associação Brasileira das Indús-trias Químicas mostram que em 2007 o Brasil importou 347.057 toneladas desse ácido, no valor de US$ 337,8 milhões. Tema da tese de doutorado de Mancini na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) sob orientação da professora Maria Zanin, que resultou em um depósito de patente, essa rota, um tipo de reciclagem química, foi combinada à reciclagem mecânica do PET, composta por moagem, M

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garrafas PET gigantes

nas margens do rio Tietê,

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84 ■ AGOSTO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 150

lavagem, secagem e reprocessamento. Durante o processo de lavagem com água foi adicionada soda cáustica. Na reciclagem química, o objetivo é forçar o plástico a ter uma reação contrária à ocorrida na sua formação. “Em vez de os derivados de petróleo serem polime-rizados para formação do plástico, utili-zamos reações de despolimerização para obter os derivados de petróleo como o ácido tereftálico”, explica o pesquisador. “É um novo sistema de obtenção de de-rivados de petróleo.”

Com a nova rota é possível conse-guir um material mais limpo, apropria-do para os processos de reciclagem me-cânica tradicionais de garrafas plásticas descartadas em que o material resultan-te é usado para fazer cordas, vassouras, carpetes e outros produtos. A combina-ção de água e soda cáustica provoca um descascamento da superfície do PET, que retém a maior parte das impure-zas presentes no material reciclado. “Os resultados foram muito bons, indican-do que 5% de remoção de material é sufi ciente para revelar uma superfície bem mais limpa”, relata Mancini. Para chegar a essa constatação, foram feitos vários ensaios, como análise elementar, viscosidade, microscopia eletrônica e cromatografi a gasosa. Os resultados mais evidentes são os de microscopia eletrônica, em que foi possível observar o ataque do reagente e a remoção da

superfície. “Quando utilizamos o recur-so de raio X do microscópio, pudemos fazer uma análise da composição de mi-núsculos pedaços da superfície e vimos a grande efi ciência da lavagem química na remoção de impurezas, muitas vezes impregnadas pela ausência de coleta seletiva, associadas a metais como alu-mínio, ferro, titânio, potássio, cálcio e

sódio.” O processo funcionou tanto pa-ra garrafas de refrigerante como para as de óleo vegetal usadas e descartadas.

No entanto, o estudo dos compos-tos orgânicos identifi cados nas embala-gens de óleo antes e depois da lavagem química apontou a necessidade de uma reciclagem diferenciada para a obtenção de produtos com a mesma qualidade dos provenientes de embalagens de re-frigerante. “A lavagem química foi boa, mas não perfeita, principalmente no ca-so das embalagens de óleo vegetal”, diz Mancini. Mesmo após esse procedimen-to, foram encontrados 19 compostos orgânicos dos 30 inicialmente identifi -cados dentro desse tipo de embalagem. O material removido na lavagem é o PET despolimerizado, de onde o ácido tereftálico pode ser obtido por meio de processos químicos e físicos, como dis-solução, acidifi cação e fi ltração.

Ácido puro – O segundo dos três pro-cessos estudados trata também da des-polimerização do PET via reciclagem química para a obtenção de ácido teref-tálico e de etilenoglicol, outro produto derivado do petróleo. No caso, com apoio dos professores Elidiane Rangel e Nilson Cruz, também da Unesp Sorocaba, foi utilizado um tratamento com plasma de ar atmosférico para deixar a superfície

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Câmara de plasma: gás para facilitar a lavagem das garrafas

Regras para alimentos

As embalagens de PET reciclado estão liberadas, desde abril deste ano, para acondicionar alimentos. O registro do produto na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é a principal exigência para a utilização do PET com essa fi nalidade. Além disso, o rótulo da embalagem deve conter o nome do produtor, o número de lote e a expressão PET-PCR, de pós-consumo reciclado. A norma da agência fundamentou-se no surgimento de novas tecnologias capazes de limpar e descontaminar esse tipo de material, independentemente do sistema de coleta. A liberação atende a uma exigência do Mercado Comum

do Sul (Mercosul), acertada entre os países membros em dezembro do ano passado. A decisão deverá contribuir para aumentar o índice de reciclagem das garrafas plásticas descartadas após o uso. Em 2006, das 378 mil toneladas (à base) de PET fabricadas no Brasil, 194 mil toneladas foram recicladas, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria do PET (Abipet) divulgados no fi nal do ano passado, para a produção de fi os, cordas e carpetes, por exemplo. As outras 184 mil toneladas contribuíram para aumentar o volume dos depósitos de lixo ou foram parar em córregos e rios ou outros locais inapropriados.

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PESQUISA FAPESP 150 ■ AGOSTO DE 2008 ■ 85

das garrafas plásticas mais receptiva à água usada no processo. Para formar o plasma, aplica-se uma determinada po-tência elétrica num gás sob baixa pressão. “O plasma ajudou a aumentar a veloci-dade da reação de hidrólise”, diz Manci-ni. Por esse processo, os pesquisadores conseguiram obter ácido tereftálico em quantidade sufi ciente e com alto grau de pureza, mas em relação ao etilenoglicol o estudo ainda não está encerrado. O grau de pureza do produto obtido está abaixo do esperado pelo grupo de pesquisa. “A nossa proposta é obter os dois derivados num estado tão puro quanto o do petró-leo, a ponto de eles poderem ser repoli-merizados para obtenção de novo PET que possa, inclusive, ter contato direto com alimentos”, diz Mancini. Para as embalagens recicladas serem utilizadas com essa fi nalidade, é preciso autorização da Agência Nacional de Vigilância Sani-tária (leia texto ao lado). Mesmo sem divulgação, o processo de obtenção dos

Desenvolvimento de processos alternativos de reciclagem de poli (tereftalato de etileno) proveniente de resíduos sólidos urbanos

MODALIDADE

Programa Apoio a Jovens Pesquisadores

CO OR DE NA DOR

SANDRO DONNINI MANCINI – Unesp

INVESTIMENTO

R$ 79.015,94 (FAPESP)

O PROJETO>

dois derivados do petróleo com utilização de plasma chamou a atenção de uma empresa do Paraná, mas ainda não há um contrato de repasse da tecnologia.

A reciclagem mecânica de PVC, sigla de poli (cloreto de vinila), com aplicação

de plasma de hexafl uoreto de enxofre, um tipo de gás, é o terceiro processo estudado pelo grupo. O tratamento foi utilizado para deixar a amostra com me-nor afi nidade em relação à água visando aumentar a resistência da superfície à passagem da corrente elétrica. Assim, o material tratado a plasma conduz menos eletricidade que o material sem tratamento, o que é bom para aplica-ções comuns do PVC reciclado, como conduítes. “Na comparação das proprie-dades de superfície do PVC reciclado com o produto virgem, vimos que os dois materiais não apresentavam muita diferença”, diz Mancini. O PVC utilizado nesse estudo foi retirado de um aterro de resíduos de construção civil de So-rocaba, porque há pouco material desse tipo no lixo doméstico. As estimativas, feitas com apoio da prefeitura da cidade, indicam que Sorocaba descarta cerca de 500 toneladas de entulho por dia, além de outras 350 toneladas de resíduos do-mésticos. Esse projeto conta com apoio técnico da empresa Braskem.

Outro dado obtido pelo grupo é o maior descarte de alumínio e PET in-color nos meses com alta temperatura. Do PET incolor descartado, cerca de 26%, em massa, são embalagens de óleo, que costumam ter o preço redu-zido em relação às embalagens de água e de refrigerantes, pois normalmente apresentam mais impurezas impregna-das, como constatado no estudo sobre lavagem química. Dos plásticos, o mais encontrado nos resíduos é o polietileno de alta densidade, presente nas sacolas de supermercado, por exemplo. As es-timativas consideram uma média de 5 mil quilos de descarte desse material por dia. Para comprovar na prática que a reciclagem só compensa quando há a separação prévia do lixo seco do úmido, os pesquisadores pegaram amostras de sacolas plásticas do aterro sanitário pa-ra serem recicladas. As amostras foram pesadas, lavadas, enxaguadas, colocadas para secar e pesadas novamente, sem as impurezas. “Na coleta comum a dife-rença de peso chega a 40%, enquanto na coleta seletiva não chega a 10%”, diz Mancini. Isso signifi ca que, a cada mil quilos de material para reciclagem após um sistema de coleta convencional, ape-nas 600 quilos correspondem ao plásti-co, o resto é sujeira, que será transferida para a água após a lavagem. ■

Detalhes do lixo municipal

A análise do lixo de Indaiatuba também dá algumas pistas do padrão de consumo das famílias brasileiras. “Uma análise socioeconômica dos resíduos indicou que bairros de classe baixa descartam menos embalagens e mais restos de comida, sapatos e entulho”, diz Mancini. Foram avaliadas dez amostragens obtidas diretamente do caminhão coletor entre setembro de 2004 e julho de 2005. Para a escolha de cada amostragem, levou-se em conta a região geográfi ca da cidade, a estação climática do ano na época da coleta e a classe social do bairro. No município, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística (IBGE) de 2001, a classe alta corresponde a 11% da população, enquanto as classes média e baixa representam 55% e 34%, respectivamente. O lixo foi subdividido em 27 itens, cada um escolhido por sua potencialidade ou não para a reciclagem. Os itens separados foram restos de comida, fraldas, lixo de banheiro, tecidos, calçados, pilhas, embalagens de leite em caixa, vidro, latas de aço, alumínio, entulho, papéis

e plásticos. Desses itens, 23 podem ser reutilizados e reciclados, desde que a gestão dos resíduos sólidos esteja relacionada à coleta seletiva.Dos 135 mil quilos de resíduos descartados diariamente, 54 mil quilos, que correspondem a 40% do total, são restos de comida. Somados às folhas e galhos de árvores, enquadrados na categoria restos de jardim, resultam em 55% de matéria orgânica apodrecendo em aterro sanitário. Cálculos indicam que o custo médio da coleta e destinação do lixo fi ca em torno de R$ 100,00 a tonelada. Em cidades menores, por conta das distâncias mais curtas de transporte, esse valor cai para R$ 70,00 a tonelada. “Só em Indaiatuba são gastos quase R$ 10 mil por dia com coleta e aterramento, o que signifi ca R$ 3 milhões por ano, que se somam a outros R$ 6 milhões anuais em materiais que poderiam ser reciclados”, diz Mancini. Embora os dados sejam de Indaiatuba, eles podem ser estendidos para outros municípios que não contam com programas de coleta seletiva.

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AGRICULTURA

Terra

Na Amazônia, técnica de cultivo reaproveita a capoeiraem vez de queimá-la

Carlos Fioravanti, de Manaus

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protegida

Pelo menos uma vez por mês as biólogas Elisa Viei-ra Wandelli, da Embrapa Amazônia Ocidental, e Sandra Celia Tapia-Coral, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), visitam seis famílias de agricultores de um assentamento pró-ximo a Manaus. Elas acompanham a implanta-ção da tipitamba, técnica de cultivo agrícola que

substitui a queima pelo reaproveitamento da capoeira, vegetação secundária que cresce em áreas desmatadas e abandonadas. Na versão mais recente dessa metodologia, um trator tritura árvores com até 20 centímetros de diâ-metro e lança as folhas e a madeira cortadas sobre o solo percorrido. Mais atrás, homens com enxadas uniformi-zam a cobertura que protegerá o solo contra erosão, calor intenso e perda de nutrientes que seriam inevitáveis se a vegetação fosse queimada.

Já adotada por cem famílias de pequenos agriculto-res em seis estados da Amazônia, essa técnica começou a ser desenvolvida em 1991 no Pará por um grupo de pesquisadores brasileiros e alemães. Eles buscavam uma alternativa à agricultura fundamentada na derrubada e queima da vegetação natural, adotada por 600 mil fa-mílias para produzir 70% do alimento consumido na Amazônia, mas de efi ciência limitada: a produtividade só é boa por até dois anos, até a vegetação que sobreviveu ao fogo renascer. Além de reduzir a fertilidade do solo, essa forma tradicional de agricultura contribui para a destruição da fl oresta original, quando faltam terras novas IL

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para cultivar, e é uma das causas do abandono de 200 milhões de hectares já desmatados na Amazônia.

