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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, jan./jun. 2001 77 Eficácia temporal das decisões no controle abstra- to de normas 1 Rosana Bazzo Advogada “É na mudança que as coisas repousam.” Heráclito Sumário 1. Introdução. 2. Posição contrária aos efeitos retroativos das decisões de inconstitucionalidade. 3. O dogma da nulidade da lei inconstitucional na jurisprudência nacional. 4. Comentários ao dogma da nulidade da lei incons- titucional na jurisprudência nacional. 5. Os efeitos temporais da decisão de inconstitucionalidade no Direito Comparado. 6. Os temperamentos ao dogma da nulidade da lei inconstitucional na jurisprudência nacional. 7. Ponderação de interesses. Princípio da Proporcionalidade e os efeitos temporais das deci- sões de inconstitucionalidade. 8. A flexibilização do dogma da eficácia ex tunc. 9. A declaração de inconstitucionalidade poderá determinar a repristinação das normas que a Constituição eventualmente haja revogado? 10. Efeitos da de- claração de inconstitucionalidade – controle concentrado. 11. A Lei n.º 9.868, de 10 de novembro de 1999 e a Lei n.º 9.882, de 3 de dezembro de 1999. 12. Hermenêutica constitucional – A renovação do discurso metodológico. 13. Conclusão. 1. Introdução Questão controvertida, debatida há longo tempo, cuja discussão persiste até hoje, refere-se ao efeito da declaração de inconstitucionalidade. A senten- 1 Texto (com alterações) extraído da Monografia, apresentada ao Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) para a obtenção do Título de Bacharel em Direito, aprovada, com grau 10, pela banca examinadora, em 13/12/2000.

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, jan./jun. 2001 77

Eficácia temporal das decisões no controle abstra-to de normas1

Rosana BazzoAdvogada

“É na mudança que as coisas repousam.”

Heráclito

Sumário

1. Introdução. 2. Posição contrária aos efeitos retroativos das decisões de inconstitucionalidade. 3. O dogma da nulidade da lei inconstitucional na jurisprudência nacional. 4. Comentários ao dogma da nulidade da lei incons-titucional na jurisprudência nacional. 5. Os efeitos temporais da decisão de inconstitucionalidade no Direito Comparado. 6. Os temperamentos ao dogma da nulidade da lei inconstitucional na jurisprudência nacional. 7. Ponderação de interesses. Princípio da Proporcionalidade e os efeitos temporais das deci-sões de inconstitucionalidade. 8. A flexibilização do dogma da eficácia ex tunc. 9. A declaração de inconstitucionalidade poderá determinar a repristinação das normas que a Constituição eventualmente haja revogado? 10. Efeitos da de-claração de inconstitucionalidade – controle concentrado. 11. A Lei n.º 9.868, de 10 de novembro de 1999 e a Lei n.º 9.882, de 3 de dezembro de 1999. 12. Hermenêutica constitucional – A renovação do discurso metodológico. 13. Conclusão.

1. Introdução

Questão controvertida, debatida há longo tempo, cuja discussão persiste até hoje, refere-se ao efeito da declaração de inconstitucionalidade. A senten-

1 Texto (com alterações) extraído da Monografia, apresentada ao Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) para a obtenção do Título de Bacharel em Direito, aprovada, com grau 10, pela banca examinadora, em 13/12/2000.

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ça opera ex tunc, retroativamente, ou ex nunc, daí para o futuro? Sob outro ângulo: a lei inconstitucional é inexistente, nula ou anulável?2

Pertence à tradição do Direito brasileiro o dogma da nulidade da lei incons-titucional3. Embora não haja na Constituição Federal nenhum dispositivo atribuindo expressamente eficácia ex tunc às decisões proferidas no controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, a doutrina e jurisprudência pátrias reconhecem, com raras vozes discrepantes, o caráter declaratório e retroativo das referidas decisões, nele vislumbrando um verdadeiro princípio constitucional implícito4. No Brasil, a decisão de inconstitucionalidade não se limita a desconstituir a norma contrária à Constituição, mas pronuncia a sua invalidade ab initio5.

Neste ponto, o Direito pátrio filiou-se à doutrina dos mestres clássicos do direito norte-americano – Marshall, Charles Kent, Black, dentre outros6 da judicial review, firmada desde o julgamento do caso Marbury vs. Madison, em 18037. Na referida decisão, o grande Juiz Marshall cunhou o postulado da nulidade da lei inconstitucional, em termos que até hoje ecoam por todo o mundo8:

“A Constituição é a lei suprema e a lei que a contraria é nula. Tal teoria está essen-cialmente ligada a uma Constituição escrita e, conseqüentemente, deve ser consi-derada por esta Corte como um dos princípios fundamentais da nossa sociedade. Não deve, por isso, ser perdida de vista na ulterior consideração deste assunto. Se uma lei do Congresso, contrária a Constituição, é nula, obriga, apesar de sua inva-lidade, os tribunais, e devem estes dar-lhe efeito? Ou, em outras palavras, embora não seja lei constitui regra operante, como se lei fosse? Admiti-lo corresponderia a negar, de fato, o estabelecido na teoria; e pareceria, ao primeiro golpe de vista, absurdo tão grosseiro que sobre o mesmo é desnecessário insistir.”9

2 VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional de constitucionalidade. 2. ed. Belo Horizonte : Del Rey, 2000. p. 177.3 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo : Saraiva, 1996. p. 249.4 ALVES, José Carlos Moreira. A evolução do controle de constitucionalidade no Brasil. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord). Garantias do cidadão na justiça. São Paulo : Saraiva, 1993. p. 10.5 SARMENTO, Daniel. Eficácia temporal do controle de constitucionalidade das leis. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 212, p. 27-40, abr./jun. 1998.6 VELOSO, op. cit. p. 177.7 5 U.S. (1 Cranch) 137 (1803).8 SARMENTO, op. cit. p. 27.9 RODRIGUES, Lêda Boechat. A corte suprema e o direito constitucional americano. 2. ed. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1992. p. 37.

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Do ponto de vista lógico, as conclusões de Marshall parecem inobjetáveis. Se a decisão que reconhece a inconstitucionalidade de uma norma fosse dotada apenas de efeitos desconstitutivos, gozando de eficácia ex nunc, isto importaria no reconhecimento da validade dos efeitos da lei inconstitucional, produzidos até o advento da decisão. Tal sistemática se afigura contrária ao postulado da supremacia da Lei Maior, pois permite que, durante certo período, uma norma infraconstitucional se sobreponha aos ditames da Constituição10.

Entre nós, Rui Barbosa aderiu, sem rebuços, a este entendimento, fixan-do:

“Toda medida legislativa, ou executiva, que desrespeitar preceitos constitucionais, é, de sua essência, nula. Atos nulos da legislatura não podem conferir poderes válidos ao executivo.”11

A declaração de inconstitucionalidade, pouco importa se em sede de fiscaliza-ção concentrada ou difusa, no direito brasileiro desafia, portanto, salvo a hipótese da representação interventiva12, a pronúncia da nulidade do ato atacado.

A decisão judicial, segundo a doutrina consagrada, é declaratória (decla-ra um estado preexistente) e não constitutiva-negativa13. O ato judicial não desconstitui (puro efeito revogatório) a lei tal como ocorre, por exemplo, em outros modelos de fiscalização da constitucionalidade, mas apenas reconhece

10 SARMENTO, op. cit. p. 28.11 BARBOSA, Rui. Os actos inconstitucionais do congresso e do executivo. Rio de Janeiro : Cia. Impressora, 1893. p. 47.12 Na ação direta interventiva, com efeito, não há pronúncia da nulidade do ato impugnado. A decisão do Supremo Tribunal Federal (ou do Tribunal de Justiça, no caso da representação prevista na Constituição Estadual) apenas autoriza a decretação, pela autoridade competente, da intervenção federal ou estadual. Com idêntico entendimento: RAMOS, Elival da Silva. A inconstitucionalidade das leis : vício e sanção. São Paulo : Saraiva, 1994. p. 121.13 Em outra direção: KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. São Paulo : Martins Fontes; Brasília : Ed. UNB, 1990. p. 157-159, que influenciou a arquitetura da Corte Consti-tucional austríaca; MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Rio de Janeiro : Cohen, 1947. v. V, p. 292 e ss. e CALAMANDREI, Piero. La illegittimità costituzionale delle leggi nel processo civile, In: CAPPELLETTI, Mauro (Dir.). Opere giuridiche. Napoli : Morano, 1968. p. 72. No Brasil, atualmente, FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 3. ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1992.14 RTJ 89/367, 87/758, 82/791, 102/671, Adin 1434, DJU 22/11/1996, Adin 1434-SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 22/11/1996. No AGR 195.513 (Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 06/02/1998), o Supremo reafirmou posição: a medida liminar, nas ações diretas de inconsti-tucionalidade, tem, via de regra, efeito ex nunc. A decisão final de mérito, entretanto, tem efeito ex tunc.

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a existência de um ato viciado. E, por esse motivo, a decisão produz efeitos ex tunc, retroagindo até o nascimento da norma impugnada14.

Como sustenta Alfredo Buzaid:“O fundamento da doutrina americana e brasileira está, pois, em que, no conflito entre a lei ordinária e a Constituição, esta sempre prepondera sobre aquela. Se a lei inconstitucional pudesse adquirir validade, ainda que temporariamente, resultaria daí uma inversão na ordem das coisas, pois, durante o período de vigência da lei, se suspende necessariamente, a eficácia da Constituição. Ou, em outras palavras, o respeito à lei ordinária significa desacato à autoridade da Constituição”.

Segundo o pensamento do autor, uma lei não pode, a um tempo, ser e deixar de ser válida. As leis inconstitucionais não recebem um tratamen-to diverso. Porém, até o julgamento pelo tribunal, elas são executórias, embora inválidas.

Esposito observou que:“As leis inconstitucionais, até a proclamação da Corte, são executórias, mas não obrigatórias; têm eficácia, mas não têm validade”.15

Lei inconstitucional é, portanto, lei inválida, lei absolutamente nula. A sentença, que decreta a inconstitucionalidade, é predominantemente de-claratória, não predominantemente constitutiva. A nulidade fere-a ab initio. Embora executória até o pronunciamento definitivo do Poder Judiciário, a sentença retroage os seus efeitos até o berço da lei, valendo, pois, ex tunc. O Poder Judiciário não modifica o estado da lei, considerando nulo o que ini-cialmente era válido. Limita-se a declarar a invalidade da lei, isto é, declara-a natimorta16.

Mais radical, Francisco Campos expõe que a lei inconstitucional não é nula, nem anulável, mas inexistente, verbis:

15 ESPOSITO, Carlo. La validità delle leggi. Studio sui limiti della potestà legislativa e il controlo giurisdizionale. Milano : Giuffrè, 1964.16 BUZAID. Alfredo. Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito bra-sileiro. São Paulo : Saraiva, 1958. p. 132.17 CAMPOS, Francisco. Direito constitucional. Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 1956. v. I. p. 430. Ver, também, COOLEY, Thomas. Princípios gerais de direito constitucional dos Esta-dos Unidos da América do Norte; tradução de Alcides Cruz. 2. ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1982. p. 23 (reprodução fac-similar parcial da edição de 1909). Diz o professor da Universidade de Michigan e Juiz da Suprema Corte do Estado que uma lei inconstitucional, rigorosamente, “não é uma lei, porque não estabelece regra alguma; é meramente uma fútil tentativa para estabelecer uma lei”.

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“Um ato ou uma lei inconstitucional é um ato ou uma lei inexistente; uma lei in-constitucional é lei apenas aparentemente, pois que, de fato ou na realidade, não o é. O ato ou lei inconstitucional nenhum efeito produz, pois que inexiste de direito ou é para o Direito como se nunca houvesse existido.”17

Porém, na prática, a aplicação indiscriminada do dogma da nulidade das leis inconstitucionais suscita questões de difícil equacionamento. Com efeito, a eliminação retroativa de normas vigentes no ordenamento pode gerar situações de verdadeiro “caos” jurídico, ocasionando tremenda insegurança para aqueles que pautaram seus atos pela lei inconstitucional.

Tal problema se agrava, tendo em vista a imprescritibilidade do vício de ilegitimidade constitucional. Nada obsta que a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só seja reconhecida muitos anos depois da sua edição, após a consolidação de um sem-número de relações jurídicas constituídas sob a sua égide. Nestes casos, a supressão retroativa da lei contrária à Constituição pode acarretar tremendas injustiças, lesionando outros interesses e valores também tutelados pela Constituição18.

2. A posição contrária aos efeitos retroativos das decisões de inconstitucionalidade

Um segmento francamente minoritário da doutrina sustenta a natureza constitutivo-negativa da decisão que pronuncia a inconstitucionalidade de uma lei, atribuindo-lhe efeitos não retroativos. Tal posicionamento decorre sobretudo da influência dos ensinamentos de Hans Kelsen, que, ao tratar das leis inconstitucionais, averbou:

“Se a afirmação corrente na jurisprudência tradicional, de que uma lei é incons-titucional há de ter um sentido jurídico possível, não pode ser tomada ao pé da letra. O seu significado apenas pode ser o de que a lei em questão, de acordo com a Constituição, pode ser revogada não só pelo processo usual, quer dizer, por uma outra lei, segundo o princípio lex posterior derogat priori, mas também através de um processo especial, previsto pela Constituição. Enquanto, porém, não for revogada, tem de ser considerada como válida; e, enquanto for válida, não pode ser inconstitucional.”19

O Mestre da Escola de Viena, como se sabe, foi o grande idealizador

18 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2000. p. 168.19 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito; tradução de João Batista Machado. 4. ed. São Paulo : Martins Fontes, 1995. p. 300.

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do controle concentrado de constitucionalidade das normas. Para Kelsen, o controle da compatibilidade das leis com a Constituição deveria ser exercido por um órgão único, que não teria funções propriamente jurisdicionais, pois não decidiria lides concretas. Tal órgão seria antes uma espécie de “legislador negativo”, já que teria por atribuição retirar do sistema as normas editadas em desconformidade com os parâmetros formais e substantivos plasmados na Constituição, tendo as suas decisões eficácia ex nunc20.

As lições de Hans Kelsen sobre o controle de constitucionalidade exer-ceram profunda influência no continente europeu, sobretudo na Áustria onde a sua concepção foi incorporada à Constituição de 1920 e aperfeiçoada na reforma constitucional de 192921.

Todavia, no Brasil, o posicionamento kelseniano encontrou modesta acolhida pelo fato de que, historicamente, o controle de constitucionalidade no país se desenvolveu sob os influxos da judicial review norte-americana.

Segundo Regina Maria Macedo Nery Ferrari – uma das poucas autoras modernas que se filia à orientação do professor austríaco –, não se pode em-pregar, sem reservas, no âmbito do Direito Público, a Teoria das Nulidades elaborada no plano do Direito Civil22. Em suas palavras23:

“A norma constitucional é simplesmente anulável, visto que esta qualidade lhe é imposta por um órgão competente, conforme o ordenamento jurídico, e que opera, eficaz e normalmente, como qualquer disposição normativa válida até a decretação da sua inconstitucionalidade.Reconhecer, portanto, que a norma inconstitucional é nula, e que os efeitos desse reconhecimento devem operar ex tunc, estendendo-os ao passado de modo absoluto, anulando tudo o que se verificou sob o império da norma assim considerada, é im-pedir a segurança jurídica, a estabilidade do Direito e sua própria finalidade.”24

Antes dela, Pontes de Miranda também se manifestara no sentido da natureza constitutiva das decisões proferidas no controle de constituciona-lidade25.

20 ENTERRÍA, Eduardo García de. La Constitución como norma y el tribunal constitucional. Madrid : Civitas, 1985. p. 130-134.21 CLÈVE, op. cit. p. 54.22 VELOSO, op. cit. p. 183.23 SARMENTO, op. cit. p. 29.24 FERRARI, op. cit. p. 82 e 90.25 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n.º 1, de 1969. Rio de Janeiro : Forense, 1987. t. III, p. 615-626.

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Celso Ribeiro Bastos argumenta que não há uma necessidade inexorável de fazer retroagir a declaração de inconstitucionalidade à promulgação da lei (efeito ex tunc), porque não há qualquer liame lógico em fazer corresponder a data do surgimento do vício com a da sua subtração do ordenamento jurídico, observando que o direito não tem somente uma dimensão lógico-formal, mas enfrenta as realidades impostas pela dinâmica da vida e do próprio direito, aludindo que, ao ser posta em vigor, uma lei passa a gerar efeitos desde logo e muitas vezes isso perdura por longos anos, até que sobrevenha a declaração de inconstitucionalidade e, em situações como essa, há que se ponderar se a retroação não acarretará um mal maior do que o bem que se quer atingir. Em outras palavras, diz o autor:

“Essa retroação pode provocar verdadeira calamidade jurídica atingindo um sem-número de situações já consolidadas sob a vigência da lei agora tida por inconstitucional.”26

Igual doutrina expõe Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz, para quem o dogma da nulidade ab initio, equiparada à inexistência do ato normativo inconstitucional, deve ser encarado com moderação, achando que não se har-moniza com o papel do Judiciário, nos tempos modernos, uma interpretação puramente lógico-formal das questões de inconstitucionalidade, propondo uma reformulação, por parte da jurisprudência, do conceito inconstitucionalidade/nulidade e a procura de novos critérios para a aplicação da sanção contra o ato normativo inconstitucional, “tomando-se como ponto de partida o princípio da segurança jurídica e seus reflexos em relação à diversidade de situações jurídicas constituídas ou consolidadas no seu período de vigência”27.

