Egito dos faraos

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Cip-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de

Livros, RJ

O89e Ortiz, Airton, 1954-

Egito dos faraós [recursoeletrônico] : da antiga Mênfis àmoderna Cairo : 5.000 anos deaventuras / Airton Ortiz. – Rio deJaneiro : Record, 2011.

Recurso Digital : il. (Viagensradicais)

Formato: ePub

Requisitos do sistema: AdobeDigital Editions

Modo de acesso: World WideWeb

Contém caderno de fotos

ISBN 978-85-01-09777-4

[recurso eletrônico]1. Ortiz, Airton, 1954- –

Viagens – Egito. 2. Egito –Descrições e viagens. 3. Egito –História. 4. Livros eletrônicos. I.Título. II. Série.

11-6275

CDD: 916.21CDU: 913(62)

Copyright © 2005 by Airton Ortiz

Todos os direitos reservados. Proibida areprodução, no todo ou em parte,através de quaisquer meios.

Direitos exclusivos desta ediçãoreservados pela

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Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ– 20921-380 – Tel.: 2585-2000

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Meus agradecimentos à Cia.Zaffari,

cujo apoio me possibilitoupercorrer o país das múmias.

Airton Ortiz

SUMÁRIO

PRIMEIRA PARTE: Cairo

Dança do ventreChegadaOs árabesSaladino

CidadelaCidade medievalO mercado de camelosCoptasMuseu Egípcio do Cairo

SEGUNDA PARTE: O mundo dosfaraós

MênfisA última maravilha do mundo

TERCEIRA PARTE: Alexandria

Na cidade de Cleópatra

QUARTA PARTE: A travessia doSaara

SiuahO Grande Mar de Areia doEgitoBahariyaFarafraDakhlaAl-Kharga

QUINTA PARTE: O Vale do Nilo

AsyutAssuãAbu Simbel

SEXTA PARTE: Descendo o Nilo

FalucaEdfu

SÉTIMA PARTE: Tebas

LuxorVale dos ReisTutancâmonHoward CarterA maldição da múmia

Bibliografia

Primeira Parte

—Cairo

DANÇA DO VENTRE

Quando as luzes sobre opalco do Palmyra, um cabaréde segunda categoriaencravado no final de umbeco escuro no centro do

Cairo, se acenderam, cegandoum pouco cada um de nós,pude ver a dançarina estáticasobre o tablado.

“Finalmente!”, suspiramos,especialmente eu, únicoforasteiro no recinto,freqüentado exclusivamentepor clientes da cidade. Já ialarga a madrugada, únicohorário em que, pelas novasleis locais, fortementeinfluenciadas pela retomadado islamismo mais ortodoxo,os cairotas podiam apreciar

uma das suas maistradicionais formas de lazer.Embora a dança do ventreestivesse se restringindo cadavez mais aos shows paraturistas nos hotéis cincoestrelas às margens do Nilo,em alguns lugares ainda sepodia apreciá-la do modocomo vinha sendo praticadadesde os tempos dos faraós.A um estrangeiro era precisoum pouco de desprendimentoe ousadia para freqüentaresses lugares, mas isso, e

também uma grandecuriosidade, eu tinha desobra.

Mesmo assim, era bomnão esquecer: eu estava numpaís onde uma Lei deExceção, promulgada em1981 com o pretexto decombater o terrorismo, aindavigorava, e os DireitosHumanos, pelo menos comoos conhecemos no Brasil,passavam ao largo. Em 2001,todos os 52 clientes queestavam na Queen Boat,

também no centro do Cairo,foram presos. Acusados dehomossexualismo, devassidãoe ofensa ao Islã, viram-sediante da Alta Corte deSegurança do Estado depoisde terem passado três mesesna prisão, onde sofreram todotipo imaginável — e nãoimaginável! — de torturafísica e psicológica. Esperavaque minha condição dejornalista brasileiro mepusesse a salvo de taisexcessos, embora gente da

minha laia também não fossemuito benquista por ali.Pouco antes das prisões naboate Queen, um escritorlocal foi condenado a trêsanos de prisão, acusado deter escrito um romance queinduzia ao “desprezo peloIslã”. Mas eu estava no paíspara conhecer o modo comoos egípcios viviam, e essasagruras faziam parte do dia-a-dia deles. Portanto, eracruzar os dedos e deixar avida seguir o seu ritmo

natural.Os longos e sedosos

cabelos da curvilínea morenapendiam até quase a cintura.Ela estava de frente, mas seubelo rosto, pesadamentemaquiado, carregado de khôl,uma tintura negra utilizadapara realçar seus grandesolhos, olhava por sobre oombro, lembrando as pinturasencontradas nas tumbas doantigo Egito. Seu olharpassava por cima das nossasmesas, ignorando a platéia

exclusivamente masculina, asgarrafas de cerveja, os pratoscom sementes de girassol e ocrepitar das brasasqueimando tabaco naschichas fumegantes.

Sua altivez parecia fixarum ponto imaginário no outrolado da boate, de ondevinham as luzes que faziambrilhar o strass e aslantejoulas do seu traje justoe quase transparente, quedeixava apenas os ombros eo ventre desnudos. Seus pés

estavam firmementeapoiados no chão, os braçosestendidos ao longo do corpo.Sua silhueta esbelta reinavaimpávida em meio aossussurros dos poucosespectadores, algunsalcoolizados além dorecomendável, uma heresianum país cuja religião proíbeo consumo de bebidasalcoólicas.

De repente irrompeu umacanção tradicional,fortemente marcada pelos

quartos de tom, característicada música popular árabe,tocada pela pequenaorquestra que estava atrás damoça. O órgão elétrico e oacordeão seguiram o rufardas três tablas, o tambormais agudo debaixo do braçodo percussionista, tocado coma mão direita, e os outrosdois entre as coxas dosmúsicos, percutidos com asduas mãos, enchendo oambiente com um somensurdecedor.

Uma faísca de energiarasgou o ar enfumaçado,empapado com o forte cheirode fumo adocicado, edespertou a dançarina do seutranse hipnóticomomentâneo. Subitamentesua cabeça, os braços, ospeitos, o abdômen, os quadrise as pernas se puseram atremer separadamente, e deforma sucessiva, como se nãopertencessem à mesmapessoa. As ondulações do seucorpo, requebrando

abruptamente em diversospontos diferentes, davam-lheuma forma difusa,entorpecendo os olhares dospresentes.

A cabeça se moviahorizontal e automaticamentede um lado para outro, comoa cabeça de uma serpente.Os seios vibravam num outrocompasso, suas ancas seagitavam e os braços secontorciam, evoluindo a partirdos ombros, cheios detrejeitos, se esticando e se

encolhendo, estendendo asmãos, desenrolando os dedosem direção aos homens maispróximos do palco.

Seu reboladodescompassado esticava efazia ondular cada centímetrode seu exíguo traje. Suasdiversas partes se moviamdesconjuntadas, como sefossem independentes umasdas outras, uma completavariedade de trepidações emovimentos concêntricos,enquanto seus pés

rodopiavam pelo tabladocircular, interpretando com ocorpo elástico cada notaemitida pela diminutaorquestra.

Em meio ao delírio geral,um homem de meia-idade,vestindo uma ondulantegallabeya, subiu ao palco.Enfiou a mão no bolso internoda compridíssima túnicamarrom sem gola, bordadaem torno do pescoço e sobreo peito, e retirou um maço dedinheiro, cerca de cem notas

novinhas, esticadas e presasnuma das extremidades porum fino atilho. Com um saltoágil, postou-se em frente àodalisca e começou a atirarsobre os cabelos dela umainfinidade de libras egípcias,desfolhadas uma a uma. Porfim, quando restavam apenasumas poucas notas na mãoesquerda, pegou-as com adireita e jogou-as para o alto,fazendo a riquezaliteralmente chover sobre ocorpo da moça. O chão ficou

coberto de dinheiro.Quando ele voltou à sua

mesa sem tê-la tocado — anão ser com seu olharlibidinoso —, um rapaz subiuao palco e recolheu as notas,levando-as para uma cestajunto à orquestra. Os músicosdiminuíram o volume e oritmo da melodia e oacordeonista fez um longodiscurso elogiando o ricopatrão, enquanto a moçabailava diante dele, fazendo-lhe mesuras especiais em

agradecimento à suagenerosidade.

Ao final de cada músicasurgia uma nova dançarina,sempre mais bonita que aanterior, adiando o clímax daapresentação para o final damadrugada, quando as mesasestivessem totalmentecobertas com garrafas e maisgarrafas de Stella e osfumadores de chicha játivessem consumido grandeparte do seu dinheiro emtabaco. Cada uma das

dançarinas despertava aatenção de um patrãoespecial, que subia ao palco ea cobria de dinheiro. Faziamisso muito mais para sepavonearem diante dosoutros homens presentes doque para retribuir os dotesespeciais da artista. Dotesesses que, dependendo doponto de vista de algunsobservadores — e esse era omeu caso —, não pareciamatraentes. Elas eram até umpouco... amadoras para a

tarefa que tentavamdesempenhar.

As pinturas encontradasnos mausoléus dos faraós jámostravam a raqs charki, adança oriental, como osegípcios sempre aconheceram. Na Antigüidade,grupos de dançarinos edançarinas, acompanhadospor músicos, cantores epoetas, viajavam pelo Egitofazendo apresentaçõespúblicas. As mulheresdançavam para outras

mulheres, os homens, paraoutros homens, pois o bailadomasculino sempre foi tãotradicional quanto o femininono Vale do Nilo. Quando asdançarinas precisavam seapresentar diante de platéiasmasculinas, cobriam os rostoscom véus.

Cobrir-se com um véu erauma tradição antiga entre asmulheres do deserto sempreque se viam na presença dehomens estranhos. QuandoRebeca, que viajava da

Mesopotâmia para a Palestinapara se casar com Isaac, oencontrou pela primeira vez,a futura nora de Abraão“puxou o véu e se cobriu”.(Gn 24,65)

A expressão dança doventre foi popularizada noOcidente durante o século XIXpelos viajantes europeus,empolgados com a visão doventre nu das dançarinasárabes, tidas e havidas comomestras na boa arte dasedução, com técnicas

irresistíveis para levarem oshomens ao máximo prazer. Ofato de se cobrirem com umvéu serviu apenas para atiçara malícia dos ocidentais,reprimidos em seus própriospaíses pela rígida moral daépoca. Não tardou para queas autoridades religiosaspressionassem o governopara acabar com a dança, que“estava expondo mulheresmuçulmanas a homensinfiéis”.

Infiéis às suas esposas,

mas, sobretudo, a Alá.Os políticos, não querendo

desagradar aos ulemás, osinfluentes teólogos doislamismo, baniram a dançado Cairo. Grande parte dasartistas, não tendo maistrabalho, migrou para ointerior do país ou caiu naprostituição para sobreviver.

Para os intrépidosviajantes, isso serviu apenaspara atiçar ainda mais suasfantasias eróticas, a ponto desubirem o Nilo no rastro das

bailarinas remanescentes.Uma das histórias maiscuriosas foi protagonizadapelo escritor francês GustaveFlaubert. Ele seguiu umafamosa dançarina/prostitutaaté Esna, no Alto Egito, embusca dos seus prazeres.Contada num dos seus livros,a epopéia serviu para lançaras sementes da péssimareputação que a dança doventre teria nos anosseguintes.

No entanto, com o

advento do cinema,influenciada pelo liberalismode Hollywood, a raqs sharqirecuperou o charme e voltoua brilhar, com algumas dassuas bailarinas elevadas àcategoria de superstarinternacional. A antiga artesurgida no Vale do Nilotornou-se a mais conhecidamanifestação cultural egípciano exterior. Imagens de belasmorenas árabes rebolandocom o rosto escondido atrásde um véu e o ventre exposto

povoaram os desejosmasculinos nos quatro cantosdo mundo. As odaliscas,antigamente restritas aosharéns dos sultões, passarama freqüentar o imaginário dohomem comum no Ocidente.

O nome dado pelosantigos viajantes foi, semdúvida, um pouco apressado.Além do ventre, elasrequebravam todo o corpo.Naquela época, elasrealmente deviam sermaravilhosas, mas

atualmente perderam muitoda arte original, tanto nobailado como nos encantosfísicos.

Após a RevoluçãoIraniana, em 1979, os 46países muçulmanoscomeçaram a seguir commais rigor as normasimpostas pelo Alcorão,especialmente nas questõesrelacionadas aos hábitos ecostumes das pessoascomuns. Nem mesmo o Cairo,a mais cosmopolita das

cidades islâmicas, escapou àsnovas regras. O artigo II daConstituição do Egito,atualizada em 1980, definiu oIslã como religião oficial doEstado e determinou que osprincípios da charia, o severocódigo de leis e condutasmuçulmanas, devem ser afonte mais importante da sualegislação. Qualquer reformaparlamentar deverá semprelevá-los em conta.

Na televisão, as religiosas,transformadas em vedetes

nacionais, pronunciam-sesobre os menores detalhes davida em sociedade, do modode vestir-se à maneira defalar com o marido.Perturbados com osmodismos até entãolivremente importados doOcidente, os cidadãos comunspassaram a esperar comansiedade as novas diretrizesestabelecidas pelos religiososislâmicos. E elas nãodemoraram: a cada mês sãoemitidas novas fatwas,

sentenças religiosas baseadasno Alcorão, determinando amaneira como os seguidoresdo Profeta devem secomportar. Fiqueidesorientado com aexagerada volta dareligiosidade ao Cairo,sobretudo no mundofeminino. Comportamentosque eu imaginava restritosaos países tradicionalmenteconservadores, desfilavamnas avenidas da maismoderna capital islâmica do

mundo.O lenço egípcio,

tradicionalmente usadoapenas para cobrir a cabeçadas mulheres, foi substituídopelo véu iraniano, cobrindotambém os ombros e osbraços, “para não excitar odesejo masculino”. Com avolta do fervor religioso, nadana roupa das garotas podiadespertar a lascívia dosrapazes, induzindo-os aopecado.

Como essa nova

indumentária tornou-se regrageral, seguida por mulheresde todas as classes sociais eidades, inclusive as cristãs —para não serem discriminadaspelos homens nas ruas —, asmais conservadoras voltarama usar o niqab, a antigaversão egípcia do xadoriraniano, um traje que cobretodo o corpo, à exceção dosolhos.

Fiquei impressionado coma grande quantidade demulheres cobertas de negro

nas ruas da movimentadacapital. Com mais rigor ainda,a pressão islâmica caiu maisuma vez sobre asmanifestações culturais,atingindo especialmente asdançarinas do ventre. As maisfamosas, algumas pordinheiro, outras por causa deameaças, repudiaram aantiga profissão, restrita aoshotéis de luxo e aos cassinosfreqüentados exclusivamentepor estrangeiros. Paracomplicar ainda mais a

situação, em 2004 o governobaixou uma lei proibindo as“fogosas” estrangeiras depraticarem a dança do ventreno Egito, para que essasinfiéis não “tentassem os fiéishomens muçulmanos”. Comisso, os cabarés locaispassaram a empregarqualquer egípcia,independentemente dos seusatributos físicos e artísticos,desde que estivessemdispostas a enfrentar oestigma da profissão.

Graças a Khomeini e seusaiatolás, aqui estava eu,assistindo a uma dança derara beleza executada pormulheres de beleza rara. Mas,pelo menos para os homenspresentes ao Palmyra, essefato era secundário. Muitasvezes eles subiam ao palco edançavam, esquecendo-secompletamente da presençada dançatriz, coitada, que sepunha, constrangida, numcanto, enquanto os mancebosse divertiam com seus

sapateados, desenvolvendocoreografias que às vezes mepareciam até maisinteressantes do que aapresentação das moçasseminuas.