As primeiras tentativas de cortar, triturar e reaproveitar a mata manual-mente mostraram-se pouco produtivas, mas indicaram o caminho que levou à mecanização e aos métodos atuais. Hoje estão claros os benefícios agrícolas e ambientais da metodologia desenvol-vida pelas equipes coordenadas pelo engenheiro agrônomo Osvaldo Ryohei Kato, da Embrapa Amazônia Oriental, em Belém, e pelo biólogo Manfred De-nich, da Universidade de Bonn, em um projeto chamado inicialmente Estudos de Impactos Humanos sobre Florestas e Áreas Alagáveis nos Trópicos (Shift, na sigla em inglês). Ao ser triturada e devolvida ao solo, a mata se transforma em um adubo de liberação lenta, que fornece fósforo, nitrogênio e potássio para as plantas enquanto se decom-põe. Filho de imigrantes japoneses que nasceu e cresceu entre plantações de pimenta em Tomé-Açu, no nordeste paraense, Kato conta que o solo coberto de mata triturada adia em pelo menos quatro meses a retirada de gramí neas invasoras, que disputam espaço e nu-trientes com as culturas agrícolas e aparecem mais rapidamente quando a mata é queimada.

Arroz, hortaliças e frutas - Experimen-tos realizados nos últimos anos indicam que arroz, milho, feijão e mandioca po-dem crescer no solo tratado dessa forma. “As famílias podem fazer dois cultivos sucessivos na mesma área em vez de um só, já que não precisam mais deixar o solo se recuperando da queimada”, afi rma Kato. Além disso, diz ele, a terra pode ser preparada em qualquer época do ano – e assim o calendário agrícola, que determina o que plantar em cada mês, ganha elasticidade. Segundo Kato, testes realizados pelos agricultores mostraram que a tipitamba pode ser empregada também no cultivo de hortaliças e de

frutas como graviola, açaí, cupuaçu, murici, laranja, caju e maracujá.

A tipitamba não constitui só uma alternativa às queimadas, responsáveis por 75% das emissões brasileiras de ga-ses que contribuem para o aquecimen-to global, uma das causas das mudanças climáticas. Apoiada pelo governo ale-mão, pelo Conselho Nacional de De-senvolvimento Científi co e Tecnológico (CNPq) e pelo governo do Pará – mais recentemente pelo Ministério do Meio Ambiente e Banco da Amazônia –, essa técnica é também uma forma de apro-veitar a capoeira. Embora vista apenas como vegetação temporária de um espaço em transformação, a capoeira ocupa 76% dos 3,4 milhões de hectares da Região Norte classifi cados como ter-ras úteis não utilizadas no Censo Agro-pecuário de 1995, o mais recente.

O uso de técnicas de cultivo como a tipitamba poderia aplacar a imagem dessa mata como terra ociosa ou ca-poeira-reserva, expressão adotada pelo economista Francisco de Assis Costa, professor do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea) da Universidade Federal do Pará (UFPA), em um es-tudo recente. Poderia também, com o tempo, eliminar o outro sentido que Costa analisa, o de capoeira-sucata ou capoeira-resíduo – áreas abando-nadas e improdutivas que expressam,

segundo ele, “o fracasso da vegetação original”, a fl oresta, ou da atividade agropecuária tradicional e de baixa efi ciência econômica. Uma técnica de cultivo menos agressiva que a queima-da poderia também reforçar o que ele chama de capoeira-capital, quando a vegetação se torna elemento produti-vo ou meio de produção, como uma máquina que produzisse nitrogênio, fósforo e outros nutrientes necessários ao cultivo agrícola.

A possibilidade de reaproveitar pe-riodicamente a mata ganha adeptos à medida que as barreiras se desfazem. O biólogo Flavio Luizão e sua equipe do Inpa temiam que a capoeira, ao se decompor, liberasse uma quantidade inaceitável de metano, um dos gases responsáveis pelo aquecimento global. Seus experimentos do Projeto LBA – Experimento de Grande Escala da Bios-fera-Atmosfera na Amazônia mostra-ram, porém, que a liberação de metano pela madeira apodrecendo diminui em vez de aumentar. Para ele, o resultado sugere que o metano poderia estar sendo incorporado por microorganis-mos e insetos que decompõem folhas e galhos, já que essa biodiversidade se torna mais abundante, como Sandra Tapia-Coral verifi cou. Segundo Luizão, o solo, quando coberto pela mata tri-turada, fi ca mais poroso e água, micro e macroorganismos e oxigênio pode-riam então circular mais facilmente, criando um ambiente que absorveria o metano. “Não vimos efeito adverso dessa metodologia”, diz Luizão. Eric Davidson, do Woods Hole Research Center, dos Estados Unidos, em con-junto com Kato e outros pesquisado-res da Embrapa Amazônia Oriental, demonstrou este ano na revista Global Change Biology que cortar e triturar a mata emite menos metano logo após o plantio e absorve mais nos meses seguintes que a técnica tradicional de derrubar e queimar a vegetação natural. Outra conclusão desse estudo é que a

Vista normalmente

como reserva

ou sucata,

a capoeira poderia

se tornar capital

vivo, como uma

máquina que

produz nutrientes

para a terra

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tipitamba emite também cinco vezes menos outros gases responsáveis pelo aquecimento global.

Ainda há ajustes a serem feitos na tipitamba, palavra dos índios tiryios, do Pará, que signifi ca “capoeira” ou “ex-roça”. O primeiro é o custo do equipa-mento, já que o valor do trator é cerca de R$ 200 mil e o triturador, cerca de R$ 100 mil. As máquinas, que vêm da Alemanha, representam uma versão mais robusta dos protótipos trazidos em 2000 para testes, utilizados na Europa Central para triturar galhos mais fi nos e menos duros. Os custos deixam de pe-sar, porém, se os equipamentos forem comprados por meio de cooperativas ou por empresas, como fez a Alumínio do Brasil (Albrás), que comprou um trator-triturador para incentivar 20 famílias a cultivar a terra sem queimar em torno da fábrica em Barcarena, no Pará. Em um dos capítulos do livro Inovação e di-fusão tecnológica para sustentabilidade da agricultura familiar na Amazônia – Resultados e implicações do projeto Shift Socioeconomia, organizado por Costa, Thomas Hurtienne e Claudia Kahwa-ge (versão integral livre pelo Google Books), Geraldo Stachetti Rodrigues e outros pesquisadores da Embrapa mos-tram que serviços ambientais, como o seqüestro de carbono, que daria aos agricultores uma vantagem comparati-va em relação aos que liberam carbono queimando a fl oresta, poderiam ampliar a efi ciência econômica dessa técnica.

Outro problema a ser resolvido é a produtividade no primeiro ano de cultivo, que, embora seja maior que a da terra queimada, ainda é conside-rada baixa. “É o mesmo problema do plantio direto sobre a palhada”, lembra Silas Aquino de Souza, da Embrapa Amazônia Ocidental de Manaus. Por esse motivo Luizão defende a idéia de que os agricultores deveriam receber um subsídio para poder vencer essa primeira fase. A produtividade começa a crescer a partir do segundo ano, redu-

zindo ou até mesmo eliminando a ne-cessidade de nutrientes extras. “Nossa hipótese”, diz Kato, “é que a qualidade do solo melhore a longo prazo, como resultado do acúmulo de matéria or-gânica em decomposição”.

Uma barreira fi cou para trás: con-vencer os agricultores a mudar os hábitos de cultivo da terra. Em 2000, com um protótipo de triturador, os pesquisadores ganharam a adesão de seis famílias de agricultores em Igapa-ré-Açu e de cinco em Marapanim, no Pará. Carlos Oliveira, durante o curso de mestrado na Universidade Fede-ral do Pará e na Embrapa Amazônia Oriental, acompanhou as famílias de Marapanim e concluiu que os usuários se apropriam mais facilmente de uma tecnologia quando participam de seu desenvolvimento desde o início. Com o tempo as próprias famílias começaram a propor e a conduzir os experimen-tos de uso dessa técnica no cultivo de melancia, pimenta ou hortaliças. Hoje cem famílias adaptam a tipitamba aos cultivos e terras do Acre, Amapá, Ama-zonas, Rondônia, Roraima e Maranhão, com apoio das unidades da Embrapa nesses estados. “Apenas oferecemos a inovação”, conta Kato. “Os agricultores é que decidem como usar e hoje são eles que nos ensinam o que dá ou não para plantar com essa técnica.” ■

Serviços

ambientais como

o seqüestro de

carbono poderiam

ampliar os ganhos

dos agricultores

que não queimam

mais a vegetação

nativa

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AEmpresa Brasileira de Pesquisa Agro-pecuária (Embrapa) acaba de lançar duas novas variedades de soja trans-gênica especialmente adaptadas às regiões Norte e Nordeste do país. A safra brasileira dessa cultura deve atin-gir, este ano, a marca histórica de 60

milhões de toneladas, um aumento de 2%, ou 1,2 milhão de toneladas, em relação ao volume colhido na safra anterior, de 2006/2007. Esse bom desempenho da cultura se deve a muitos fatores, entre eles as boas condições climáticas e o alto nível tecnológico da sojicultura nacional. As duas novas variedades, também chamadas de cultivares, são importantes porque a soja é uma cultura originária de clima temperado, mas, no Brasil, por meio de programas de melhoramento genético tradicional, ela está cada vez mais pre-sente em regiões de baixa latitude, próximas à li-nha do Equador. Os estados do Norte e Nordeste respondem, atualmente, por pouco mais de 8% da produção nacional da oleaginosa. A principal região produtora é o Centro-Oeste, com 48% da colheita, seguido pelo Sul, com 34%.

As duas cultivares transgênicas da Embrapa, denominadas BRS 278RR e BRS 279RR, têm como diferencial a resistência a herbicidas à base de glifosato, largamente empregado pelos agricultores para o controle de ervas daninhas. Essas plantas transgênicas não são afetadas e não morrem com a aplicação do herbicida. Para ad-quirir essa resistência, as variedades receberam

um gene de outro organismo, a bactéria Agrobacterium tumefaciens. Segundo o engenheiro agrônomo José Ubirajara Vieira Moreira, pesquisador da unidade Embrapa Soja, de Londrina, no Paraná, as novas cultivares empregam a mesma tecnologia da soja transgênica da em-presa Monsanto, cujo nome comercial é Roundup Ready ou, simplesmente, RR. “Fizemos um contrato com a empresa para utilizar esse gene de resistência em nossas cultivares”, explica Moreira. Co-mo são sementes geneticamente modi-fi cadas, elas passaram pelo processo de regulamentação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) para obtenção de uso e aplicação dessa tecnologia nas linhagens e cultivares da Embrapa.

As novas variedades, segundo a Em-brapa, apresentam produtividade su-perior ao padrão encontrado no sul do Maranhão, sudoeste do Piauí e norte do Tocantins, principais áreas produtoras do Norte e Nordeste. Estudos de campo revelaram que as sementes transgênicas produzem, em média, 3.600 quilos por hectare (kg/ha). No caso da BRS 278RR foi observada produtividade de até 4.200 kg/ha. “Em condições ideais de solo, clima e chuva, a nova cultivar mostrou todo o seu potencial. Isso aconteceu

BIOTECNOLOGIA

Lavoura mais produtivaLançadas novas variedades de soja transgênica para o Norte e o Nordeste do país

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da BRS 279RR é a resistência aos nema-tóides de galha (Meloidogyne incognita e Meloidogyne javanica), que provocam uma doença comum em todo país com ataques à raiz da planta, prejudicando a absorção de nutrientes.

Antes dessas novas cultivares, a Embrapa já havia lançado, em 2006, duas variedades de soja geneticamente modifi cadas adaptadas às condições de solo e clima do Norte e Nordeste – a BRS 270RR e a BRS 271RR. “Nosso programa de melhoramento genético está em contínua evolução. Nos últi-mos dez anos já lançamos 24 diferentes cultivares transgênicas de soja”, diz Mo-reira. De acordo com o pesquisador, a instituição está trabalhando para lançar outro tipo de soja transgênica no país, batizada de Cultivance. Fruto de uma parceria com a empresa alemã Basf, ela será resistente aos herbicidas da classe das imidazolinonas e uma alternativa para o controle e manejo das plantas daninhas que atacam as lavouras. A cultivar ainda precisa da aprovação da CTNBio e deve auxiliar os agricultores na rotação de herbicidas, para melhorar o controle de ervas daninhas.

Uma das líderes do mercado de se-mentes de soja no Brasil, a Embrapa responde atualmente por cerca de 35%

a 40% desse setor, estimado em 800 mil a 1 milhão de toneladas de sementes. “Do total comercializado da Embrapa, quase metade das sementes é de culti-vares transgênicas”, diz o engenheiro agrônomo e pesquisador da Embrapa Soja, José Francisco Toledo. O Brasil é o segundo maior produtor mundial da oleaginosa, perdendo apenas para os Estados Unidos, e exporta 75% da produção na forma de grão, óleo ou farelo. Estimativas apontam que 60% da safra nacional já é composta por soja transgênica.