No Supremo Tribunal Federal, registramos uma decisão que aderiu à tese kelseniana da anulabilidade e não da nulidade da lei inconstitucional. Julgando o Recurso Extraordinário n.º 79.343-BA, em 31.05.1977, consignou em seu célebre voto o relator, Ministro Leitão de Abreu28, preocupado sobretudo com a segurança jurídica, defendeu a natureza constitutivo-negativo das decisões de inconstitucionalidade29:

“Acertado se me afigura, também, o entendimento de que se não deve ter como

26 BASTOS, Celso Ribeiro, MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo : Saraiva, 1995. v. 4, t. III, p. 85.27 DINIZ, Márcio Augusto de Vasconcelos. Controle de constitucionalidade e teoria da recep-ção. São Paulo : Malheiros, 1995. p. 41.28 VELOSO, op. cit. p. 182.29 SARMENTO, op. cit. p. 29-30.

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nulo ab initio ato legislativo, que entrou no mundo jurídico munido de presunção de validade, impondo-se, em razão disso, enquanto não declarado inconstitucional, à obediência pelos destinatários dos seus comandos. Razoável é a inteligência, a meu ver, de que se cuida, em verdade, de ato anulável, possuindo caráter constitutivo a decisão que decreta a nulidade. Como, entretanto, em princípio, os efeitos dessa decisão operam retroativamente, não se resolve, com isso, de modo pleno, a questão de saber se é mister haver como delitos do orbe jurídico atos ou fatos verificados em conformidade com a norma que haja sido pronunciada como inconsistente com a ordem constitucional. Tenho que procede a tese, consagrada pela corrente discrepante, a que se refere o Corpus Juris Secundum, de que a lei inconstitucional é um fato eficaz, ao menos antes da determinação da inconstitucionalidade, po-dendo ter conseqüências que não é lícito ignorar. A tutela da boa-fé exige que, em determinadas circunstâncias, notadamente quando, sob a lei ainda não declarada inconstitucional, se estabeleceram relações entre o particular e o poder público, se apure, prudencialmente, até que ponto a retroatividade da decisão, que decreta a inconstitucionalidade, pode atingir, prejudicando-o, o agente que teve por legítimo o ato e, fundado nele, operou na presunção de que estava procedendo sob o amparo do direito objetivo.”30

Contudo, o argumento não sensibilizou o Supremo Tribunal Federal, que manteve sua orientação tradicional, no sentido da nulidade absoluta e ipso jure das leis inconstitucionais31.

Já enfatizava Lúcio Bittencourt que “as relações jurídicas que se cons-tituírem, de boa-fé, à sombra da lei não ficam sumariamente canceladas em conseqüência do reconhecimento da inconstitucionalidade”, nem a coisa so-beranamente julgada perde, por esse motivo, os efeitos que lhe asseguram a imutabilidade. Alerta ser manifesto “que essa doutrina da ineficácia ab initio da lei inconstitucional não pode ser entendida em termos absolutos, pois que os efeitos de fato que a norma produziu não podem ser suprimidos, sumaria-mente, por simples obra de um decreto judiciário”, apontando que a própria Corte Suprema dos Estados Unidos foi obrigada a reconsiderar a orientação tradicional, abrindo exceção à regra da invalidade ab initio.32

José Afonso da Silva aponta que problema debatido é o dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, cujo deslinde depende da solução de outra

30 RTJ 82/791. Segundo CLÈVE, op. cit. p. 168, em aresto posterior o Ministro Leitão de Abreu justificou o seu posicionamento, afirmando que tentara temperar o dogma da nulidade da lei contrária à Constituição, para deixar imunes aquelas situações constituídas, de boa fé, sob o pálio da norma inconstitucional.31 vide, por exemplo, RTJ 87/758, RTJ 95/993, RTJ 97/1.369, RTJ 101/503.32 BITTENCOURT, C. A. Lúcio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. 2. ed. atual. por José Aguiar Dias. Rio de Janeiro : Forense, 1968. p. 147.

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grave controvérsia sobre a natureza do ato inconstitucional: se é inexistente, nulo ou anulável, alertando:

“A nós nos parece que essa doutrina privatística da invalidade dos atos jurídicos não pode ser transposta para o campo da inconstitucionalidade, pelo menos no sistema brasileiro, onde, como nota Themístocles Brandão Cavalcanti, ‘a declaração de inconstitucionalidade, em nenhum momento, tem efeitos tão radicais’, e, em realidade, não importa por si só na ineficácia da lei.”33

3. O dogma da nulidade da lei inconstitucional na jurisprudência nacional

A doutrina dominante e a jurisprudência majoritária no STF são de que a lei declarada inconstitucional, em ação direta, é nula de pleno direito, tendo a sentença eficácia ex tunc, invalidando-se, conseqüentemente, todos os atos praticados com base na lei inconstitucional (cf. RTJ 55/744, 87/758, 89/367, 95/993, 101/503). Na ADIn 652/MA (Questão de Ordem), rel. Min. Celso de Mello, o STF consignou que o repúdio ao ato inconstitucional decorre, em essência, do princípio que, fundado na necessidade de preservar a unidade da ordem jurídica nacional, consagra a supremacia da Constituição:

“Esse postulado fundamental de nosso ordenamento normativo impõe que preceitos revestidos de menor grau de positividade jurídica guardem, necessariamente, relação de conformidade vertical com as regras inscritas na Carta Política, sob pena de inefi-cácia e de conseqüente inaplicabilidade. Atos inconstitucionais são, por isso mesmo, nulos e destituídos, em conseqüência, de qualquer carga de eficácia jurídica.”

A declaração de inconstitucionalidade de uma lei alcança, inclusive, os atos pretéritos com base nela praticados, “eis que o reconhecimento desse supremo vício jurídico, que inquina de total nulidade os atos emanados do Poder Público, desampara as situações constituídas sob sua égide e inibe – ante a sua inaptidão para produzir efeitos jurídicos válidos – a possibilidade de invocação de qualquer direito” (RTJ 146/461).

Para Gilmar Ferreira Mendes, o entendimento que considera nula ipso jure e ex tunc a lei inconstitucional tem base constitucional, enunciando:

“O princípio do Estado de Direito, fixado no art. 1º, caput, a “aplicação imediata” dos direitos fundamentais, consagrada no § 1º do art. 5º a vinculação dos órgãos estatais aos princípios constitucionais, que daí resulta, a imutabilidade dos princípios constitucionais, no que concerne aos direitos fundamentais e ao processo especial de reforma constitucional, ressaltam a supremacia da Constituição. Do art. 5º, LXXI,

33 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 14. ed. São Paulo : Ma-lheiros, 1997. p. 55.

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da Constituição, que assegura a qualquer indivíduo que seja impedido de exercer um direito constitucional, garantido em virtude da omissão dos órgãos legislativos, o direito de reivindicar uma atividade legislativa mediante a propositura do man-dado de injunção, pode-se concluir que não apenas os direitos fundamentais, mas todos os demais direitos subjetivos constitucionalmente assegurados, vinculam os órgãos estatais.”34

Concordamos com o citado mestre, quando argumenta, ainda, que o poder de que dispõe qualquer juiz ou tribunal, para deixar de aplicar a lei inconstitucio-nal a um determinado processo (arts. 97 e 102, III, a, b e c, CR/88), pressupõe a invalidade da lei e, com isso, a sua nulidade, bem como a faculdade assegurada ao indivíduo de negar observância à lei inconstitucional, “assegurando-se-lhe, em última instância, a possibilidade de interpor o recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal contra decisão judicial que se apresente, de alguma forma, em contradição com a Constituição (art. 102, III, a)”35.

4. Comentários ao dogma da nulidade da lei inconstitucional na jurisprudência nacional

Devemos abrir um parêntese para alertar que alguns autores nossos, a respeito do assunto, confundindo os planos da existência, da validade e da eficácia, baralham conceitos, usam terminologia disparatada e conflitante, sinonimizando o que é bem diferente e diverso.

Diz-se, por exemplo, que a lei cuja inconstitucionalidade foi judicial-mente reconhecida “é revogada”, “perde a eficácia”, “é anulada”, “é írrita”, “é nula”, “é inexistente”.

Afirmando-se tanta coisa, ao mesmo tempo, incorre-se em erronia, e se acaba por não declarar coisa alguma, pelo menos com critério e segurança jurídica.

Atentos aos referidos planos do mundo jurídico – que se interpenetram, mas são diversos –, a questão se aplaina e simplifica: a lei inconstitucional existe, goza da presunção de legitimidade, conferida a todas as normas, é eficaz, mas é inválida. A eficácia implica a executoriedade. Porém, se a lei inconstitucional tiver reconhecida judicialmente sua inconstitucionalidade, a sentença fulmina-a desde o início, operando ex tunc. A dita lei, que já era inválida, torna-se retroativamente ineficaz. E esta solução, sobretudo, é lógica. 34 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade : aspectos jurídicos e políticos. São Paulo : Saraiva, 1990. p. 256.35 VELOSO, op. cit. p. 184-185.

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Ao se admitir algum efeito à lei declarada inconstitucional, ela teria revogado a Constituição, o que é absurdo e compromete toda a estrutura escalonada de nosso sistema jurídico.

De lege lata, não podíamos ter outro parecer. Conforme a doutrina preva-lecente, com amplo respaldo na jurisprudência do Excelso Pretório, a sentença que declara a inconstitucionalidade não diz que a lei deixará de produzir efeitos daí em diante (o que seria eficácia ex nunc da decisão), mas reconhece que aquela lei, desde o seu nascimento, desde a sua origem, antagonizou a Carta Magna, apresentou ruptura no sistema, sendo portadora de defeito irreparável – formal ou material –, que compromete a sua validade e eficácia.

5. Os efeitos temporais da decisão de inconstitucionalidade no direito comparado

A grande maioria dos países que adotou o controle jurisdicional de constitucionalidade optou, no que tange aos efeitos temporais da decisão, pelo modelo norte-americano, onde a decretação da inconstitucionalidade produz efeitos retroativos36.

A principal exceção a esta regra permanece sendo a Áustria, onde a lei inconstitucional não é nula, mas anulável. A ineficácia da lei ocorre desde a data da publicação da sentença, a não ser que a Corte fixe outro prazo – que não pode exceder de um ano – para que a lei inconstitucional deixe de produzir efeitos (Constituição austríaca, art. 140.5). Anulada uma lei, por inconstitucionalidade, seguir-se-á, não obstante, aplicando a lei em questão a situações de fato consumadas antes da anulação, exceto naquela que deu origem à decisão, salvo se o Tribunal Constitucional não tiver disposto outra coisa na sentença anulatória. Se o Tribunal Constitucional tiver fixado, na dita sentença, um prazo para a extinção da vigência da lei, a lei se aplicará a todos os fatos que se consumarem antes da expiração do prazo, com exceção, precisamente, do caso que deu origem à sentença (Constituição austríaca, art. 140.7, segunda parte).

A solução austríaca seguiu o posicionamento de Hans Kelsen, o grande jurista de Praga, que a Áustria assimilou e tornou seu, tornou próprio, o maior jurisfilósofo do nosso século, como depõe Miguel Reale.

Kelsen observa que “a afirmação de que uma lei válida é contrária à

36 SARMENTO, op. cit. p. 30.

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Constituição (anticonstitucional) é uma contradictio in adjecto; pois uma lei somente pode ser válida com fundamento na Constituição. Quando se tem fundamento para aceitar a validade de uma lei, o fundamento da sua validade tem de residir na Constituição. De uma lei inválida não se pode, porém, afir-mar que ela é contrária à Constituição, pois uma lei inválida não é sequer uma lei, porque não é juridicamente existente e, portanto, não é possível acerca dela qualquer afirmação jurídica”. Em seguida, o mestre diz que, dentro de uma ordem jurídica, não pode haver algo como a nulidade, pois uma norma pertencente a uma ordem jurídica não pode ser nula, mas, apenas, pode ser anulável. Mas esta anulabilidade, continua, pode ter diferentes graus: em regra, uma norma jurídica somente é anulada com efeitos para futuro, de forma que os efeitos já produzidos que deixa para trás permanecem intocados. Porém, concede, também pode ser anulada com efeito retroativo, de forma tal que os efeitos jurídicos que ela deixou atrás de si sejam destruídos. Mas a lei foi válida até a sua anulação; ela não era nula desde o início37.

O sistema austríaco, sintetizando, funciona à semelhança da revogação da lei: a decisão da Alta Corte Constitucional, declarando a inconstitucionalidade, faz com que a norma objeto da ação perca a eficácia. A sentença opera ex nunc ou pro futuro. A lei, cuja inconstitucionalidade foi pronunciada, não é inválida, desde o início, mas conserva a sua força jurídica até o momento em que for cassada (Aufhebung) e retirada do ordenamento. Esta “revogação” da lei inconstitucional nem sempre opera a partir da data da sentença, pois, como já vimos, o Tribunal pode assinalar uma data posterior para que a sentença produza efeito. Este prazo, originariamente, não podia ser superior a seis meses, estando, atualmente, ampliado para um ano. O decurso deste tempo pode ser comparado à vacatio legis, e tem o objetivo de conceder ao legislador um prazo razoável para cobrir a lacuna deixada no ordenamento pela declaração de inconstitucionalidade. Deve-se registrar que a Constituição austríaca conferiu à Corte Constitucional margem bastante ampla de decisão para dispor sobre as conseqüências jurídicas de suas sentenças, tomadas no controle de constitucionalidade das normas. Interessante, na Áustria, é que, determinando-se que a sentença de inconstitucionalidade é destituída de qual-quer efeito retroativo, prevê a Constituição, expressamente, que a lei revogada pela que foi declarada inconstitucional volte a vigorar (art. 140, 6). Esta repris-tinação mais se amolda aos sistemas em que o juízo de inconstitucionalidade

37 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito; tradução de João Batista Machado. 4. ed. São Paulo : Martins Fontes, 1995. p. 367 et seq.

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implica a declaração de invalidade da lei, ex origine, portanto com efeitos ex tunc, ficando sem efeito, neste caso, o próprio ato de revogação, explícito ou implícito, que a lei inconstitucional tinha estabelecido com relação a normas anteriores (cf. Constituição de Portugal, art. 282, 1, in fine)38.

A Constituição de Portugal, art. 282, 1, dispõe que a declaração de incons-titucionalidade determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado, solução adotada, igualmente, na Áustria:

“Art. 282.(Efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade)1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado.”

A eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade, segundo Jorge Miranda, sucede por dois motivos essenciais:

“(...) por a Constituição (ou a lei) como fundamento de validade, como base da força intrínseca da norma em causa, dever prevalecer incondicionalmente desde o momento em que esta é emitida ou em que ocorre a contradição ou desconformida-de, e não apenas desde o instante em que a contradição é reconhecida; por a mera eficácia futura da declaração poder acarretar diferenças de tratamento das pessoas e dos casos sob o império do mesmo princípio ou preceito constitucional, uns sujeitos ao seu comando e outros (os considerados antes da declaração de inconstitucio-nalidade ou de ilegalidade) subordinados, ao cabo e ao resto, ao sentido da norma inconstitucional ou ilegal, ao sentido de uma norma juridicamente inválida.”39

Entretanto, como prevê o art. 282, 3, da Constituição portuguesa, “ficam ressalvados” dos efeitos retroativos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade “os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao argüi-do”, princípio que vigora na Espanha.

Seguindo uma tendência que, pode-se garantir, é universal, a Constituição portuguesa, no art. 282, 4, traz um preceito de suma importância, verbis:

“4. Quando a segurança jurídica, razões de eqüidade ou de interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos ns. 1 e 2.”

38 VELOSO, op. cit. p. 180-181.39 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2. ed. Coimbra : Coimbra Ed., 1988. t. II, n. 140, p. 489.

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Assim, observados esses requisitos, o Tribunal Constitucional pode limitar os efeitos da sentença de declaração de inconstitucionalidade, estabe-lecendo, por exemplo, para o futuro (ex nunc), proclamando a nulidade parcial da lei ou negando efeitos repristinatórios à decisão.