Um deles, um senhor alto,elegante e de ar distinto,vestindo calças de algodãocinza e um belo suéter azul-marinho, pegou o turbante deoutro cliente e subiu ao palcoquando a orquestra entoouum ritmo folclórico bemanimado. Enquanto a

bailarina ficava parada diantedos músicos, apreciando acena, ele se concentrou,cerrou os olhos e por longosminutos dançougraciosamente, contorcendo-se e fazendo malabarismoscom o turbante estendido emsuas mãos. Como dizem osárabes, ele havia entrado emtarab, um prazer próximo doêxtase. Seus amigos subiramao palco e lhe jogaramdinheiro, imediatamenterecolhido pelo jovem

encarregado dessa tarefa.Quando terminou aapresentação, admirado, nãome contive: aproximei-medele e apertei-lhe a mão.Disse chamar-se Salama,convidou-me para sua mesa eme ofereceu uma cerveja,cordial como todos oscairotas.

As mulheres, agora bemmais bonitas do que asprimeiras, algumas atédesenvolvendo uma certaconfiança profissional,

sucediam-se, contracenandocom um cantor de vozpotente e pouca inflexão.Dois cantores intercalavamsuas apresentações, quasesempre atrapalhando odeslizar da donzela pelo palcocircular. Às vezes, um clientemais desinibido pegava omicrofone e soltava a voz;outras, um grupo de rapazessubia ao tablado e dançavaem conjunto. Nessesmomentos, a bailarina ficavaaguardando, num canto

menos iluminado, enquantoos homens se divertiam.Aliás, era exatamente essasua função: ajudar os homensa se divertirem, como mandaa tradicional cultura do Valedo Nilo.

Eu ficava me perguntandose elas também haviam sidoexcisadas. Provavelmentesim; as amputações são feitasna adolescência, quando,supõe-se, ainda não haviamse decidido pela profissão.Considerada um crime no

Brasil, a clitoridectomia éjulgada não só normal comonecessária pelos egípcios.Segundo uma pesquisa oficialfeita com quinze mil mulherescasadas entre quinze ecinqüenta anos, 97 por centohaviam se submetido àablação do clitóris ou dospequenos lábios — ou ambos!Em alguns casos, realizara-sea excisão conhecida comofaraônica, incluindo umaparte dos grandes lábios.

Os religiosos islâmicos

invocam a necessidade dereduzir, ou até eliminar, oprazer sexual feminino, únicamedida capaz de preservar acastidade das solteiras egarantir a fidelidade dasmulheres casadas. Esse ritual,originado nos costumestribais do Vale do Nilo,antigamente chamado batr(ablação), passou a serd e n o m i n a d o tahara(purificação) no Egitomuçulmano. Para os ulemás,embora seja uma tradição

secular, ela tem “efeitosbenéficos sobre a estabilidadeda família”. Mesmo assim, porocasião do casamento, asogra exige um certificado devirgindade da noiva, assinadopor um ginecologista deconfiança.

Quando uma mulhersolteira rica engravida, oprocedimento padrão é oaborto e depois umaoperação para reconstituir ohímen, seguido de umcasamento apressado com o

primeiro noivo disponívelencontrado pela família. Nocaso das famílias pobres, semdinheiro para cirurgias caras eainda menos tolerantes comos deslizes sexuais de suasfilhas, normalmente o pai ouo irmão mata a moça grávidapara que a honra do clã nãoseja maculada com tamanhadesfaçatez diante de Alá.

Pelas leis islâmicas,continua proibido ocasamento de umamuçulmana com um cristão. A

intransigência dofundamentalismo islâmicoestá provocando reações dooutro lado do mundo,acirrando a intolerância doconservadorismo cristão.

Em um documento sobremigrantes publicado em maiode 2004, o Vaticano alertouas mulheres católicas paraque pensassem muito antesde se casarem com ummuçulmano. A caridade deCristo para com os migrantes,divulgado pelo cardeal

japonês Stephen FumioHamao, presidente doPontifício Conselho daPastoral para Migrantes eItinerantes, lembra“experiências amargas” quecatólicas ocidentais tiveramcom esposos muçulmanos,principalmente ao se casaremfora do mundo islâmico edepois se mudarem para opaís de origem do marido.

Por isso, a Igrejadesestimula casamentos defiéis de países

tradicionalmente católicoscom migrantes não-cristãos. Eaconselha: se o casamentofor registrado no consuladode um país muçulmano, acatólica não deve assinar umdocumento ou fazer umapromessa incluindo a shahada— profissão de fé islâmica —,considerada uma conversão.Em outro trecho, a polêmicarecomendação sugere àsigrejas que proíbam autilização dos seus locais deoração por não-cristãos,

medida comumente adotadapelas outras religiões, motivode desconforto quando estouviajando pelo Oriente.

Eu não sabia se asbailarinas do Palmyra eramcasadas. Provavelmente não,embora o casamento sejaquase uma obrigação entre oscairotas, porque o celibato évisto com certa desconfiança,coisa de gente anormal.Existe uma prática muitocomum chamada urfi, umcontrato de casamento

temporário utilizado pelospolíticos e empresários ricospara terem amantes sem feriros princípios islâmicos. Háprostitutas no Cairo que jáfirmaram centenas de urfiscom príncipes vindos daArábia Saudita e do Kuwait.Solteiros sem dinheiro paracumprir o ritual mínimo dodispendioso casamento árabetambém acabam recorrendoao faz-de-conta do urfi.

A justificativa para essetipo de prática é a idéia,

arraigada na culturatradicional, de que a mulhernão é dona do próprio corpo.Isso explica costumes comoos casamentos forçados, odireito do homem à poligamiae a obrigatoriedade de seesconder o corpo femininocom véus e roupas disformes.Uma em cada três egípciascom idade entre 15 e 49 anosjá apanhou pelo menos umavez do marido, atoconsiderado normal por doisterços delas. Motivos

principais: terem respondidonum tom desagradável ou serecusado a cumprir o deverconjugal na hora desejadapelo esposo.

Se as bailarinas eramsolteiras e, portanto, não seenquadravam nessa pesquisarealizada em 1997, nadagarantia que não apanhassemdos patrões, os mesmos queas cobriam com dinheiro empúblico. Uma lei promulgadaem 2000 melhorou um poucoa situação das mulheres, pelo

menos na teoria. Agora elasaté podem pedir o divórciosem o consentimento docônjuge se renunciarem àpensão alimentícia. Aobtenção do passaporte, noentanto, ainda depende daautorização do esposo,independentemente da classesocial ou da profissão damulher. Em 1970, a ministrados Assuntos Sociais precisoudescer do avião, no aeroportodo Cairo, porque, na últimahora, seu marido mudou de

idéia, não permitindo que elaviajasse em missão aoexterior.

Esgueirei-me do cabaréperto das cinco da manhã,alguns minutos antes de acasa fechar. Cruzei o beco,deslizei sorrateiramente poralgumas vielas escuras,desviando-me aqui e ali dasratazanas que chafurdavamno lixo, e finalmente saí nagrande avenida 26 de Julho.Estávamos no inverno, e umfrio desconfortável

acompanhava os primeirostrabalhadores fluindo pelasruas da cidade sonolenta. Umvendedor ambulante meofereceu um copo fumegantede karkadi, um chá feito coma flor do hibisco, servidojuntamente com aich, o pãointegral local — uma rodelaachatada e esponjosa devinte centímetros dediâmetro, formada por duascamadas sem miolo cobertascom farelo, que o deixavaagradavelmente áspero ao

toque. Desjejuei na calçada,envolvido pela brisa doamanhecer, sob um poste deluz amarelada e protegido dosereno pela marquise de umaloja de calçados masculinos.

A caminho do hotel pudeouvir o chamado da mesquitapara a primeira das cincopreces diárias, obrigação detodo bom muçulmano. Erahora de voltar-se para Meca,estender um pequeno tapeteno chão — saído não sei deonde —, retirar os calçados,

prostrar-se, tocando osjoelhos, as mãos e a fronteno solo, e rezar; os mais fiéiseram capazes de recitar os 99nomes de Alá, uma ladainhaextraordinária. A grandemetrópole despertavaruidosa, trepidante efrenética, mas os homens seconcentravam nas suaspreces e conseguiampermanecer alheios à vidaque se agigantava ao seuredor.

Nos primórdios do Islã,

anunciava-se ao vivo a horadas orações. O muezim,escolhido entre os cegos paranão surpreender as mulheresnos terraços das casas comum olhar masculino, subia atéo alto do minarete — que,dizem, foi inspirado no farolde Alexandria, pois asprimeiras mesquitas não opossuíam — e, após recobraro fôlego, lançava seuchamado ao céu, convocandoos seguidores do Profeta paraas preces do dia. Belas vozes

assim se exercitavam,mediam sua potência, paradeleite dos fiéis. A melodiacasava bem com a paisagemprovinciana, chegando àsvezes a encantar osmoradores de um bairrovizinho.

“Alá é o maior. Atesto quenão há deus a não ser Alá.Atesto que Maomé é seuprofeta. Venham orar.Venham salvar-se. Alá é omaior. Não há outro deussenão Alá.”

Atualmente as vozes sãogravadas e transmitidas poralto-falantes. Havia muitasmesquitas no centro do Cairoe seus relógios não estavamsincronizados. Assim, aladainha se misturava, vozesfanhosas se confundiam,criando uma penosacacofonia, freqüentementedescambando para umagritaria grotesca eensurdecedora,extremamente desagradávela ouvidos forasteiros.

Como estava passando emfrente à El-Abd, considerada amelhor padaria da cidade,entrei e comprei algunssaniyit ’ar ’asali, bolinhos deabóbora caramelados. Cruzeipelo meio do mercado defrutas na rua Tawfiqiya, ondeas bancas ficavam abertas 24horas, comprei algumaslaranjas e segui em frente.Quando cheguei ao hotel, oBeto estava acordado,rolando na cama, despertadopela reverberação dos

potentes alto-falantes domuezim eletrônico instaladosno alto minarete da mesquitaao lado do nosso prédio,quase em frente à nossajanela.

— Como foi a noitada? —ele perguntou, virando-separa o canto antes mesmo deouvir a resposta.

— As mulheres erammuito feias — respondi,sentando-me na cama etirando as botas. — Você nãoperdeu nada.

Deitado de costas,estendido sobre o colchãomacio, braços cruzados sob acabeça para relaxar daestressante experiência, olheipara o rapaz de 24 anos queestava na cama ao lado,ferrado no sono. Para acordá-lo, algumas horas mais tarde,precisei chamá-lo duas outrês vezes, e, no café damanhã, ele preferiu tomar umrefrigerante light com pão emanteiga em vez de chápreto com shammy e full, o

tradicional desjejum egípcio,uma espécie de sanduícherecheado com pasta de favasde feijão bem temperado. Atéentão o garoto vinha secomportando bem, mas issoera tudo que eu sabia sobreele.

Pela primeira vez eu saírado Brasil acompanhado porum parceiro fixo, alguém queviera especificamente paratrabalhar comigo durantetoda a expedição. Até trêsmeses antes de iniciarmos a

viagem eu não o conheciapessoalmente, embora fosseamigo do pai dele haviamuito tempo. O rapaz me foiapresentado pelo roteirista decinema Ricardo Zimmer evinha recomendado pelo NewYork Institute of Photography,onde se formara.

Minha experiência comoutros companheiros deviagem se resumia aparcerias ocasionais, algumestrangeiro encontrado pelocaminho com quem eu dividia

alguns dias de estrada aténos separarmos, cada umseguindo o seu próprioroteiro. Com Beto seriadiferente. Havíamos saídojuntos, viajaríamos juntos evoltaríamos para casa juntos.Pelo menos essa era a nossaintenção. Se isso seriapossível, eu ainda não tinha amínima idéia.

As dificuldades provocadaspelas reviravoltas surgidas aolongo da aventura e asperipécias praticadas para

superá-las tornam este tipode viagem muito tensa eestressante. As relaçõespessoais acabam sedesgastando, difíceis deserem conciliadas diante doemaranhado de opções,alternativas e decisõesabruptas que precisam sertomadas a cada momento,principalmente para corrigiros rumos dos acontecimentosque, nesses casos,freqüentemente tendem aquerer escapar ao nosso

controle.O que nos ligava era o

fato de eu tê-lo convidado ame acompanhar. Ele, por seulado, estava decidido acumprir sua tarefa da melhorforma possível. Não erapouco, mas não era tudo.Precisaríamos de muitasoutras afinidades para que, jáao final do primeiro mês,cada um de nós não viajassecom ganas de jogar o outrodo alto da primeira pirâmideque surgisse à nossa frente.

Se o nosso relacionamentodaria certo ou não, era maisuma das inúmeras incógnitasque se desenhasse nocomeço desta jornada.

CHEGADA

Nossa chegada ao Cairohavia sido exatamente comoeu esperava: caótica.

Quando se viaja por contaprópria, os momentos mais

desagradáveis são os dosdesembarques nas grandescapitais. E se estamoschegando a uma grandemetrópole do Oriente, asituação piora. Cansados,inseguros e desconhecendoas armadilhas que nosaguardam já na saída doaeroporto, levamos algumtempo para nos refazer dochoque cultural; custamos umpouco a nos ambientar. Nessemomento ficamosfragilizados, sujeitos a toda

espécie de golpe dosvigaristas de plantão. Porisso, nosso primeiro contatocom os nativos é sempredefensivo.

Somente com o passar dotempo vamos descobrindo oshábitos e os costumes locais,as tradições da sua gente, osmaneirismos que poderão nosintegrar à comunidade. Paraisso acontecer da forma maisrápida possível, precisamos,desde a chegada, agir comoeles agem: utilizar seus meios

de transporte, nos hospedarnos mesmos hotéis, comerem seus restaurantes,freqüentar seus cafés e nosabastecer nos mercados derua. Enfim, sobreviver com omesmo dinheiro com que elesvivem. Só assimdescobriremos a alma dacidade. Embora tentados poralgum conforto extrapermitido por nossa melhorcondição financeira, nuncadevemos fazerautoconcessões. Esse

tratamento de choque é amaneira mais rápida e eficazde nos integrarmos a umanova comunidade.

Se quiser conhecer oCairo, viva como os cairotas,também se pode dizer.

Beto Scliar saiu de PortoAlegre; eu, do Rio de Janeiro.Nos encontramos noaeroporto em São Paulo,onde embarcamos paraFrankfurt. Eu despacharaminha mochila cargueira,ficando apenas com a

pequena mochila de mão,leve e fácil de ser colocadaem qualquer canto dobagageiro interno do avião.Beto, com receio de extraviarou danificar o seu caríssimoequipamento fotográfico,nada despachou. Embarcoucom sua grande e pesadamochila, precisando negociararduamente com ofuncionário da companhiaaérea na hora do check in.

Havíamos saído do Brasilem pleno verão. Quando

chegamos na Alemanha, atemperatura estava abaixo dezero e a neve caía emgrandes flocos do lado de forado aeroporto. Emborativéssemos um bom tempo deespera, nossos planos de daruma pernada pela cidadeprecisaram ser suspensos.Ficamos por ali, caminhandopara lá e para cá, olhandopelas grandes vidraças o friobranco horripilante caindo dolado de fora do prédio.

Embarcamos no meio da

tarde num vôo para Adis-Abeba com escala no Cairo, eem poucas horas estávamosno calor do deserto.

Ao passarmos pelo serviçode imigração, os policiaisegípcios caíram nagargalhada. A foto nopassaporte do Beto era dequando ele tinha catorzeanos. Além da cara imberbe,seus longos cabelos, caídossobre os ombros, logoprovocaram a curiosidade dosguardas. Formou-se um

bolinho, e eles queriam saberse a foto não era da irmãdele...