A exploração dos cultivos genetica-mente modifi cados tem crescido sig-nifi cativamente ao longo dos últimos 12 anos, segundo o engenheiro agrô-nomo Marcelo Gravina de Moraes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O uso de organismos geneticamente modifi cados (OGMs), segundo dados do pesquisador, tiveram uma evolução sem precedentes, com crescimento de 67 vezes entre 1996 e 2007. “Esse aumento faz da biotecnolo-gia a tecnologia agrícola de mais rápida adoção dos últimos tempos”, escreveu Moraes num artigo para o Conselho de Informações sobre Biotecnologia, uma organização não-governamental. De acordo com o pesquisador da UFRGS, o crescimento atual desses cultivos, pre-sentes em 23 países, é da ordem de 12% ao ano, o que signifi ca um acréscimo de 12,3 milhões de hectares de terras dedicadas anualmente aos OGMs.

“O número de variedades de soja transgênica cresce a todo momento, mas a soja com o gene RR da Monsan-to é a única amplamente utilizada. Do total de soja cultivada no mundo 64% é transgênica”, diz Moraes. A soja é o único cultivo em que a área transgêni-ca supera a não transgênica. Além do Brasil, Argentina, Estados Unidos, Ca-nadá, México, Uruguai, Paraguai, Japão e África do Sul também cultivam a soja RR. Outros países consomem, mas não cultivam, como é o caso da China. ■

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Do total da soja plantada no mundo, 64% é de cultivares transgênicos

numa área de chapada do município de São Raimundo das Mangabeiras, no Maranhão”, conta Moreira. A produti-vidade média da soja no Nordeste varia de 2.600 a 3.000 kg/ha, de acordo com o pesquisador.

As cultivares recém-lançadas tam-bém são dotadas de genes chamados de período juvenil longo que propor-cionam o desenvolvimento da planta em baixas latitudes. Esses genes foram introduzidos na planta por meio de melhoramento genético tradicional da Embrapa, e não por meios biotecno-lógicos. “Conforme o plantio no norte do país, a planta tem tendência a fl o-rescer mais cedo e ter vagens menos produtivas. Os genes de período juvenil impedem que isso aconteça. O período de crescimento vegetativo se prolonga, elevando seu porte e produtividade”, destaca Moreira.

Controle de pragas - A variedade BRS 279RR permite ao produtor rural colher o grão mais rapidamente e preparar o terreno para uma nova safra. Um fator importante de antecipação da colheita é que em áreas com incidência da fer-rugem asiática (Phakopsora pachyrhizi) o agricultor utiliza menos fungicida no combate à praga. Outra característica Yuri Vasconcelos

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MEDICINA

Ossos artifi ciaisEquipe da USP cria soluções inovadoras para próteses cirúrgicas na reconstrução óssea

Yuri Vasconcelos

Corpos-de-prova de polímero para prótese cirúrgica com estrutura interna densa e porosa no exterior

Um dos grandes desafi os para o desenvolvimento de ossos artifi ciais é criar materiais que sejam o mais próximo possível do tecido ósseo na-tural. As próteses devem ser réplicas não só na aparência

como também nas propriedades bio-lógicas e mecânicas. Essa é uma con-dição importante para o implante ser bem-sucedido e que não sofra rejeição por parte do organismo. Assim, dois novos materiais para a confecção de os-sos artifi ciais desenvolvidos no campus da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos, no interior paulista, se transformam em uma boa notícia para a área de implantes ósseos.

O principal diferencial dessas novas próteses cirúrgicas é sua estrutura super-fi cial porosa e a presença de substâncias em sua composição que lhes conferem atividade biológica. Segundo os pesqui-sadores envolvidos na descoberta, essas características devem proporcionar a fabricação de implantes ósseos mais efi -cientes e duráveis. Os materiais – estru-

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Carlos da USP. Os poros existentes na superfície da prótese permitem que o osso cresça para dentro do implante, aderindo a ele.

“Estamos satisfeitos com os resul-tados obtidos até agora e confi antes no sucesso da aplicação da estrutura de cerâmica e polímero em implantes e próteses cirúrgicas”, diz Purquerio. De acordo com o pesquisador, as no-vas próteses deverão ser usadas em re-construções da boca, mandíbula e faces, operação plástica do crânio e implantes ortopédicos em geral (joelho, quadril, punho etc.). Hoje os materiais mais empregados nessas cirurgias são ligas metálicas, especialmente as de titânio e aço inoxidável, materiais cerâmicos, como alumina, zircônia, biovidro e hi-droxiapatita, e compostos polímeros, PMMA, poliuretano e polietileno. Esses materiais precisam ser biocompatíveis, inertes e não tóxicos e devem ter resis-tência e rigidez compatíveis com nosso sistema biológico.

A cerâmica possui poros abertos e interconectados com 50 a 400 mi-

crômetros de dimensão, compatíveis com os processos de reparação óssea. A parte porosa do implante é bem su-perfi cial e tem espessura de apenas 0,5 a 1,0 milímetro. “Não há necessidade da porosidade nas camadas internas ser igual àquelas da superfície porque os tecidos penetram até certo ponto. Além disso, quanto mais espessa for a camada porosa externa, menos re-sistente poderá fi car todo o implan-te”, explica o engenheiro de materiais Carlos Alberto Fortulan, também da Escola de Engenharia de São Carlos, que integra a equipe.

Os pesquisadores adicionam saca-rose na fase de preparação dos aglo-merados cerâmicos para fornecer po-rosidade à cerâmica de alumina. Após a conformação da peça, a sacarose é re-movida por um processo de lixiviação (lavagem) em água. Em seguida ela é sinterizada (queimada). “As partícu-las de sacarose que, porventura, ainda restarem no implante são decompostas em dióxido de carbono na etapa de sin-terização”, diz Fortulan.

Acima, amostras de material cerâmico

com poros capazes de se ligarem aos tecidos orgânicos

turas cerâmicas de alumina e compos-tos poliméricos de polimetilmetacrilato (PMMA) – já foram submetidos, com sucesso, a testes in vitro e a ensaios com animais, os testes in vivo. As primeiras cirurgias em seres humanos estão pro-gramadas para agosto.

Os dois materiais trabalhados pelo grupo da USP já são conhecidos e ho-mologados pelas autoridades médicas para uso em implantes. São previsíveis em relação à sua ação no organismo e estáveis biologicamente. O que os pesquisadores fi zeram foi modifi car as propriedades da cerâmica de alumina e do PMMA. “Criamos uma peça com diferentes níveis de densidade, com um núcleo denso integrado a uma super-fície porosa. Essa porosidade é impor-tante porque facilita a vascularização e acelera a adesão dos tecidos ósseos e musculares ao implante”, explica o engenheiro mecânico Benedito de Mo-raes Purquerio, coordenador do grupo de pesquisas em biomateriais do La-boratório de Tribologia e Compósitos (LTC) da Escola de Engenharia de São

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A concepção das estruturas super-fi ciais porosas de polímero é a mesma da cerâmica, com a diferença de que, nesse caso, a estrutura porosa ao PMMA é preparada com um polímero deriva-do da celulose, o carboximetilcelulose (CMC), embebido em água. Depois que a peça está pronta – seja ela a cerâmi-ca ou o polímero –, os pesquisadores fazem uma impregnação a vácuo de hidroxiapatita e biovidro nas superfí-cies internas dos poros para aumentar a atividade biológica do implante. A hi-droxiapatita é o mineral básico do osso e faz o organismo reconhecer o implante como uma estrutura similar a ele.

Primeiras cirurgias - “No processo de integração óssea, os vasos sangüíneos e as células ósseas e musculares pene-tram nos poros da prótese cirúrgica possibilitando o crescimento de tecidos dentro da peça implantada. Em pró-teses convencionais desse tipo, feitas com materiais não porosos ou sem as características de bioatividade confe-ridas pela hidroxiapatita e biovidro, não ocorre integração entre os teci-dos e o implante”, destaca o cirurgião buco-maxilo-facial Edelto dos Santos Antunes, chefe do serviço de cirurgia buco-maxilo facial do Hospital Santa Tereza, de Petrópolis, no Rio de Janeiro, local onde deve acontecer a primeira cirurgia de aplicação clínica dos novos materiais em pacientes. As cirurgias vão ocorrer em uma parceria do hospital com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Outra vantagem da porosidade é dar, indiretamente, maior proteção contra infecções, na medida em que promove uma integração dos tecidos de cobertura com toda a superfície porosa da peça implantada. O periósteo é uma membrana muito vascularizada, fi na e resistente que envolve por completo

os ossos humanos. Durante o proce-dimento de colocação do implante, o cirurgião retira uma porção de periós-teo que recobre outro osso do corpo vizinho ao campo cirúrgico e encapsula a prótese. “Com isso, qualquer infecção tem ação apenas pontual. Sem esse en-capsulamento, o material implantado fi ca mais exposto a possíveis infecções no futuro”, diz Antunes, que também integra o grupo de pesquisa. Segundo ele, as peças porosas de cerâmica de alumina e de PMMA infi ltrados com hidroxiapatita e biovidro substituem com muito mais fi delidade o osso hu-mano do que outros materiais usados atualmente em implantes porque suas propriedades biológicas e mecânicas são mais próximas das do osso.

“Essas peças dão mais previsibili-dade e estabilidade aos resultados dos implantes. O material é capaz de resistir às solicitações mecânicas que incidem sobre o osso sem interferir tão dras-ticamente na fi siologia dos tecidos ao redor”, diz Antunes. “A técnica cirúr-gica também tem sofrido adequações. É de fundamental importância que os tecidos de cobertura restabeleçam a anatomia de forma que eles se tornem bem defi nidos e sejam sufi cientes para minimizarem as possibilidades de ex-posição e contaminação da superfície porosa da prótese cirúrgica.”

As estruturas superfi ciais diferen-ciais de cerâmica de alumina e PMMA já passaram por estudos de citotoxi-cidade e integração óssea durante os testes in vitro e in vivo realizados em São Carlos. Os ensaios com ratos e coe lhos ocorreram do fi nal de 2007 ao início deste ano. “Os implantes foram inseridos nas tíbias dos animais e per-cebemos uma perfeita integração óssea com crescimento tecidual no interior dos poros”, conta Carlos Fortulan.

“As cirurgias em seres humanos vão começar com implantes em falhas cra-nianas menores, de até 10 centímetros quadrados, para, em seguida, passar a fazer reconstruções mais completas de crânio. Numa terceira etapa, passare-mos para reconstruções mandibulares em que haja defeitos que comprometam apenas segmentos ósseos. Depois será a vez dos casos que envolvem segmentos ósseos e articulares, onde passaremos a utilizar implantes de compósitos de PMMA reforçados com fi bras de carbo-no”, diz o cirurgião Edelto Antunes.

As próteses cirúrgicas completas de mandíbula, destinadas às cirurgias mais complexas, serão confeccionadas com os dois materiais, alumina e PMMA, fi -cando a estrutura cerâmica de alumina limitada ao componente articular, na junção com o osso da face. O restante da peça será fabricado com o políme-

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PMicroscopia eletrônica: ao lado,

detalhes da superfície porosa

do polímero; e, abaixo, na seta

vermelha, restos do implante e, verde,

crescimento ósseo no interior dos poros

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Um medicamento injetável para tratamento de fraturas deverá, em breve, ser um novo aliado de pacientes e médicos. Pesquisadores do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) desenvolveram uma proteína capaz de aumentar e melhorar a recuperação óssea. Chamada de proteína morfogenética óssea (BMP na sigla em inglês), ela pertence à classe dos fatores de crescimento celular e estimula a proliferação de células-tronco próximas ao local da fratura, promovendo sua diferenciação em células ósseas com acumulação de cálcio. “Nesse estágio já temos uma estrutura rígida mineralizada que compõe o osso. A aplicação dessa proteína é local e sua recomendação é para fraturas, nos casos em que não há união em ossos longos – por exemplo, no fêmur – e na coluna vertebral, um lugar de difícil recuperação óssea”, diz o biomédico Erik Halcsik, que integrou a equipe junto com o doutorando Juan Carlos Bustos-Valenzuela. Pacientes que sofrem de osteoporose e que fi zeram implantes dentários também serão benefi ciados com o medicamento.

As BMPs já são produzidas naturalmente pelo organismo humano ao longo do desenvolvimento do embrião e quando ocorrem fraturas,

mas em quantidades muito pequenas. A proteína produzida pela USP seria um suplemento para tais células se desenvolverem mais rapidamente e garantir a formação de tecidos ósseos. A criação da proteína começou a partir de seqüências de DNA humano que correspondem aos genes das BMPs. Elas foram transferidas para um vetor, que são seqüências de DNA que auxiliam na inserção e manutenção do gene introduzido e depois

transferidas para linhagens celulares especiais para produção de proteínas. Os pesquisadores, por fi m, selecionaram as células que produzem as BMPs do tipo 2 e 7, ligadas ao crescimento ósseo, em grande quantidade.