Como diz J. J. Gomes Canotilho:“O n. 4 do art. 282 é uma norma de particular importância, pois, ao permitir-se ao TC a ‘manipulação’ dos efeitos das sentenças de declaração de inconstitucionalidade, abre-se-lhe a possibilidade de exercer poderes tendencialmente normativos”.40

O Mestre enuncia que, dados os efeitos ex tunc atribuídos à sentença de declaração de inconstitucionalidade, estabelece a Constituição a repristinação, ou seja, a “reentrada” em vigor da norma ou normas revogadas pela norma declarada inconstitucional, explicando:

“Trata-se de evitar o vazio jurídico legal”, resultante do desaparecimento, no ordenamento jurídico, de normas consideradas inconstitucionais. Porém, “quando a segurança jurídica, razões de eqüidade ou interesse público de excepcional relevo” o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade, declarando, por exemplo, que a decisão não implica a repristinação de norma anterior.41

Canotilho enuncia que, no caso de a norma repristinada ser inconstitucional, não está vedada ao Tribunal a possibilidade de conhecer dessa inconstituciona-lidade, para fundamentar nela a recusa de efeitos repristinatórios, consoante o art. 282, 4, da Constituição Portuguesa, concluindo o autor:

“Mais duvidoso (por violar o princípio do pedido) é a possibilidade de o Tribunal Constitucional conhecer e declarar a inconstitucionalidade das normas repristi-nadas.”42

Vale registrar, a propósito, a opinião abalizada de Jorge Miranda: “A fixação dos efeitos da inconstitucionalidade destina-se a adequá-los às situações da vida, a ponderar o seu alcance e a mitigar uma excessiva rigidez que pudesse comportar; destina-se a evitar que, para fugir a conseqüências demasiado gravo-sas da declaração, o Tribunal Constitucional viesse a não decidir pela ocorrência de inconstitucionalidade; é uma válvula de segurança da própria finalidade e da efetividade do sistema de fiscalização.”43

Miranda, ainda, expõe que, numa ótica rígida do princípio do pedido,

40 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 4. ed. Coimbra : Almedina, 1986. p. 1075.41 Idem. p. 1074.42 Idem. p. 1075.43 MIRANDA, op. cit. p. 389-390.

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esse seria um problema que nem deveria pôr-se: o Tribunal não poderia sequer cuidar de saber se haveria norma anterior, tal competida aos tribunais, nos casos concretos que tivessem de dirimir; mas este entendimento afigura-se incongruente com a função de garantia justificativa do instituto:

“Para quê organizar um processo de fiscalização para, afinal, ele rematar na aplicação (ou na aplicabilidade) de uma norma que, além de mais antiga (e, portanto, quiçá menos adequada às situações da vida actual), poderá ainda ser mais inconstitucional que a norma objecto da apreciação pelo tribunal?”

Conclui o autor que o princípio do pedido deve ser encarado como abrangen-do não só a norma explicitamente especificada no requerimento de apreciação que desencadeia o processo, mas, também, implicitamente, a norma que esta revogara – “tudo no limite da razoabilidade da situação conseqüente à declaração”.

Os arts. 27 e 11, das Leis 9.868/99 e 9.882/99, respectivamente, inspira-ram-se, notoriamente, no art. 282.4 da Constituição portuguesa.

Uma norma como a do art. 282, n.º 4, aparece, portanto, em diversos países, senão nos textos, pelo menos na jurisprudência.

Como escreve Bachof, os tribunais constitucionais consideram-se não só autorizados mas inclusivamente obrigados a ponderar as suas decisões, a tomar em consideração as possíveis conseqüências destas. É assim que eles verificam se um possível resultado da decisão não seria manifestamente injusto, ou não acarretaria um dano para o bem público, ou não iria lesar interesses dignos de proteção de cidadãos singulares. Não se pode entender isso, naturalmente, como se os tribunais tomassem como ponto de partida o presumível resultado da sua decisão e passassem por cima da Constituição e da lei em atenção a um resultado desejado. Mas a verdade é que um resultado injusto, ou por qualquer outra razão duvidoso, é também em regra – embora não sempre – um resultado juridicamente errado.

À primeira vista, oposto à fixação dos efeitos é o judicial self-restraint, que consiste (como o nome indica) numa autolimitação dos tribunais ou do tribunal de constitucionalidade, não ajuizando aí onde considere que as opções políticas do legislador devem prevalecer ou ser insindicáveis. Mas talvez se trate apenas de uma aparente restrição, porquanto não interferir, não fiscalizar, não julgar pode inculcar, já por si, uma aceitação dos juízos do legislador e das suas estatuições e, portanto, também uma definição (embora negativa) da inconstitucionalidade e dos seus eventuais efeitos.” 44

A Constituição da Espanha, art. 164, 1, afirma que as sentenças do Tribunal Constitucional têm valor de coisa julgada a partir do dia seguinte de sua publica-44 MENDES, op. cit.

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ção, não cabendo recurso algum contra elas, sendo que as decisões no sentido da inconstitucionalidade de uma lei ou de norma com força de lei têm efeito erga omnes e ex tunc. No art. 164, 2, prevê: “Salvo que en el fallo se disponga otra cosa, subsistirá la vigencia de la ley en la parte no afectada por la in-constitucionalidad.” A declaração de inconstitucionalidade, entretanto, não afetará o valor de coisa julgada das sentenças judiciais editadas com base na lei declarada inconstitucional (art. 161, 1, a). A Lei Orgânica do Tribunal Constitu-cional (LOTC), seguindo o texto constitucional, dispõe, no art. 40.1, primeira parte:

“Las sentencias declaratorias de la inconstitucionalidad de Leyes, disposiciones o actos com fuerza de Ley no permitirán revisar procesos fenecidos mediante sentencia com fuerza de cosa juzgada en los que se haya hecho aplicación de las Leyes, disposiciones o actos inconstitucionales.”

Entretanto, homenageando o princípio da legalidade penal (art. 25, 1, da Constituição espanhola) e numa analogia com a regra de que a lei penal retroage para beneficiar o réu – novatio legis in melius –, que nossa Cons-tituição consagra no art. 5º, XL, a LOTC, art. 40, I, segunda parte, abrindo uma exceção da exceção, admite que a declaração de inconstitucionalidade se projete sobre processos penais ou contencioso-administrativos referentes a um procedimento sancionador que, como conseqüência da nulidade da norma aplicada, resulte numa redução da pena ou da sanção, ou uma exclusão, isenção ou limitação da responsabilidade.

A Constituição espanhola não diz, expressamente, se a lei inconstitucional é anulável ou nula. O que determina, sem vacilações, é que a norma impugnada tem de ser expulsa, deve ser retirada do ordenamento jurídico.

Mas a Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, art. 39.1, estatui:“Cuando la sentencia declare la inconstitucionalidad, declarará igualmente la nulidad de los preceptos impugnados”.

Javier Jiménez Campo aponta que a sanção de nulidade é, portanto, e de maneira típica, a que o direito espanhol aplica à lei que contraria a Constituição, opinando que esta sanção pode e deve ser excluída, em casos determinados, pelo órgão de jurisdição constitucional45.

O Tribunal Constitucional, realmente, tem ampliado a sua atuação, indo 45 CAMPO, Javier Jiménez. Qué hacer com la ley inconstitucional. In: La sentencia sobre la constitucionalidad de la ley. Cuadernos y Debates, n. 66, Tribunal Constitucional. Madri : Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 34; ver, também. MARTÍNEZ, Asunción Garcia. El recurso de inconstitucionalid. El proceso directo de inconstitucionalidad. Madri : Trivium, 1992. p. 229.

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além do explicitamente mencionado na Constituição, deixando de ressalvar, apenas, a coisa julgada, para incluir outras situações consolidadas, que não são atingidas pela sentença de inconstitucionalidade da lei sob a qual foram constituídas. Assim, em nome do princípio da segurança jurídica, não são atingidos pela declaração de nulidade da lei os atos administrativos firmes, que não tenham caráter sancionador. Igualmente, não são atingidos os atos processuais realizados ao amparo de uma lei posteriormente declarada in-constitucional e nula, se tais atos são firmes e se não representam qualquer restrição a um direito fundamental.

Desta forma, a Corte Constitucional, marcadamente influenciada pela experiência constitucional alemã, passou a adotar, desde 1989, a técnica da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade, como re-portado por Garcia de Enterría46:

“La reciente publicación en el Boletín Oficial del Estado de 2 de marzo último de la ya famosa Sentencia 45/1989, de 20 de febrero, sobre inconstitucionalidad del sistema de liquidación conjunta del Impuesto sobre la Renta de la “unidad familiar” matrimonial, permite a los juristas una reflexión pausada sobre esta importante decisión del Tribunal Constitucional, objeto ya de multitud de Comentários pe-riodísticos. La decisión es importante, en efecto, por su fondo, la inconstitucionalidad que declara, tema en el cual no parece haberse producido hasta ahora, discrepancia alguna. Pero me parece bastante mas importante aún por la innovación que ha supuesto en la determinación de los efectos de esa inconstitucionalidad, que el fallo remite a lo que se indica en el Fundamento undécimo y éste explica como una eficácia pro futuro, que no permite reabrir las liquidaciones administrativas o de los propios contribuyentes (autoliquidaciones) anteriores.”

Ramón Punset Blanco, dissertando sobre o conteúdo e os efeitos das sentenças de inconstitucionalidade das leis, alude às situações consolidadas – ainda que não sancionadas judicialmente –, derivadas de relações de índole jurídico-privada, considerando ser evidente que o princípio da segurança ju-rídica reclama sua imutabilidade, quando tenha sido anulada a lei em virtude da qual foram constituídas essas relações, ressalvando o autor a hipótese em que a causa de invalidação da dita lei radique em sua oposição a um direito fundamental, circunstância em que a sentença do Tribunal Constitucional deve ter efeitos modificatórios sobre aquelas relações:

46 ENTERRÍA, Eduardo García de. Justicia Constitucional, la doctrina prospectiva en la de-claración de ineficacia de las leyes inconstitucionales. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 92, p. 14, 1989.

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“Asi, por ejemplo, habria de considerarse sobrevenidamente inválida toda estipu-lación contractual concertada con arreglo a una ley declarada inconstitucional y nula por contravenir un derecho fundamental. Esto no sucedería, en cambio, si la declaración de inconstitucionalidad obedeciera a otros motivos de infracción constitucional.”47

Há um forte movimento, na Espanha, para que, diante de certos fatos e circunstâncias, fugindo do summum jus, summa injuria, dê o Tribunal, em certos casos, efeito prospectivo e não retroativo à sentença que declara a inconstitucionalidade. Noticia Eduardo Garcia de Enterría que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos – que tem uma posição análoga à dos Tribunais Constitucionais — adotou este critério “prospectivo”, como técnica deliberada, em sua importante sentença Marckz, de 13.06.1979 48.

Na Alemanha, vigora o princípio da nulidade da norma inconstitucional, previsto no § 78 da Lei do Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfas-sungsgericht), de 12.3.195149. Porém, desenvolveu o Tribunal outra variante de decisão, a declaração de incompatibilidade ou declaração de inconstitu-cionalidade sem a pronúncia da nulidade. Desde 1970, prevê o § 31, (2), 2º e 3º períodos, da Lei do Bundesverfassungsgericht, que o Tribunal poderá declarar a constitucionalidade, a nulidade ou a inconstitucionalidade (sem a pronúncia da nulidade) de uma lei. Dita decisão reconhece a ilegitimidade constitucional da norma, mas deixa de declará-la nula, gerando para o legis-lador o dever jurídico de empreender as medidas necessárias para suprimir o estado de inconstitucionalidade50.

No modelo tedesco, as conseqüências da declaração de inconstituciona-lidade sem a pronúncia da nulidade não podem ser inferidas diretamente da Lei do Bundesverfassungsgericht51.

A declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade ainda suscita grandes polêmicas entre os doutrinadores germânicos. Ela é utilizada sobretudo no caso de normas que atribuem benefícios incompatíveis com o

47 BLANCO, Ramón Punset. Cuadernos y debates. n. 66, Tribunal Constitucional, Madri : Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 99.48 ENTERRÍA, op. cit. p. 182.49 MENDES, op. cit. p. 190.50 Idem. p. 204.51 Idem.

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princípio da isonomia,52 de omissões inconstitucionais parciais,53 e naqueles onde a supressão da norma inconstitucional geraria uma situação de caos normativo54. Ademais, em casos extremos, a jurisprudência alemã admite até a aplicação da norma inconstitucional, após o reconhecimento jurisdicional do seu vício, até que nova regra seja editada pelo legislador. Isto se dá, segundo Gilmar Ferreira Mendes, naqueles casos em que “motivos de segurança jurídica tornam imperiosa a vigência temporária da lei inconstitucional, a fim de que não surja, nessa fase intermediária, situação ainda mais distante da vontade constitucional do que a anteriormente existente.”55

Uma posição definitiva sobre a questão somente foi tomada na decisão relativa à nacionalidade dos filhos provenientes dos chamados “casamentos mistos”, na qual o Bundesverfassungsgericht houve por bem equiparar, no que concerne à aplicação subseqüente da lei inconstitucional, a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade (BVerfGE 37, 217 (262) à declaração de nulidade. Segundo o entendimento firmado nessa decisão, a lei simplesmente inconstitucional (unvereinbar), mas que não teve a sua nuli-dade pronunciada, não mais pode ser aplicada. Uma exceção a esse princípio somente seria admissível se da não-aplicação pudesse resultar vácuo jurídico intolerável para a ordem constitucional56.

52 Nesta hipótese, a supressão do benefício pode revelar-se iníqua, quando ele não seja, em si mesmo, inconstitucional, e a sua extensão aos injustamente não contemplados acarretar efeitos orçamentários. Trata-se de caso em que o legislador dispõe de várias opções para resolver a situação antiisonômica. Por isso, o Tribunal limita-se a reconhecer a inconstitucionalidade, atribuindo ao legislador o dever de, dentro do seu espaço de conformação, resolver a questão da inconstitucionalidade, MENDES, op. cit. p. 206-209.53 As Constituições dirigentes criam freqüentemente para o legislador o dever de editar nor-mas, para tornar eficazes certos princípios e programas delineados pelo constituinte. Quando o legislador deixa de cumprir, em um prazo razoável, este dever, surge a situação da omissão inconstitucional. Esta omissão pode ser total ou parcial. É total quando o legislador simples-mente não formula norma de espécie alguma, e parcial quando a norma editada não satisfaz, de maneira plena, às exigências constitucionais. Quando manifesta-se a inconstitucionalidade por omissão parcial, a supressão da norma imperfeita do ordenamento, através da declaração da sua nulidade, não corrige a situação de contrariedade à Constituição, mas antes a agrava. Veja-se, a propósito, PIOVESAN, Flávia C. Proteção Judicial contra omissões legislativas. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1995. p. 73-86. Por isto, utiliza a Corte Constitucional alemã, neste caso, a declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de inconstitucionalidade.54 SARMENTO, op. cit. p. 31.55 MENDES, op. cit. p. 220.56 MENDES, op. cit. p. 5.

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Outra técnica semelhante à da declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, que também é freqüentemente empregada, desde o início de sua judicatura, em 1954, pela Corte Constitucional57 alemã, consis-te na chamada decisão de apelo (Appellentscheidung), que lhe outorgava a possibilidade de afirmar que a lei se encontrava em processo de inconstitucio-nalização, recomendando ao legislador, por isso, que procedesse de imediato às correções reclamadas58.

Trata-se, neste caso, de decisão em que o Tribunal reconhece a constitu-cionalidade da norma, mas alerta para o fato de que, em razão de mudanças das relações fáticas ou jurídicas, a mesma se encontra em trânsito para a inconstitucionalidade59.

Segundo a fórmula adotada pelo Tribunal, a lei questionada seria, ainda, constitucional (es ist noch verfassungsgemäss), o que impediria a declaração imediata de sua inconstitucionalidade. O legislador deveria atuar – às vezes dentro de prazo determinado –, porém, para evitar a conversão desse estado imperfeito ou de uma situação ainda constitucional em um estado de incons-titucionalidade60. Note-se, porém, que o apelo ao legislador se diferencia da declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, porque no primeiro, ao contrário do que ocorre na segunda, se reconhece, pelo menos provisoriamente, a validade constitucional da norma impugnada61.

Gilmar Ferreira Mendes, doutor em Direito pela Universidade de Müns-ter, tem sido um dos principais divulgadores do controle jurisdicional alemão, em nosso País, observando este autor:

“Em nenhum sistema de controle de normas, seja ele incidental ou concentrado, logra-se identificar formas de decisão tão variadas como as desenvolvidas pela Corte Constitucional.”62

Na Itália, a doutrina e jurisprudência dominantes também consideram nula

57 SARMENTO, op. cit. p. 32.58 MENDES, op. cit. p. 5.59 SARMENTO, op. cit. p. 32.60 MENDES, op. cit. p. 229-230.61 O direito italiano também conhece as decisões de esortazione al legislatrore, empregando técnica semelhante à adotada pela Corte Constitucional alemã, conforme relata CERRI, Augusto. Corso de giustizia costituzionale. Milão : Giuffrè, 1994. p. 99-100.62 MENDES, op. cit. p. 188.