Beto tem duasnacionalidades, brasileira ealemã, e para complicar aindamais, resolveu mostrar opassaporte germânico, comuma foto mais recente,embora não atualizada. O quedeveria ajudar naidentificação acabouaumentando o transtorno,pois nada mais estranho paraum guarda egípcio do que

alguém ser ao mesmo tempobrasileiro e alemão. Oestereótipo de um brasileirono exterior é de um homemnegro, baixo e de olhosescuros, enquanto o de umalemão é de um homemlouro, alto e de olhos claros.Ele não era nem uma coisanem outra.

O passaporte alemão nãoserviu; o visto estava apenasno passaporte brasileiro. Umaduaneiro saiu pelosescritórios do aeroporto

mostrando a foto, apontandopara o Beto e caindo narisada, chamando a atençãodos outros funcionários. Sefosse nos Estados Unidos ouna Europa, certamente nosteriam mandado de volta nopróximo vôo. Mas a alegredisplicência dos oficiais doaeroporto acabou liberandonossa entrada no país.

E agora, para onde ir?Estávamos cansados, comsono e padecendo da enormediferença do fuso horário.

Eram quase cinco da tarde,mas para nós passava poucodo meio-dia.

No saguão dedesembarque fomos envoltospor uma turba de agressivostaxistas, hoteleiros,cambistas, guias, vendedoresambulantes, biscateiros,desempregados, curiosos...Enfim, os tradicionaisachacadores que pululam nosterminais de aeroportos,estações ferroviárias erodoviárias dos países pobres.

Quando chega algumamericano (estávamos numcanto do mundo onde todosujeito com uma mochila nascostas é logo identificadocomo americano), elesimediatamente o cercam. Nãovêem nele um brasileiro, umitaliano, nem mesmo alguémdos Estados Unidos. Nãovêem um cidadão, umapessoa, mas uma nota decem dólares ambulante. Emum primeiro momento eles avêem com perninhas

cambaleantes, indo na suadireção. Mas, se não foremágeis, logo a verão pelascostas, com asinhas,afastando-se, voando paralonge dos seus bolsos vazios.Por isso precisam agir comrapidez. Eles nos cercam comseus olhares gananciosos, nostocam, nos apalpam, queremcarregar nossas mochilas,quase as arrancam dasnossas costas. Aproximam-sesorridentes, cheios demesuras e cortesias. Se nos

identificarmos comobrasileiros, imediatamentecomeçarão a recitar aescalação da seleçãopentacampeã mundial. Se nosidentificarmos como alemães,imediatamente se declararãofãs ardorosos de Schumacher.Se dissermos que estamosvindo de Nova York, logoperguntarão como vai o TioSam. São os modernossaqueadores, gente quetrocou o ataque aosmercadores das caravanas

pelo achaque aos viajantesindependentes.

Diante de nossaresistência a nos entregarmosem suas mãos, começam aficar impacientes, agressivos,e seus olhares nãoconseguem mais disfarçar aavidez com que seaproximaram. Não entendempor que não queremos dividircom eles nossas riquezas, aprosperidade que estãoacostumados a ver nocinema, na televisão e nas

capas das revistas norte-americanas que chegam aoTerceiro Mundo. Nãoandamos em carrõesconversíveis na América? Nãonos refestelamos nas piscinasde chiquérrimos hotéisbebendo champanheacompanhados de belas — epor certo caras — mulheres?Não usamos roupas de grifeem nosso glamouroso dia-a-dia? Então, por que nãoqueremos pagar uma corridade táxi até a cidade?

Mesmo pedindo três vezeso valor real, ainda acham quepara nós o preço éinsignificante, pois estamoscom os bolsos abarrotados dedólares, uma moeda que valemuito mais do que adesvalorizada libra egípcia.Esquecem que o dinheiro énosso, foi ganho comsacrifício e estamos dispostosa pagar pelos produtos eserviços o preço querealmente valem. Além domais, nem americanos

éramos...Perguntei pelo ônibus e os

biscateiros afirmaram, emuníssono, não existir ônibuspara a cidade. Obviamente,não acreditei. Livramo-nosdeles com algumascotoveladas constrangedorase partimos em busca de umônibus. Tão logo nosafastamos da saída do prédio,constatamos que teríamosdificuldades com o inglês.Costumo estudar um pouco alíngua dos lugares para onde

viajo e pretendia fazer omesmo com o árabe. Masquando descobri que oscairotas falam um dialeto quepouco tem a ver com a sualíngua franca, desisti doesforço.

Quase ninguém falavainglês, e os poucos quefalavam não nos entendiam,ou não os entendíamos.Normalmente preciso dealgum tempo para pegar osotaque local, masprecisávamos sair dali o

quanto antes. Começava aescurecer e estávamos bemlonge do centro. Além domais, pegando um ônibusurbano, como pretendíamos,demoraríamos algumas horasaté o nosso destino final.

Tentávamos nos explicar eas pessoas, apesar da boavontade, acabavam nosindicando locais que em nadase pareciam com uma paradade ônibus. Ficamos um bomtempo assim, como baratastontas, vagando de um lugar

para outro. Tampouco víamosônibus cruzando pelasimediações do terminal. Masdeveria haver um. Como osfuncionários do aeroporto iampara o trabalho? E comovoltavam para casa após oexpediente? De táxi?Obviamente não.

Depois de batermospernas por um bom tempocarregando nossas pesadasmochilas, acabamos numpequeno quiosque, o maisparecido com uma parada

que pudemos encontrar.Perguntei ao funcionáriosobre ônibus, algum ônibus...qualquer ônibus!

— Al-otobis — arrisqueiem árabe.

— Acho que ele entendeu— Beto comentou.

Diante da reação positivado sujeito, atrevi-me aperguntar pela parada deônibus.

— Maw’if al-otobis — falei.Para minha alegria, eu ia

perguntando e ele ia sorrindo

e movendo a cabeçapositivamente. No final,estendeu-me um pequenobilhete escrito em inglês.

— Deve ser algumainformação sobre os horáriosdos ônibus — disse para oBeto enquanto desenrolava opapel para ler a mensagem.— Eles estão acostumados areceber muitos turistas, já osesperam preparados —concluí, otimista.

— O que estava escrito? —perguntou-me Beto quando

devolvi o papel ao homem.— Ele está com a mulher e

os filhos doentes; não temdinheiro para comprarremédios. Por isso, nos pedeuma ajuda.

Tão logo o sacripanta viuque não ganharia nada, ficousério, recolheu-se à cabine edeu o assunto por encerrado.Eu ia passar-lhe umacarraspana quando um ônibusapareceu na esquina. Estavacaindo aos pedaços, erapraticamente impossível

descobrir sua cor originaldevido à corrosão dacarroceria. Mas, afinal decontas, era um ônibus...Colocamos as mochilas nascostas e disparamos em suadireção.

— Vai para o Cairo? —perguntei ao motorista.

— ?— Masr!Ele fez um sinal afirmativo

com a cabeça eimediatamente pulamos paradentro. Um passageiro que

falava inglês veio em nossoauxílio e explicou quedeveríamos desembarcar numdeterminado ponto e pegaroutro ônibus, esse não nosservia. Ele logo desceu, mas,pelo que pude entender,deixou outra pessoaencarregada de nos avisarquando fosse a hora. Quandoavistamos um pequenoterminal, o passageiro fezsinal para descermos e nosapontou o local ondedeveríamos embarcar. A lata

velha encardida parou comum solavanco, soluçando etranspirando óleo por todosos lados, e saltamos,carregando desajeitadamentenossas mochilas. Éramos duaspessoas tão estranhas aomundo girando dentro dovelho ônibus que ninguém selembrou de nos cobrar apassagem.

Antes de embarcar nocoletivo indicado, fui até umaguarita confirmar com algunsguardas se a informação

estava correta.— Não, não está — um

deles me disse. — Você deveembarcar naquele outro, onúmero 356.

— Aquele parado lá? —perguntei.

— Não — respondeu oguarda. — Na frente dele.

— Na frente dele não temônibus nenhum!

— Não tem agora — eledisse —, mas já vai chegar.

Em seguida vi estacionarum veículo branco com ar-

condicionado e um aspectobem melhor que o da sucataem que havíamos embarcadoantes. Fui conferir o número,mas, para minha surpresa,nada tinham a ver com osnúmeros arábicos que euaprendera na escola. Mesmoutilizando um dicionário, leveialgum tempo para identificá-los. O 3 parecia um 7espelhado, o 5 parecia umzero ovalado na partesuperior e o 6 parecia um 7.E, ao contrário do alfabeto

árabe, eram escritos daesquerda para a direita.

Saímos sacolejando noônibus abarrotado. Às cincoda tarde, hora das preces,tanto o motorista como ocobrador e os passageirosestavam impossibilitados dese ajoelhar, de se voltarempara Meca e rezar. Oproblema litúrgico foiresolvido com o auxílio deuma prosaica tecnologiaocidental: o motorista colocouno toca-fitas uma fita cassete

e as orações por Alá foramcoletivas, em altos brados,alguns chegando a seemocionar. As manifestaçõesreligiosas excessivamenteritualizadas não meconvencem, mas o fervordessa gente era tanto, e aspreces ditas com tantaconvicção que bem se podiasentir a presença de Alá nosacompanhando dentro doônibus.

Algum tempo depois,desembarcamos no meio do

nada. Queríamos saber comoir para o centro; eu haviaselecionado alguns endereçosde hotel no meu guia deviagem. O motorista e ocobrador, únicos ainda noveículo, não entendiaminglês. Havíamos voltado àestaca zero. Para se livraremde nós, deixaram de cobrar apassagem e nos mandaramseguir em frente. Beto estavaum pouco assustado, e paralevantar-lhe o ânimocomentei que pelo menos

continuávamos dentro donosso orçamento.

Noite alta, passamos nomeio de uma feira recém-desmontada, os feirantes comcaras pouco amistosasencaixotando as sobras edispersando as verdurasestragadas pelo chão. Umpouco mais adiante,encontramos um rapaz comum livro debaixo do braço. Vina capa grandes letras de umidioma que imaginei seralemão. Abordei-o. Ele estava

fazendo um curso paratrabalhar em Berlim.Gentilmente, pediu que oseguíssemos, e logo adiantesaímos numa avenida. Eleparou um táxi e iniciou umademorada negociação.Concordei com o valor etocamos para o centro dacidade em busca do nossohotel.

Ao acertarmos o preço, otaxista afirmou conhecer oendereço, mas vagamos umbom tempo pelas ruas do

Cairo. O motorista não falavainglês e o clima dentro docarro estava ficando tenso.Ele parou em quase todos oshotéis espalhados ao longodo caminho. Descia, e lávinha um sujeito tentar nosconvencer a ficar nesseshotéis, obviamente para otaxista ganhar uma comissão.Ante a nossa resistência,seguíamos em frente, acontrariedade do chofer cadavez mais visível. Aindarodamos um pouco pelo

centro até ele localizar oendereço que eu lhefornecera.

Quando chegamos aohotel Carlton, felizmentehavia quartos vagos. Na horade pagar a corrida, o velhacopuxou a velha conversa deque havia rodado muito maisdo que pensara, queria maisdinheiro. Coloquei-o para forado saguão com unsempurrões e uma grandevontade de dar-lhe unstabefes, tamanha era minha

indignação com sua safadeza.Beto desabou na cama e

dormiu imediatamente. Eutomei um banho; estavamuito tenso, precisavadesacelerar um pouco parater um sono tranqüilo.

Ao acordar pela manhã eabrir as cortinas da janela doquarto para o primeirocontato diurno com a cidade,pude ver a cobertura dosoutros edifícios, quase todosmais baixos do que o hotel,cobertos de caliça e

escombros, como se o Cairotivesse sofrido recentementeum grande bombardeioaéreo.

Beto ficou espantado como cenário de destruição; euapenas confirmei asobservações dos meuspériplos anteriores pelaÁfrica. No Cairo, como namaioria das cidades africanas,quando algo é destruído, seusdestroços não são removidos;permanecem no mesmo lugaraté serem reaproveitados em

outras obras. Os cairotas têmuma grande dificuldade emintervir na realidade. Ao longodos dias fui notando,especialmente nos becosmais afastados, que se umaárvore caía no meio docaminho, não era retirada,continuava ali. Elessimplesmente passavam acontorná-la, abrindo umanova trilha. Até que um diaalguém que precisasse delenha fosse lá e a cortasse,fazendo o caminho voltar ao

seu traçado original.Fizemos pequenas

caminhadas nos arredores doCarlton, mais para nosadaptarmos ao fuso horário.Beto foi se distrair na Internetdo hotel enquanto fui ler umpouco, estudar os mapas dagrande cidade, marcando ospontos que nos interessariamvisitar nas semanasseguintes, descobrindo osnomes das comidas e osendereços mais baratos — epor isso mais típicos — onde

comer. Aproveitei a tardepara dar uma olhada nasminhas anotações préviassobre o Cairo.

OS ÁRABES

Além das imprecisasfronteiras do Império Romanodo Oriente, tribos nômadesde árabes pagãos viviam deacordo com seus próprios

códigos e costumes: bravura,virilidade e solidariedadetribal. Em 570, na tribo quecontrolava Meca, nasceuMaomé. Certa noite,enquanto meditava numacaverna, ele entrou em transee teve a visão de um seretéreo que mais tardeidentificou como sendo o anjoGabriel. Maomé ouviu umavoz: “Tu és o mensageiro deDeus.” Seguiu-se uma sériede revelações. Memorizadaspor ele e anotadas por seus

seguidores, elas deramorigem ao Alcorão.

Em 622, Maométransferiu-se para Medina,marcando o ano zero doislamismo, a nova religião.Poucos anos mais tarde, eletornou-se senhor absoluto dacidade em conseqüência dosataques que organizou contraas caravanas de mercadoresvindos da Síria. Ao mesmotempo, estabeleceupoderosos vínculos com astribos autóctones ao se casar

com várias mulheres danobreza local. Em 630, àfrente de dez mil seguidores,invadiu Meca, foi admitido notemplo sagrado, a Caaba, e aveneração da pedra negra foia única concessão que fez àsantigas crenças dos árabes.

Para ele, o Islã era areligião de Abraãoressuscitada impoluta e quefora abandonada pelosjudeus. Alá era o único everdadeiro deus, sendo JesusCristo um dos seus apóstolos.

Embora Cristo pregasse oamor e a não-violência,Maomé convertia pela espadae exaltava os guerreirosvitoriosos, a quem oferecia oresultado das pilhagens,concubinas e escravos. Enfim,uma recompensa bem maispalpável do que o vago céucristão.

Segundo Piers Paul Readem seu livro Os Templários,“as tribos da Arábia estavamagora unidas sob Maomé esujeitas à disciplina do

islamismo; mas, uma vez queisso implicava que eles nãopoderiam mais lucrar com apilhagem uns dos outros,foram forçados a procurarsaques e conversos em outroslugares”.

Após a morte do Profeta,um dos seus sucessores(califas), Omar, comandou osexércitos muçulmanos numagrande campanha deconquista. A Síria e o Iraquecapitularam em 636.Jerusalém, conquistada em

638, só voltou ao domíniocristão ao ser libertada pelaSegunda Cruzada, em 1099.O Egito caiu em 641 e aPérsia em 642, quando oislamismo acabava de entrarem seu ano 20. Alexandria, ametrópole de língua grega doMediterrâneo, foi convertidaem 646. Em 714, os árabeschegaram à Ásia Central e àÍndia.