Segundo a professora Mari Cleide Sogayar, coordenadora da pesquisa e do Núcleo de Terapia Celular e Molecular (Nucel) da USP, as seqüências de DNA que codifi cam essas duas proteínas foram identifi cadas a partir dos bancos de cDNA (ou DNA complementar) do Projeto Transcriptoma do Genoma do Câncer da FAPESP, conhecido como Transcript Finishing Initiative. “Foram quase seis anos de pesquisa e desenvolvimento até chegarmos a essas duas proteínas recombinantes”, conta Mari Sogayar.

Pelo menos três empresas norte-americanas já fabricam drogas similares na mesma plataforma utilizada na USP, que é a produção a partir de células de mamíferos. Mas muito pouco se sabe do processo de produção dessa proteína, porque as empresas que detêm o know-how o mantêm em segredo ou protegido por patentes. “Por isso tivemos que desenvolver nossa própria plataforma de produção a partir do DNA de células humanas”, diz Halcsik. As três empresas produzem a proteína com valores entre US$ 3,5 mil e US$ 4,5 mil a dose. “Nosso produto deverá custar menos do que o das empresas estrangeiras, mas seu valor fi nal dependerá do escalonamento da produção industrial”, diz Halcsik. A previsão do grupo é de que o fármaco esteja no mercado dentro de três a cinco anos. Os estudos estão sendo realizados em parceria com uma empresa que deverá produzir o medicamento. Por força de contrato, os pesquisadores não podem revelar o nome dessa empresa.

Proteína para fraturas ósseas em forma de medicamento

ro e reforçado internamente com um tubo de fi bra de carbono. Até o come-ço do próximo ano os pesquisadores pretendem iniciar estudos visando ao desenvolvimento de próteses femurais. “Vamos começar o trabalho implantan-do hastes de PMMA reforçadas com fi bras de carbono na tíbia de cabritos. Nosso intuito é que esses novos ma-teriais sejam usados, no futuro, em qualquer tipo de cirurgia ortopédica”, afi rma Antunes.

Iniciada no fi nal de 2004, a pesquisa para desenvolvimento das estruturas superfi ciais porosas de cerâmica de alumina e PMMA contou com fi-nanciamento de R$ 250 mil do Con-selho Nacional de Desenvolvimento Científi co e Tecnológico (CNPq) do Ministério da Ciência e Tecnologia e Ministério da Saúde (Projeto Fundo Setorial da Saúde 2004), coordenado pelo professor Purquerio. O trabalho já gerou três depósitos de patente, uma delas específi ca sobre a criação de uma matriz cerâmica porosa bio-ativa. A produção científi ca também inclui quatro dissertações de mestrado, cinco teses de doutorado e 39 trabalhos acadêmicos. O grupo apresentou as es-truturas de cerâmica de alumina no 8º Congresso Mundial de Biomateriais, em Amsterdã, na Holanda, em junho deste ano, e vai mostrar os resultados envolvendo o PMMA em dois eventos internacionais nos próximos meses: o simpósio de outono da Society for Biomaterials, em Atlanta, nos Estados Unidos, em setembro, e o Internatio-nal Bone-Tissue-Engineering Congress (Bone-Tec 2008), em Hannover, na Alemanha, em novembro. ■

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DIPLOMACIA

Especialistas defendem estreitamento de relações entre o Brasil e o continente africano

África

ser mãe solteira

‘Mama’

não pode

Carlos Haag

>HUMANIDADES

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Dono da segunda maior popu-lação negra do globo, o Bra-sil, por muito tempo, tratou a “mama” África como a sua versão homônima da canção de Chico César: “Vai e vem, mas não se afasta de você”.

Nossa diplomacia vive se “lembran-do” e se “esquecendo” do continente. Durante o século XX, pelo menos até 1960, a política externa brasileira igno-rou o continente africano, voltando-se para a América e a Europa. “Mas, mais recentemente, entre 1985 e 2006, essas relações entram num movimento de intensidade variável e contínuo, com períodos de ambivalências e incertezas, de acentuado declínio entre as décadas de 1980 e 1990, esboçando recuperação nesta virada de século”, observa Cláu-dio Oliveira Ribeiro, professor do curso de relações internacionais da PUC-SP e autor da tese de doutorado Relações político-comerciais Brasil-África, de-fendida no ano passado na USP. Um vaivém que, nota ele, “se ajusta às va-riações observadas no plano interna-cional e na própria agenda diplomá-tica brasileira”. O Atlântico, como já observou o diplomata e africanista, já foi um rio a separar Brasil e África e poderia voltar a ser.

A “mama” África sofreu as penas e preconceitos de ser “mãe solteira”, ro-mantizada pela mesma razão. Mesmo com a recente priorização, na esfera do Atlântico, de uma política para o continente africano, o pesquisador ad-verte que “a construção de uma políti-

ca africana embasada na premissa de laços maternos pressupõe uma visão distorcida da própria África, em que o Brasil, por meio de um discurso pre-tensamente progressista, julga-se capaz de ajudar os países africanos, promo-vendo uma política missionária”. Para Ribeiro, a política externa para o con-tinente não pode ser compreendida sem o reconhecimento dos interesses estratégicos do continente, sem que is-so signifi que “considerar estritamente os interesses brasileiros nessa relação”. Se no governo atual o presidente Lula e o ministro das Relações Exteriores realizaram um roteiro de visitas e acordos sem precedentes, que revela a nova dinâmica da relação entre Brasil e África, “constata-se que o processo de formulação da política externa pa-ra o continente ainda é desprovido de embasamento societário”.

Segundo o autor, na relação entre a diplomacia e o setor empresarial, ape-sar das oportunidades abertas para o desenvolvimento de projetos comer-ciais brasileiros no continente africano, “inexistem mecanismos de articulação e canais fl uidos de comunicação entre os dois segmentos, o que compromete a participação mais ampla de setores e atores sociais, como é o caso do setor privado, que, pela política diplomáti-ca insular, se mantém à margem dos processos negociadores”. Apesar disso, empresários elogiam a aproximação atual com a África. Numa entrevista concedida ao pesquisador, Roger Ag-nelli, atual presidente da Vale, afi rma:

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“A aproximação com o continente afri-cano é um dos mais acertados desdo-bramentos recentes da política externa brasileira. Avaliada superfi cialmente, a estratégia tem atraído críticas, uma vez que pode parecer paradoxal um país em desenvolvimento como o Brasil incrementar seus esforços diplomáti-cos em parceiros pobres, com relativa-mente pouca infl uência no contexto geopolítico global e peso ainda baixo na balança comercial brasileira”. Mas, continua Agnelli, “é preciso ir além da superfície e avaliar essa estratégia nos movimentos de internacionalização de empresas brasileiras. A África é um dos territórios naturalmente adequa-dos de investimentos em setores em que empresas brasileiras já são muito competitivas”.

Afro-pessimismo - O economista Ivo de Santana, analista do Banco Central do Brasil e autor da tese de doutora-do Relações econômicas Brasil-África, concorda com o empresário: “As po-tencialidades do comércio Brasil-África existem, pois, ainda que se observe a debilidade da situação econômica de muitos países, há várias economias afri-canas que, desde 1994, vêm conseguin-do taxas anuais de crescimento acima de 10%, o que justifi ca maior interesse e agressividade de empresas brasileiras”. Apesar do chamado “afro-pessimismo” que, no geral, apenas vê no continente as guerras de etnias, as ditaduras san-guinárias, os blood diamonds e a Aids, cada vez mais, nos meios comerciais e diplomáticos, cresce a idéia de que a África terá um lugar de destaque na cena internacional contemporânea. Afi -nal, estamos falando de um espaço que ocupa 22,5% das terras do planeta, com 10% da população mundial, que deverá dobrar até 2050 (será o continente a conseguir isso). A África concentra 66% do diamante global, 58% do ouro, 45% do cobalto, 17% do manganês, 15% da bauxita, 15% do zinco e 10 a 15% do

petróleo. Apesar de possuir cerca de 30 recursos minerais do mundo, ela só participa de 2% do comércio global e possui só 1% da produção industrial internacional.

O continente ostentou, entre 2002 e 2007, dados ainda promissores. A re-gião mais pobre do planeta, a África Subsaariana, cresceu em torno de 5,5% a 6% ao ano, o maior crescimento da história africana, proporcional ao cres-cimento econômico da América Latina pelos dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Ce-pal) e superior ao do Brasil. As infl a-ções médias estão contidas na ordem de 6% a 7% no mesmo período. “Há uma África em crescente internaciona-lização e nada marginal e que está no centro de uma concorrência fortíssima de interesses e interessados de todas as partes do globo, em especial a China e, mais recentemente, os EUA”, afi rma José Flávio Sombra Saraiva, professor de relações internacionais da Universi-dade de Brasília. “Não sejamos, porém, ingênuos: é óbvio que a África é outra fronteira do capitalismo, é o faroeste de hoje. Há ali, é claro, uma luta de gigan-tes, iniciada pela China em 1989, com a crise da Paz Celestial que isolou o país e obrigou o primeiro-ministro, Li Peng, a se aproximar do continente africa-no, de onde não partiram críticas aos

incidentes políticos chineses”, observa. “Mas há um artigo recente, vindo dos EUA, de 2006, escrito por um professor de Harvard e Chester Crooker, ex-sub-secretário americano de Estado para a África, “More than humanitarism”, que eleva o status da questão africana para além do humanitarismo, colocando-a no epicentro da questão do terroris-mo, do petróleo e dos recursos naturais. Sem falar na viagem de Bush à África, que se posicionou contra a Guerra do Iraque”, nota Saraiva.

Segundo ele, há razões de sobra para otimismo em todas as regiões africanas e o continente, hoje, foi escolhido como prioridade para novas áreas e cartei-ras de empréstimos do Banco Mun-dial. “Há sobretudo um sentimento de que, nos últimos sete anos, a África vem superando o drama histórico das guerras internas. O número de confl itos armados caiu de 13 para cinco. Existe uma onda democratizante dos regimes políticos de várias partes do continen-te. Essa redução dramática de guerras faz pensar que os recursos, quase da ordem de US$ 300 bilhões, queimados nos confl itos entre 1990 e 2005, podem agora ser dirigidos às políticas de redu-ção de pobreza e miséria”, avalia. Ape-sar disso, observa Saraiva, existe uma refl exão brasileira modesta e tardia sobre os potenciais econômicos. “Os

A PERCEPÇÃO DE

QUE A ÁFRICA ERA

IMPORTANTE NA

NOSSA POLÍTICA

EXTERNA SÓ SE DEU

NA DÉCADA DE 1960

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meios de comunicação insistem em apresentar uma África indolente e di-tatorial, onde o Brasil nada tem a fazer e muitos empresários ainda duvidam das possibilidades de agir em terreno africano. Há um reumatismo crônico como força impeditiva no avançar o país na velocidade dos demais corre-dores em direção ao continente afri-cano.” Os próprios Estados africanos teriam abandonado o antigo discurso da vitimização colonial, impeditivo pa-ra qualquer progresso, e adotado uma linha pragmática de relações com países estrangeiros. “Ao reivindicarem a ca-pacidade de construção do seu futuro, as lideranças africanas estão atraindo para si maior responsabilidade de su-peração do grau marginal de inserção ao qual o continente foi submetido na década de 1990”, analisa Saraiva, para quem o Brasil não pode perder a “bre-cha africana”.

Senão certamente perderemos a chance diante da estratégia chinesa, que, diz ele, está voltada para a utili-zação exponencial e quase ilimitada dos recursos naturais da África. “Não

há capital africana em que não esteja a construção importante de um edifício subsidiado pelos recursos chineses e que não estejam as escolas de chinês, como já existem em Angola, e não há um aeroporto ou estrada que não te-nha um fi nanciamento chinês. Desde os anos 1980 os chineses desenham um plano estratégico que é apresentar a África como representante do mundo em desenvolvimento, como espaço de barganha nas negociações internacio-nais relativas ao seu próprio regime e a sua transição política para um novo século.” Segundo dados do Ministério das Relações Exteriores, hoje o comér-cio brasileiro com a África cresceu mais de 200%. “Mas isso ainda é pouco diante do possível. Se olharmos para o crescimento das relações da Áfri-ca com economias emergentes como China e Índia ou os países do Golfo, o Brasil já fi ca para trás. Se há países do continente que crescem 6% ao ano, há outros, como Angola, que superam a marca de 20%. O Brasil tem que apos-tar muito mais”, avisa Carlos Lopes, subsecretário-geral da ONU. “Poucos

empresários brasileiros sabem que uma empresa gigante como a Gazprom, da Rússia, investe massivamente em gás na África ou que dois dos maiores ban-cos comerciais do continente agora têm participação majoritária chinesa ou, ainda, que a produção de cobre afri-cana já está na mão dos chineses.” O Brasil, apesar dos discursos culturais que tanto falam da “mãe África”, des-conhece esse potencial.