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ab ovo a lei inconstitucional,63 muito embora o teor literal do art. 136, primeira parte, da Constituição italiana possa conduzir à interpretação contrária:

“Quando la Corte dichiara l’illegittimità costituzionale di una norma di legge o di atto avente forza di legge, la norma cessa di avere efficacia daí giorno successivo alia pubblicazione della decisione” (“Quando a Corte declara a ilegitimidade constitucional de uma norma legal ou de um ato com força de lei, a norma perde a sua eficácia a partir do dia sucessivo ao da publicação da decisão”).

Contudo, tal retroatividade encontra limites nos efeitos já consumados e consolidados da norma inconstitucional, produzidos antes da decisão.64 Assim, além da coisa julgada, também os efeitos da prescrição e decadência impõem limites à eficácia retroativa da decisão de inconstitucionalidade.65 Além disso, o Tribunal Constitucional Italiano utiliza-se algumas vezes do expediente de protelar a publicação da decisão de inconstitucionalidade, para dar tempo ao legislador para criar uma nova disciplina jurídica sobre a matéria, evitando perigosos vácuos normativos.66

Nos Estados Unidos, desde a origem da judicial review, prevalece o entendimento a respeito da natureza declaratória e retroativa da decisão de inconstitucionalidade.67

Porém, assevera Garcia de Enterría, forte na doutrina americana, que:“La alternativa a la prospectividad de las Sentencia no es, pues, la retroactividad de las mismas, sino la abstención en el descubrimiento de nuevos criterios de efectividad de la Constitución, el estancamiento en su interpretación, la renuncia, pues, a que los Tribunales Constitucionales cumplan una de sus funciones capi-tales, la de hacer una living Constitution, la de adaptar paulatinamente esta a las nuevas condiciones sociales”.

É interessante notar que, nos próprios Estados Unidos da América,

63 CERRI, op. cit. p. 100-104; CAPPELLETTI, op. cit. p. 119. Em sentido contrário, registra VIRGA, Pietro. Diritto costituzionale. 9. ed. Milano : Giuffrè, 1979. p. 555-557, que na Itália a regra é a da irretroatividade da decisão de inconstitucionalidade, que comporta três exceções: a decisão retroage para se aplicar no caso concreto em que tiver sido suscitada, para beneficiar o réu na esfera penal e para atingir relações jurídicas não exauridas. Note-se, porém, que a terceira exceção admitida pelo constitucionalista italiano é tão ampla, que praticamente torna regra geral a retroatividade da decisão de inconstitucionalidade.64 CERRI, op. cit. p. 102.65 ZAGREBELSKY, Gustavo. La giustizia costituzionale. Bologna : Il Mulino, 1977 apud Mendes, op. cit. p. 192.66 CLÈVE, op. cit. p. 172; e CANOTILHO, op. cit. p. 1.087.67 SARMENTO, op. cit. p. 32-33.

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onde a doutrina acentuara tão enfaticamente a idéia de que a expressão “lei inconstitucional” configurava uma contradictio in terminis, uma vez que “the inconstitutional statute is not law at all”, passou-se a admitir, após a Grande Depressão, a necessidade de se estabelecerem limites à declaração de inconstitucionalidade.

A Suprema Corte americana vem considerando o problema proposto pela eficácia retroativa de juízos de inconstitucionalidade a propósito de decisões em processos criminais. Se as leis ou atos inconstitucionais nunca existiram enquanto tais, eventuais condenações nelas baseadas quedam ilegítimas e, portanto, o juízo de inconstitucionalidade implicaria a possibilidade de im-pugnação imediata de todas as condenações efetuadas sob a vigência da norma inconstitucional. Por outro lado, se a declaração de inconstitucionalidade afeta tão-somente a demanda em que foi levada a efeito, não há que se cogitar de alteração de julgados anteriores.68

Porém, a partir de 1965, após o julgamento do caso Linkletter vs. Walker,69 tal orientação começou a ser flexibilizada pela Suprema Corte, sobretudo em relação a leis versando sobre processo penal.

No caso acima referido, o cidadão Linkletter havia sido criminalmente condenado com base em provas que a jurisprudência posterior passara a con-siderar como contrárias ao due process of law.70

Assim, no caso Linkletter v. Walker, a Corte rejeitou ambos os extremos: ‘a Constituição nem proíbe nem exige efeito retroativo.’71. Parafraseando o Justice Cardozo pela assertiva de que ‘a constituição federal nada diz sobre o assunto’, a Corte de Linkletter tratou da questão da retroatividade como um assunto puramente de política judicial (judicial policy), a ser decidido novamente em cada caso.72

Segundo tal entendimento, a Suprema Corte poderia ponderar, em face do caso concreto, as vantagens e desvantagens decorrentes da retroatividade dos seus julgados.

68 MENDES, op. cit. p. 5.69 381 U.S. 618, 629 (1965).70 SARMENTO, op. cit. p 32-33.71 TRIBE, Laurence H. American Constitutional Law. 2. ed. Nova York : The Foundation Press, 1988. p. 30.72 MENDES, op. cit. p. 5.

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Aplicando tal critério, entendeu a Suprema Corte que se fosse atribuído efeito retroativo à nova doutrina constitucional sobre a inadmissibilidade de certas provas, isto acarretaria tremendos prejuízos à administração da Justiça, pois seria necessário revisar e anular uma quantidade enorme de condenações criminais, sem que fosse possível depois reiniciar os processos penais, em razão do provável desaparecimento de provas vitais.73

A Suprema Corte codificou a abordagem de Linkletter no caso Stovall vs. Denno74, no qual foram assinalados os critérios que devem ser utilizados para emprestar ou não, no caso concreto, retroatividade às decisões da Suprema Corte, modificativas de jurisprudência anterior75:

“Os critérios condutores da solução da questão implicam (a) o uso a ser servido pelos novos padrões, (b) a extensão da dependência das autoridades responsáveis pelo cumprimento da lei com relação aos antigos padrões, e (c) o efeito sobre a administração da justiça de uma aplicação retroativa dos novos padrões.”76

A questão da retroatividade da declaração de inconstitucionalidade tem sido profundamente discutida nos últimos anos, assim pelos tribunais quer pela doutrina nos Estados Unidos.77

Cumpre admitir que a Suprema Corte norte-americana, em sua atual composição, não vê com bons olhos a possibilidade da prolação de decisões não retroativas no controle da constitucionalidade das leis. O Juiz Scalia, um dos mais conservadores do Tribunal, no julgamento do caso Harper v. Virginia Dept. of Taxation78, asseverou, por exemplo, que79:

“A decisão prospectiva é serva do ativismo judicial e inimiga da nascença do stare de-cisis. A doutrina verdadeiramente tradicional é a de que a decisão prospectiva é incompatível com o poder judicial, e que as cortes não têm autoridade para aderir à sua prática.”

Têm-se constatado, em alguns países, essas atenuações ao princípio da

73 SARMENTO, op. cit. p. 33.74 388 U.S. 293 (1967).75 SARMENTO, op. cit. p. 33.76 TRIBE, op. cit. p. 30.77 TORRES, Ricardo Lobo. Declaração de inconstitucionalidade e restituição de tributos. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 8, p. 101.78 509 U.S. 86 (1993)79 SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição. Rio de Janeiro,1999. p. 154. Dissertação (Mestrado em Direito Público) - Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1999.

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eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade. Verifica-se, nos sis-temas que adotaram a eficácia ex tunc das sentenças, o caminho inverso. Na Áustria, após a Reforma de 1929, passou-se a admitir que a sentença imponha efeitos retroativos com relação ao caso concreto que ensejou a questão.

Observa Mauro Cappelletti que, da mesma forma em que na Áustria as exigências práticas levaram, em 1929, a uma atenuação do rigor teórico da doutrina da não-retroatividade, nos Estados Unidos da América do Norte,80 na Alemanha e na Itália as mesmas razões induziram a atenuar, notavelmente, a contraposta doutrina da eficácia ex tunc, ou seja, da retroatividade, apon-tando o autor que tal evolução é inspirada em critérios de grande e oportuno pragmaticismo e elasticidade.81

Portanto, conclui-se que em diversos países em que existe o controle jurisdicional de constitucionalidade, a Constituição ou a jurisprudência con-cedem certo poder ao Judiciário para adaptar os efeitos temporais da decisão de inconstitucionalidade às peculiaridades do caso, evitando fórmulas rígidas e absolutas.

6. Os temperamentos ao dogma da nulidade da lei inconstitucional na jurisprudência nacional

A Constituição brasileira, ao contrário da portuguesa, não contém ne-nhum dispositivo que autorize o Judiciário a restringir os efeitos retroativos da decisão de inconstitucionalidade. Talvez por isso, o Supremo Tribunal Federal tem-se mantido bastante fiel ao princípio da nulidade das normas inconstitucionais, reafirmado em reiterados julgados.82

Contudo, em certas hipóteses, alguns temperamentos têm sido admitidos. É o que se dá no caso dos atos praticados por agente público investido em sua função em decorrência de lei posteriormente declarada inconstitucional. Nesta hipótese, o Supremo Tribunal Federal se abstém de invalidar tais atos,

80 Registre-se que não estamos nos contradizendo, tendo em vista que há dois parágrafos acima já discorremos sobre a atual posição da Suprema Corte. Porém, por respeito à honestidade intelectual, mantivemos a redação original do Mestre Capelletti.81 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito com-parado; tradução de Aroldo Plínio Gonçalves. 2. ed. Porto Alegre : Sérgio Antonio Fabris, 1992. p. 122.82 SARMENTO, op. cit. p. 33-34.83 RTJ 71/570.

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em homenagem à teoria da aparência, para proteção de terceiros de boa fé.83

No RE 78.533/SP, em 13.11.1981, relator para o acórdão o Ministro Décio Miranda, o STF decidiu:

“Administrativo. Funcionário de fato. Investidura baseada em norma posteriormente declarada inconstitucional. A nulidade não envolve uma das fases do ato complexo, de mera execução de ordem legítima, com a sua conseqüência normal e rotineira. Aparência de legalidade e inexistência de prejuízo. Recurso extraordinário pela letra c do art. 119, III, da Constituição, não conhecido” (RTJ 100/1086).

Tratava-se de caso em que foi argüida a nulidade de ato de penhora praticado por oficial de justiça, cuja nomeação fora feita com base em lei posteriormente declarada inconstitucional.84

Outro exemplo relaciona-se ao aumento concedido a servidores públicos (no caso magistrado), com base em lei inconstitucional. Em decisão proferida em 1994, relatada pelo Ministro Francisco Rezek, o STF,85 embora seguro no entendimento de que a lei declarada inconstitucional é nula de pleno direito (ipso jure), tendo a sentença efeito retroativo (ex tunc),86 entendeu, ocasional-mente, que “retribuição declarada inconstitucional (com efeito erga omnes) não é de ser devolvida no período de validade inquestionada da lei declarada inconstitucional – mas tampouco paga após a declaração de inconstituciona-lidade.”87 Dita decisão foi criticada por Gilmar Ferreira Mendes, que afirmou que “o princípio da irredutibilidade de vencimentos não se presta para conferir sustentação à tese adotada, uma vez que, tal como assinalado, o princípio da nulidade da lei inconstitucional tem, também, hierarquia constitucional”.88

Contudo, nos parece que a posição perfilhada pelo Pretório Excelso no caso pode ser sustentada, mas não com fundamento no cânone da irreduti-bilidade dos vencimentos, e sim com base no topoi da irrepetibilidade das verbas alimentares. Com efeito, tendo os vencimentos dos servidores natureza alimentar, já que se destinam a prover a subsistência dos menores, somos da opinião de que, se a inconstitucionalidade da lei em questão não for flagrante, nem abusivo o valor dos vencimentos percebidos por força dela, afigura-se correta a atribuição de eficácia ex nunc à decisão em discussão.89

84 VELOSO, op. cit. p. 191.85 SARMENTO, op. cit. p. 34.86 VELOSO, op. cit. p. 191.87 RE 122.202-6/MG, Rel. Min. Francisco Rezek, DJ, 08/04/1994, p. 7.243 – RDA 202/171.88 MENDES, op. cit. p. 262.89 SARMENTO, op. cit. p. 34.

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Mas o caso mais importante de restrição à aplicação retroativa das deci-sões de inconstitucionalidade se encontra na necessidade de respeito à coisa julgada, já que a proteção desta também desfruta de hierarquia constitucional (art. 5º XXXVI, CR). Assim, a declaração de inconstitucionalidade de uma norma tem o condão de desconstituir sentenças transitadas em julgado, base-adas na norma inconstitucional.90

É claro que, no âmbito cível, se o prazo decadencial de dois anos após o trânsito em julgado da decisão ainda não tiver escoado, poderá o interessado ajuizar ação rescisória, baseando-se em violação a literal disposição de lei (art. 485, VI, do CPC), já que tal fundamento abrange também a inconstitu-cionalidade da norma em que se alicerça a sentença.91 Porém, se tal prazo já se tiver consumado, não terá o prejudicado nenhum remédio judicial para se opor ao cumprimento da decisão lastreada em norma inconstitucional, já que no Brasil, ao contrário do que ocorre na Alemanha, não é possível a posição de embargos à execução de sentença com tal fundamento. Nesse sentido, já decidiu o STF:92

“A suspensão da vigência da lei por inconstitucionalidade torna sem efeito todos os atos praticados sob o império da lei inconstitucional. Contudo, a nulidade da decisão judicial transitada em julgado só pode ser declarada por via de ação rescisória...”93

Na seara penal, porém, tal limitação não se aplica em desfavor do réu, uma vez que a lei não assinala nenhum prazo fatal para a propositura de re-visão criminal.94

Outra questão interessante está em saber se pode ser pedida a repetição de indébito em razão do pagamento de dívida fundada em lei inconstitucional, após o decurso do respectivo prazo prescricional ou decadencial. Na Itália, é 90 Idem. p. 34.91 Cumpre atentar, porém, para o fato de que, conforme reza a Súmula 343 do STF, “não cabe ação rescisória por ofensa literal a disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”. Com base neste enunciado, alguns Tribunais Regionais Federais têm julgado improcedentes ações rescisórias propostas pelo Fisco, objetivando desconstituir decisões, em matéria tributária, favoráveis ao contribuinte, que afastavam, por suposta inconstitucionalidade, a cobrança de certos tributos, os quais foram posteriormente considerados constitucionais pelo STF. Tais decisões têm-se baseado no fato de que a constitucionalidade de tais tributos era matéria controvertida nos pretórios, à época das decisões.92 SARMENTO, op. cit. p. 34-35.93 RMS 17.076, Rel. Min. Amaral Santos, RTJ 55/744.94 SARMENTO, op. cit. p. 35.

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pacífico o entendimento de que os efeitos da decisão de inconstitucionalida-de não se sobrepõem à prescrição ou decadência, a não ser que também seja declarada a inconstitucionalidade do respectivo prazo.95 Todavia, a jurispru-dência do STJ, no campo tributário, vem se encaminhando para a solução oposta, ao considerar que o decurso do prazo qüinqüenal, estabelecido no art. 168 do CTN, não é óbice para que o contribuinte ajuíze repetição de indébito de tributo considerado inconstitucional, em ADIN, pelo STF, iniciando-se, a partir do julgamento desta, novo prazo de cinco anos.96

O próprio Supremo Tribunal Federal tem apontado as insuficiências existentes no âmbito das técnicas de decisão no processo de controle de constitucionalidade.97

Nos processos de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, a jurisprudência pátria também se abstém, em princípio, de pronunciar a nulidade de qualquer norma.98 Tratando-se de omissão legislativa total, isto ocorre pelo simples fato de que não há norma alguma a ser suprimida do ordenamento, mas sim uma lacuna normativa contrária à Constituição. E, cuidando-se de omissão parcial, porque, no mais das vezes, a eliminação da norma imperfeita agravaria a situação de inconstitucionalidade, ao invés de resolvê-la.99

Os casos de omissão parcial mostram-se extremamente difíceis de serem

95 CERRI, op. cit. p. 101-102.96 1ª Seção, Emb. Diverg. em Resp. n. 44.952-7/PR. Rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJ de 22/05/1995.97 MENDES, op. cit. p. 6.98 A inconstitucionalidade por omissão é tema extremamente tormentoso. Assim, pede-se vê-nia para remeter o leitor à vasta literatura existente a respeito, especialmente CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador : contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra : Coimbra Ed., 1994. p. 325-324, PIOVESAN, op. cit., MENDES, op. cit. p. 285-303, e CLÈVE, op. cit. 209-260. Quanto à conceituação de omissão total e parcial, veja-se a nota n.º 53, onde tais categorias estão brevemente sintetizadas.99 As omissões parciais suscitam problemas altamente complexos, porque, quando elas são reconhecidas pelo judiciário, este emite, necessariamente, um juízo de censura sobre a norma editada pelo legislador, seja pela sua incompletude – a norma não atinge todos os destinatários que deveria, violando o princípio da isonomia –, seja pela sua deficiência – a norma não atende aos objetivos delineados na Constituição. Portanto, quando ocorre uma omissão legislativa parcial, a questão pode ser enfrentada sob o prisma da inconstitucionalidade por ação ou por omissão, o que enseja inúmeras perplexidades, como relata MENDES, op. cit. p. 292-293, que propõe, para equacionamento destes casos, a adoção no país do método de declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, existente no Direito Alemão.