No Ocidente, avançarampelo norte da África, cruzaramGibraltar e invadiram o Velho

Mundo. No vácuo deixadopela queda do ImpérioRomano, enquanto os lordeseuropeus chafurdavam nasintrigas palacianas, os bravosguerreiros de Alá marchavamunidos em torno das suasespadas postas a serviço doIslã, a nova força capaz demover montanhas.

Na terra dos faraós,Mênfis, Tebas e Alexandriaforam abandonadas, seustemplos servindo de pedreiraspara fornecer o material

utilizado nas construções demuralhas, palácios,caravançarás, fontes emesquitas de Fustat, a novacapital muçulmana, erguidaum pouco ao norte dafortaleza romana deBabilônia, de onde osromanos haviam administradoo Egito desde o ano 30. Osegípcios passaram a sergovernados pelo califa deDamasco e mais tarde pelocalifa de Bagdá, ambossunitas, facção islâmica do

califa Omar.

No dia seguinte, iniciamosnossa expedição urbana namaior metrópole do mundoárabe pelas ruelas do querestara da antiga Fustat.Dirigimo-nos à estaçãoNasser, perto do nosso hotel,e, tão logo o metrô parou,embarcamos no carro à nossafrente. Notei as pessoas nosolhando meio amedrontadas,algumas mal conseguindodisfarçar risinhos histéricos.

— Curioso — disse Betoapós alguns segundos. —Neste vagão só temmulheres!

— É, meu caro —respondi-lhe, um poucoconfuso —, acho queentramos num vagãoexclusivamente feminino.

Distribuímos algunssorrisos constrangidos ecaímos fora na estaçãoseguinte, tão sem jeito que amochila do Beto, com seuequipamento fotográfico,

ficou presa na porta e a muitocusto conseguimos soltá-laantes de o trem partirnovamente. Ficamos por ali,confusos, sem saber o quefazer.

Como o trem vinhasempre superlotado e suasparadas eram rápidas, nãodava tempo de ficarescolhendo em qual vagãosubir, distinguir entre carrosfemininos e masculinos. Maslogo notamos que os cairotastinham essa informação,

embora não soubéssemoscomo. A solução era ficarmossempre junto dos rapazes eembarcar com eles.

Independentemente dahora, havia vagõesespecíficos para mulheres,normalmente jovens. Ascasadas acompanhavam osmaridos nos carros mistos.Nos outros vagões haviasomente homens. Fizemosmuitas viagens por todo oCairo, mas não conseguimosdecifrar como eles

identificavam previamentequal vagão se destinava aquem. Por fim desistimos,limitando-nos a seguir oshomens na hora doembarque, embora elesteimassem em subir nosvagões mais lotados.

Descemos na estaçãoSayyida Zeinab, ondeiniciamos uma longacaminhada pelo que restarada primeira capital islâmicado Egito. Uma das tiras daminha sandália rebentou e

precisamos parar numsapateiro para costurá-la.Aproveitei para tomar umsuco de cana-de-açúcar ecome r taameya, um brevedescanso antes de seguirmosem frente. Os bolinhosachatados, feitos com massade favas descascadas,temperados com cebola, alho,salsa, pimenta vermelha,aneto, coentro, cominho esal, e polvilhados comgergelim, recentementefritos, estavam uma delícia.

Pena o Beto não quererprová-los. Mas eu ainda nutriaesperanças de introduzi-lo naculinária egípcia.

Ele não estavaacostumado a passar o diacaminhando e no começosofreu um pouco paraacompanhar meus passosapressados. Andava semprecom seu pesado equipamentofotográfico, deixando aindamais penosas as suasandanças pelas ruelas ebecos empoeirados do antigo

bairro e atraía os olharespouco amistosos dosmuçulmanos mais radicais,que não gostavam de verestranhos bisbilhotando numaárea tão sagrada para eles.

Passamos pelamovimentada mesquita deSayyida Zeinab, em frente àescola corânica do sultãoMustafá, cruzamos pelamadrassa (escola islâmica) deSalar & Sangar, pela mesquitade Sarghatmish, e finalmentechegamos à mesquita de Ibn

Tulun, nosso principalobjetivo nesse dia. Concluídaem 879, feita de tijolos emadeira, além de permanecerintacta, era o mais antigomonumento islâmico emfuncionamento no Cairo. Seuestilo arquitetônico era único:ao padrão iraquiano o sultãoIbn Tulun, que governava oEgito em nome do califa deBagdá, mandou acrescentararcos internos pontiagudos,antecipando em duzentosanos os arcos ogivais

utilizados nas catedraisgóticas européias.

Sua área, cobrindo 2,6hectares, era suficientementegrande para acolher toda apopulação de Fustat porocasião das preces dassextas-feiras. No lado externodas muralhas da mesquitahavia um pequeno museuformado pela junção de duascasas do século XVI. Apesarde ser todo decorado comfiníssimos móveis da época,seu maior atrativo para os

turistas era o fato de ter sidoutilizado como cenário dof i l m e O espião que meamava, uma aventura deJames Bond.

A l moça mos kushari, oprato mais popular da cidade,encontrado em todas asesquinas e preferido pelamaioria dos cairotas, umamistura de macarrão comlentilha preta, arroz, cebolafrita e muito molho detomate. Servido num únicopote, era grande e nutritivo o

suficiente para alimentarvárias pessoas. Emborasempre pedíssemos a porçãopequena, nunca conseguimoscomê-la por inteiro.Infelizmente, esses pequenosrestaurantes de rua nãoserviam bebidas alcoólicas,como mandava a tradiçãoislâmica. Era uma penaporque o calor e o temperopediam uma Stella comocomplemento.

Em 969, os fatímidas, umapoderosa dinastia xiita —

facção islâmica que defendiao direito não do sunita Omar,mas de Ali, marido de Fátima,a filha de Maomé, ser osucessor do Profeta —,assumiram o poder no Egito.Como era tradição na época,o novo califa tratou deconstruir sua própria capital,erguida um pouco ao norte deFustat.

A xiita Al-Qahira, um nomemais tarde corrompido pelosmercadores europeus paraCairo, foi criada para

enfrentar o poderio docalifado sunita de Bagdá. Apartir desse momento, ahistória do Egito passou a sera história do Cairo.

Mas em 1168, quando oscruzados, liderados pelo reiAmauri, de Jerusalém,invadiram o delta, osfatímidas pediram auxílio aocalifa sunita de Damasco. Elenão só os ajudou como tomouo poder, instalando no paísuma nova dinastia, fundadapor Salad ed-Din Yusuf.

O sunita Saladino, comoficou conhecido no Ocidentedevido às suas constantesescaramuças com oscruzados, crucificou algunsoponentes muçulmanos xiitase se estabeleceu de vez noCairo. Em 1176, ele iniciou aconstrução de uma cidadela.Amplamente fortificada, paradefender a corte dasfreqüentes investidas doscristãos, que desde 1099, porocasião da Segunda Cruzada,haviam recuperado

Jerusalém, ela ainda hoje éum marco na paisagemarquitetônica da capital.

SALADINO

Para continuar nossasandanças no dia seguinte,tomamos um táxi até amesquita de Ibn Tulun. Jáconhecíamos a região, assim

eu livrava Beto de mais umaextenuante caminhada. OCairo antigo é umemaranhado de minaretes,alguns chegando a 82 metrosde altura, cada qual indicandouma mesquita maisinteressante. Passamos porvárias delas, e também pormuitas madrassas, entre asquais a impressionantemesquita-madrassa do sultãoHassan, concluída em 1363,uma obra-prima daarquitetura medieval.

O sultão chegou ao poderaos treze anos e teve umreinado conturbado, depostoe reconduzido ao cargo trêsvezes. Como mandava a boatradição mameluca, suasucessão definitiva deu-se pormeio do seu assassinato,ocorrido pouco antes daconclusão da mesquita,também ela marcada por umagrande tragédia: um dosminaretes desmoronou,matando trezentos operários.

Finalmente chegamos à

Cidadela.Cobrindo uma enorme

área no topo de umamontanha calcária, no ladooriental da capital, a Cidadelafoi residência dosgovernantes egípcios pormais de setecentos anos.Atualmente, além do seusignificado histórico, da suaimponência e da maravilhosavista da cidade, suasprincipais atrações são trêsmesquitas construídas emépocas diferentes, com estilos

próprios: an-Nasir Mohamed(1318 — mameluca),Suleiman Paxá (1528 —otomana), e a maior detodas, no ponto mais alto dafortaleza, dedicada aMohamed Ali, construídaentre 1830 e 1848, estiloturco, onde o corpo do paxáestá enterrado.

Como a maioria dosmembros da elitemuçulmana, Saladino erainstruído, refinado e hábilcom a lança e a espada, visto

como um modelo de bravurae magnanimidade não sópelos maometanos; mastambém pelos cristãos. Ashistórias de sua urbanidade ebenevolência tiveram enormeimpacto entre os europeus,pois até então eles haviamtentado transformar emdemônios grosseiros seusinimigos infiéis. Em 1183, porexemplo, quando estavasitiando o castelo de Kerak,na Palestina, durante asfestividades de casamento de

Humphrey de Toron com aprincesa Isabel, o sultãoordenou aos seus soldadosque não disparassem ascatapultas contra a torre ondeas bodas estavam sendocelebradas. De outra feita,durante um enfrentamentoperto de Jerusalém, quando ocavalo de Ricardo Coração deLeão caiu morto numabatalha, Saladino recuou seuexército e enviou ao rei daInglaterra outros doisvigorosos corcéis de presente.

Só então ordenou que sereiniciassem os combates.

Cavalheirismos à parte,Saladino era, acima de tudo,um soldado. Caso lheparecesse necessário sercruel, agia com maestria.Quando derrotou o exércitodo rei Guido, de Jerusalém, àsmargens do rio Jordão, elepróprio degolou algunsprisioneiros nobres quehaviam sido levados à suatenda, entre eles Reinaldo deChâtillon, um cavaleiro

mercenário arrivista quevinha atacandoconstantemente ossarracenos nos quatro cantosda Palestina.

O sultão deu ao nobreeuropeu a possibilidade de seconverter ao Islã, escapandoassim da morte. Reinaldo riuna cara dele, dizendo que eraele quem deveria se voltarpara Cristo. Ao ouvir talinsolência, Saladino sacou dacintura sua enorme cimitarrae com um único e rapidíssimo

golpe decepou a cabeça deReinaldo diante do rei Guido,fazendo o sangue do francoescorrer entre os pés dosoutros prisioneiros.

Saladino poupou somentea vida do rei e de algunspoucos barões mais ricos,entre eles o recém-casadoHumphrey de Toron.

— Um rei não mata outrorei — decretou Saladino naépoca.

A verdade, no entanto, eraoutra: as vidas dos

prisioneiros de alta estirpeeram preservadas para seremtrocadas por polpudosresgates.

Em seguida, o sultãomandou seus soldadosdecapitarem os 230cavaleiros templários feitosprisioneiros, pelos quaisnutria um ódio histórico.

— Vou purificar a terradesta raça impura — teriaafirmado.

No dia 2 de outubro de1187, aniversário da visita de

Maomé ao céu a partir doMonte do Templo, Saladinofez sua entrada triunfal emJerusalém. Embora a igrejado Santo Sepulcro fossedeixada a cargo dos cristãosortodoxos, sua cruz foiretirada do alto da Cúpula daRocha e arrastada ao redorda cidade por dois dias, sobos golpes dos porretes dosmuçulmanos exultantes.

As notícias da tragédiaocorrida na Terra Santadeixaram os europeus

atordoados. Para financiar aCruzada seguinte, o papainstituiu o “dízimo Saladino”,um novo imposto. Em 1191,os cristãos, liderados porRicardo Coração de Leão,tomaram a fortaleza de SãoJoão de Acre. Saladino foraincapaz de levantar o cerco ea guarnição muçulmana serendeu. Impaciente com ademora do líder árabe empagar o resgate pelosprisioneiros, atrasando assima marcha da Cruzada em

direção a Jerusalém, oarrogante rei da Inglaterrasupervisionou pessoalmente aexecução dos 2.700sarracenos, entre elesmulheres e crianças, todosdecapitados pelos soldadosingleses.

Nos meses seguintes, asforças do sultão e do rei seenfrentaram diversas vezes,mas nenhum dos exércitosera suficientemente fortepara derrotar o outro. Ricardoprecisava voltar à Inglaterra,

onde lhe ameaçavam o trono,e Saladino não tinhacondições de manter umexército tão grande por muitotempo, pois as pilhagens,motivo do engajamento dosseus soldados, não eramfeitas quando não havia umvencedor.

Quando os cristãosacamparam a vintequilômetros de Jerusalém, osestrategistas militares deambos os lados concluíramque a guerra estava

empatada: os cruzados atépoderiam conquistar a cidade,mas não conseguiriam mantê-la quando voltassem para aEuropa; eles não tinham umasupremacia militar na região.Então os dois líderes fizeramum acordo: o litoral daPalestina ficaria com oscristãos e o interior, com osmuçulmanos. Além disso,tanto uns quanto outrospoderiam circular livrementepelos dois territórios,visitando seus lugares

sagrados. Para selar otratado, muitos dosseguidores do rei entraram nacidade como peregrinosdesarmados. Curiosamente,Ricardo não quis segui-los.

Ele voltou ao VelhoContinente e foi preso porseus adversários políticos naAlemanha. Enquanto estavano cativeiro, seu maiorinimigo e ao mesmo tempogrande admirador, Saladino,faleceu no Cairo. O irrequietoRicardo Coração de Leão

morreu lutando na Europapoucos anos mais tarde, em1199, aos 42 anos.

Em 1229, o sultão al-Kamil, sucessor de Saladino,assinou um tratado de pazcom o imperador Frederico II,da Alemanha, líder da novaCruzada. O Egito não seriaatacado; em troca,Jerusalém, Belém, Nazaré epartes da Galiléia voltariamao domínio cristão. EmJerusalém, o Monte doTemplo, com a Cúpula da

Rocha e a mesquita al-Aqsa,antiga moradia dos CavaleirosTemplários, deveriapermanecer em mãossarracenas, com livre acessoconcedido aos maometanosque desejassem ir para láorar.

Esse acordo só foi possívelporque nem o sultão nem oimperador eram homensreligiosos. Estadistasmemoráveis, intelectuaisrefinados, governantes derequintado discernimento,

estavam apenas dividindo omundo entre os dois, deacordo com suasconveniências políticas domomento. O tratadodesagradou tanto ao papa,em Roma, quanto ao califa,em Bagdá, e também aosimãs muçulmanos e às ordensmilitares cristãs, para quem aderrota do inimigo infiel eramais importante do que a suaprópria vitória. Os radicais deambos os lados, para quem aguerra contínua era a razão

das suas existências, ficaramsem causa.

Mas não por muito tempo.Em 1242, os templários

romperam o tratado com osárabes e atacaram cidadesmuçulmanas na Palestina,queimando mesquitas ematando grande parte daspopulações. Em seguida,fizeram um acordo com osultão de Damasco para,juntos, enfrentarem Ayyub,filho de al-Kamil, o novosenhor do Egito. Em resposta

às novas forças que se uniam,os egípcios contratarammercenários nômades queviviam ao norte da Palestina.Eles passaram ao largo deDamasco e saquearamJerusalém, matando todos osseus moradores.Desenterraram os ossos dosantigos reis, sepultados naigreja do Santo Sepulcro, eatearam fogo ao local maissagrado da cristandade.Depois juntaram-se aosexércitos egípcios, ao sul de

Jerusalém, e atacaram osexércitos aliados. As tropasdamascenas se puseram emfuga e os latinos forammassacrados em questão dehoras. Pelo menos cinco milsoldados foram mortos eoitocentos prisioneiroslevados para o Egito, entreeles o líder dos templários,Armand de Périgord, quemorreu numa prisão no Cairo.