Gilberto Freyre - Afi nal, a percepção de que a África teria uma dimensão privilegiada para a política externa brasileira só se deu na década de 1960, de forma incipiente, dentro da política externa independente, inaugurada no governo Jânio Quadros e mantida por Goulart. Antes, no governo JK, deba-tes acadêmicos, liderados por fi guras como Gilberto Freyre, já advogavam a criação de uma comunidade luso-tropical no Atlântico, mas mais ligada aos laços com Portugal do que com suas então colônias africanas. “Ao longo da segunda metade do século XX é que se percebe o potencial das relações den-tro de um discurso terceiro-mundista que, de início, pretendia contrabalan-çar, com esse elo, o peso das relações do país com os EUA e se opor às limitações impostas pela clivagem Leste-Oeste da Guerra Fria”, explica Ribeiro. O Brasil identifi cou na África uma chance de arranjos diplomáticos que possibili-tassem uma posição diferenciada no cenário internacional. Mas as relações especiais com Portugal impediam uma ligação direta com os territórios afri-canos em processo de independência e é só a partir da década de 1970, com a Revolução dos Cravos e a descolo-nização, que as ações se concretizam. Assim, curiosamente, nos governos mi-litares de Medici, Geisel e Figueiredo, nota o pesquisador, as relações do Brasil com as antigas colônias portuguesas na África se aprofundam. Em particular no setor energético do petróleo, com

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Gana: fazenda da Caltech, onde Embrapa desenvolve projeto na África

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a presença intensa da Petrobras, via Braspetro, na África.

O governo Sarney colocou água na fervura. O antigo modelo diplomático terceiro-mundista de cunho nacional-desenvolvimentista é abandonado, ao mesmo tempo que os dois lados do Atlântico entram numa crise econô-mica. Toma a cena o conceito do “custo África”, uma percepção de que, explica o autor, “a insistência no relacionamen-to com o continente africano teria um custo elevado para a política externa”. Segundo essa visão, as lutas de indepen-dência ainda não haviam se encerrado e havia a imagem de que os Estados da África, em comparação com o passado colonial, ainda eram frágeis e numero-sos, incapazes de gerar instituições que garantissem contratos e leis. “Para um país como o Brasil, que enfrentava cri-ses econômicas e a tarefa de consolidar o regime democrático, insistir na liga-ção com um continente mergulhado em lutas político-institucionais tinha pouco apoio”, observa o pesquisador.

Houve, continua, um desinteresse cres-cente, pois a África não era priorida-de para a opinião pública nacional e a política brasileira para o continente entrou em agonia. A agenda do governo Sarney, então, se volta prioritariamente para a idéia de integração regional da América do Sul.

Modernidade - Para o governo Collor a prioridade era, lembra Ribeiro, a pro-moção da modernidade, por meio de uma “agenda internacional que queria aproximar o Brasil do grupo de nações industrializadas, superando sua identi-fi cação com o Terceiro Mundo”. Assim, avalia, “em oposição à postura dos go-vernos anteriores, queria-se então tra-balhar a noção de parcerias operacio-nais, em que a África fi cava claramente ausente”. No domínio das relações entre o Brasil e o continente africano esse foi um momento de afastamento intenso, em que a dimensão atlântica deixa de ser considerada como propícia aos in-teresses e demandas internacionais do

país. O processo de regionalização, por meio do Mercosul, e a manutenção do ideal do “alto custo” da relação com a África se intensifi cam nos dois gover-nos de FHC, que preconizava, afi rma Ribeiro, como eixo central da política externa, “o fortalecimento do Mercosul e o adensamento das relações com os EUA e demais economias avançadas e potências regionais”. O pesquisador avalia que havia um sentido particu-lar nessa estratégia: “Havia a premissa de que o maior empenho diplomático junto aos países da região permitiria ao Brasil um melhor exercício do univer-salismo diplomático, base da política exterior do Itamaraty, fortalecendo a diretriz da ‘autonomia pela integra-ção’. O Mercosul, então, era condição necessária à autonomia brasileira, res-guardando e ampliando a identidade nacional pelo globo”.

Para complicar a situação da “mama” África, havia carência de recursos fi nan-ceiros e humanos para que se pudesse exercer uma política exterior que fosse hemisférica e global. Era preciso fazer opções, e a África não ganhou um lu-gar de destaque na nova agenda. “Num continente com mais de 40 países como o africano era impossível não fazer uma política seletiva”, contou, em entrevista para o pesquisador, o ministro das Re-lações Exteriores do governo FHC, Luiz Felipe Lampreia, para quem, “sem des-considerar as relações com nossos par-ceiros tradicionais na África, as priori-dades da política externa se traduzem no processo de consolidação do Mercosul”. O resultado foi o fechamento de postos diplomáticos no continente africano e a ênfase na relação com os Países Africanos de Língua Ofi cial Portuguesa (Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Moçambique), os chamados Palops. “Essa escolha leva a concluir que o continente africano não é um vetor que mereça maiores investimentos por parte do governo FHC e no âmbito das relações Sul-Sul os esforços são concen-

Presidente do Senegal, Abdoulaye Wade, visita Brasília em 2007

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trados nas relações com a Índia e com a África do Sul. Nesse cenário, percebe-se com nitidez que o declínio comercial Brasil-África articula-se à própria re-tração do papel do Estado na economia, caracterizada pela desregulamentação e pela ampla privatização.”

Segundo Ribeiro, o governo Lula se mostrou como um ponto de infl e-xão nas relações entre África e Brasil. “Essas mudanças derivam, em gran-de medida, do projeto internacional do governo de que, no plano global, existe espaço para uma presença mais afi rmativa do Brasil, uma avaliação de conjuntura mundial que assume a existência de brechas para uma po-tência média como o Brasil, as quais, por meio de uma diplomacia ativa e consistente, podem até ser ampliadas.”

‘É IMPORTANTE

TRANSFORMAR OS

LAÇOS DE AMIZADE

EM PROGRESSO

ECONÔMICO E

SOCIAL’, DIZ AMORIM

No Atlântico, a política em relação ao continente africano vira uma priorida-de. “A África tem muita pobreza, mas não é estagnada. Em minhas diversas viagens ao continente, noto haver di-namismo e vontade de encontrar so-luções autóctones para os problemas africanos”, observou, em entrevista ao autor, o atual chanceler Celso Amorim. A política em direção à África, porém, ganhou foros mais pragmáticos. “Ape-sar de os vínculos étnico-culturais se-rem apresentados como um diferencial em nossas relações, é a convergência de interesses no plano da agenda global que se constitui no dado legitimador da política sobre a África. Quanto mais coordenação houver com o continente, mais chances teríamos de ser ouvidos na esfera internacional no sentido de obter o atendimento a certos interes-ses brasileiros e dos africanos”, explica Ribeiro. A dinâmica comercial também tem peso considerável na relação.

“É importante transformar os laços de amizade em progresso econômico e social”, adverte Amorim. Assim a reabertura de postos diplomáticos fe-chados e as muitas visitas feitas pelo presidente Lula à África com empre-sários. “Ainda assim há problemas de comunicação graves. Segundo os diplo-matas entrevistados, pesa muito na falta de adensamento das relações comer-

ciais a ausência de participação ativa do empresariado no desenho da ação diplomática, o que expressaria o baixo perfi l empreendedor do setor privado nacional. Já os empresários reclamam da atuação dos diplomatas na região.” Para o setor privado investidor, não basta abrir postos diplomáticos sem dar condições de trabalho para os di-plomatas, bem como é necessário se repensar a “capacitação adequada” dos quadros diplomáticos brasileiros.

“O que se percebe é que a estratégia externa em termos comerciais perma-nece restrita a pequenos grupos decisó-rios e auto-sufi cientes do governo que, de posse de informações, sabem e deci-dem”, nota Ribeiro. “É evidente a margi-nalização do setor privado. Na falta de um canal de comunicação concreto en-tre os dois grupos, de fomentar parceria entre governo e setor privado, nota-se a permanência de um comportamento diplomático baseado na consulta ad hoc aos setores interessados.” Para o autor, “é preciso repensar o processo de for-mulação da atual política brasileira para a África, pois não é possível sustentar a premissa de que essa seja uma dimensão estritamente estatal”.

Há, porém, boas-novas até para o campo científi co, como a entrada re-cente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) no continen-te, atuando na África com desenvolvi-mento de projetos de uso sustentável de recursos naturais, sistemas produtivos e proteção sanitária de plantas e animais, com direito a um caminho inverso no futuro, já que o continente tem mui-to a ensinar ao Brasil sobre tecnologia de mineração, entre outras coisas. “É preciso que a nova política africana do Brasil não seja um ato de retórica, mas deverá servir ao conjunto da sociedade de todos os países envolvidos, na arti-culação em favor do acesso dos nos-sos produtos nos mercados fechados do Norte”, avisa Saraiva. A verdadeira “mama” África não é mãe solteira. ■

Politizados: no 7º Fórum Social Mundial em Nairóbi

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HISTÓRIA

O dilema

Estudo recupera personagem perseguido por Inquisição

Chico Buarque fez história e irritou o governo militar ao afi rmar, numa música, que “Vence na vida quem diz sim”, parte do musical Calabar, o elogio da traição. “A idéia da peça era discutir a traição, mas a traição com uma fi nalidade louvável. Era como discutir se o Lamarca, um militar que passou para o lado

da guerrilha, era ou não um traidor. Havia um paralelo evidente”, afi rmou o compositor sobre a obra, censu-rada em 1974. Infeliz o país que precisa de heróis ou o país que esconde seus traidores? Para o historiador Carlos Vesentini, idéias como “Calabar, o traidor” vão se construindo a partir das lutas de representações durante as disputas de poder. “Como vencedor, a apropriação da idéia garante-lhe legitimidade para dirigir a obra, como ainda faculta-lhe cindir o tempo, instaurando um passado capaz de caracterizar um vencido, abrir um futuro, e localizar uma realização.” Assim, quem merecerá ser lembrado pela história? Afi nal, quais os critérios para classifi car um traidor? E quem são, de fato, os heróis e os vilões?

“A nossa historiografi a deixou os traidores à mar-gem, tanto é que o maior deles, Calabar, não mereceu uma grande biografi a”, lamenta o historiador Ronaldo Vainfas, da Universidade Federal Fluminense (UFF), que acaba de dar a sua contribuição contando a história de um notável traidor, curiosamente do mesmo período histórico de que saiu Calabar, a dominação holandesa no Brasil colonial (1630-1654). “O padre jesuíta Manoel de Moraes foi um homem que namorava a heresia, mas se casou mesmo com a traição, estrela de uma longa constelação de traidores e colaboradores. Saiu do catolicismo para o calvinismo militante. Rompeu a fi delidade a Felipe IV, de Habsburgo, para ser vassalo orgulhoso do príncipe de Orange. Passou de capitão de Matias de Albuquerque contra os holandeses para capitão contra os portugueses. Mas não deixou de R

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fazer, depois, o caminho inverso. Largou o calvinismo em favor do catolicismo, abandonou o príncipe de Orange para jurar fi delidade a dom João IV, traiu a Companhia das Índias Ocidentais para servir a João Fernandes Vieira na guerra restauradora”, conta Vainfas, autor de Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição (Companhia das Letras, 384 páginas, R$ 47). “Ele foi um personagem extraordinário, o anti-herói esquecido das guerras pernambucanas, o ‘Calabar’ de batina preta ou gibão escarlate, cuja história nos permite conhecer a dominação holandesa nas entranhas do processo. Além disso, não deixa de estimular, por metáfora, a discussão sobre o ‘caráter brasileiro’, melhor dizendo, sobre a questão da ética na nossa formação histórica”, explica.