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superados no âmbito do controle de normas em razão da insuficiência das técnicas de controle.100

Veja-se, a título de exemplo de omissão parcial, o caso da lei que fixa o salário mínimo em desconformidade com disposto no art. 7º, IV, da Lei Maior (tal dispositivo prevê que o salário mínimo deve ser fixado por lei, de modo que seja capaz de atender às necessidades básicas do trabalhador e de sua família com alimentação, educação, higiene, transporte e previdência social). O reconhecimento da inconstitucionalidade desta norma não pode acarretar a sua supressão do ordenamento, pois isto geraria uma situação ainda mais grave, do ponto de vista constitucional, já que deixaria de haver lei disciplinando o valor do salário mínimo. Por outro lado, não pode o Judiciário arvorar-se à condição de legislador positivo, fixando unilateralmente o valor do salário mínimo. Por isso, nesse caso, a aplicação da lei inconstitucional, até que outra advenha para cumprir os ditames constitucionais, afigura-se um imperativo reclamado pela própria Lei Maior.101

Outro exemplo de omissão parcial restou evidenciada na ADIn 526-0, oferecida contra a Medida Provisória n.º 296, de 1991, que concedia aumento de remuneração a segmento expressivo do funcionalismo público, em alegado desrespeito ao disposto no art. 37, X, da Constituição. Convém se registre passagem do voto proferido pelo eminente Relator, Ministro Sepúlveda Per-tence, no julgamento do pedido de concessão de medida cautelar:102

“Põe-se aqui, entretanto, um problema sério e ainda não deslindado pela Corte, que é um dos tormentos do controle da constitucionalidade da lei pelo estalão do Princípio da Isonomia e suas derivações constitucionais.”

Se a ofensa à isonomia consiste, no texto da norma questionada, na imposição de restrição a alguém, que não se estenda aos que se encontram em posição idêntica, a situação de desigualdade se resolve sem perplexidade pela declaração da invalidez da constrição discriminatória.

A consagração positiva da teoria da inconstitucionalidade por omissão criou, no entanto, dilema cruciante, quando se trate, ao contrário, de ofensa à isonomia pela outorga por lei de vantagem a um ou mais grupos com exclusão

100 MENDES, op. cit. p. 6.101 Esta hipótese foi tratada em Parecer da Procuradoria Geral da República, apresentado na ADIN 737-DF, que se encontra parcialmente reproduzido CLÈVE, op. cit. p. 243-244.102 MENDES, op. cit. p. 6.

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de outro ou outros que, sob o ângulo considerado, deveriam se incluir entre os beneficiários.

É a hipótese, no quadro constitucional brasileiro, de lei que, à vista da erosão inflacionária do poder de compra da moeda, não dê alcance universal à revisão de vencimentos, contrariando o art. 37, X, ou que, para cargos de atribuições iguais ou assemelhadas, fixe vencimentos díspares, negando ob-servância à imposição de tratamento igualitário do art. 39, § 1º e seus incs., da Constituição.103

A alternativa que aí se põe ao órgão de controle é afirmar a inconstitu-cionalidade positiva de norma concessiva do benefício ou, sob outro prisma, a da omissão parcial consistente em não ter estendido o benefício a quantos satisfizessem os mesmos pressupostos de fato subjacentes à outorga.104

“A censurabilidade do comportamento do legislador” – mostra Canoti-lho,105 a partir da caracterização material da omissão legislativa – “tanto pode residir no acto positivo – exclusão arbitrária de certos grupos das vanta-gens legais – como no procedimento omissivo – emanação de uma lei que contempla positivamente um grupo de cidadão, esquecendo outros”.

Se se adota a primeira solução – a declaração de inconstitucionalidade da lei por “não favorecimento arbitrário” ou “exclusão inconstitucional de vantagem” – que é a da nossa tradição106 – a decisão tem eficácia fulminante, mas conduz a iniqüidades contra os beneficiados, quando a vantagem não traduz privilégio, mas imperativo de circunstâncias concretas, não obstante a exclusão indevida de outros, que ao gozo dela se apresentariam com os mesmos títulos.

É o que ocorreria, no caso, com a suspensão cautelar da eficácia da me-dida provisória, postulada na ADIn 526-0: estaria prejudicado o aumento de vencimentos da parcela mais numerosa do funcionalismo civil e militar, sem que daí resultasse benefício algum para os excluídos do seu alcance.

A solução oposta – a da omissão parcial –, seria satisfatória, se resultas-

103 Idem. p. 6-7.104 CANOTILHO, op. cit. p. 992, 333 ss., 339; op. cit. p. 831; MENDES, op. cit. p. 60 ss.; FERRARI, op. cit. p. 156 ss.; ROCHA, Cármem Lúcia Antunes. O princípio constitucional da igualdade. Belo Horizonte : Jurídicos Lê, 1990. p. 42.105 CANOTILHO, op. cit. p. 334.106 v.g. RE 102.553, 21/08/1986, RTJ 120/725.

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se na extensão do aumento – alegadamente, simples reajuste monetário –, a todos quantos sofrem com a mesma intensidade a depreciação inflacionária dos vencimentos.

A essa extensão da lei, contudo, faltam poderes ao Tribunal, que, à luz do art. 103, § 2º, CR, declarando a inconstitucionalidade por omissão da lei – seja ela absoluta ou relativa, há de cingir-se a comunicá-la ao órgão legis-lativo competente, para que a supra.

De resto, como assinalam estudiosos de inegável autoridade,107 o alvitre da inconstitucionalidade por omissão parcial ofensiva da isonomia – só pôde ser construída, a partir da Alemanha, nos regimes do monopólio do contro-le de normas pela Corte Constitucional –, suscita problemas relevantes de possível rejeição sistemática, se se cogita de transplantá-la para a delicada simbiose institucional que se traduz na conveniência, no Direito Brasileiro, entre o método de controle direto e concentrado no Supremo Tribunal e o sistema difuso.

Ponderações que não seria oportuno expender aqui fazem, porém, com que não descarte de plano a aplicabilidade, no Brasil, da tese da inconstitu-cionalidade por omissão parcial. Ela, entretanto, não admite antecipação cautelar, sequer, limitados efeitos de sua declaração no julgamento definitivo; muito menos para a extensão do benefício aos excluídos, que nem na decisão final se poderia obter.

Evidente, pois, que a declaração de nulidade não configura técnica ade-quada para a eliminação da situação inconstitucional nesses casos de omissão legislativa. Uma cassação aprofundaria o estado de inconstitucionalidade, tal como já admitido pela Corte Constitucional alemã em algumas decisões.

Essa deficiência se mostrou igualmente notória na decisão de 23.3.94, na qual o Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de ampliar a já complexa tessitura das técnicas de decisão no controle de constitucionalidade, admitin-do que lei que concedia prazo em dobro para a defensoria pública era de ser considerada constitucional enquanto esses órgãos não estivessem devidamente habilitados ou estruturados.

Ressalvou-se, portanto, de forma expressa, a possibilidade de que o Tribunal viesse a declarar a inconstitucionalidade da disposição em apreço,

107 v.g. MENDES, cit. p. 70.

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uma vez que, como ressaltado no voto do Ministro Moreira Alves, a afirmação sobre a legitimidade da norma assentava-se em uma circunstância de fato que se modifica no tempo.

Tais decisões demonstram que a criação de nova técnica de decisão de-corre do próprio sistema constitucional, especialmente do complexo processo de controle de constitucionalidade das leis adotado entre nós.

7. Ponderação de interesses, princípio da proporcionalidade e os efeitos temporais das decisões de inconstitucionalidade

A lei inconstitucional (e Kelsen, como dissemos, via nesta expressão uma contradictio in adjecto108) é lei que entrou nulamente no mundo jurídico.

Porém, como toda lei, ela portava a presunção de sua validade, que é um forte elemento de segurança nas relações sociais.109

No exercício da jurisdição constitucional, não pode o Judiciário descon-siderar os efeitos concretos que suas decisões produzem.110

No exercício do controle de constitucionalidade, surge muitas vezes a necessidade de proteger interesses contrapostos, ambos tutelados constitucio-nalmente. Pode ser que determinada norma infraconstitucional viole algum ditame da Lei Maior, mas que a sua supressão retroativa do ordenamento ocasione, da mesma forma, a lesão a outro bem ou valor salvaguardado constitucionalmente.111

Deve ser concedida certa “margem de manobra” ao Judiciário, para que possa buscar, em vista das peculiaridades da situação concreta, uma solução que acomode, na medida do possível, os interesses em disputa, sem ter de sacrificar integralmente algum deles em detrimento do outro. Trata-se da aplicação do método da ponderação de interesses, que exige, por parte do operador do direito, um labor de otimização, de modo que a compressão a cada interesse constitucional em jogo seja a mínima necessária para a salvaguarda do interesse antagônico.112

108 Vide nota 37.109 VELOSO, op. cit. p. 185.110 Veja-se, a propósito, BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo : Saraiva, 1996. p. 106; e USERA, Raul Canosa. Interpretación constitucional y formula política. Madrid : Centro de Estudios Constitucionales, 1988. p. 240-244.111 SARMENTO, op. cit. p. 36-37.

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Sob este prisma, entendemos que o fundamento para o Judiciário pro-ceder à ponderação de interesses no controle de constitucionalidade radica no princípio da proporcionalidade, cuja vigência em nosso ordenamento constitucional a jurisprudência mais atual vem reconhecendo.113

Tal princípio desempenha um papel extremamente relevante no controle de constitucionalidade dos atos do poder público, na medida em que ele permite de certa forma a penetração no mérito do ato normativo, para aferição da sua razoabilidade114 e racionabilidade, através da verificação da relação custo-benefício da norma jurídica, e da análise da adequação entre o seu conteúdo e a finalidade por ela perseguida.

Conforme a doutrina mais autorizada115, o princípio da proporcionalidade é passível de divisão em três sub-princípios: (a) da adequação, que exige que as medidas adotadas tenham aptidão para conduzir aos resultados almejados pelo legislador; (b) da necessidade, que impõe ao legislador que, entre vários meios aptos ao atingimento de determinados fins, opte sempre pelo menos gravoso; (c) da proporcionalidade em sentido estrito, que preconiza a ponde-ração entre os efeitos positivos da norma e os ônus que ela acarreta aos seus destinatários. Assim, para conformar-se ao princípio da proporcionalidade, uma norma jurídica deverá, a um só tempo, ser apta para os fins a que se

112 Sobre a ponderação de interesses é muito rica a doutrina estrangeira, destacando-se as seguintes obras: ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales; tradução de Ernesto Garzón Valdés. Madri : Centro de Estudios Constitucionales, 1993. p. 81-170; DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978. p. 14-45; BIN, Roberto. Diritti e argomenti : II bilanciamento degli interessi nella giurisprudenza costituzionale. Milão : Giuffrè, 1992; CERVATI, Angelo Antonio. In tema di interpretazzione della Costituzione, nuove tecniche argomentative e bilanciamento tra valori costituzoinali. In: II Principio di ragionevo-lezza nella giurisprudenza della Corte Costituzionale. Milão : Giuffrè, 1994. p. 55-103.113 Vide o julgamento da liminar da ADIN 958-3 – RJ, DJ de 20/10/1993, e o julgamento do mérito das ADINs 966-4 – DF e 958-3-RJ, DJ de 11/05/1994.114 O princípio da proporcionalidade apresenta ostensivas semelhanças com o princípio da razoabilidade das leis, cuja matriz histórica radica na compreensão que a Suprema Corte nor-te-americana adota da cláusula do due process of law. As semelhanças são tão intensas que Luis Roberto Barroso chega a predicar a existência de relação de fungibilidade entre ambos os princípios (op. cit. p. 204).115 Veja-se BONAVIDES, op. cit. p. 318 ss; STUMM, Raquel Denize. Princípio da proporcio-nalidade no direito constitucional brasileiro. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1995; e BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília : Brasília Jurídica, 1996. p. 72 ss.

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destina, ser a menos gravosa possível para que se logrem tais fins, e causar benefícios superiores às desvantagens que proporciona.116

A atuação normativa do Tribunal, no controle da constitucionalidade, pode ser defendida, inclusive, pelo princípio da proporcionalidade, que se caracteriza, como diz Paulo Bonavides, pelo fato de presumir a existência de relação adequada entre um ou vários fins determinados e os meios com que são levados a cabo.117 Sobre o conceito da proporcionalidade, há a frase célebre de Jellineck, citada por mestre Bonavides: “Não se abatem pardais disparando canhões.”118

Observa Luis Roberto Barroso que deve o Judiciário agir com prudên-cia e parcimônia, precisando-se ter em linha de conta que, em um Estado democrático, a definição das políticas públicas deve recair sobre os órgãos que têm o batismo da representação popular, o que não é o caso de juízes e tribunais. Mas – conclui –, “quando se trate de preservar a vontade do povo, isto é, do constituinte originário, contra os excessos de maiorias legislativas eventuais, não deve o juiz hesitar. O controle de constitucionalidade se exerce, precisamente, para assegurar a preservação dos valores permanentes sobre os ímpetos circunstanciais”119

A utilização da técnica da ponderação de interesses não é estranha à praxe do Supremo Tribunal Federal no controle de constitucionalidade, que a utiliza, freqüente e abertamente, no momento da concessão de medidas liminares em Ações Diretas de Inconstitucionalidade.

O princípio da proporcionalidade autoriza uma restrição à eficácia ex nunc da decisão proferida no controle de inconstitucionalidade, sempre que esta res-trição: (a) mostrar-se apta a garantir a sobrevivência do interesse contraposto, (b) não houver solução menos gravosa para proteger o referido interesse, e (c) o benefício logrado com a restrição à eficácia retroativa da decisão compensar o grau de sacrifício imposto ao interesse que seria integralmente prestigiado, caso a decisão surtisse seus efeitos naturais.

No campo constitucional, o sentido da norma pode sofrer alterações, sob o influxo das variações ocorridas na realidade sobre a qual ela incide. Este fenômeno é ainda mais intenso, seja pelo uso abundante de conceitos 116 SARMENTO, op. cit. p. 37-38117 BONAVIDES, op. cit. p. 314 et seq.118 VELOSO, op. cit. p. 189.119 BARROSO, op. cit. p. 209 et seq.

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plásticos nos textos constitucionais, seja em razão do natural dinamismo do domínio empírico sobre o qual se proteja a Constituição. Por isso, os ele-mentos sistemático, axiológico e teleológico têm um peso muito maior na interpretação da Constituição, e eles apontam, no caso, para a possibilidade de flexibilização do dogma da eficácia ex tunc das decisões no controle de constitucionalidade.120

O princípio da razoabilidade, desenvolvido no Direito Administrativo, adentrou no Direito Constitucional das nações civilizadas. No Brasil, não foi formulado direta e expressamente, mas deflui do ordenamento, estando esparsamente referido em normas da Constituição,121 mas cuja vigência em nosso ordenamento a doutrina admite pacificamente.122

Tal princípio estava previsto no texto aprovado pela Comissão de Sis-tematização da Assembléia Constituinte, mas foi excluído na redação final da carta de 1988.123 Nem por isso a doutrina e jurisprudência passaram a considerar tal princípio como inexistente no direito pátrio.124

As concepções privatísticas sobre a invalidade dos atos jurídicos não se podem estender ao direito público, sem ressalvas e temperamentos, cabendo alertar, ainda, que, há muito e muito tempo, tais “concepções privatísticas” quanto à eficácia retroativa da nulidade já não são ortodoxas.125

A inclinação mais importante do controle jurisdicional da constituciona-lidade, quanto aos efeitos da declaração, é fugir do rigorismo técnico-jurídico, das posições inflexíveis e dogmáticas, considerando as conseqüências práti-cas e políticas, a justiça do caso concreto, permitindo que o Tribunal, com prudência e cautela, exerça um poder normativo, determinando a eficácia da decisão a respeito da inconstitucionalidade.

Com o fito de evitar excessos e não ensejar que algumas decisões radicais acabem por causar mais danos e inquietações do que benefícios e vantagens no organismo social, uma atuação normativa do Tribunal, ao exercer o controle da constitucionalidade, é justificável, desde que, por sua vez, não incorra em outro

120 SARMENTO, op. cit. p. 38-39.121 VELOSO, op. cit. p. 189.122 SARMENTO, op. cit. p. 39.123 BARROSO, op. cit. p. 217.124 SARMENTO, op. cit. p. 39125 VELOSO, op. cit. p. 185-186.