O rei da França, Luís IX,mais tarde canonizado comoSão Luís, liderou uma nova

Cruzada com o objetivo deconquistar o Cairo, únicamaneira de manter Jerusalémfora do alcance muçulmano.Os cruzados foram derrotadosno delta e o rei acabou preso,caindo em poder deTuranshad, filho de Ayyub, onovo sultão do Egito. Luís IXfoi resgatado a peso de ouroe regressou para Acre, umadas poucas fortalezas nolitoral da Palestina ainda empoder dos cristãos. Apósalgum tempo, ele voltou para

a França.Em 1250, morreu na

Europa o grande imperadorFrederico II. No Cairo, osmercenários mamelucos,contratados para defender osultanato, rebelaram-secontra seus própriossenhores. Assassinaram osultão Turanshad eassumiram o poder,encerrando a dinastia iniciadapor Saladino no Egito.

Havia chegado o fim deuma era; iniciava-se outra.

CIDADELA

Ao entrarmos na Cidadela, oprimeiro prédio imponenteque visitamos foi a mesquitade an-Nasir Mohamed,construída pelos mamelucos

no século XIV. Havia poucacoisa interessante em seuinterior, saqueado ao longodo tempo, mas sua estruturaestava intacta e as partesfinais dos seus dois minaretescontinuavam cobertas portijolos vitrificados verdes,evidenciando esse importanteelemento arquitetônico efazendo dela a únicamesquita com esse detalheem todo o Egito.

Em 1258, os mongóismarcharam para o oeste e

capturaram Bagdá,assassinando o califa emassacrando a populaçãoislâmica. Como os cristãosforam poupados, coube aosegípcios resistir à expansãodessa nova horda deguerreiros asiáticos rumo aoOcidente. Os mamelucospediram ajuda aos latinos naPalestina, mas eles serecusaram a apoiar seusinimigos históricos, apenaspermitindo que elescruzassem seus territórios.

Em 1260, o Exércitomameluco, liderado pelosultão Kutuz, derrotou osmongóis ao sul de Nazaré.

Al-Malik az-Zahir Rukn ad-Din Baibars, nascido namargem norte do Mar Negro,fora vendido como escravopelos mongóis aos egípcios.Treinado como membro daguarda pessoal do sultãonuma ilha do Nilo, foi subindode posto até se tornarcomandante do Exército. Foraele, juntamente com outros

oficiais mamelucos, quemassassinara o último herdeirode Saladino.

Após a vitória sobre osmongóis, irritado com arecusa do sultão Kutuz emrecompensá-lo com a cidadede Alepo, Baibars assassinouseu amo e apoderou-se dotrono, prosseguindo com aconquista da Palestina e daSíria.

Enquanto na Europa osnobres guerreavam entre sina defesa das suas ambições

pessoais, no ultramar ascidades latinas foramdeixadas à sua própria sorte,caindo uma a uma diante daimpetuosidade de Baibars. Elesaqueou Nazaré e conquistoua fortaleza dos templários deSafed, decapitando todos oshomens e formando com suascabeças um círculo ao redordo castelo. As mulheres e ascrianças foram levadas comoescravas para o Cairo.

Ele então marchou paraAntioquia, matando todos os

cristãos das fortalezas que serenderam pelo caminho.Apesar do seu declínio comocentro comercial, Antioquiaainda era a maior cidadecristã na Ásia. Baibars ainvadiu, fechou seus portões,massacrou a população eseus soldados saquearam edevastaram todas as casas.Tamanha foi a fúria destrutivadas tropas mamelucas queelas acabaram riscando domapa-múndi essa outroragrande metrópole do Império

Romano. Um pouco maistarde, com a conquista deMonfort, caiu a últimafortaleza mantida peloscruzados no interior daPalestina.

Temendo um novo ataquedos mongóis, os mamelucosassinaram um acordo de pazcom os cruzados, deixando-osnas fortalezas ao longo dacosta mediterrânea. Com amorte de Baibars, subiu aopoder o comandante doExército mameluco, Qalawun.

Ele invadiu Trípoli e matoutodos os prisioneiros homens,levando as mulheres e ascrianças como escravas. Apóster a cidade em suas mãos, osultão ordenou que ela fossecompletamente arrasada paraevitar qualquer proveitofuturo por parte doseuropeus.

Quando um indisciplinadogrupo de cruzados recém-chegados da Itália, reagindoaos rumores de que umamulher cristã fora seduzida

por um sarraceno, atacou osmuçulmanos em Acre,Qalawun teve o pretexto quedesejava para romper atrégua e atacar a maiorcidade latina na costa doMediterrâneo palestino.

O sultão morreu acaminho da guerra e foisucedido pelo filho, al-Ashraf.Após uma batalha sangrenta,os soldados mamelucosinvadiram a cidade,avançando pelas ruas ematando indistintamente

homens, mulheres e crianças.Trinta frades dominicanosforam massacrados após arendição; as freiras foramtransformadas emconcubinas. Quem conseguiuse esconder em casa foiescravizado e a maioria dasmeninas desapareceu parasempre nos haréns dosemires egípcios. Acre foiarrasada e o portal da igrejade Santo André foi transferidopara o Cairo, como lembrançada gloriosa vitória de al-

Ashraf.A seguir conquistaram Tiro

e Beirute, ondetransformaram a catedral emmesquita. Nos anosseguintes, os árabesarrasaram as cidades edevastaram a terra no litoraldo Mediterrâneo, reduzindo aescombros desérticos osmarcos da presença doseuropeus no continenteasiático.

(Os cristãos só voltaram aJerusalém quando as tropas

aliadas venceram os turcosem Gaza durante a I GuerraMundial, transformando aPalestina num protetoradobritânico. Em 1948, foi criadoIsrael e em 1967 Jerusalémfoi anexada ao Estado judeudurante a Guerra dos SeisDias. O Monte do Templopermanece nas mãos dosmuçulmanos; a Igreja doSanto Sepulcro, nas mãos doscristãos, onde os cavaleiroscruzados foram substituídospor hordas de turistas

apressados.)Descritos pelo cronista

árabe Ibn Wasil como “ostemplários do Islã”, osguerreiros mamelucosexpandiram a Cidadela,ampliaram sua área eadicionaram suntuosospalácios e majestosos haréns,além de embelezarem o Cairocom prédios maravilhosos.Em seus 267 anos de reinado,apesar da sua crueldade, outalvez por causa dela,transformaram sua capital no

centro comercial, econômico,político e cultural do mundoárabe, governando do Egito àSíria.

Em 1516, os mamelucosforam derrotados pelosturcos. O sultão Selim Ianexou o país ao ImpérioOtomano e o Egito tornou-seuma província governadapelos beis, os príncipesvassalos do sultão deConstantinopla.

Como era costumenaquela época, os

maravilhosos prédiosconstruídos pelos mamelucosforam abandonados. Aextraordinária mesquita dean-Nasir Mohamed teve seusmármores arrancados pelosultão e reutilizados emnovos palácios, construídosem homenagem ao novosenhor do nordeste da África.

A Cidadela foi mais umavez ampliada, destacando-sea mesquita de Suleiman Paxá,no lado leste, e um novoportão de acesso, Bab al-

Azab, no lado oeste. SuleimanPaxá era um prédio pequeno,mas podíamos notarclaramente a influência daarquitetura otomana em seusbelíssimos domos.

Mesmo assim, quandoNapoleão invadiu o país em1798, seus estudiososconsideraram as mesquitasmamelucas os mais belosmonumentos islâmicos noCairo. O general francêschegou acompanhado de 167cientistas, responsáveis por

um grande estudo sobre acultura local, seusmonumentos, a flora, a fauna,e o povo. O resultado dessetrabalho foi publicado emDescription de l´Egypte, umaobra com 24 volumesdescrevendo em profundidadeos mais de cinco mil anos dehistória da grande civilizaçãoafricana.

Em 1801, Napoleão foiobrigado a retirar-se e opoder voltou para os turcos.Mohamed Ali, um soldado do

contingente albanês doExército Otomano, usurpou opoder e passou a governarcom o título de paxá. Aocontrário dos franceses, onovo mandatário do Egitomandou destruir todos osmagníficos prédiosmamelucos dentro daCidadela, preservando apenasa mesquita de an-NasirMohamed, transformada emestábulo.

O sultão, emConstantinopla, tinha

preocupações demais paradar atenção à rebeldia do seuvassalo no Egito. Assim, aúnica ameaça ao poder deMohamed Ali eram os nobresmamelucos que aindagozavam de um certoprestígio na política cairota.

Após visitarmos amesquita de Mohamed Ali,onde ele estava enterrado, eapreciar a beleza do Cairo doalto da Cidadela, dirigimo-nosao terraço em frente aoMuseu da Polícia para ver o

estreito labirinto de ruaslevando ao portão de Bab al-Azab. A maioria dos visitantesfora atraída por um café aolado do jardim, mas euestava especialmenteinteressado numa tragédiaque ocorrera nessas ruelas,logo abaixo de ondeestávamos.

Em 1º de março de 1811,Mohamed Ali ofereceu umagrande festa na Cidadela emhomenagem à partida dosobrinho em peregrinação a

Meca. O paxá convidou todosos príncipes mamelucos,cerca de quinhentos nobres.No fim para o evento dasfestividades, na hora de irembora, os mamelucosmontaram seus cavalosparamentados e seguiram emprocissão pelos estreitoscorredores da Cidadela emdireção a Bab al-Azab.Quando se aproximavam dasaída, o portão se fechou derepente e uma saraivada debalas desabou sobre suas

cabeças, disparadas de cimadas muralhas da fortaleza,principalmente do lugar ondeeu me encontrava agora. Ossoldados de Mohamed Ali searremessaram sobre osdesafortunados sobreviventese acabaram de matá-los amachadadas. Nenhumescapou com vida.

Havia acabado a épocados honrados homens deguerra, a bravura e a valentiados cavaleiros substituídaspela traição política.

Curiosamente, o sanguináriopaxá modernizou não só oCairo como todo o Egito.

Em 1882, o Egito setornou colônia britânica,conquistando suaindependência somente em1952, por meio de umarevolução liderada pelotenente-coronel Gamal AbdelNasser.

CIDADE MEDIEVAL

Saímos da Cidadela,passamos em frente àmesquita de Ar-Rifai, ondeestavam enterrados o reiFaruk, último soberano

egípcio, e o xá Reza Pahlevi,último soberano do Irã, e nosdirigimos à mesquita deAqsunqur. Conhecida comoMesquita Azul devido à cordos mármores que a cobriam,fora construída em 1347 eestava praticamente emruínas. Mas nosso interesseera exatamente esse: comoestava abandonada,podíamos subir por dentro doseu minarete, de onde nosdisseram que veríamos aspirâmides no platô de Gizé,

do outro lado da capital. Malnos aproximamos damesquita, pouco mais do queuma estrutura abandonada,fomos abordados por umdesses incontáveis malandrosde rua que infestam osarredores dos monumentosturísticos. Eu os conheço delonga data e de todos oslugares, sendo capaz deidentificá-los à distância pelosseus trejeitos falsamenteobsequiosos. O sujeito,vestido de modo a não

assustar os estrangeiros,estava em frente a um café eatravessou a rua, na nossadireção, tão logo nos viuapontar na esquina.

Quando saímos do hotel,eu havia separado algumasnotas de pouco valorexatamente para esse tipo degente. A experiência já mehavia ensinado: a maneiramais fácil — e mais barata! —de livrar-me dessesinoportunos era utilizandoalguns trocados de valor

insignificante para mim, masde grande valia para eles.Quando esses carasliteralmente colam na gente,cair fora sem lhes dar algosignifica perder tempo comdiscussões, bate-bocas,empurra-empurras, despistese por aí afora, uma fontecontínua de estresse. Elessabem disso, edescaradamente usam essachantagem para ganhar avida.

Chegamos juntos em

frente à mesquita. Não haviaporta, nem nada, mas nopátio interno via-se umaplaca, onde estava escritofree, ladeada por dois carasesparramados emconfortáveis cadeiras. Eleseram o que os cairotaschamam de bauab, oguardião da bab, a porta. Masno Cairo eles não se limitama ser simples porteiros, não.U m bauab, verdadeirainstituição nacional, nadefinição do escritor Robert

Solé em seu livro Egito, “nãose senta de qualquermaneira. Tem um modo bemparticular de escorregar aperna por baixo dele ou de seesparramar, com a barrigaestufada, quase deitado. Écerto vê-lo, contemplativo,desfiar uma sebha (rosário)ou mexer com os dedos dopé. Levanta-se regularmentepara cumprir diversas tarefasnos andares do prédio. Joveme despachado, ele acumularáoutras atividades: jardineiro,

guardador de carros, corretorimobiliário, até mesmoempregador, terceirizandoalguns de seus trabalhos”.

O bauab da Mesquita Azulhavia terceirizado a tarefa dealiciar os visitantes e levá-lospara dentro dessa montanhade entulhos. Em nosso caso,nem era preciso: havíamosdecidido espontaneamentesubir os degraus do minarete.Mas eles não sabiam disso,claro, e se aquadrilharampara botar suas gordurosas

mãos em nossos rasos bolsos.Como o prédio era poucovisitado, por essa ruela quasenão passavam turistas, aplaca com a palavra freeservia de isca para atrair aatenção dos esparsosforasteiros, especialmenteaqueles ávidos por qualquercoisa que seja “de graça”.

O rapaz nos abordou comofazem todos eles, em todosos lugares: perguntando deque país nós éramos, e emseguida despejando uma

saraivada interminável deelogios ao Brasil.Obviamente, o assuntosempre começava pelo nossomaaaaaravilhoso futebol, queeles amam doidamente epelo qual torcemdesesperadamente. Na últimaCopa do Mundo, inclusive,chegaram a ganhar um bomdinheiro apostando nobrazilian team. Curiosamente,só encontramos espertalhõesque haviam apostado noBrasil...

Como sempre, achei maisfácil dar-lhe um trocado doque perder meu preciosotempo num extenuantecorpo-a-corpo para livrar-medele. Além do mais, a gorjetaé uma tradição no Egito e nãorespeitá-la é motivo deofensa. O cara ainda tentou,num péssimo inglês, contar-me uma longa história sobrea mesquita, artimanhainvariavelmente utilizada paravalorizar o seu trabalho, mascortei de saída.

— Queremos subir nominarete — disse-lhe quasecomo uma ordem,antecipando-me às suasobjeções.

Os degraus estavam lisos,gastos nas bordas, e nãoenxergávamos nada nointerior da estreita torre. Eusegui atrás do irritadiçosujeito, apalpando com o pécada degrau antes de colocaro peso do corpo sobre ele,enquanto Beto vinha umpouco mais abaixo,

carregando suas câmerasfotográficas e a filmadora.Volta e meia passávamos poralgum buraco na muralha euma réstia de luz clareava umpouco o interior lúgubre daescada, apenas para mostrarque ela ia se estreitando àmedida que subíamos. Comdificuldade e muito cuidado,ao fim de um bom temposaímos no topo, onde umapequena abertura davaacesso ao precário e estreitobalcão circular envolvendo a

última etapa do minarete.Parecíamos estar suspensosno ar, muitos metros acimadas ruínas da mesquita, láembaixo.

Refeitos da tensão e como fôlego recuperado,enquanto o rapaz nosesperava do lado de dentrodemos a volta na torre e nosdeparamos com uma dasvisões mais estupendas jáapreciadas em minhasviagens: do outro lado doNilo, camuflados em meio à

fuligem e à poluição dacidade, estavam os triângulosdas três famosas pirâmides,únicas remanescentes dasSete Maravilhas do Mundo.