O período tem implicações profundas no imagi-nário nacional. “No Brasil, o interesse pela presença holandesa ressurge, na segunda metade do século XIX, num momento em que o Brasil desatava seus laços políticos com os portugueses e procurava construir sua identidade como nação independente”, afi rma o historiador Marcos Galindo, professor da Universidade Federal de Pernambuco. No site do Exército brasileiro, a descrição da Batalha dos Guararapes revela, ainda hoje, a delicadeza de se tratar do tema dos anti-heróis desse período: “O espírito dos Guararapes é o mais fi no e raro perfume da tradição da nacionalidade brasileira. O espírito dos Guararapes foi ontem a chama mais viva e radiosa que das heróicas terras de Pernambuco iluminou todo o Brasil no caminho dos seus gloriosos destinos. Sua brilhante chama quase desapareceu nas cinzas do lenho em que ardia radiosa, por omissão de muitos e intenção criminosa de alguns, durante a longa madrugada (1945-1964). O nacionalismo do espírito dos Guararapes é o nacionalismo racional, estratégico, seguro, traduzido na prática por uma Petrobras, uma Transamazônica, o decreto de 200

eterno da traição

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milhas de mar territorial, nossa políti-ca de fretes marítimos e tantas outras realizações como Volta Redonda, marco do progresso material do Brasil”.

Manoel de Moraes, o traidor, era ma-meluco natural de São Paulo, nascido por volta de 1536. Ingressou na Companhia de Jesus em 1613 e foi enviado para o Colégio da Bahia, iniciando sua carreira de missionário em Pernambuco, um das principais capitanias açucareiras do Brasil. Lá foi responsável pela catequese de Felipe Camarão, o futuro líder dos potiguaras contra os holandeses. Em 1627, a Companhia das Índias Ocidentais, a WIC, uma empresa moderna com ob-jetivos comerciais, invadiu Pernambuco (após, em 1623, ter atacado a Bahia), desafi ando os monopólios ultramarinos ibéricos, que incluíam, em razão da União Ibérica, Espanha e Portugal, ambos logo em guerra contra os Países Baixos.

O líder português Matias de Albuquer-que adotou uma tática de guerrilha contra os invasores, contando para

tanto com apoio indígena, arrebanhado, entre outras formas, com a ajuda dos jesuítas, que “dominavam” as populações nativas. Manoel lutou“como um leão” ao lado dos índios, “ao qual obedecem como a seu Capitão, com grande pon-tualidade em tudo quanto lhes manda”, nas palavras de uma fonte da época. O padre pelejou na defesa do Recife, nas escaramuças do Arraial do Bom Jesus,

na defesa da Ilha de Itamaracá e na do Rio Grande e, observa Vainfas, “só não chegou a ser capitão oficial pela sua condição de jesuíta”. Os holandeses logo perceberam a importância de contar com os índios e, a seu favor, tinham “o desgaste de uma colonização que os fl agelava há mais de cem anos em várias capitanias”. Faltava-lhes, porém, um líder para angariar os nativos.

Manoel “tornou-se um homem so-berbo, contador de vantagens” e que ousou escrever ao rei Felipe IV pedindo compensações materiais pela sua bravura. Criou inimigos aos montes e despertou invejas. Cansado das intrigas, segundo anotou o holandês Joannes de Laet, “o padre Manoel veio ter com os nossos, fato importante por ser ele um jesuíta que exercia a maior autoridade sobre todos os selvagens da região e passou voluntariamente para os nossos”. O traidor foi enviado ao Recife e passou a viver como um capitão holandês, an-dando pelas ruas “vestido de ‘framengo’ e lançando-se aos prazeres do sexo”. Segundo Vainfas, “embora conhecesse mal o calvinismo, não somente pareceu adotá-lo como tentava fazer proselitismo entre os prisioneiros portugueses, inclu-sive religiosos”. A importância da ação do padre foi tão grave, nota o autor, que a Companhia de Jesus passou a adotar uma nova política de restrição de mestiços, já que ele era um “mameluco paulista”. Enquanto isso, o ex-jesuíta (expulso da

ordem por traição religiosa) saboreava sua glória na Holanda, para onde fora levado pelos invasores, agora a serviço da WIC, chegando a propor um modelo de conquista dos índios baseado em seu aprendizado da catequese jesuítica, um híbrido de ensinamentos calvinistas e inacianos. Aliás, foi como calvinista que se casou duas vezes entre os batavos.

“O calvinismo que atraiu Manoel não era o da fé interior, mas a doutrina que lhe permitia mudar sua vida pessoal, já que não penalizava a riqueza material e não exigia celibato”, explica o autor. Julgado pela Inquisição, foi condenado in absentia e sua “estátua” foi queimada em praça pública em Lisboa. Com a res-tauração lusitana, começou a negociar, secretamente, com os portugueses, mas aceitou um bom dinheiro para voltar a Pernambuco, em nome da WIC, e explorar pau-brasil, largando mulher e fi lhos na Europa. Deu um calote nos holandeses. “Manoel era um traidor perfeito. Traiu os jesuítas; traiu os portugueses na guerra de resistência; voltou a traí-los, prometendo, nos acordos secretos, voltar a servir dom João IV em troca de mercês e perdões, enquanto arrancava o contrato do pau-brasil; traiu, ao mesmo tempo, a WIC, oferecendo-se aos embaixadores portu-gueses para combater os holandeses no Brasil.” E não parou por aí. Voltou a adotar os hábitos religiosos de antes e resolveu se apresentar ao Santo Ofício em busca de perdão, de quebra, denunciando judeus ocultos no Brasil. Em Portugal, julgado, foi absolvido, mas penou nas prisões da Inquisição e perdeu todo seu dinheiro, não sem antes escrever um violento panfl eto contra os holandeses.

“Não vou festejar nosso Manoel de Moraes, que não é caso para tanto. Mas, metáfora por metáfora, fi co com a idéia de que já estava morto quando saiu no auto-de-fé de 1647, após ser absolvido, como se fora um El Cid às avessas, embora estivesse vivíssimo”, conclui Vainfas. O seu destino foi o esquecimento. Como, de certa forma, experimentou Calabar, o patriarca dos traidores, que, como Manoel, ao ver que a balança da guerra pendia para os holandeses como tantos outros quis tirar alguma vantagem de seus talentos. Também se converteu ao calvinismo e, como o padre, afi rmou em vários depoimentos que “muito sabia e tinha visto naquele material e que não eram os mais abatidos do povo os culpa-

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dos”, nota Vainfas, mostrando que havia outros traidores, festejados como heróis ou patriotas. “Sua morte foi o que chamamos de ‘queima de arquivo’ e sua execução se deveu não apenas ao colaboracionismo, mas também ao conhecimento que ad-quirira dos contatos comprometedores mantidos por pessoas graúdas com au-toridades neerlandesas.”

C urioso paralelo com a frase dita pelo personagem de Matias de Al-buquerque no Calabar, de Chico e

Ruy Guerra: “Calabar será executado sem a presença do povo, na calada da noite, para que não diga coisas que não devem ser escutadas”. “A questão dramática da traição é essencial para o entendimento do drama de protesto político no Brasil durante o regime militar. Nada menos do que quatro dramaturgos (O sonho de Calabar, de Geir Campos; Calabar, de Ledo Ivo; Calabar: o elogio da trai-ção, de Chico Buarque e Ruy Guerra) usarão o contexto histórico do confl ito entre portugueses e holandeses para examinar o conceito de traição e suas

implicações para o público moderno”, afi rma Severino João Albuquerque, da Universidade de Wisconsin.

“Todas as peças se perguntam: se-rá que traidores não podem ser boas pessoas num contexto de dominação colonial? O espectador é convidado a relacionar o gesto de Calabar ao Brasil atual, cuja economia é controlada, cada vez mais, por corporações e bancos estrangeiros”, observa o professor. Na peça de Ledo Ivo, por exemplo, Calabar diz: “Lamento agora ter servido à Ho-landa, da mesma forma que lamento ter servido à Espanha e a Portugal”. Mais à frente, o traidor iguala o passado e o futuro brasileiros com aquele do Novo Mundo: “Todos nós somos a América: esta miséria cercada de ouro. Somos a América: nosso futuro está no passado”. Num registro muito próximo, o Calabar de Chico e Ruy tem sua honra defendida por Bárbara, a viúva: “Calabar sabia o gosto da terra. Calabar vomitou o que lhe enfiaram pela goela. Foi essa sua traição. A terra e não as sobras do rei. A terra e não a bandeira”. O conceito

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de traição é sempre questionado: “Um dia esse país vai ser independente. Dos holandeses, dos espanhóis... Mas isso requer muito traidor. Muito Calabar. E não basta enforcar, retalhar, picar...Calabar é cobra-de-vidro. E o povo jura que o cobra-de-vidro é uma espécie de lagarto que quando se corta em dois, três mil pedaços, facilmente se refaz”. Para Albuquerque, no contexto das peças, independentemente de que o poder colonial está sendo afetado, a traição vira uma reação nativa à imposição de estruturas estrangeiras na economia da terra. “Traição é um instrumento de resistência do oprimido, não importa em que tempo, se em 1630 ou hoje, ou da identidade do opressor.” Ou, nas palavras de Vainfas: “Manoel deu um exemplo magnífi co de mediação cultural, falando português, castelha-no, tupi, latim e, quem sabe, holandês. Transitou em vários mundos, serviu a muitos senhores. Traiu a todos”. Afi nal, vence quem diz sim. ■

Carlos Haag

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Getúlio Vargas (1882-1954) teve o cuidado de criar para si uma tra-jetória de vida das mais gloriosas, narrada em livros, enquanto ten-tava torná-la real no dia-a-dia. Em especial, quando se tornou dita-dor, a partir de 1937. Estabeleceu

uma máquina efi ciente de propaganda em torno de sua imagem, por meio do Depar-tamento de Imprensa e Propaganda (DIP), inspirada em Adolf Hitler e Benito Musso-lini, líder fascista italiano e seu ídolo decla-rado. Ficaram famosas entre as crianças de sua época as aventuras heróicas de político que regularmente o Ministério da Educação mandava para as escolas ou iniciativas co-mo a do editor Adolfo Aizen (1907-1991), pioneiro das histórias em quadrinhos no Brasil, que produziu em sua homenagem um gibi vendido em bancas em 1942. Sua biografi a, no entanto, foi encerrada pela tragédia do suicídio, em agosto de 1954.

Não se sabe exatamente por que a vida de Getúlio conseguiu ofuscar a de uma pessoa que foi fundamental para seu êxito político: Darcy Vargas, a esposa de toda vida. Uma in-justiça histórica que começa a ser corrigida com o lançamento de Mulher e política – A trajetória da primeira-dama Darcy Vargas (1930-1945), da Editora Unesp, resultado do doutorado de Ivana Guilherme Simili, da Universidade Estadual de Maringá, Paraná, realizado na Unesp entre 2000 e 2004. Ivana focou seu estudo no primeiro mandato de Vargas, que se estendeu da Revolução de 1930 ao fi m da Segunda Guerra Mundial, em 1945, prolongado pela implantação da ditadura do Estado Novo.

O trabalho vai além da política em si e do varguismo. Mapeia no decorrer da narrativa um importante momento de emancipação feminina no país, uma vez que Darcy colocou a mulher na vida polí-tica nacional por meio da mobilização so-lidária – é preciso lembrar que somente em 1928 o sexo feminino passou a ter direito de voto no Brasil, depois de uma campanha de 11 anos. Nesse ano também foi eleita a primeira prefeita do Brasil, Alzira Soria-no de Souza, no município de Lages (RN). Essa aproximação seria avançada a partir de 1961, quando surgiram as organizações femininas que legitimariam o golpe militar de 1964, graças às marchas da família por elas organizadas – tema que não faz parte da pesquisa de Ivana.

A personagem revelada pela pesquisa-dora construiu uma história própria e pa-ralela à do marido. Getúlio e Darcy se casa-Gonçalo Junior

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ram em 1911 e tiveram quatro fi lhos, todos nascidos na década de 1910 e já falecidos. O nome da esposa começou a se destacar nacionalmente durante o movimento re-volucionário que anulou a eleição do pre-sidente Júlio Prestes e levou seu marido ao poder em outubro de 1930. Imediatamen-te, ainda durante o levante golpista, Darcy criou a Legião da Caridade, associação de mulheres que deveriam produzir roupas pa-ra os revolucionários e distribuir alimentos às famílias daqueles que acompanharam Vargas. A conclusão de Ivana é que, nos 15 anos seguintes, da participação e expressi-vidade das ações de benemerência social de dona Darcy dependeu boa parte dos sucessos políticos obtidos pelo governo de Vargas, considerado por muitos o maior estadista brasileiro de todos os tempos.