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excesso — talvez maior —, o de prender-se em considerações exclusivamente políticas, desertando de seu papel fundamentalmente jurídico.126

Remarque-se, porque relevante, que a última palavra poderá ser sempre do Legislativo. É que, não concordando com a inteligência dada pelo Judiciário a um dispositivo constitucional, poderá ele, no exercício do poder constituinte derivado, emendar a norma constitucional e dar-lhe o sentido que desejar127

8. A flexibilização do dogma da eficácia ex tunc

A doutrina sempre manifestou a firme convicção de que havia a maior necessidade, utilidade e importância de se prever em nosso direito constitu-cio-nal positivo a possibilidade de o STF, em casos excepcionais, e quando o exija o interesse público, estabelecer limites à eficácia da declaração de inconstitucionalidade, com as devidas ressalvas.

Adotando sugestões de diversos congressistas, no processo revisional de 1984, o Relator128 propôs que fosse introduzido o § 5º ao art. 103 da Cons-tituição:

“§ 5º. Quando o Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucionalidade, em tese, de lei ou ato normativo, poderá determinar, por maioria de dois terços de seus membros, a perda de sua eficácia a partir do trânsito em julgado da decisão.”

Em sua justificativa, o Relator mencionou que a lei declarada inconstitu-cional é considerada, independentemente de qualquer outro ato, nula ipso jure et ex tunc. Observou que, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, pode-se identificar, todavia, tentativa do saudoso Ministro Leitão de Abreu, no sentido de, com base na doutrina de Kelsen, abandonar a teoria da nuli-dade em favor da chamada teoria da anulabilidade; porém, essa decisão não provocou qualquer mudança no entendimento anterior relativo à nulidade ipso jure, até porque, consoante orientação do Supremo Tribunal Federal, o prin-cípio da supremacia da Constituição não se compadece com uma opinião que pressupõe a validade da lei inconstitucional. Relembrou que na Assembléia Constituinte de 1988 foi proposta a introdução de dispositivo que autorizava o STF a determinar se a lei que teve sua inconstitucionalidade declarada no controle abstrato de normas haveria de perder eficácia ex tunc, ou se a de-cisão deixaria de ter eficácia a partir da data de sua publicação, observando

126 VELOSO, op. cit. p. 188-189.127 BARROSO, op. cit. p. 209 et. seq.128 Sen. Mauricio Correa – ver ADIN 2258-0.

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esta proposta, em linhas gerais, o modelo estabelecido no art. 282, § 4º, da Constituição portuguesa, tendo sido, entretanto, rejeitada. Argumentou, final-mente, que a declaração de inconstitucionalidade, com eficácia retroativa, de leis aplicadas há muitos anos, pode acarretar problema de difícil solução, daí por que, não raras vezes, os tribunais se vêem impossibilitados de declarar a inconstitucionalidade, para evitar situações de autêntica comoção social ou de grande instabilidade:

“A falta de um instituto que permita estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade acaba por obrigar os Tribunais, muitas vezes, a se absterem de emitir um juízo de censura, declarando a constitucionalidade de leis manifes-tamente inconstitucionais.”

Defendeu a introdução, entre nós, ao lado da ortodoxa declaração de nulidade, de alternativa normativa que permita ao Supremo Tribunal, em casos excepcionais, estabelecer limites aos efeitos da declaração de incons-titucionalidade, proferindo a inconstitucionalidade com eficácia ex nunc ou pro futuro.129

Conferir, sem restrições e atenuações, eficácia ex tunc à declaração de inconstitucionalidade, retroagindo a sentença ab initio, determinando-se a nulidade da lei desde o seu nascimento e, portanto, considerando írritos e sem eficácia todos os atos praticados sob a égide da norma invalidada, pode causar, em muitas situações, verdadeiro caos, uma comoção social.

Imagine-se o que representa desconstituir, “como se não tivessem exis-tido”, inúmeras relações jurídicas, de toda ordem, criadas, desenvolvidas e consumadas com base na boa-fé, na confiança, amparadas em uma lei, devi-damente promulgada, publicada e em pleno vigor, que gozava de presunção de legitimidade, porque depois (geralmente, muito tempo depois) o Judiciário veio declarar que aquilo não era uma lei...

Não haveria força humana capaz de dar concretitude e eficácia à sentença, o que acaba redundando em desprestígio da Justiça. A estas conse-qüências nefastas é que leva a compreensão do direito alcançada sob os dogmas da pura lógica jurídica, debaixo de um frio raciocínio, aplicando-se, automaticamente, as sentenças venerandas dos Celsos, Gaios e Papinianos, como se se estivesse resolvendo uma operação aritmética, com os olhos vendados para a realidade social envolvente e os ouvidos surdos para a revolta, a angústia e a ansiedade

129 CONGRESSO REVISOR. Relatoria da Revisão Constitucional. Pareceres Produzidos (His-tórico). Brasília : Senado Federal, Subscretaria de Edições Técnicas, 1994. t. I, p. 366 et seq.

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dos que serão atingidos e punidos pela inflexível e desumana retroatividade da decisão.130

Coerente com evolução constatada no Direito Constitucional comparado, as Leis n.º 9.868/99 e 9.882/99, nos seus arts. 27 e 11, respectivamente, dispu-seram que o próprio Supremo Tribunal Federal, por uma maioria diferenciada, decida sobre os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, fazendo um juízo rigoroso de ponderação entre o princípio da nulidade da lei inconstitu-cional, de um lado, e os postulados da segurança jurídica e do interesse social, de outro. Assim, o princípio da nulidade somente será afastado in concreto se, a juízo do próprio Tribunal, se puder afirmar que a declaração de nulidade acabaria por distanciar-se ainda mais da vontade constitucional.

Entendeu, portanto, o legislador que, ao lado da ortodoxa declaração de nulidade, há de se reconhecer a possibilidade de o Supremo Tribunal, em casos excepcionais, mediante decisão da maioria qualificada (dois terços dos votos), estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, proferin-do a inconstitucionalidade com eficácia ex nunc ou pro futuro, especialmente naqueles casos em que a declaração de nulidade se mostre inadequada131 ou nas hipóteses em que a lacuna resultante da declaração de nulidade possa dar ensejo ao surgimento de uma situação ainda mais afastada da vontade constitucional.

Enfim, verifica-se que embora nossa jurisprudência ainda se mantenha fiel ao dogma da nulidade ab initio da lei constitucional, em casos excepcionais ela já ensaia, com alguma timidez, certos expedientes para contornar a rigidez do princípio e adequá-lo à dinâmica dos fatos.132

9. A declaração de inconstitucionalidade poderá determinar a repristinação das normas que a Constituição eventualmente haja revogado?

No Brasil, dado que a declaração de inconstitucionalidade, em regra, implica nulidade (e não, simplesmente, anulabilidade) do preceito impugnado, tendo a sentença efeito ex tunc, a decisão judicial que assim o declara produz efeitos repristinatórios. Sendo esta a posição da jurisprudência dominante do STF, não se pode deixar de concluir que as normas revogadas pelas leis posteriormente invalidadas voltam a viger, ou, até melhor dizendo, funcionam 130 VELOSO, op. cit. p. 191-192.131 v.g.: lesão positiva ao princípio da isonomia.132 MENDES, op. cit. p. 7-8.

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114 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, jan./jun. 2001

como se jamais tivessem deixado de vigorar.

Outra conclusão não é possível, considerando-se que a declaração de inconstitucionalidade, no controle abstrato, em tese, tem efeito imediato e geral, produzindo a sentença eficácia erga omnes, desconstituindo, retroa-tivamente, a norma impugnada, que é invalidada desde o seu nascimento, em regra. Por isso é que todos os autores, repetindo Kelsen, afirmam que o Tribunal Constitucional é um “legislador negativo”.

A decisão judicial que decreta (rectius, que declara) a inconstitucionali-dade atinge todos os “possíveis efeitos que uma lei constitucional é capaz de gerar”,133 inclusive a cláusula expressa ou implícita de revogação.

Na Representação 1.077/RJ, foi argüida perante o STF a inconstitucio-nalidade da Lei 383, de 04.12.1980, do Estado do Rio de Janeiro, cujo art. 2º tratava da taxa judiciária, alterando dispositivos da legislação anterior e elevando, excessivamente, a aludida taxa. O relator, Ministro Moreira Alves, deferiu a medida liminar pleiteada, nos termos em que foi requerida, estenden-do-a, por via de conseqüência, ao art. 3º da mesma lei, no tocante à revogação da legislação anterior que disciplinava a taxa judiciária, “que assim volta a vigorar enquanto persistir a presente liminar”. Concluiu o eminente Ministro, notável civilista e um dos maiores constitucionalistas deste País:

“Essa extensão se justifica, porque a suspensão da lei argüida de inconstitucional por meio de liminar visa, provisoriamente, ao resultado que se pleiteia em definitivo, se julgada procedente a representação. E, no caso de procedência desta, sendo nula a lei declarada inconstitucional, permanece vigente a legislação anterior a ela e que teria sido revogada não houvesse a nulidade” (RTJ 101/499).

Admitir-se que a lei revogada por outra lei que, afinal, teve a sua in-constitucionalidade reconhecida continua revogada, permanece sem eficácia, implica uma contradição. Estar-se-ia propondo que uma lei inconstitucional, nula, portanto, ab initio, não tendo produzido nenhum efeito, teve força, não obstante, para inovar a ordem jurídica, revogando norma anterior. Mas esta doutrina rigorosa tem recebido o impacto de novas idéias, que pregam a ne-cessidade de o tribunal constitucional, excepcionalmente, estabelecer efeitos diversos dos tradicionais à declaração de inconstitucionalidade.

A doutrina já insinuava, há muito, que se devia conferir ao Pretório Excelso, explícita e inequivocamente, o poder de determinar os efeitos, a extensão da declaração de inconstitucionalidade, inclusive estatuindo a reentrada em vigor, 133 MELLO FILHO, José Celso de. Constituição Federal anotada. 2. ed. São Paulo : Saraiva, 1986. p. 349.

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ou não, da norma que a lei inconstitucional havia revogado. Isto, porém, sem deslembrar que a razão e a experiência mandam que não se tente resolver uma questão de modo que a solução cause um problema maior. Mas, a sugestão apresentada não pode ser seguida com descomedimento e excesso, desbordando a Corte Constitucional de sua função de legislador negativo, usurpando atribuições do Poder Legislativo, e a ocorrência desta anomalia, aliás, já tem sido objeto de preocupação e advertências de constitucionalistas europeus.

Pode ocorrer, no entanto, de a norma anterior, que havia sido revogada pela lei inconstitucional, ser, por sua vez, inconstitucional. Não teria sentido ou razão o Supremo Tribunal exercer o controle jurisdicional, expelindo do ordenamento norma conflitante com a Carta Magna, mas fazendo voltar a vigorar a norma anterior, que, além de mais antiga, pode estar pelejando de forma mais agressiva e hostil com o Texto Fundamental.

Embora falte no direito brasileiro regra expressa a respeito, somos de parecer que se deve prestigiar o dogma da supremacia da Constituição, expan-dindo-se a declaração de inconstitucionalidade a outras normas, ainda que não mencionadas diretamente no pedido, e desde que haja conexão, correlação, relação de dependência entre os preceitos. A fortiori, até em nome do postu-lado da segurança jurídica — que tem a mesma hierarquia, o mesmo valor que o princípio da legalidade —, deve o STF proclamar a inconstitucionalidade — se for o caso — de norma anterior, que havia sido revogada pela lei cuja inconstitucionalidade foi reconhecida.134

A Lei 9.868/99 não regula, explicitamente, o tema acima apresentado, mas, no art. 27, faculta ao STF, por maioria de dois terços de seus membros, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Antes, no art. 11, § 2º, a dita lei enuncia que a concessão de medida cautelar em ADIn “torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário”.135

10. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade – controle concentrado

Declarada a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo federal ou estadual, a decisão produz coisa julgada, terá efeito retroativo (ex tunc) e

134 VELOSO, op. cit. p. 194.

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116 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, jan./jun. 2001

oponível erga omnes, estendendo seus efeitos para além das partes (no sentido formal) residentes na relação processual objetiva136, desfazendo, desde sua origem, o ato declarado inconstitucional, juntamente com todas as conseqü-ên-cias dele derivadas,137 uma vez que os atos inconstitucionais são nulos138 e, portanto, destituídos de qualquer carga de eficácia jurídica, alcançando a declaração de inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo, inclusive, os atos pretéritos com base nela praticados (efeitos ex tunc). Assim, a declaração de inconstitucionalidade139

“decreta a total nulidade dos atos emanados do Poder Público, desampara as situa-ções constituídas sob sua égide e inibe – ante a sua inaptidão para produzir efeitos jurídicos válidos – a possibilidade de invocação de qualquer direito”.140

Note-se que, no controle concentrado de inconstitucionalidade, a lei ou o ato normativo declarado inconstitucional saem do ordenamento jurídico imediatamente com a decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, não havendo aplicação do art. 52, X, da Constituição Federal, que permanece somente para a utilização no controle difuso.141

Como ressaltado pelo Ministro Moreira Alves, “Entre nós, como se adota o sistema misto de controle judiciário de inconsti-tucionalidade, se esta for declarada, no caso concreto, pelo Supremo Tribunal Federal, sua eficácia se limita às partes da lide, podendo o Senado Federal apenas suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (art. 52, X, da Constituição). Já, em se tratando de declaração de inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo por meio de ação direta de inconstitucionalidade, a eficácia dessa decisão é erga omnes e ocorre, refletindo-se sobre o passado, com o trânsito em julgado do aresto desta Corte.”142

Ressalte-se, ainda, que esta posição é antiga no Supremo Tribunal Fe-135 Idem. p. 194.136 CLÈVE, op. cit. p. 240.137 RTJ 82/791; RTJ 87/758; RTJ 89/367.138 Neste sentido, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Gilmar Mendes Ferreira nos aponta que, na Alemanha, a fórmula tradicional explicita que a lei “é inconstitucional e, por isso, nula” (Das Gesetz ist verfassungwidrig und daher nichtig). Vincula-se, dessarte, deter-minada situação – a inconstitucionalidade – à conseqüência jurídica – nulidade. Contra esta posição, Hans Kelsen, para quem os atos inconstitucionais são anuláveis ex tunc (op. cit. p. 374) e FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 20. ed. São Paulo : Saraiva, 1990. p. 37. 139 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 7. ed. São Paulo : Atlas, 2000. p. 594-595.140 RTJ 146/461.141 RAMOS, op. cit. p.121.

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, jan./jun. 2001 117

deral, pois em 18.6.1977, seu então Presidente, Ministro Thompson Flores, determinou que as comunicações ao Senado Federal, para os fins do art. 42, VII, da Constituição de 1967/69 (atual art. 52, X, da CR/88), se restringissem somente às declarações de inconstitucionalidade proferidas incidenter tantum, via controle difuso de constitucionalidade.143

Em face da coisa julgada (oponível erga omnes) que a ela adere, a deci-são de rejeição ou de pronúncia da inconstitucionalidade deve ser respeitada pelo próprio Supremo Tribunal Federal e pelos demais órgãos integrantes do Judiciário.

A coisa julgada, entretanto, não “congela” (“engessa”) de modo defini-tivo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, já que no Brasil, como nos demais países (EUA, por exemplo), a alteração das circunstâncias fáticas pode autorizar o deslocamento da compreensão constitucional de dada matéria. Assim, declarada a constitucionalidade de uma determinada lei, em virtude de sentença que julga improcedente a ação direta, não está impedido o Supremo Tribunal Federal de, mais tarde, uma vez alterado o sentido da norma para-métrica ou mesmo da normativa-objeto, e quando devidamente provocado, decretar a inconstitucionalidade do dispositivo atacado.144

No caso de inobservância, pelos juízes e tribunais, da coisa julgada erga omnes, e tendo o Supremo decidido que, em geral, descabe a reclamação145 à medida que a eficácia da decisão na ação direta “se exaure na declaração de que o ato normativo é inconstitucional (e, portanto, nulo desde a origem) ou constitucional (e, conseqüentemente, válido) [...] às partes prejudicadas nos casos, concretos, só restará, em recurso extraordinário, ver respeitada, pelo Supremo Tribunal Federal, sua decisão na ação direta de inconstitucionalidade sobre o ato normativo que dela foi objeto”.146

A coisa julgada não é, entretanto, capaz de impedir que o órgão legisla-

142 RTJ 151/331-355.143 Revista de Informação Legislativa, n. 57, p. 260. 1978144 Anais da VII Conferência dos Tribunais Constitucionais Europeus. Lisboa, 1987, I, p. 69. O STF já se manifestou nesse sentido no RE 105.012-8, Rel. Min. Néri da Silveira. DJU 01/07/1988.145 É necessário conferir matiz à afirmação. Afinal, o STF já admitiu a reclamação no caso de descumprimento frontal de decisões proferidas em ações diretas de inconstitucionalidade (Recl. 173, RTJ 131/11).