Eu havia me preparadopara esse momento.Conhecer as pirâmides seriadar contornos de realidade atodas as mágicas fantasiasque minha criativa mente deestudante podia imaginarquando eu folheava os livrosescolares e meus dedosacariciavam o papel sobre o

qual aquelas formasenigmáticas se estampavam.Quando pensava na idadedelas, no tamanho das rochasutilizadas na sua construção eem como elas haviam sidocolocadas umas sobre asoutras, meu coração vagavanum mundo povoado demistérios e aventuras semfim.

Mesmo assim, ao vê-laspela primeira vez, emborafossem apenas um borrão napaisagem distante, meu

coração palpitou além daconta, muito mais forte doque eu poderia imaginar.Estar vendo as famosaspirâmides do alto de umminarete abandonado eperigando desabar a qualquermomento só aumentava aminha emoção, paralisadopelo estupor da cena diantedos meus olhos.

— Não vai filmar? —perguntei ao Beto quando merefiz do susto.

— Ah, é! — ele se limitou

a dizer, como se minhapergunta o tivesse tirado deidêntico devaneio.

— Não pode filmar aqui decima — disse o falso guia.

— Pode filmar, sim — eudisse para o Beto. — Éapenas uma artimanha paranos extorquirem maisdinheiro na saída.

Tão logo resolvemosdescer, o sujeito pediu o seubaquiche. Enfiei a mão nobolso e lhe passei algumasnotas de pouco valor. Ele as

separou, guardando a metadeem sua carteira e meestendendo as outras.

— Quando chegarmos láembaixo — explicou-me —, osenhor me dê, na frente domeu chefe, estas notas.Assim, divido com ele apenasa metade do baquiche.

— Ladrão que roubaladrão... — comentei comBeto.

Eu havia decidido nãodeixar essa questão ofuscar omomento fascinante pelo qual

havíamos passado. Era umproblema deles, e o malandroe o bauab que se danassem.

Descemos ainda com maiscuidado, pois, agora, aoperigo dos degrausirregulares somava-se onosso atordoamento pelafelicidade de ter visto, mesmoa grande distância, as...pirâmides do Egito! Não haviasido premeditado, mas atéme encontrar sob suassombras, outros momentoscomo esse ainda se

repetiriam.Quando passamos pelo

bauab, resolvi dar-lhediretamente as notas queainda estavam comigo, pois oseu terceirizado já haviarecebido a parte dele.

A palavra egípcia baquicheoriginou-se do persa bahsis,mais tarde transformada embaksis pelos turcos edisseminada por todo oOriente. “O baquiche começano Egito e nos segue até aÍndia”, escreveu Jean

Cocteau. Originalmente eledesignava um ato piedoso ouum gesto de boas-vindas,mas logo teve o sentidoderivado para gorjeta, esmolaou, bem pior, propina —conforme a circunstância.Muito cedo aprendi que noCairo nada se conseguia semu m baquiche. Porteiros,garçons, barqueiros,guardiões, taxistas e nemmesmo policiais arredavampé enquanto não fossemrecompensados com algumas

libras.Muitas vezes os policiais

estavam patrulhando,montados em camelos, eprecisávamos fazer umexercício de contorcionismopara o dinheiro trocar demãos. Isso em todos oslugares. Se havia uma praça,um monumento ou algo capazde merecer um minuto donosso olhar, logo aparecia ovigia esperando pelobaquiche. Mesmo nas lojasmais requintadas, quando

barganhávamosexaustivamente um preço, aofazer o pagamento erapreciso acrescentar a gorjeta.Trata-se de uma questão dedignidade e honra, quaseuma oferenda.

Tão importante quanto ovalor da nota oferecida é amaneira de fazê-lo. Dar umbaquiche não é um simplesobséquio, uma caridade paranos livrar do inoportunopedinte, muito menos umcomplemento de uma

transação comercial ou umestímulo para que uma portamais resistente seja aberta.Não; dar um baquiche é umacerimônia das maissofisticadas que podem serrealizadas no Vale do Nilo.

Primeiro, eu precisavacolocar a nota entre meusdedos da forma maisimperceptível possível. Aoagradecer ao obsequiado,apertava-lhe a mão e odinheiro deslizava, sorrateiro,para a outra mão,

imediatamente recolhido,num gesto rápido e elegante.Mandava a etiqueta, portodos observada, agradecerefusivamente antes mesmode ver a importância ganha.Era um ato praticado mais portradição do que por ganância.E não respeitá-lo era umagrande ofensa para ossupersticiosos cairotas,podendo mesmo trazeralguma desgraça, doença etalvez a morte.

Seguimos nossa aventura

urbana pelas infindáveisruelas da cidade medieval deAl-Qahira, passamos pelasmesquitas de al-Maridani,construída em 1339, Qijmasal-Ishaqi, de 1481, echegamos ao bairro de Darbal-Ahmar, o coração do Caironos séculos XIV e XV, aesplêndida capital dosmamelucos. Ao visitarmos obazar onde, na Antigüidade,os artesãos produziam osbelíssimos tecidos usadospara enfeitar as grandes

caravanas de mercadores,paramos para um lanche: umpedaço de batata-doceassada na rua e um suco decana-de-açúcar.

Beto Scliar, filho doescritor e médico MoacyrScliar, havia saído de casacom a recomendação deevitar alimentar-se nas ruasdo Cairo, pois atradicionalmente poucohigiênica comida dosvendedores ambulantespoderia provocar-lhe alguma

indisposição estomacal. Arecomendação procedia, masera difícil de ser posta emprática. Nas primeirassemanas ele fez todo opossível para seguir aprescrição do pai médico, masaos poucos foi relaxando aorientação paterna e seentregando “aos prazeres darua”, como eu costumavadizer-lhe. Vendo-me comer detudo, em qualquer lugar, logoque a fome batia, ele passoua me acompanhar nas

degustações dos deliciososquitutes da popular culináriaarábica. Quando seuestômago já estavadevidamente corrompido,chegou a gostar das exóticasiguarias, e a dor de barrigados primeiros diasdesapareceu por completo.

— A partir de agora — eulhe disse, lá pelo meio daviagem —, você estávacinado para comer qualquercoisa, em qualquer lugar domundo.

No bairro medieval, osartesãos continuavamtrabalhando no mesmo lugare quase da mesma forma,fabricando as lindíssimastendas utilizadas nos funeraisislâmicos e nas festas decasamento dos moradores davizinhança. Cruzamos peloportão de Bab Zweila,construído no século X,atravessamos o mercadoonde os cairotas seabastecem desde a época dosfatímidas, passamos ao largo

de diversas mesquitas echegamos a al-Azhar.

Fundada em 970, amesquita-universidade de al-Azhar é uma das maisimpressionantes instituiçõesreligiosas do mundo islâmico,além de ser a mais antigauniversidade emfuncionamento no planeta,atraindo estudiosos de todosos continentes. Ela tem comomissão principal zelar pelastradições muçulmanas,cabendo ao seu xeque a

última palavra nas questõesteológicas do islamismo.Centro do conservadorismoreligioso do Egito, muitasvezes o poder dos seuslíderes se confunde com opoder secular do Estadonacional.

Tão logo paramos diantedo pórtico da mesquita,apreciando a sua belafachada, fomos abordadospelo bauab. Aos poucos íamo-nos familiarizando com essatradição cairota; eles estavam

em todos os lugares por ondeprecisávamos passar. Àsvezes, usavam uniformes earmas, principalmente fuzis emetralhadoras, e pertenciamà polícia ou ao exército. Eraincrível, mas nem essesdispensavam a cadeira.

— Este deve ser o únicopaís do mundo onde ospoliciais montam guardasentados — comentou Beto.

O bauab de al-Azharprontificou-se a nos mostrar ointerior do prédio. Ele foi tão

insistente que nem sequernos deixou apreciar suabeleza externa, alegando queele fecharia em breve e, casonão o seguíssemos logo, nãopoderíamos mais fazê-lo(mais tarde descobri que amesquita funcionava 24 horaspor dia). Deixamos oscalçados e acompanhamos oprestativo homem, que sederramou em elogios aoBrasil quando soube queéramos brasileiros.

— Os brasileiros são iguais

aos egípcios, gente muito boa— ele disse. — Somos povosmuito amigos e tambémadoramos o futebol brasileiro.

— Obrigado — respondeuBeto educadamente.

— Não gostamos dosamericanos e franceses —insistiu o egípcio.

Eu apenas pisquei para oBeto e deixei a visitaprosseguir. Começamos poruma sala especial, do ladoesquerdo, onde pudemos vero lindo mihrab, um nicho na

parede indicando a direção deMeca, sob uma bela cúpularicamente pintada. Nossoamigo tinha uma voz muitobonita e nos recitou ochamado do muezim. Emseguida, mostrou-nos oimenso pátio, com seus trêsminaretes construídos nosséculos XIV, XV e XVI. Dentrodo haram, a nave principal damesquita, com capacidadepara 1.500 fiéis, um imãensinava lições do Alcorão aum grupo de jovens enquanto

preparavam o minbar, opúlpito sobre o qual outro imãfaria a khutba, o sermão domeio-dia.

Ao sairmos da mesquita, obauab, que espontaneamentehavia nos acompanhado,pediu um baquiche. Irritado,desta vez neguei-me a dar-lhe a tal gorjeta; eleatrapalhara mais do queajudara. Ansioso paraexplorar outro visitante, nosfez passar quase correndo pordentro da famosa mesquita,

deixando-me indignadíssimo.O trambiqueiro insistiu e eulhe lasquei um sonoro “não!”.Ele ficou irado, e quando viuque não adiantava reclamar,não ganharia nada, mudou deidéia sobre o Brasil.

— Os brasileiros nãoprestam, são gente ruim —esbravejou, colérico. — Nãogostamos dos brasileiros.Preferimos os franceses e osamericanos. Esses sim, sãogente boa.

Ahã!

Atravessamos a rua e nosdirigimos a outra mesquita, ade Sayydna al-Hussein, umdos mais sagrados lugaresislâmicos do Egito. Ela guardaum relicário onde acreditamestar enterrada a cabeça deIbn al-Hussein, um dos netosdo Profeta. Proibida a não-muçulmanos, precisei ir até omercado Khan al-Khalili, nasredondezas, fundado noséculo XIV, comprar umagallabeya para entrar sem sermolestado pelos bauabes que

ficavam na portariarecolhendo os calçados dosfiéis.

Vesti a túnica de algodãosem gola, toda branca, porcima das roupas, deixeiminha pequena mochila como Beto, que ficoufotografando o movimento dolado de fora, e me dirigi aointerior do templo, camufladoatrás do meu cavanhaque.Era meio-dia, sexta-feira, eeu queria ouvir o tradicionalsermão. Sentei-me num

banco encostado na parededos fundos, junto com algunsanciãos, posição bem maisconfortável do que ficarajoelhado no chão, eacompanhei atentamente aspalavras do imã. Não entendinada, ele pregava em árabe,mas a paz e a tranqüilidadena mesquita valiam o risco deser descoberto e jogado parafora a pontapés, como já mehavia acontecido na Índia,quando me descobriram numtemplo proibido aos não-

hinduístas.

Para concluir as novidades dodia em alto nível, fui ao ElFichaui, ali perto, a maistradicional ahwa da cidade,uma cafeteria que se gabavade ter ficado aberta 24 horaspor dia nos últimos duzentosanos.

— Exceto no Ramadã —contou-me o garçom, todoprosa.

Eu queria fumar umachicha, a versão egípcia do

narguilé turco. Quando estouno Brasil, nunca fumo — masem viagem não me nego aseguir os costumes locais. Ocafé ficava numa das aléiasdo mercado, com mesinhasde mármore do lado de fora eespelhos refletindo os néonsmulticoloridos no interior. Aatmosfera lembrava o Cairocosmopolita de antigamente,ponto de encontro dos dândiseuropeus, que perambulavampelas mil e uma noites dagrande metrópole árabe em

busca de diversão.Pedi a versão tofah, a

mais popular. O tabaco,picado e macerado nomelaço, veio embebido emsuco de maçã, liberando umaroma adocicado sem afetaro sabor acre do fumo. Umapiteira descartável encaixadana ponta do tubo garantia ahigiene necessária aosclientes do café, outrorafreqüentado pelo escritorNaguib Mahfuz, prêmio Nobelde Literatura de 1988. Os

egípcios não ingerem bebidasalcoólicas, de modo que osencontros com os amigosocorrem nos cafés, com achicha, o costume maisarraigado do país e um dospoucos lazeres públicospermitidos às mulheres,especialmente às jovens.

Quando aspirava comforça, a água perfumadadentro do vaso de vidro faziaborbulhas ao ser deslocadapela fumaça. Essa subiafiltrada, passava pelo longo

tubo, cruzava pela mangueiraflexível e me saía branda naboca, uma absorção suave —logo expelida. Como amaioria dos clientes estavafumando, uma cortina denévoa amarelecida envolvia oambiente. Alguns bebiam chápreto ou tomavam café turco,mas o que se ouvia mesmoera o crepitar das brasas nofornilho, queimando o tabaco.Quando elas começavam a seapagar, o raiyis vinha e astrocava por outras mais

novas, obrigando-me a dar-lhe um generoso baquiche,algo que não me incomodavaquando o garçom era mesmoeficiente.

Os cairotas são animadose extremamente alegres.Logo que a noite caía, asgrandes avenidas ficavamcheias e as cafeterias e osrestaurantes, repletos. Emfrente aos cinemas, aspessoas se aglomeravam emtal quantidade que chegavama interromper o trânsito na

rua. Famílias inteiras,normalmente com muitosfilhos, passeavam pelascalçadas, divertindo-se comas vitrinas bem-iluminadasdas inúmeras lojas abertasaté altas horas da noite.Caminhar entre gente tãoalegre e descontraída eramuito agradável,especialmente quando nosdirigíamos, após um longodia, a um bom restaurante.

Certa noite decidi jantarno Café Riche, levar o Beto

para conhecer o ladoglamouroso do Cairo. Além domais, ele já estava intoxicadocom a comida dos mercadospúblicos; chegara a hora deele dar uma folga aoestômago, antes que ele serevoltasse de vez.

Fundado em 1908 erecentemente restaurado,mantendo o mobiliáriooriginal, o Café Riche é umadas mais tradicionaisinstituições cairotas etambém um dos melhores

restaurantes da cidade.Decorado com uma série defotos dos barões da culturalocal, era o lugar onde osconspiradores, liderados porNasser, se reuniam durante operíodo em que o Egitoesteve sob o domínio colonialbritânico, e onde, nos anos60, Naguib Mahfuz organizavasaraus literários, reunindo osprincipais escritores eintelectuais da capital.

C o m i hamam, um dospratos mais tradicionais do

país: pombo grelhadorecheado com arrozaromático acompanhado debatatas fritas, ervilha, vageme cenoura. Há quatro milanos, no Antigo Império, ospombos já faziam parte docardápio, tradição mantidaaté os dias atuais,especialmente no interior dopaís. De sobremesa, umagostosa mouhalabia, arroz-doce salpicado com cocoralado. Por ser um dos locaismais cosmopolitas do Cairo,

freqüentado por diplomatas ehomens de negóciosestrangeiros, pude tomar umacerveja, algo pouco comumnum país muçulmano.

Beto comeu espaguete.

O MERCADO DECAMELOS

Costumo utilizar otransporte coletivo para medeslocar pelo interior dospaíses por onde viajo. Levo

mais tempo, mas gastomenos e tenho uma boaoportunidade de fazer contatocom os moradores, com quemsempre se aprendem coisasinteressantes. Mas essaexpedição tinha um formatodiferente. Estavaacompanhado por outroprofissional e, principalmente,com uma parafernália deequipamentos fotográficos ede filmagem. Seria insanotentar viajar em alguns doslotadíssimos ônibus

metropolitanos carregandotodo esse material. ComoBeto Scliar também tinha umgeneroso patrocinador,podíamos dividir todas asdespesas. Assim, contratamosum carro para nos transportarpelos arredores da capitalsem extrapolarmos emdemasia o nosso orçamento.