Nesse contexto, além de traçar a perso-nalidade de Darcy, a tese aponta sua con-tribuição para a criação de um modelo de atuação da mulher na vida pública. Seu ges-to mais importante foi a criação da Legião Brasileira de Assistência (LBA), em 1942. Segundo a autora, ao envolver-se com as questões sociais ocorridas com o ingresso do país no confl ito mundial, ela fazia surgir no cenário nacional a primeira instituição pública de assistência social e marcava de forma decisiva sua participação na história da política assistencial. “Mais que isso, é pos-sível dizer que, no período de 1942 a 1945, as mulheres que se tornaram voluntárias da LBA escreveram um capítulo importante da história das mulheres na guerra” – um dos pontos marcantes do livro.

Em 1938, com a Fundação Darcy Vargas, e, em 1942, com a LBA, ela desenhou seu percurso fi lantrópico-assistencial. As inicia-tivas da primeira-dama, diz Ivana, sempre estiveram articuladas com os empreendi-mentos políticos do marido. E sugerem, também, como as lutas e conquistas mascu-linas são fatores que mobilizam e envolvem as mulheres – esposas, mães, fi lhas. “Em suma, elas se transformam em questões da família.” A imagem possível de ser obtida de Darcy nesse contexto é a de uma esposa e mãe dedicada à família – ao marido e aos fi lhos. O mesmo empenho observado na vida privada, no entanto, a primeira-dama levou para o espaço público, na criação e na administração das entidades fi lantrópicas e assistenciais para cuidar dos “outros” – a lista inclui desde pequenos jornaleiros aos soldados mobilizados pela guerra e suas famílias. “Nos empreendimentos sociais e assistenciais ela se mostrava como uma

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Em 1938, com a Fundação Darcy Vargas, e, em 1942, com a LBA, ela desenhou seu percurso fi lantrópico-assistencial. As inicia-tivas da primeira-dama, diz Ivana, sempre estiveram articuladas com os empreendi-mentos políticos do marido. E sugerem, também, como as lutas e conquistas mascu-linas são fatores que mobilizam e envolvem as mulheres – esposas, mães, fi lhas. “Em suma, elas se transformam em questões da família.” A imagem possível de ser obtida de Darcy nesse contexto é a de uma esposa e mãe dedicada à família – ao marido e aos fi lhos. O mesmo empenho observado na vida privada, no entanto, a primeira-dama levou para o espaço público, na criação e na administração das entidades fi lantrópicas e assistenciais para cuidar dos “outros” – alista inclui desde pequenos jornaleiros aosoldados mobilizados pela guerra e su

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mulher que não media esforços para conseguir seus intentos.”

O poder de mobilização de Darcy Vargas, ressalta a autora, é um elemento a ser destacado. Basta lembrar que ela conseguiu envolver nomes importantes do universo social, cultural, político e artístico da época. E os levou a participar de suas realizações. Desse modo, contou com o apoio e a adesão das mulheres da elite nos projetos fi lantrópico-assisten-ciais, algo inédito na época. “O poder que detinha, pelo lugar ocupado no cenário nacional, facultou-lhe a possibilidade de fazer uso da máquina administrativa em nome da fi lantropia.” Tratava-se, sem dúvida, afi rma Ivana, de uma mulher com personalidade composta por alguns ingredientes: diplomata no trato com as pessoas para conseguir o que queria, determinada nos seus empreendimentos e sedutora na conquista para atingir seus objetivos. “Os retratos de Darcy Vargas possíveis de ser obtidos pela documenta-ção consultada revelam que ela era uma mulher dominada pelo marido. Entre-tanto, conforme diz Chartier, existem algumas fi ssuras nas relações sociais e de poder que inauguram possibilidades aos sujeitos para mudar as regras do jogo.”

Nos jogos estabelecidos entre o ca-sal e entre pais e fi lhos, diz a autora, Darcy Vargas encontrou espaço para infl uenciar e fazer valer suas vontades.

“Embora seja preciso ressaltar que os jogos familiares trazidos à tona são versões de Getúlio e de Alzira para os fatos relatados – foram consultados, em especial, os diários de Vargas e a biogra-fi a deste, escrita pela fi lha –, podemos exemplifi car a afi rmação com a con-fi ssão feita pelo governante no diário de que em determinado momento da vida conjugal a esposa pediu a ‘separa-ção de camas’ e que a opinião da mãe numa contenda familiar, descrita por Alzira, fora fundamental para que o pai se convencesse e permitisse que ela se tornasse motorista.” Em seu relato, Al-zira usa a expressão “o poderoso apoio da mãe” para falar da força materna no âmbito familiar. “Quanto à infl uência da personagem no circuito das decisões políticas, se elas aconteceram, não fo-ram objeto de registros.”

Chamou a atenção de Ivana ao focalizar a trajetória da personagem o modo pelo qual o casamento pode ser um elemento diferenciador no per-curso de uma mulher, de modo a criar mecanismos para a ascensão social e política. A história de Darcy Vargas é exemplar nesse sentido. Nas palavras da autora, pelo casamento ela foi in-serida no universo da política; e pelas relações conjugais foi levada a parti-cipar das encenações do poder. “Não resta dúvida de que nos jogos públicos

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e políticos a primeira-dama foi estraté-gica para Vargas na fabricação de ima-gens e representações para o governo e governante, mas ela também soube aproveitar os benefícios oferecidos pelo poder.” Desde sua chegada no Rio de Janeiro em 1930 e até 1945 as fotogra-fi as mostram a mudança no seu visual, transformando-se numa mulher bem-vestida e atualizada na moda. “Com as criações fi lantrópicas e assistenciais, ela produzia um modelo de atuação e de participação da esposa na política.”

No seu percurso inscrevem-se tam-bém as formas de atuação e de parti-cipação dos segmentos da elite no de-senvolvimento de projetos e programas dedicados à maternidade e à infância promovidos pela primeira-dama. A au-tora não tem dúvida em afi rmar: “Ou seja, Darcy Vargas pode ser tomada como representante da presença do maternalismo na construção do Esta-do brasileiro e das políticas públicas para mulheres, crianças e adolescentes. Finalmente é preciso lembrar a con-tribuição da LBA, sob a administra-ção da primeira-dama, para alavancar a profi ssionalização do serviço social no país”.

Ruth - A tese de Ivana começou a brotar em 1997, infl uenciada pelas leituras de historiadoras das mulheres e de gênero. Surgiu então a vontade de trabalhar com questões relacionadas à mulher na polí-tica. Primeiro pensou em estudar Ruth Cardoso e o Programa Comunidade So-lidária, surgido na década de 1990. Algu-mas leituras começaram a indicar que havia uma relação entre a Legião Brasi-leira de Assistência, extinta por Fernando

A primeira-dama dirigindo, da cadeira do marido, reunião no Palácio do Catete

Dona Darcy na ativa, momento a momento:

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Henrique Cardoso em 1995, e o progra-ma de Ruth Cardoso, lançado logo em seguida pela mulher do presidente. “Dei então início a um estudo comparativo entre as duas primeiras-damas – Darcy Vargas e Ruth Cardoso. No decorrer da investigação, percebi que havia uma lacu-na a ser explorada pela história das mu-lheres e pela história política brasileira, a qual dizia respeito ao papel desempe-nhado por Darcy na história política, particularmente a assistencial.”

A bibliografi a consultada contribuía para a pesquisadora se defi nir. Colabo-raram nesse sentido as poucas menções à personagem na literatura histórica que cobriam temas, personagens e questões do governo e governante; a maneira co-mo a primeira-dama era descrita quan-do aparecia nos relatos, particularmente nas biografi as criadas para ela, as quais falavam de sua dedicação às ações as-sistenciais com início em 1930, com a Legião da Caridade, substituída pela Fundação Darcy Vargas (1938), e, por fi m, o nascimento da Legião Brasileira de Assistência (1942). E ainda os estu-dos da assistência social que vinculavam sua participação na política assistencial ao criar a Legião Brasileira de Assistên-cia, a primeira instituição pública de assistência social, que surge no cená-rio assistencial com o ingresso do país na Segunda Guerra Mundial – com o objetivo de “amparar os soldados mo-bilizados e seus familiares”. Tudo isso confi rmava a impressão de que a traje-tória da primeira-dama podia esclarecer aspectos importantes sobre o relaciona-mento da mulher com a política.

No trabalho sobre Darcy Vargas, desenvolvido no doutorado, Ivana

buscou conhecer os meandros percor-ridos pela personagem Vargas no seu relacionamento com Getúlio e suas “políticas”. Um dos questionamentos foi qual o signifi cado que o casamento com Getúlio Vargas teve para a sua vi-da. Ou como ela havia convivido com a carreira política do homem público. A autora se indagou também de que maneira a política participou de sua vida e que participação que ela teve no percurso de Vargas e suas “políticas”. “Enfi m, tratei de descobrir a diferença que o casamento e a convivência com Getúlio tinha feito na sua vida, criando para ela formas de atuação e de partici-pação na vida pública brasileira.”

Damismo - Ivana acredita que seu estudo produziu uma história para a personagem, a qual permite entender aspectos signifi cativos da atuação das primeiras-damas e, por conseguinte, o processo de construção do primeiro-damismo no Brasil e da participação das mulheres dos homens públicos nos circuitos do poder. A principal di-fi culdade encontrada para a realização do trabalho foi com relação às fontes. Darcy Vargas não deixou nada ou quase nada escrito de próprio punho. Dela, a autora encontrou apenas uma carta manuscrita, a qual tratava de aspectos relacionados a um dos momentos mais dolorosos de sua existência: a morte do fi lho, Getulinho, em 1943, aos 26 anos de idade. Nos acervos da imprensa e de memória era possível encontrar a personagem. “Ela estava nas notícias, nas obras memorialísticas, nas imagens fotográfi cas, nos documentos escritos de vários tipos e estilos (atas, boletins,

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Para contornar os problemas das informações das fontes, Ivana desen-volveu algumas estratégias narrativas. Como, por exemplo, a composição de cenários com a bibliografi a sobre mulheres e política, em suas múlti-plas perspectivas. As diferenças nas informações obtidas pelas fontes de consulta, explica ela, também foram determinantes na narrativa. No diá-rio de Getúlio e no livro Getúlio meu pai, escrito pela fi lha Alzira Vargas do Amaral Peixoto, captou as representa-ções para mãe e esposa; os materiais da imprensa, as fotografi as e os ou-tros documentos forneceram as pistas para perseguir a primeira-dama nas múltiplas formas de sua atuação co-mo mulher pública – esposa e presi-dente das instituições. “Foi a história possível de ser escrita sobre o percur-so da personagem que o livro oferece aos leitores.”

Darcy Vargas morreu no Rio de Janeiro, em 1968. Após o suicídio do marido, em 1954, ela permaneceu mo-rando no Rio de Janeiro e continuou na administração da fundação que leva o seu nome. No mesmo ano da morte da idealizadora da entidade, a fi lha Alzira Vargas assumiu seu lugar na direção. Em 1992, quando Alzira morreu, a ne-ta dos Vargas, Edith, fi lha de Jandira, assumiu os trabalhos e responde pela instituição até hoje. ■

recebendo doação de livros, entregando-os para a autoridade escolar e, por fi m, presenteando marinheiro com exemplar

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RESENHA

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S e já causa estranheza o conceito de uma “Rússia americana”, o que dizer do uso dessa expres-

são, que reúne ideais aparentemente antagônicos, para explicar o Brasil, ou melhor, para questionar a idéia de que somos um país fadado ao atraso, partindo justamente de um elemento, a imensidão territorial, em geral, entendido como a raiz própria desse atraso? Esse é o tema comple-xo de que João Marcelo Ehlert Maia trata, com precisão e inteligência, em seu livro A terra como invenção, fruto de seu doutorado, vencedor do Prêmio Anpocs 2007 de melhor tese em ciências sociais.

Num exercício intelectual notá-vel, o pesquisador procura reabrir o pensamento social brasileiro sobre as características do processo civi-lizador nacional, analisando obras literárias menos conhecidas de dois engenheiros-pensadores, Euclides da Cunha e Vicente Licínio Car-doso. Na idéia central da dupla a visão de um Brasil cuja formação social, na contramão do senso co-mum, se baseou no pragmatismo, na modernidade inconclusa e na in-ventividade bem como na aspereza, que ganha, com eles, status de força positiva. Nesse movimento, o país seria, para usar a expressão utiliza-da por Gilberto Freyre, uma Rússia americana, trazendo elementos das duas culturas na formação de um pensamento sobre a terra inovador em face daquele em vigor no Velho Mundo. Entre nós, a lógica terri-torialista sempre nos condenou a uma evolução que impossibilitaria a modernidade.