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118 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, jan./jun. 2001

tivo volte a praticar inconstitucionalidade editando novo ato com o mesmo conteúdo do anterior.147 Para obviar esses inconvenientes, em geral inocor-rentes nos Estados Unidos, em virtude do princípio do stare decisis, alguns países resolveram conferir às decisões das Cortes Constitucionais efeitos que constituem um plus148 em relação à coisa julgada. Assim, por exemplo, a Constituição alemã confere “força de lei” às decisões da Corte Constitucio-nal.149 Em outros ordenamentos dispõe-se “expressamente que as decisões do respectivo Tribunal Constitucional ou órgão equivalente são obrigatórias para todos os poderes públicos e autoridades ou entidades públicas (e privadas), ou para os restantes órgãos constitucionais do Estado e para todos os tribunais e autoridades administrativas”.150 É o caso da Alemanha, mais uma vez, da Espanha, de Portugal e da França. “Põe-se, assim, o problema duma peculiar força obrigatória geral de todas as decisões, para lá do específico efeito ou eficácia (erga omnes, caso julgado, efeito preclusivo) que deva reconhecer-se a cada espécie ou categoria delas em particular”.151

11. A Lei n.º 9.868, de 10 de novembro de 1999, e a Lei n.º 9.882, de 3 de dezembro de 1999.

Procuramos mostrar os avanços que muitos países conheceram — na lei

146 Ação direta de Constitucionalidade 01, Voto do Ministro Moreira Alves (p.16). 147 Rp 1348, Rel. Min. Célio Borja, RTJ 124/59. Nesse sentido: ADinMca 864-RS (Rel. Min. Moreira Alves, j. 23.06.1993, DJU 17/09/1993), RTJ 146/461, RTJ 157/773, RTJ 157/871.148 Ação Direta de Constitucionalidade 01, voto do Ministro Moreira Alves (p. 17).149 O art. 94 da Lei Fundamental alemã trata do Tribunal Constitucional dispondo que “uma lei federal regulará a sua organização e processo, determinando os casos em que as suas decisões terão força de lei [...]”. A Lei Orgânica da Corte Constitucional Federal trata da questão no § 31.2. Mas a Lei Orgânica referida conferiu, também, às decisões da Corte Constitucional, efeito vinculante (§ 31.1). Sobre os efeitos da decisão da Corte Constitucional na Alemanha conferir, entre outros: SCHLAICH, Klaus. Procédures et techniques de protection des droits fondamentaux. Tribunal Constitutionnel Fédéral Allemand. In: FAVOREU, Louis. (Dir.). Cours constitutionnelles européennes et droits fondamentaux. Paris : Economica, 1992. p. 140-157; HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre : Fabris, 1998. p. 499; e BÉGUIN, Jean-Claude. Le contrôle de la constitutionnalité des lois en République Fédérale d’Allemagne. Paris : Economica, 1982. p. 165-169. No Brasil, todas as decisões judiciais, por força do que especifica o art. 468 do CPC, e nos limites ali definidos, “têm força de lei”.150 Anais, op. cit. p. 68.

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ou na jurisprudência — a respeito dos efeitos da declaração de inconstitucio-nalidade, destacando a Alemanha, a Áustria, a Itália, a Espanha e Portugal. Apontamos lições de nossos mais importantes constitucionalistas, pregando a necessidade de ser flexibilizado ou moderado o princípio de que a lei in-constitucional é nula, tendo a sentença que reconheceu este vício eficácia ex tunc, desconstituindo tudo o que se produziu sob a égide da norma invalida-da. Indicamos, também, algumas decisões do STF, no sentido de que não é necessária ou inabalável a correlação entre inconstitucionalidade e nulidade, registrando o voto precursor do Ministro Leitão de Abreu.

Esta inclinação, este pendor irreprimível do controle de constituciona-lidade, que se verifica em, praticamente, todos os países, refletiu-se na Lei 9.868,152 de 10.11.99, contendo norma inspirada no art. 282.4 da Carta Política de Portugal, inovou em relação à ação direta, permitindo ao Supremo Tribunal Federal a limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade,153 cujo art. 27 enuncia:

“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”

Ainda em fase de projeto, o Prof. Inocêncio Mártires Coelho teve ensejo de tecer algumas considerações em torno dessa avançada solução legislativa, que ao ver dos seus autores fundava-se, desde logo, no argumento – haurido na jurisdição constitucional norte-americana –– de que a constituição não proíbe nem exige efeito retroativo nos pronunciamentos de inconstitucionalidade.

São desse estudo exploratório as seguintes observações críticas:“Com essa fórmula, inspirada imediatamente na Constituição Portuguesa de 1976, mas historicamente amadurecida na experiência da nossa jurisdição constitucional, tem-se em mira atenuar as conseqüências das declarações de inconstitucionalidade, em ordem a impedir que, por amor aos princípios, os juízes acabem contrariando a natureza das coisas, desnecessariamente aliás, porque a Constituição nem proíbe nem exige efeito retroativo, como bem salientaram os autores do projeto.Conscientes da gravidade e do risco de se atribuir semelhante prerrogativa a um

151 Rp 1348, Rel. Min. Célio Borja, RTJ 124/59. Nesse sentido: ADinMca 864-RS (Rel. Min. Moreira Alves, j. 23.06.1993, DJU 17/09/1993), RTJ 146/461, RTJ 157/773, RTJ 157/871152 VELOSO, op. cit. p. 195.153 MORAES, op. cit. p. 595.

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tribunal – mesmo que essa corte seja o Supremo Tribunal Federal – , gravidade e risco que se potencializam pelo caráter aberto e indeterminado dos conceitos de segurança jurídica e de excepcional interesse social, cuidaram os idealizadores da proposta de justificá-la à exaustão, certamente atentos à advertência de que o abandono dos precedentes exige não apenas a explicação ordinária das razões de fato e de direito que fundamentaram essa mudança de posição, como também uma justificação adicional dos motivos que levaram o intérprete a se afastar do critério anterior.Afinal de contas, sempre se entendeu que uma lei declarada inconstitucional não é lei de forma alguma e, por isso, há de ser tida como nula e de nenhum efeito... Então, por que mudar? Por que abandonar esse velho e confortável en-tendimento, que tem a seu favor argumentos lógicos da maior consistência? Por que, enfim, preservar situações que se criaram ao abrigo de normas sabidamente inconstitucionais? Simplesmente porque assim o exige a natureza das coisas e porque a vida do direito não tem sido lógica, tem sido experiência... Pela radical mudança de perspectiva consubstanciada nessa ousada proposta, é de se considerar que aí se encontra a maior e a mais importante abertura em nosso processo de controle abstrato de constitucionalidade, porque dará ensejo a que o Supremo Tribunal Federal – alertado sobre todas conseqüências das suas decisões – , venha a adotar, sem contorcionismos, uma realística jurisprudência de resul-tados, assumidamente inspirada nos valores da segurança jurídica e do interesse social, que são congênitos à idéia de direito”.

Na linha desse trabalho de modelagem e de aperfeiçoamento do nosso sistema de defesa da Constituição, foi promulgada a Lei n.º 9.882, de 3.12.99, que dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, prevista no § 1º, do art. 102, da nossa Carta Política. O art. 11 desse último diploma contém norma idêntica à do art. 27 da citada Lei n.º 9.868/99, a demonstrar que, nesse terreno, como noutros domínios – e a despeito do ceticismo geral – pode existir um legislador racional, com plena consciência dos objetivos que intenta alcançar.154

Dessa forma, permitiu-se ao STF a manipulação dos efeitos da de-claração de inconstitucionalidade, seja em relação à sua amplitude, seja em relação aos seus efeitos temporais, desde que presentes os dois requisitos constitucionais:155

- requisito formal: decisão da maioria de dois terços dos membros do

154 COELHO, Inocêncio Mártires. Constitucionalidade/Inconstitucionalidade : uma questão política? Revista Jurídica Virtual da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República, n. 13, p. 12-13, jun. 2000. Disponível em: www.planalto.gov.br

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Tribunal;

- requisito material: presença de razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.

Em relação à amplitude dos efeitos da declaração de inconstituciona-lidade, a regra geral consiste em que a decisão tenha efeitos erga omnes, decretando-se a nulidade total de todos os atos emanados do Poder Público com base na lei ou ato normativo inconstitucional. Além disso, a declaração de inconstitucionalidade de uma norma acarreta a repristinação da norma anterior que por ela havia sido revogada, uma vez que norma inconstitucional é norma nula, não subsistindo nenhum de seus efeitos.

Excepcionalmente, poderá o Supremo Tribunal Federal, presentes os requisitos já analisados, limitar esses efeitos, seja (1) para afastar a nulidade de alguns atos praticados pelo Poder Público com base em norma declarada inconstitucional, seja (2) para afastar a incidência dessa decisão em relação a algumas situações, seja, ainda, (3) para eliminar, total ou parcialmente, os efeitos repristinatórios da decisão.

Em relação aos limites temporais da declaração de inconstitucionalidade temos a seguinte situação:

- REGRA: efeitos ex tunc, ou seja, retroativos;

- PRIMEIRA EXCEÇÃO: efeitos ex nunc, ou seja, não retroativos, à partir do trânsito em julgado da decisão em sede de ação direta de inconstitu-cionalidade, desde que fixados por 2/3 dos Ministros do STF;156

- SEGUNDA EXCEÇÃO: efeitos a partir de qualquer momento escolhido pelo Supremo Tribunal Federal, desde que fixados por 2/3 de seus Ministros. Essa hipótese de restrição temporal dos efeitos da declaração de inconstitucio-nalidade tem limites lógicos. Assim, se o STF entender pela aplicação dessa 155 Igual possibilidade existe no 282, item 4, da Constituição Portuguesa, que prevê “quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito”. Canotilho e Vital Moreira, ao comentarem o citado dispositivo, advertem que “ao permitir que o TC proceda à limitação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade, a Constituição permite-lhe manipular com certa amplitude os efeitos das sentenças, abrindo-lhe a possibilidade de exercer poderes tendencialmente normativos, embora vinculados aos pressupostos objectivos constitu-cionalmente fixados (segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo) – (CANOTILHO & MOREIRA, op. cit. p. 1042).

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hipótese excepcional, deverá escolher como termo inicial da produção dos efeitos qualquer momento entre a edição da norma e a publicação oficial da decisão. Dessa forma, não poderá o STF estipular como termo inicial para produção dos efeitos da decisão data posterior à publicação da decisão no Diário Oficial, uma vez que a norma inconstitucional não mais pertence ao ordenamento jurídico, não podendo permanecer produzindo efeitos.

Trata-se, já se vê, de uma circunstância anormal, extraordinária. A regra continua sendo a da eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade, com as necessárias conseqüências desta projeção retroativa da decisão. Porém, como se depreende do art. 27 da Lei 9.868/99, havendo motivos gravíssimos, razões de segurança jurídica, ou para atender a situação de excepcional in-teresse social, facilita-se ao STF, desde que pelo voto de dois terços de seus membros (oito Ministros), que restrinja os efeitos da declaração de inconstitu-cionalidade ou decida que ela só produza efeito a partir da data de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Assim, observados os rigorosos pressupostos legais, o STF, num caso determinado, e diante daquelas altas motivações, pode ressalvar alguns efeitos da norma inconstitucional, regrando, modelando, limitando, enfim, restringindo os efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Pode, ainda, decidir que a declaração de inconstitucionalidade só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado (efeito ex nunc) ou em outro momento que venha a ser fixado, e, como a lei não distingue, este momento pode ficar no passa-do, ou no porvir. Portanto, o efeito da sentença pode ser ex tunc, mas com retroatividade limitada, não se projetando até a data da entrada em vigor da norma impugnada e, neste caso, não são absolutos os efeitos ex tunc. Assim como pode a decisão incidir pro futuro, começando a produzir efeito num dia posterior ao do trânsito em julgado da sentença, que, no caso, é prospectiva.

156 Note-se que Allan Brewer-Cariás aponta a tendência contemporânea na América Latina de concessão de efeitos ex nunc ao controle concentrado de constitucionalidade, em face das inúmeras repercussões táticas decorrentes de uma declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, afirmando que “o princípio geral em relação aos efeitos temporais das decisões adotadas em matéria de controle de constitucionalidade das leis, é que essas têm efeitos gerais, erga omnes, dado seu caráter anulatório, então somente tem efeitos constitutivos, ex nunc, pro futuro; é dizer, não tem efeitos retroativos”. O autor aponta nesse sentido: Panamá, México, Colômbia, Guatemala, Bolívia, Venezuela, Peru e Equador (GARCIA BELAUNDE, Domingo, FERNANDEZ SEGADO, Francisco. La jurisdiccion constitucional em iberoamerica. Madri : Dykinson, 1997. p. 156).

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A Constituição austríaca (art. 140.5), conforme mostramos, traz a regra de que a sentença de inconstitucionalidade produzirá efeito no dia de sua promulgação, mas admite que o Tribunal Constitucional fixe um prazo para que expire a vigência da lei declarada inconstitucional, prazo este que não poderá exceder de um ano.

Se bem que mantido o entendimento clássico, em nosso direito, de que o juízo de inconstitucionalidade implica a nulidade da norma impugnada, desde a sua edição, a Lei 9.868/99, permitindo que o STF, em casos especiais, promova a manipulação dos efeitos da sentença, desvinculou a inconstitucionalidade da nulidade, não havendo mais, entre as duas figuras, uma relação de causa e efeito, uma conexão inexorável ou inafastável. Em conseqüência, diante de uma excepcionalidade, para atender a razões de segurança jurídica e interesse social, o Excelso Pretório, por maioria qualificada, poderá estabelecer uma pluralidade de efeitos jurídicos à declaração de inconstitucionalidade.

Quando o Supremo Tribunal extinguir a vigência da norma impugnada, para o futuro, desde o momento em que a sentença transita em julgado (efeito ex nunc da decisão), não havendo, portanto, retroatividade do pronunciamento, os efeitos da inconstitucionalidade já não se equiparam aos da nulidade, mas se assemelham aos da revogação da norma.

Observadas as Constituições estrangeiras e as leis orgânicas dos respec-tivos Tribunais Constitucionais, concluímos que em nenhum país conferiu-se margem tão ampla de decisão, diante da controvérsia constitucional, quanto a que foi dada pela Lei 9.868/99 ao Supremo Tribunal Federal.

O Supremo só poderá utilizar mecanismos tão extensos e de tanta lar-gueza, no controle jurisdicional, quando exigir a segurança jurídica e em nome do mais alto e nobre interesse social, já alertamos. A temperança, o comedimento e a prudência no emprego da faculdade de dar conteúdo nor-mativo às suas decisões serão os ingredientes essenciais para que a inovação seja democrática e salutar.

A alguns preocupa a influência que possa exercer um Poder Executivo forte e autoritário, para reverter a seu favor a possibilidade de se conferir limitações ou restrições materiais e temporais à declaração de inconstitucio-nalidade. Políticos e juristas já manifestaram o temor de que, diante de uma regra como a do art. 27, um tributo declarado inconstitucional por decisão do STF, em ação direta, poderá ser considerado devido durante o período anterior ao do trânsito em julgado da sentença, afastando-se qualquer direito

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à repetição do indébito.

O perfil, a dignidade, a independência do Supremo Tribunal nos levam a ter convicção de que esses receios são vãos e infundados.157

Se algum órgão do Poder Judiciário não observar a decisão do STF ao solucionar as controvérsias constitucionais, a rebeldia pode ser corrigida com a propositura de reclamação, para garantir a autoridade da decisão do Excelso Pretório, na forma dos arts. 156 a 162 de seu Regimento Interno e do art. 102, I, l, da Carta Magna. 158

12. Hermenêutica constitucional – a renovação do discurso metodológico

A moderna teoria constitucional tem na obra do Prof. Peter Häberle159 os ensinamentos propugnados para a adoção de uma hermenêutica constitucional adequada à sociedade pluralista como um processo incluso do que chama de comunidade aberta dos intérpretes da Constituição.

A interpretação constitucional dos juízes, ainda que relevante, não é (nem deve ser) a única. Ao revés, cidadãos e grupos de interesse, órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública constituiriam forças produtivas de interpretação, atuando, pelo menos, como pré-intérpretes (Vorinterpreten) do complexo normativo constitucional.

Já havia anotado Häberle que não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada (Es gibt keine Rechtsnormen, es gibt nur interpretierte Rechtsnormen), resultando que interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo ou integrá-lo na realidade pública (Einen Rechssatz “auslegem” bedeutet, ihn in die Zeit, d.h. in die öffentliche Wïrklichkeit stellen – um seiner Wïrksamkeit willen).

Assim, se se reconhece que a norma não é uma decisão prévia, simples e acabada, tem-se necessariamente de indagar sobre os participantes no seu desenvolvimento funcional sobre as forças ativas da law in public action. A ampliação do círculo de intérpretes constituiria para Häberle apenas uma conseqüência da necessidade de integração da realidade no processo de in-

157 VELOSO, op. cit. p. 195-196.158 Idem. p. 200.159 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris, 1997.

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terpretação.