Saímos bem cedinho como taxista Mohamed paravisitar o maior mercado decamelos do Egito, em Birqash,distante 45 quilômetros, em

direção ao delta. A RádioCairo tocou a versão árabe do“Biquíni de bolinhaamarelinha” e depois lascouum legítimo tango argentino.O simpático motorista núbiotinha sobre o painel umpequeno abacaxi de plástico,desses que emitem umassobio quando se aperta. Elegostava de colocá-lo para forada janela e acioná-lo sempreque alguém cometia umabarbeiragem, uma maneirabem-humorada de enfrentar a

neurose do trânsito cairota,um dos mais enroscados domundo.

Levamos uma horacruzando por um emaranhadode canais que irrigavamférteis lavouras, cada palmode terra negra plantado, ondeos felás trabalhavamagachados, com suasgallabeyas marrons presasentre as pernas. Dava gostover esses obstinadosagricultores colhendoenormes repolhos,

descomunais pepinos,gigantescos tomates e umsem-fim de hortaliças. Aospoucos, eles iam enchendograndes bolsas presas nosdois lados dos lombos dosburros, a dádiva do Nilolevada para alimentar osdezessete milhões dehabitantes do Cairo.

Quando perguntei aoMohamed se ele sabia noslevar até Birqash,prontamente respondeu quesim. Depois perdemos um

bom tempo na estradaindagando a um e outro ondeficava o grande mercado decamelos. Além dessecontratempo, eu sabia quemais um inconveniente nosesperava no final do dia,quando fôssemos pagar acorrida: ele argumentaria queprecisara rodar mais do queimaginara, assim deveríamospagar um extra, além dovalor previamente acordado.E, claro, mais o baquiche.Estava pensando nessas

coisas, imaginando o meuprejuízo adicional, quandochegamos à tal aldeia.

O mercado era, naverdade, uma grande áreacercada, formado por dezenasde pequenos currais ondecentenas de camelos eramnegociados diariamente, amaioria vinda do interior doSudão, primeiro em enormestropas e depois emcaminhões cameleiros, umaviagem de semanas. Haviatambém camelos egípcios, de

várias partes do país,inclusive da península doSinai, e alguns, de lugares tãodistantes quanto a Somália.

Quando os animaischegavam, muitos estavammagérrimos, enquanto outrosserviam apenas para o abate.Mesmo assim, oscomerciantes os açoitavamimpiedosamente para quepermanecessem em linha epudessem ser observadospelos compradores, enchendoos currais com os zurros

desesperados dos pobresbichos.

Nem eram camelos, masdromedários: tinham umaúnica corcova. Mesmo assimeram chamados de camelos,hoje e desde sempre. Capazde transportar até duzentosquilos e de alcançar quarentaquilômetros por hora, ocamelo egípcio se alimentacom quase nada,contentando-se com osgalhos ressequidos dosarbustos encontrados em

grande parte do deserto.Pode ficar sem beber porlongo tempo, graças àelasticidade dos glóbulosvermelhos do seu sangue, e aregularidade do seu passocompensa sua feiúra, umacabeça chata na ponta de umpescoço comprido demaistransportado por quatro pataslargas e pernasdesproporcionais.

Eles eram compradostanto para o abate quantopara trabalhar nas fazendas

do delta. A maioria eravendida por dinheiro, algunseram trocados por ovelhas,cabras e cavalos. Um camelonum estado bem razoável mefoi oferecido por quinhentosdólares, um preço alto demaispara o Egito. Cheguei a entrarno curral para examinar-lheos dentes, mas o negócio nãosaiu, embora o espertovendedor me prometesseentregar o animal na minhacasa, por certo não fazendo amínima idéia do que isso

significava.— Amanhã — garantiu-me

o vendedor, ao ver minhaexpressão de desaprovaçãodiante do bicho — haverámuitos outros camelos e vocêpoderá comprar um animalmelhor por um preço maisrazoável.

— Amanhã — respondi-lhe— vou estar bem longe daqui.

Quando voltávamos para oCairo por uma estradasecundária, ao fazermos umacurva fomos surpreendidos

por uma visão fenomenal: aspirâmides de Gizé vistas apartir do delta, por entrepalmeiras e campos verdes.Suas três enormes silhuetastriangulares se delineavamcontra o horizonte, umaposição que eu jamaisimaginara existir. Fissuradopela magia arquitetônica dosfaraós, eu achava que játinha visto as pirâmides detodos os lados e ângulospossíveis. Agora me davaconta de outra realidade: eu

só as conhecia, mesmo emfilmes ou fotografias, a partirdo Cairo ou do deserto. Nãoimaginava, por isso, que elaspudessem moldar o horizontede um vale verde, onde avida vegetal explodia emabundância e variedade detons.

— Pare o carro — griteiquase histérico paraMohamed e saltei.

Logo atrás veio Beto,cambaleando com suascâmeras, lentes, filmes e

tripés. Às vezes mecompadecia do seu esforço eo ajudava com as tralhas,embora nos preparativos daexpedição eu tivesse deixadoclaro que cada um deverialevar somente o que pudessetransportar. Apenas meesqueci de alertá-lo de queessa regra, a do cada um porsi e Deus por todos, só valeriaquando — e se — nosdeparássemos com algumasituação inesperada eprecisássemos fazer uma,

digamos... retiradaestratégica. Mas ele seguiuminha recomendação tão asério que, para não correr orisco de deixar para trás seucaro equipamento, acabounão levando roupas, calçadose abrigos, precisando comprá-los aos poucos, ao longo daviagem, à medida que foiconfiando na minha ajuda. Eleteve um bocado de trabalhopor conta desse contratempo,mas em momento algumreclamou.

— Por que será que nuncafotografaram as pirâmidesdeste ângulo? — perguntei aoBeto, enquanto ele ajustava oequipamento de filmagem.

— Talvez porque essafosse uma surpresa especialpara nós, um prêmio por nosaventuramos nessaestradinha completamentefora dos roteiros turísticos doEgito.

— Maravilhoso! —exclamei.

Mas essa afirmação nem

de longe eximia a magnitudedo que eu estava sentindo.Fiquei imaginando entãocomo seria estar sob suassombras. Ou o que eurealmente sonhava: percorrerseus labirintos e entrar nasala mortuária do faraó!

COPTAS

Dedicamos alguns dias avisitar o pequeno bairrocopta, especialmente asinagoga construída no localonde a filha do faraó

encontrou Moisés e a igrejasobre a gruta onde a SagradaFamília esteve abrigadaquando fugiu da Palestinapara o Egito.

Tomamos a barca públicanum ancoradouro um poucoacima do Museu Egípcio doCairo e subimos lentamente oNilo, quase uma hora dedeslumbramento. Cruzamos onilômetro na ilha Rhoda edesembarcamos em Masr al-Qadimah, o bairro conhecidocomo Velho Cairo, a região

mais antiga da capital, ondeRoma havia construído aBabilônia do Egito. Tanto elaquanto Fustat, Al-Qahira e aspróprias pirâmides de Gizéforam abocanhadas pelagrande metrópole, ficandodentro do seu perímetrourbano.

Após uma curtacaminhada pelas ruelas doantigo bairro, um dos locaismais tradicionais econservadores da cidade,onde meu guia de viagem

recomendava não usarbermudas para não agredir asensibilidade religiosa dosseus moradores, chegamos àsportas da cidade murada.

Originalmente “copta”significava “egípcio”, e elessão, na atual população, osdescendentes diretos do povodo Antigo Egito, com o qualmantêm continuidade racial.A palavra é uma abreviaçãodo grego aigyptos, termooriundo da expressão Hut-Ka-Ptah — o castelo do ka

(espírito) de Ptah (o deuscriador, adorado em Mênfis).Atualmente designa apenasuma filiação religiosa: oscoptas são os egípcios quenão se converteram ao Islã,permanecendo cristãos. E, porconta dessa opção, sofremconstantes discriminações porparte dos compatriotasmuçulmanos mais exaltados.

Cristãos monofisistas, elesnegam que Jesus Cristotivesse duas naturezas:humana e divina. Além disso,

seu calendário não começa nonascimento de Cristo, mas em284, data da ascensão aotrono de Diocleciano, oimperador sanguinário.Embora fundada por Marcos,o Evangelista, no século I, oque faz da Igreja Copta amais antiga da cristandade,seus seguidores, porrefutarem a natureza humanade Cristo, foram consideradoshereges pela Igreja Católicano concílio de Calcedônia, em461. Sua língua, camito-

semítica, originada do egípcioantigo, escrita a partir doséculo III com caracteresderivados do grego,atualmente se restringe aouso litúrgico, pois falam árabeno seu dia-a-dia.

A principal entrada para obairro ficava entre as ruínasdas torres que protegiam oportão ocidental da fortaleza,construída onde havia umaaldeia egípcia do século VIa.C. As torres estavam sendorestauradas, permitindo que

víssemos a solidez daconstrução romana.

Acredita-se que o templodo profeta Jeremias, onde eleabrigou os judeus quefugiram para o Egito quandoNabucodonosor destruiu oTemplo de Jerusalém, em 586a.C., fizesse parte do talpovoado egípcio. Nessemesmo local, no século IVd.C., fora erguida uma igrejacristã, e no século IX foiconstruída a atual sinagoga.No século XII, ela foi

restaurada pelo rabino deJerusalém, Abraão Ben Ezra,que lhe cedeu o nome. Apósficarmos um longo tempoadmirando o interior dasinagoga, fomos até osfundos do prédio, paraconhecer o poço onde Moisésfora encontrado pela filha dofaraó.

Após o Império Romano setornar cristão e antes doislamismo chegar ao Egito,havia mais de vinte igrejascristãs dentro da cidade

fortificada, além de algumassinagogas, isso numa áreacom cerca de um quilômetroquadrado. Elas eramconectadas por estreitasaléias cercadas por altíssimosmuros, lembrando a parteantiga de Jerusalém, pois nosanos 70 d.C., quando osromanos destruíram o novoTemplo de Jerusalém, maisuma leva de judeus fugiupara o Egito.

Visitamos também acripta, no subsolo da igreja

dedicada a São Sérgio daBabilônia — o mártir morto naSíria durante as perseguiçõesde Diocleciano —, onde aVirgem Maria descansou comJesus quando, fugindo deHerodes, migrou para o Egito.Estando num país cujascrenças religiosas eramcompletamente estranhas, aSagrada Família procurouabrigo entre os judeusmorando na Cidadela, mesmosendo uma fortaleza romana.Segundo alguns historiadores

José tinha parentes no local,facilitando assim apermanência da família emsolo egípcio.

A gruta subterrânea, comseis metros de comprimentopor cinco de largura e 2,5 dealtura, ficava submersadurante dois meses por ano,por ocasião das cheias doNilo. A arqueóloga Fernandade Camargo-Moro, em seulivro Nos passos da SagradaFamília, conta que “o contatoda água com o lugar faz com

que ela passe a serconsiderada sagrada, eporções dela são muitosolicitadas pelos fiéis,principalmente pelosperegrinos que ali acorrempor volta do dia 24 do mêscopta de Bashens, ou seja, 1ºde junho no calendáriogregoriano, data em que aIgreja copta festeja a Fugapara o Egito”.

As escadarias que levamao interior da cripta sagradaficavam do lado esquerdo da

nave central, bem ao fundo,perto do altar, de acessodifícil devido à grandequantidade de peregrinosdesejosos de visitá-la.Enquanto Beto fotografava avelha igreja — rica emdetalhes para um fotógrafoprofissional —, repleta de fiéise sacerdotes coptas, pude daruma rápida espiada no localonde o menino Jesus dormiraalgumas noites. Emborativéssemos chegado na horado ofício e uma ladainha

enchesse o lugar de sonslitúrgicos, o ambiente era deuma paz extraordinária,totalmente alheio à algazarraem que estávamosmergulhados desde quehavíamos chegado ao Cairo.

Na saída da cidademurada, ao passarmos emfrente à igreja suspensa,construída no alto do antigoportal meridional da fortaleza,dedicada à Virgem Maria econsiderada pelos antigosviajantes europeus a mais

importante do Egito, fomosabordados por um grupo deestudantes. Queriamconversar, trocaramabilidades, satisfazer suacuriosidade juvenil. No final,ganhamos diversos santinhoscom a estampa da Virgemcom o menino Jesus no colo,reproduções dos íconescoptas pintados nas igrejasdo bairro.

MUSEU EGÍPCIO DOCAIRO

Se me demorasse apenasum minuto diante de cadaobra, precisaria de novemeses para conhecer as 120

mil peças expostas no MuseuEgípcio do Cairo. Mesmoassim, o belo prédioneoclássico, construído em1902, guarda apenas umapequena parte da herançafaraônica; outro tanto jaz nosacervos de diversos museus,principalmente nos EstadosUnidos, na Inglaterra, naFrança, na Alemanha e naItália. Obeliscos egípciosmilenares enfeitam praças emParis, Londres e Nova York.

Ao longo dos séculos, o

Egito foi saqueado poraventureiros dos quatrocantos do mundo,especialmente pelos queestavam a serviço doscônsules franceses ebritânicos sediados emAlexandria, que depoisvenderam suas coleções apeso de ouro aos governanteseuropeus. “Às vezes, para opróprio bem do patrimônio, épreciso que se diga, poiscorriam o risco de seremdestruídos ou reutilizados

como matéria-prima”, afirmao escritor egípcio Robert Solé.Somente nas últimas décadaso interesse passou doscomerciantes de antigüidadespara os estudiosos dearqueologia.

Um dos mais célebrescaçadores de tesouros foi ocônsul britânico Henry Salt.Ele contratou o aventureiroitaliano Giovanni Belzoni e oenviou Tebas com a missãode transportar para Londresuma cabeça colossal do faraó

Ramsés II. Além de cumprir amissão, até entãoconsiderada impossíveldevido ao tamanhodescomunal do busto depedra, hoje no MuseuBritânico, Belzoni fez umacolheita considerável naregião. Entre 1815 e 1819,descobriu seis túmulos reais,entre os quais o do faraó SétiI, pai de Ramsés II. NaEuropa, organizou exposições,publicou relatos da viagemacrescidos de desenhos e,

como todo aventureiro que sepreza, morreu nos confins daÁfrica, liderando uma grandeexpedição em busca danascente do rio Niger. Filhode um humilde barbeiro,Belzoni acabou virandopersonagem lendário, citadocomo modelo para osestudantes, que erampresenteados com seus livrosquando obtinham boas notasno fim do ano.

Havia muito para ser vistono museu cairota, em outros

museus no interior esobretudo nos sítiosarqueológicos espalhados portodo o território,especialmente no Vale doNilo, onde estavam ostemplos, as pirâmides e amaioria das tumbas dosfaraós. Isso, para falarapenas da herança conhecida.Para Zahi Hawass, o maisimportante egiptólogo dopaís, só trinta por cento dasriquezas deixadas pelacivilização faraônica são

conhecidas; a maior partepermanece sob as areias doSaara, opinião confirmada porcontínuas descobertas.