Daí a importância do debate que, aparentemente acadêmico, é dotado de grande atualidade, aplicável a experiências da sociedade contemporânea brasileira como favelas, ajuntamentos urbanos e sertões galvani-zados pela cultura global. Como, porém, compreender uma Rússia americana? “Os exemplos russo e americano guardam diferenças, mas apontam para um campo que guarda elementos convergentes. Nas duas formações sociais, a terra foi a imagem principal de fabulações que buscavam um caminho inventivo e aberto para o processo civilizador, que não repetisse os códigos do Velho Mundo e fornecesse aos seus povos a chance de se recriarem de maneira fl exível”, nota o autor.

No caso de Euclides, nos seus escritos sobre a Ama-zônia (Terra sem história), a chave estaria na “terra em movimento que exige uma sociabilidade nova, ao mesmo tempo bárbara – ele compara os seringueiros a personagens dostoievskianos – e inventiva”. Nessa geografi a em que falharam tentativas de se adaptar uma civilização artifi cial, apenas uma experiência no-va e “bárbara” (não vista em oposição ao moderno, mas na sua vanguarda) poderia prosperar. Licínio, em À margem da história da República, que organiza em 1920, reunindo um grupo de pensadores interessados numa visão crítica da República, vai ainda mais longe. O Brasil, como nação americana e tropical, partilharia do potencial americano dos pioneiros que desbravaram as fl orestas ao norte.

“Essa imagem associa uma qualidade civilizatória americana, fazendo do Brasil uma sociedade marcada pela inventividade.” Ao mesmo tempo, fala em “força da terra”, conceito russo que vê num registro de civili-zação pujante e aberta, a despeito da aridez da vida nas estepes. No Brasil, as duas “virtudes” se encontrariam e se tropicalizariam na Rússia americana, capaz de dar ao binômio conservação-mudança de nossa socieda-de um andamento positivo, já que indicativo de uma forma de modernidade periférica ajustada a uma boa experiência civilizatória que dispensa um código moral das sociedades centrais. “O Brasil se constrói a partir do movimento constante de conhecê-lo e inventariá-lo”, observa o autor. Sorte nossa contar com um guia tão bem preparado como João Marcelo.

A Rússia americanaEstudo revela visão inovadora da terra brasileira

A terra como invenção

João Marcelo Ehlert Maia

Jorge Zahar Editor

222 páginasR$ 39,00

Carlos Haag

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LIVROS

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Lasar Segall: arte em sociedadeFernando Antonio Pinheiro FilhoCosac Naify e Museu Lasar Segall272 páginas, R$ 42,00

O livro trata de um dos aspectos pouco estu-dados da obra de Segall: seus trabalhos como cenógrafo e decorador de bailes da Sociedade Pró-Arte Moderna e de pavilhões de arte da elite paulistana nos anos 1920 e 30. O autor atenta para a inserção social do artista nesse ambiente e para o jogo de interdependência entre este e seus mecenas, traçando assim um retrato estético e político dessa época.

Cosac Naify (11) 3218-1444 www.cosacnaify.com.br

Sons, formas, cores e movimentos na modernidade atlântica: Europa, Américas e ÁfricaJúnia Ferreira Furtado (org.)AnnaBlume Editora508 páginas, R$ 60,00

Dando ênfase para temas pouco explorados pela historiografi a, Júnia Furtado organiza um estudo voltado para as formas, os sons, as cores e os movimentos que caracterizam uma época em que o mundo ampliava suas fronteiras. Explorar as possibilidades que os quatro temas abrem para o estudo históri-co sobre o mundo atlântico moderno é o principal objetivo do livro.

AnnaBlume (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

Urdidura do vivido: Visão do paraíso e a obra de Sérgio Buarque de Holanda nos anos 1950Thiago Lima NicodemoEdusp248 páginas, R$ 33,00

Thiago Nicodemo foca o percurso intelectual de Sérgio Buarque durante toda a década de 1950 a partir de seu livro Visão do paraíso, fru-to de uma tese que escreveu em 1958, e lança olhares para as imagens e estereótipos brasilei-ros como símbolos e mitos. O autor também faz uma comparação e contraste entre o seu protagonista e Caio Prado Jr. na condição de historiadores do Brasil colonial.

Edusp (11) 3091-4008 www.edusp.com.brFO

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Cem anos da imigração japonesa: história, memória e arteFrancisco Hashimoto, Janete Leiko Tanno, Monica Setuyo Okamoto (orgs.)Editora Unesp372 páginas, R$ 45,00

A coletânea reúne 18 textos de pesquisado-res e artistas que, sob olhares diversifi cados, abordam a temática da imigração japonesa. Valorizando documentos literários, artís-ticos, jurídicos e orais, o livro ultrapassa o padrão acadêmico e busca rememorar o centenário da vivência de japoneses em território brasileiro fazendo emergir o sentimento desses sujeitos de identidades híbridas e corações repartidos.

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Judeus no Brasil: estudos e notasNachman FalbelHumanitas, Edusp822 páginas, R$ 60,00

Judeus no Brasil visa recuperar parte da defasagem a respeito dos estudos da parti-cipação e da presença do elemento judaico na história do país, principalmente a partir do século XIX. O autor, medievalista e mi-litante de movimentos comunitários, lança mão de métodos modernos da historiogra-fi a para reunir uma rica documentação e pensar os problemas que envolvem estes personagens e instituições.

Editora Humanitas (11) 3091-2920 www.editorahumanitas.com.br

1932: imagens de uma revoluçãoMarco Antonio VillaImprensa Ofi cial208 páginas, R$ 60,00

O cenário paulista da Revolução de 1932 é retratado através de fotos, documentos e jornais da época, partituras e letras musicais, instrumentos bélicos, entre outras fontes. O olhar diferenciado de Marco Villa procura superar a convencional abordagem acadê-mica que toma o evento como último grito da velha oligarquia cafeeira deslocando-o para a questão democrática como herança política do confl ito.

Imprensa Ofi cial (11) 5013-5108 www.imprensaofi cial.com.br

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FICÇÃO...

Cobaia

F iz a inscrição porque quis. Ser cobaia de uma experiên-cia médica à base de mistério foi o que me motivou. Conheço outras cobaias. São pessoas curiosas, dóceis e

até saudáveis. Muitas tiveram parentes mortos por doenças letais e se botam como sacrifício da ciência. É uma forma de suicídio, querem fi car iguais ao fi nado.

Sou técnico em informática, mas sempre quis ser médico, atender gente mais fraca que eu. Aviar receitas, orientar o horário dos comprimidos, proibir o cigarro e ver o pacien-te dois meses depois com o rosto inseguro, querendo que eu diga a verdade sobre seu caso. Digo que por mais três meses ele poderá fi car tranqüilo, mas que exames mais ela-borados esclarecerão a origem dos sintomas. Ele dirá que os sintomas sumiram, eu informarei que é esse o sintoma do agravamento, o seu sumiço. O paciente me visitaria toda semana, os exames sempre imprecisos, confi aria em meu diagnóstico e nas bulas.

Fui médico placebo. Exerci medicina ilegal e fui pego por um juiz. Abri consultório em uma pequena cidade, havia um cardiologista e um dentista. Eu me ofereci como clínico-geral. O hospital me aceitou com os documentos falsifi cados que apresentei. Não mantive contato com os médicos, di-zendo que nunca podia tomar um café mais tarde por conta de minha mãe adoecida, ainda tinha que dirigir por duas horas até minha cidade-dormitório. Não havia reuniões de planejamento e pude gastar o receituário por quase um ano. Namorei uma mulher de quarenta e alguma coisa, só soube que seu pai era juiz quando ele se apresentou no quarto da pensão que aluguei na cidade vizinha.

Minhas fi chas são limpas, nas delegacias de polícia, nos consultórios dentários e nos fi nanciamentos de magazine. Apesar do fl agra, a queixa foi retirada e fui convidado a de-

saparecer, a fi ança foi paga a pedido da fi lha madura. Topei o acordo e sumi. Tratei de levar uma vida comum, fazendo conserto de eletrônicos, o problema é que as manchetes me excitam.

Polvos podem matar por ciúmesCientistas acham fezes de 14 mil anos Pesquisadores revelam insetos da Era dos dinossaurosAstrônomos divulgam imagens de tsunami solarHomem que era mulher anuncia estar grávido Tofu pode elevar risco de demência, diz estudoSíndrome faz mulher recordar 24 anos em detalhesCientistas fl agram assédio sexual de foca a pingüim

De um hospital pra outro não foi difícil. Com a fi cha limpa e sem a pretensão do jaleco branco, caneta de prata e carimbo, ofereci meu sangue. Doei muito. Sou doador universal, o tipo sangüíneo mais antigo do planeta. Ou o mais ultrapassado, o caboclo que vai levando na maciota em condições naturais. Talvez seja híbrido o sangue do homem atual, com anticorpos vindos do espaço, transmitidos em alguma festa de ufólogos em Goiás. Se bem que do espaço somos todos, boiando em torno da omelete com a gema mole do sol.

A doutora Sandra, responsável pelos procedimentos, me fez várias perguntas. O hábito gentil e cívico da doa-ção somou pontos no meu tipo psicológico, humanista e social. A ciência é rígida e seus seguidores são obedientes. Há leis de ética, punições e aquele que a exercer para fi ns individuais não consegue respeito nem bolsa de estudo. Ai do pesquisador que não faça uma análise de mercado, para saber o que a massa precisa e então formular suas questões.

Andréa del Fuego

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Eu daria um bom pesquisador, assim como fui excelente médico. Pesquisador ilegal é bem mais radical. Problema é que fi ngir ser um me escapa à técnica, ao discurso, onde pôr as mãos durante a palestra, se a armação dos óculos pode ser de acrílico fosco.

Sendo cobaia, pretendo ter acesso aos laboratórios nem que seja a portinhola de onde saem as seringas que a enfer-meira gentilmente espreme no meu braço. Fico deitado em ambiente asséptico, sou bem tratado.

Um doutor me observa e disca números em um celular.— Brandão? Deu negativo, fase quatro em andamento.Um dia essa cena se dará dentro do corpo de um homem

adulto, seremos diminuídos à nano-escala e viveremos em edifícios de osso, jardins de plaqueta, presídios de aspirina, beliches de benzetacil. Assinei uma cláusula de sigilo pela qual não poderei abrir a boca sobre exatamente o que não sei: o objetivo do experimento. Sei que há outros como eu, mas que fi caram em outra seleção, outra sala, outro contra-to. Assinei também um papel em branco, mas foi em troca de uma boa grana. Agora tenho casa própria, moto roliça, geladeira cheia e plano de saúde com direito a helicóptero. Claro, a qualquer momento um pesquisador poderá criar uma nova tecnologia sob a qual deverei me expor: uma substância, uma agulha, uma ressonância barulhenta.

Tenho pra mim que eles sabem de meu passado, e meu futuro sem glória faz de meu corpo um elemento branco e peludo de laboratório. Gosto disso. E não vai ser uma estudante de direito hospitalar que irá me salvar do que ela chama de absurda violação da integridade física e mental de um cidadão. Cidadão não doa sangue, não doa o corpo, não salva vidas ainda que sem o diploma. Diga a ela que eu não assino, não denuncio, não dou testemunho.

— Sim, Brandão, estou gravando o que ele diz, a subs-tância está em contato com a medula, posso observá-la.

Estamos na terceira sessão, o médico acha que pode ras-trear meu pensamento, pois ele carrega moléculas elétricas que são detectadas por aparelhos. Essas moléculas revelariam o DNA de um possível tumor criado por pensamentos de-salinhados no berço, ou seja, na minha cabeça. Os caras são loucos, eu fi co quieto. Não consigo precisar um pensamento, nem impedi-lo de nascer, o tal Brandão defende que tumo-res malignos têm consciência, os benignos são acéfalos. Os malignos pensam por si, se reproduzem quando encontram, no corpo do ratinho, um ninho de paranóia e carinho.

O que farão com a consciência do maligno só posso espe-cular: contato em primeiro grau, pedirão que a comunidade escolha uma molécula líder, exigirão que a líder explique sob o microscópio os seu objetivos, por fi m oferecerão ani-mais criados em laboratório no lugar do corpo humano, a molécula aceitará porque suas companheiras se rebelam justamente na multiplicação. Os cientistas terão que lidar com tumores do tamanho de animais, pois preferirão or-ganismos constantemente alimentados para hospedá-los. Aglutinados, pensarão com força, todas as moléculas dis-persas encontrariam seu território, terão time de futebol, bandeira, hino nacional e cobaias.

TH

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Andréa del Fuego é escritora, nasceu em São Paulo, em 1975. É autora da trilogia de contos Minto enquanto posso, Nego tudo e Engano seu (projeto contemplado com a bolsa de incen-tivo à criação literária da Secretaria do Estado de São Paulo) e do romance juvenil Sociedade da Caveira de Cristal. Mantém o blog www.delfuego.zip.net

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