Evidentemente, essa abordagem tem conseqüências para o próprio pro-cesso constitucional. Häberle enfatiza que os instrumentos de informação dos juízes constitucionais devem ser ampliados e aperfeiçoados, especialmente no referente às formas gradativas de participação e à própria possibilidade de interpretação no processo constitucional (notadamente nas audiências e nas “intervenções”). Impõe-se, pois, para Häberle, um refinamento do processo constitucional, de modo a se estabelecer uma comunicação efetiva entre os participantes desse processo amplo de interpretação. Portanto, o processo constitucional torna-se parte do direito de participação democrática.160

Mas, é na obra de Habermas,161 no entanto, que logra dar uma resposta mais ampla ao problema. A teoria habermasiana defende o alargamento do rol dos intérpretes da Constituição, ao qual aderimos, e a necessidade de a jurisdição constitucional sintonizar-se com os valores sociais vigentes na sociedade em cada momento, tornando-se sensível à interpretação constitu-cional difusamente praticada pelos diversos atores do “espaço público”.162 O que o pensador alemão busca fazer é deslocar o eixo de justificação do estado de direito do liberalismo para a teoria democrática. Em sua obra, a filosofia política e a metodologia jurídica voltam a se articular em uma teoria mais ampla, prenunciando de forma mais acentuada o momento de transição paradigmática, de modo que o novo paradigma ganha contornos fortemente democrático-discursivos.163

Daí se vê que o método da ponderação de interesses potencializa em alto grau a idéia de Constituição aberta, na medida em que possibilita o convívio entre valores e princípios constitucionais antagônicos, preservando a base material pluralista sobre a qual repousa a ordem constitucional. A ponde-ração, por outro lado, deve ecoar, na medida possível, a vontade latente na “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição (Häberle), legitimando-se pela adesão racional que conseguir suscitar no seu auditório universal.”164

160 MENDES, op. cit. p. 10-11.161 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia : entre facticidade e validade; tradução de Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1997. v. I.162 SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2000. p. 138.163 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição constitucional, racionalidade prática e democracia. Rio de Janeiro, 2000. p.184. Dissertação (Mestrado) – PUC-Rio, 2000.

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Assim, se é certo que o jurista não deve abdicar da segurança jurídica, conferida pela adesão aos postulados teóricos tradicionais, mais certo ainda é que ele não pode fechar os olhos às exigências e desafios postos a cada dia pelo mundo que o cerca. Afinal, o Direito existe para servir à sociedade, e não o contrário.165

13. Conclusão

O presente trabalho teve como objetivo traçar um panorama geral da eficácia temporal das decisões no controle abstrato de normas.

E foi assim, aparando arestas, que não poderíamos deixar de registrar o impacto causado pelo advento de dois diplomas legais no ordenamento jurídico brasileiro:

São eles a Lei n.º 9.868, de 10 de novembro de 1999, que dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, e a Lei n.º 9.882, de 3 de dezembro de 1999, que dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1o do art. 102 da Constituição Federal, cuja importância e con-temporaneidade avulta pois suas inovações nas regras procedimentais tocam o cerne do sistema constitucional.

Preocupava-nos a questão da eficácia ex tunc ou ex nunc da declaração in abstracto da inconstitucionalidade, isto é, se a decretação genérica da descon-formidade entre a lei e a Constituição tem eficácia declarativa, com relação a uma nulidade ab initio, ou se tem eficácia constitutiva, de mera anulabilidade, atingindo a lei até então válida.166

Assim, o art. 27 da Lei 9.868/99 bem como o art. 11 da Lei 8.882/99 introduziram no nosso ordenamento jurídico alguns pontos de grande alcance, podendo destacar:

1. Sob ponto de vista lógico, a análise de Marshall, em Marbury vs. Madison, julgado em 1803, implica que o juízo sobre a natureza do ato

164 SARMENTO, op. cit. p. 139-140.165 Idem. p. 40.166 TORRES, op. cit. p. 99.

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inconstitucional está correto.167 Dela decorre que a regra colidente com a Constituição é uma norma sem valor – null and void, é a expressão usada, que Rui Barbosa traduziu “nula e írrita”.

Prova disso é que ela tem resistido bravamente ao tempo, e se propagado por praticamente todos os países em que existe o controle jurisdicional de constitucionalidade das leis.168

Mas os novos dispositivos consistem em registrar que o ato inconstitucio-nal não é mais, como ensinavam a doutrina e a jurisprudência, nulo e írrito.

É contra a índole do direito admitir que um ato somente possa deixar de produzir efeitos “a partir do ... trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.

Conclusão óbvia, a violação da Constituição pode ser “direito” positivo, mesmo depois de reconhecida, no processo competente, pelo Supremo Tribunal Federal “guarda da Constituição”.

E, mais. A decisão pode “restringir” os seus efeitos ... Isto significa, por exemplo, que ela poderá considerar vários atos inconstitucionais, ou dispensar o Estado de devolver o que percebeu em razão de tributo inconstitucionalmente estabelecido e cobrado ... Donde resultará a inutilidade do controle.

Não é mais rígida a Constituição brasileira.169

2. Várias conseqüências resultam do entendimento da teoria de Marshall. Uma é a de que, sendo nulo o ato inconstitucional, não pode este produzir qual-quer efeito válido. Daí se infere ser insuscetível de convalidação tal ato.

Igualmente, daí se há de concluir que o reconhecimento judicial da inconstitucionalidade tem caráter declaratório. Mais, que ele há de operar necessariamente ex tunc, ou seja, deve retroagir para retirar valor a tudo o que se apoiar numa norma inválida desde sua origem.

Ocorre que os dispositivos sub examine registram que não se pode mais

167 SARMENTO, op. cit. p. 40.168 Idem. p. 40.169 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O sistema constitucional brasileiro e as recentes inovações no controle de constitucionalidade : Leis n.º 9.868, de 10 de novembro e n.º 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 220, p. 11, abr./jun. 2000.

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considerar declaratória a natureza da ação direta de inconstitucionalidade, mas sim constitutivo-negativa, para empregar a lição de Pontes de Miranda. Sim, porque a decisão não irá apenas declarar um fato – estar a lei viciada de inconstitucionalidade – mas irá desconstituí-la, neste ou naqueles termos.

Disto resulta um problema. É incompatível essa formulação com uma ação “declaratória” de constitucionalidade? Não se olvide que a ação de constitucionalidade é expressamente designada como declaratória (art. 101, I, a, CR/88).

3. O controle de constitucionalidade que foi estabelecido no Brasil com a República e mesmo antes de editada a Constituição de 1891 é um controle apolítico de supralegalidade e que persiste ainda hoje, pois foi adotado pela Carta Magna de 1988.

Mostram os art. 27 da Lei 9.868/99 e art. 11 da Lei 9.882/99 que o controle de constitucionalidade assumiu um caráter político e que nele se pretende que o Supremo Tribunal Federal atue como órgão político.

Nitidamente o controle se politiza, pois, não mais se põe como uma verifica-ção de supralegalidade e mais tende a se tornar um controle de legitimidade.

Senão, veja-se.

A atribuição de eficácia ex nunc ou a partir de um determinado momento à decisão que reconhece a inconstitucionalidade pressupõe duas condições:

- condição formal: ser tomada pelo quorum de dois terços dos Ministros do Supremo Tribunal Federal;

- condição material: ocorreram “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social”.

A última é incontestavelmente uma apreciação de conveniência e opor-tunidade – de mérito, no sentido administrativo do termo. É uma apreciação tipicamente política. E subjetiva, porque admitir que haja razões de segurança jurídica ou de interesse social, qualificado de excepcional, depende da visão que cada um tenha das coisas.

Que se trata de uma apreciação política é tese reforçada pela exigência de quorum para tanto. Está nisto – é certo – uma cautela, mas esta cautela adverte para o risco de se verem motivos de segurança ou de interesse social, onde muitos não as veriam.

4. Trata-se, o sistema dito “europeu”, de um sistema concentrado nas

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mãos de um órgão especial, de função jurisdicional, contudo não integrado no Judiciário, nem composto por membros deste, mas por personalidades escolhidas fora dele.

Os caracteres apontados mostram que, no sistema europeu, a Corte constitucional muito se aproxima de uma câmara legiferante. Ao menos, tem tanto de câmara legislativa quanto de órgão judicante.

Com essas inovações, torna-se o Supremo Tribunal Federal uma terceira Câmara do Poder Legislativo, em relação ao aprovado por outra (primeira ou segunda) Câmara do Legislativo. Passa a ser uma supercomissão deste encarregada de examinar a constitucionalidade de atos normativos.

Constata-se, a partir das Leis 9.868/99 e 9.882/99 em confronto com a jurisprudência constitucional consolidada, que mais uma vez se mostrou de fundamental importância a evolução da jurisprudência.170

Num caso, como no outro, i.e., tanto na ação direta de inconstituciona-lidade, como na argüição de descumprimento de preceito fundamental, se o STF julgá-las procedentes, mas ainda assim – tendo em vista aquelas razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social – resolva graduar os efeitos dos respectivos veredictos, as normas e os atos declarados contrários à Constituição serão “recepcionados” como se fossem emendas – pontuais e transitórias – ao texto da Lei Maior, reputando-se válidos pelo tempo em que se “tolerar” a sua inconstitucional eficácia.

Uma outra construção, também fictícia – embora menos heterodoxa –, talvez fosse admitir-se que ao se utilizar dessa excepcional prerrogativa o STF não estará conferindo validade, nem sobrevida – ainda que transitória e pontual – a normas ou atos contrários à Constituição, mas apenas preservando situações que, a seu ver, e precisamente em face daquelas razões superiores, o Tribunal entenda que não deve ou já não pode desfazer. Trata-se de fórmula até certo ponto semelhante à que o constituinte adotou para o caso das me-didas provisórias não convertidas em lei no prazo de trinta dias: porque tais normas perderam eficácia desde a sua edição, mas os seus efeitos não podem ser ignorados pura e simplesmente, impôs-se ao Congresso Nacional o dever de disciplinar as situações jurídicas delas decorrentes (art. 62, CR).

De qualquer maneira, o que parece incontroverso é que, em tais situações, 170 GAMA, Patrícia Calmon Nogueira da. Controle abstrato de constitucionalidade à luz da Lei n.º 9.868/99. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 220, p. 119, abr./jun. 2000.

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a racionalidade lógico-formal cede lugar à razoabilidade jurídica, porque assim o exige a “natureza das coisas”...

Na prática da jurisdição constitucional, entre os procedimentos que ates-tam essa mesma preocupação com os “estragos” decorrentes dos veredictos de inconstitucionalidade – embora se trate de soluções menos radicais do que as apontadas acima –, encontram-se também os chamados apelos ao legislador, singulares construções hermenêuticas via das quais, nas ações de inconsti-tucionalidade que é instado a julgar, o Tribunal Constitucional da República Federal da Alemanha – o Bundesverfassungsgeritch – , embora rejeitando o pedido, adverte o Parlamento de que se prenuncia uma situação de conflito com a Lei Maior, um choque que se tornará atual se não forem adotadas me-didas legislativas capazes de conjurar essa patologia constitucional.

Por outras palavras, embora ainda constitucional, aos olhos do tribunal a situação tende se tornar inconstitucional, exigindo do Parlamento uma pronta atuação para estancar o processo e impedir seu desfecho. Via de regra, esses apelos têm sido atendidos, dando ensejo a profundas reformas legislativas, como registra em sua erudita tese de doutoramento o ilustre constitucionalista Gilmar Ferreira Mendes.

A essa luz, portanto, o que antes era tratado como enfermidade incurá-vel, sob a lógica do tudo ou nada – sabidamente insuficiente para resolver as crises dos negócios humanos –, agora passa a ser visto apenas como um estado de tensão, próprio da interpretação constitucional como hermenêutica de princípios, um mal-estar passageiro, que sob a lógica do razoável não exige as traumáticas soluções cirúrgicas, até porque se trata de um simples incômodo, não de uma doença fatal...

É, pois, um novo modo de pensar que, sob a fecunda influência da her-menêutica filosófica de Heidegger e Gadamer, parece dominar a teoria jurídica contemporânea, em cujo âmbito generalizou-se o entendimento de que é so-mente no momento da sua aplicação aos casos ocorrentes que se revelam, em toda a sua amplitude, o sentido e o alcance dos enunciados normativos e estes cumprem a sua função primordial – dar a cada um o que é seu.

Por isso – relembremos esses pontos de partida – muitos juristas che-gam a dizer que a norma jurídica não é o pressuposto, mas o resultado da sua interpretação, enquanto outros asseveram – como o faz, com freqüência, Miguel Reale – , que o Direito é norma e situação normada e que a norma é a sua interpretação, uma assertiva que, de resto, é comprovada pelo fato, não contestado sequer pelos críticos da criatividade hermenêutica, de que

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o direito, em sua concreta existência, é aquele “declarado” pelos juízes e tribunais, e que sem o problema suscitado a partir do intérprete as normas jurídicas permanecem genéricas e estáticas.

Nesse mesmo sentido, observa Larenz que a aplicação ou a aplicabili-dade das normas aos casos concretos constitui aspecto imanente da própria interpretação jurídica, verdadeira condição de possibilidade do trabalho her-menêutico, uma tarefa que não se pode desenvolver abstratamente, porque exige – para recíproco esclarecimento, aproximação e explicitação – um balançar de olhos entre a norma e o fato, entre o programa normativo e o âmbito normativo, entre a possível interpretação e o seu resultado, tal como antevistos pelo intérprete-aplicador.

Trata-se, portanto, de uma exigência metodológica, ou, mais propria-mente, ontognosiológica – porque inerente ao ser e ao conhecer da realidade jurídica – , de uma exigência que decorre da unidade essencial do processo de compreensão do direito, um processo de natureza histórica e dialética, em cujo âmago se fundem, necessariamente, como momentos distintos, mas complementares, os instantes de produção, interpretação e aplicação dos modelos jurídicos.

Sob essa perspectiva, pode-se dizer que a constante adequação das normas aos fatos – um trabalho essencialmente entregue à clarividência dos intérpre-tes-aplicadores – apresenta-se como requisito indispensável ou conditio sine qua non da própria efetividade do direito, o qual só funciona à medida que se mantém sintonizado com a realidade social, da qual emerge e sobre a qual atua, muito embora essa sintonização não deva comprometer a autonomia dos modelos normativos e a sua pretensão de conformar, juridicamente, a sociedade segundo pautas axiológicas quanto possível independentes.

Destarte, torna-se evidente que incumbe essencialmente aos intérpretes-aplicadores – e não ao legisladores – encontrar as primeiras respostas para os novos problemas sociais, uma tarefa da qual só poderão desincumbir-se a tempo e modo se forem capazes de olhar para o futuro e trilhar caminhos ainda não demarcados; se tiverem a coragem de enfrentar a opinião dominante, ao invés de se curvarem à jurisprudência estabelecida; se, finalmente, se dis-puserem a assumir o ônus redobrado de combater as idéias cristalizadas, até porque, via de regra, longe de traduzirem consensos verdadeiros, essas falsas unanimidades não passam de preconceitos coletivos, fruto dos argumentos de autoridade, que sabidamente esterilizam o pensamento e impedem os vôos mais arrojados.171

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A Lei 9.869/99 é bastante elucidativa a esse respeito, porquanto, pra-ticamente todos os dispositivos consagram posições adotadas pela Corte Constitucional brasileira.

Nota-se, assim, que qualquer tratamento jurídico legal à respeito de ins-trumentos constitucionais não pode deixar de levar em conta uma construção e evolução da jurisprudência sobre tais matérias, razão pela qual numa conclusão preliminar deve-se reconhecer a boa qualidade da técnica legislativa adotada no processo e edição da Lei 9.868/99.172 173

171 COELHO, op. cit.172 GAMA, op. cit. p. 119.173 Há que se registrar que já ocorreram manifestações de repúdio em relação à edição do mencionado diploma, tendo, inclusive, o jurista Gilmar Ferreira Mendes, Advogado Geral da União, publicado artigo intitulado “Vítimas do ócio (ou: Da importância da leitura do Diário Oficial)”, em sua defesa. Outrossim, foram interpostas, no Supremo Tribunal Federal, três ADIN’s questionando as referidas leis que, até esta data, ainda aguardavam o resultado dos respectivos pedidos de liminar, a saber: ADIN’s 2154-2, 2231-8 e 2258-0. Nas ADIN’s 2223-7 e 2176-1, a Lei 9.868/99 fundamenta a decisão. Na ADIN 2111-7, a Lei 9.868/99 fundamenta a decisão da liminar. E, por fim, nas ADIN’s 2321-7, 2319-5, 2238-5, 2178-8, 1797-0 e 1552-4, ocorre a fundamentação do incidente amparada na Lei 9.868/99.