Em 1999, um policial faziasua patrulha rotineira nosarredores da pequena cidadede Bawiti, no oásis Bahariya,quando a pata do burro emque estava montado caiu numburaco. Ao apear para ajudaro animal a livrar-se daincômoda situação, elepróprio afundou no chão,acabando por descobrir um

cemitério repleto de múmiasque jaziam intactas haviamais de dois mil anos, umadas mais espetaculares açõesdo gênero no Egito. Novasdescobertas, algumas poracaso, outras nem tanto,continuam a ocorrer e aindadeverão se prolongar pormuito tempo, um ímãirresistível que atraicontinuamente bisbilhoteirosde toda espécie, inclusivegente com a falsa desculpade escrever livros sobre o

assunto.Obviamente, não tínhamos

nove meses para visitar omuseu, nem era esse oobjetivo da expedição.Detivemo-nos um dia em seuinterior conhecendo as peçasmais importantes,especialmente asprovenientes das regiões poronde passaríamos nassemanas seguintes: aspirâmides nas proximidadesde Mênfis e do Cairo,Alexandria, os oásis no

deserto do Saara, Assuã,Luxor e o Vale dos Reis, ondepretendíamos encerrar aviagem. O museu nos dariauma prévia do queencontraríamos pela frente,sendo uma boa forma decomeçar a entender tãocomplexa civilização.

Esse era o projeto,embora nada garantisse queseria possível realizá-lo naíntegra — o Egito tem muitassurpresas, como em brevedescobriríamos. De qualquer

modo, nossa visita ao museuseguiu esse critério. A idéiaera visitá-lo novamente navolta ao Cairo,complementando asinformações colhidas ao longoda jornada. No fim, acabou setornando um belo plano,habilitando-me a colocar nosseus devidos lugares as peçasdesse enorme quebra-cabeçachamado Egito dos Faraós,um mosaico que até entãohavia chegado ao Brasilextremamente fragmentado.

Minha primeira descobertano museu foi que, no iníciodos tempos, grande parte doatual deserto do Saara eraforrada por uma fina savana.À medida que essas terrassecavam, suas populaçõesnômades iam sendoempurradas em direção auma longa, estreita eprofunda garganta escavadapelo Nilo no planaltodesértico. Ele atravessa oSaara, no sentido sul/norte,desde o lago Vitória, na

Tanzânia, até o Mediterrâneo,no nordeste da África. Emgrande parte do trajeto, o riofoi depositando uma espessacamada de rico sedimentobarrento, formando um valeespantosamente fértil.

Nos seus últimos 1.200quilômetros, uma regiãoagrícola densamentepovoada, moravam diversastribos independentes. O riofornecia também água parabeber, peixes e avesaquáticas usados na

alimentação das populaçõesribeirinhas. Em seus pântanoscresciam diversas plantas,entre as quais o papiro, maistarde utilizado na fabricaçãode uma espécie de papel.

Para esses agricultoresprimitivos, conhecer o ritmodas enchentes erafundamental. Se elas fossemfortes, provocavamdestruições; se fossem fracas,a seca dificultaria o cultivo.Para acompanhar aintensidade dessas

inundações, criaram onilômetro, escavado àsmargens do rio. Conforme aágua subia no poço, elesconseguiam determinar onível das cheias, podendoplanejar suas atividadesagrícolas.

Com o passar dos séculos,as aldeias do vale foram seunindo e acabaram formandodois grandes reinos: Shemau,conhecido como Alto Egito, aosul, governado por umsoberano identificado por

uma coroa branca, e Ta-mehu, ou Baixo Egito, aonorte, governado por umsoberano identificado poruma coroa vermelha. Além dovale, a transição para odeserto era abrupta echocante: a leste, o planaltodesértico se elevavagradualmente até uma linhadenticulada de montanhasrochosas que costeavam oMar Vermelho; a oeste, comexceção de alguns oásis, odeserto se estendia por uma

zona nua, silenciosa, varridapelo vento, coberta decascalho e areia, cobrindouma distância de mais de4.500 quilômetros até ooceano Atlântico.

Os historiadores começama contar a história dessespovos aproximadamente apartir do ano 3500 a.C., umperíodo denominado pré-dinástico, que se estendeuaté 3200. O século seguinte,entre 3200 e 3100, foiclassificado de protodinástico.

Em 3100 a.C., esses doisreinos foram unificados emtermos territoriais e políticos,originando um poderosíssimoimpério governado por umúnico soberano, mais tardedenominado faraó, um nomebíblico utilizado para designaro palácio onde ele morava eque acabou se transformandonum título de nobreza.

Os faraós governaramentre 3100 e 332 a.C., maisde 170 reis divididos emtrinta dinastias. O reino teve

três períodos de esplendor,Antigo Império, MédioImpério e Novo Império,intercalados por épocas dedistúrbios internos. As peçasdo museu estavam dispostasnessa mesma seqüênciacronológica.

Na entrada do átrio centralestava a paleta de Narmer,fundador da 1ª dinastia.Datada de 3100 a.C., elamostra o faraó usando acoroa do Alto Egito em umdos lados e a coroa do Baixo

Egito do outro lado, primeirosinal da unificação doterritório sob o poder de umúnico governante, dandoinício ao primeiro Estado dahistória humana. Narmerinstalou sua capital emMênfis, e desde então osfaraós passaram a usar acoroa dupla, vermelha ebranca. Esse período,conhecido como Arcaico, seestendeu até a 3ª dinastia,em 2650 a.C.

Por essa época, o faraó

Dsojer, da 3ª dinastia,mandou construir, numaregião chamada Saqqara, aprimeira pirâmide egípcia.Uma imagem sua, descobertaem 1924, era a estátuaimportante que se avistavano museu.

Durante o Antigo Império(2650–2150 a.C.) foramconstruídos grandes diquespara controlar as inundações,represando as correntesquando das cheiasexcessivas, responsáveis por

grandes estragos, edistribuindo água para asplantações mesmo nosperíodos de estiagem. Essasobras públicas, tanto nocampo quanto nas cidades,eram comandadas porfuncionários do Estado eexecutadas por pessoas dascomunidades locais,empregadas especialmentedurante o período dasenchentes, quando a práticada agricultura se tornavaimpossível, deixando boa

parte da população semtrabalho. O controle doscustos e do tamanho dasobras, assim como aparticipação de milhares detrabalhadores, contribuírampara uma grandecentralização de comando nasmãos do soberano.

Nessa época, os faraósconquistaram imenso poder,transformando-se na principalfigura da sociedade. Eramconsiderados deuses vivos,filhos de deuses e

representantes dos deuses naTerra, servindo deintermediários entre eles e apopulação, e em cuja honrarealizavam-se inúmeroscultos. Tinham autoridadeabsoluta sobre a sociedade econcentravam os poderespolítico e espiritual da nação.Os faraós da 4ª dinastia(2575–2465 a.C.)aproveitaram a riqueza e apopularidade e construíram asfamosas pirâmides deQuéops, Quéfren e

Miquerinos, mausoléusgigantescos onde foramenterrados junto com seuspertences.

Na ala esquerda do museuestava o que algunsconsideram sua peça maisimportante: uma estátua deQuéfren em tamanho natural,finamente talhada numdiorito preto polido. Esculpidahá mais de 4.500 anos,representava o faraó sentadonum trono e tendo a cabeçaprotegida pelas asas de

Hórus, o deus-falcão. Eraapenas uma das 23 peças queoriginalmente ladeavam ocorredor entre o templo dofaraó, no Vale do Nilo, e suapirâmide, no planalto de Gizé.Um pouco mais à frente haviauma pequena imagem deQuéops talhada em marfim,com apenas oito centímetrosde altura. Ironicamente, ela éa única representaçãoexistente do faraó quemandou construir a mais altapirâmide egípcia.

A enorme concentração depoderes nas mãos do faraóacabou gerando algunsconflitos: os grandesproprietários de terras e oschefes das diversas regiõesadministrativas em que oreino havia se dividido nãoaceitaram a situação eprocuraram diminuir ainfluência do monarca,disputas que acabaram porenfraquecer o poder políticodo Estado.

Após uma longa guerra

civil, o Egito foi mais uma vezreunificado sob o poder deum único faraó, MontuhotepII, estabelecendo uma novacapital em Tebas, ondeatualmente está a modernacidade de Luxor, dando inícioao período classificado peloshistoriadores como MédioImpério (2040–1640 a.C.).Conquistas territoriaistrouxeram nova prosperidadeeconômica e a vida voltou aoesplendor no nordeste daÁfrica.

A estátua de MontuhotepII, uma das mais importantesdo museu, que mostra o faraócom a pele negra,significando renascimento, foiencontrada casualmente peloarqueólogo britânico HowardCarter em Tebas, em 1900,quando o chão do templo ruiusob o peso do seu cavalo.

Algumas agitaçõesinternas voltaram aenfraquecer o império, o quepossibilitou, por volta de 1640a.C., a invasão dos hicsos,

povo nômade de origemasiática. Eles permaneceramno Egito durante um século,até serem expulsos pelospríncipes tebanos.

O Novo Império (1550–1070 a.C.), conhecido como aIdade de Ouro dos faraós, foimarcado por enormesconquistas territoriais, e odeus local de Tebas, Amon,começou então a recolher osfrutos do êxito retumbanteque oferecera aos reistebanos, tornando-se adorado

em todo o império. Umgrande templo em suahomenagem foi construídoem Karnak, nas cercanias dacapital. Ampliado eenriquecido por cada um dosfaraós que se sucederam noscinco séculos seguintes,Karnak se tornou o centroespiritual do Egito.

No outro lado do rio, ogrande Tutmés I se tornou oprimeiro faraó enterrado noVale dos Reis, próximo aolocal onde sua filha

Hatshepsut, a primeiramulher faraó, construiu ummagnífico templo. Paraconfundir os saqueadores, otúmulo real deixou de sercoberto por uma pirâmide,passando a ficar escondidonum labirinto de salasescavadas na montanha.

Por essa época, a força deAmon era imensa a ponto dedividir o poder com o faraó.Ele não se limitava a gerar osreis e a lhes assegurar asvitórias, pois na prática

sancionava também decisõesimportantes por intermédiodos oráculos do templo. Ossacerdotes de Amon tinhamao seu dispor uma imensariqueza, e em certosmomentos foi-lhes outorgadaautoridade sobre todo o cleronacional.

Em 1352 subiu ao tronoAmenófis IV, momento emque a nação estava em seumáximo esplendor. Com oobjetivo de alterar a relaçãoentre o rei e os deuses,

especialmente o desequilíbrioentre o faraó e Amon, ele sebaseou numa versão do velhoculto solar, que excluíatotalmente Amon e elevava orei a uma quase igualdadecom Aton, o deus-sol,adorado sob a forma do discosolar. O faraó mudou denome, passando a chamar-seAquenáton. Casado com abela e poderosa Nefertiti, suaatitude monoteísta chocou opoderoso clero tebano, e eleentrou para a história como

“o herege”.Uma rápida olhada na sala

dedicada a Aquenáton, na alanorte do museu, já erasuficiente para notar amudança provocada por suanova doutrina. As imagensdeixaram de seguir o estáticopadrão do clássico desenhoegípcio, voltando-se para umsurpreendente naturalismo. Ofaraó é representado com orosto alongado, olhosamendoados, pálpebraspesadas, queixo proeminente

e lábios carnudos. O maissurpreendente de tudo, noentanto, era uma cabeça deNefertiti. Embora inacabada,esculpida em quartzitocastanho-claro, éincrivelmente delicada esensível. Mostra uma mulherextraordinariamente bela, aocontrário das imagens dasoutras rainhas, normalmenteretratadas com feiçõesmasculinas.

Com a morte deAquenáton, sua cidade foi

destruída e um dos seussucessores, Tutancâmon,revogou a reforma religiosa.

As galerias dedicadas aTutancâmon ocupam quasemetade do segundo piso domuseu. Seu reinado não foiimportante, mas ele teve asorte de ser desenterradosomente em 1922.Preservados dos saqueadorespor estarem embaixo dagrande tumba de Ramsés VI,os milhares de itensdescobertos, especialmente

sua extraordinária máscarade ouro, agora expostos noCairo, tornaram-se um dosmais fascinantes achadosarqueológicos de todos ostempos, encantando asmultidões que diariamentepassam pelo museu.

Na mais impressionantedas salas podemos ver onzemúmias de alguns dos maisimportantes faraós, como osgrandes generais Séti I e seufilho Ramsés II, da 19ªdinastia. Eles foram os

responsáveis pela construçãodo grande átrio hipostilo emKarnak. Além de embelezarTebas, Ramsés II mandouconstruir os dois templos emAbu Simbel destinados àadoração de si próprio e à suarainha preferida, a belaNefertari, considerados atéhoje duas das obrasarquitetônicas maisespetaculares do mundo.

Foi meu primeiro contatocom uma múmia egípcia, enão seria o último. O aspecto

envelhecido e carregado demistérios desses corpos mechocou bastante, embora aexperiência nem de longe separecesse com o que euainda enfrentaria em minhasandanças pelo deserto doSaara, quando as encontrasseem circunstâncias não tãoconfortáveis.

Na saída do museu, aPedra de Roseta, utilizadapelo sábio francês Jean-François Champollion paradecifrar a escrita egípcia, era

a última peça de destaque dogrande acervo. Na verdade,uma cópia — a original estáno Museu Britânico, emLondres.

Os egípcios consideravamsua escrita hieroglífica umainvenção de Thot, o deus dasabedoria. Estudos modernoscomprovaram que ela surgiuum tanto de repente, quasepronta, por volta de 3000 a.C.Ainda não ficou esclarecidopor que nenhum indício deuma evolução gradual dos

hieróglifos chegou até nós,embora o clima seco fossefavorável à preservação deantigas experiências escritas.Na Suméria, o clima parecidogarantiu provas abundantesda evolução da escritacuneiforme durante váriosséculos antes de 3000 a.C.,data que também marca osurgimento da escritasuméria.

Os sinais pictóricosegípcios representavamimagens de pássaros, insetos

e objetos. Consideradasagrada, essa técnica deescrever era utilizada apenaspelos sacerdotes. A partir doshieróglifos, elesdesenvolveram outrossistemas de escrita, maissimples, chamados hierático,utilizado pelos escribas, edemótico, usado pelaspessoas comuns. Essa faseposteriormente evoluiu para aescrita ideográfica, o sinalgráfico começando a sugeriruma idéia relacionada ao

objeto representado. A seguirveio a escrita fonética, emque cada som tinha seupróprio símbolo.Posteriormente a escritaegípcia chegou à fasealfabética, com vinte e quatroconsoantes, suas maisantigas inscrições datando de2500 a.C. Ainda nãoconheciam a vogal, incluídamuito mais tarde pelosgregos.

O suporte da escrita era opapiro, feito de uma planta

abundante nas margens doNilo. Parecido com umapalmeira e medindo entre 2,5e três metros de altura, seuslongos talos eram cortadosem pequenos pedaços comquarenta centímetros decomprimento. Depois deretirada a casca, a polpa eraseparada em tiras, dispostasem camadas sobre umasuperfície de madeira ecruzadas entre si. Em seguidaeram umedecidas, cobertascom um pano e maceradas

com um pesado martelo, paraque soltassem uma gomaexistente nas fibras, fixando-as firmemente. Depois disso,eram colocadas juntas eesticadas dentro de um lençodobrado, quando recebiamum tratamento com gorduraanimal. Finalmente, o produtoera retirado do pano e alisadocom uma pedra polida,ficando pronta para receber aescrita sem que a tintaborrasse sua superfície.

Posteriormente vinha a

preparação do rolo, compostode vinte folhas com formatoretangular, medindo vintecentímetros de largura portrinta de altura. Elesescreviam em colunas,perpendiculares ao eixo dorolo, usando apenas a frenteda folha, o mesmo lado dassuas fibras horizontais,facilitando o trabalho dosescribas. Utilizando tintapreta para o texto e vermelhapara as palavras iniciais dosparágrafos, trabalhavam ao

ar livre, sentados e com aspernas cruzadas. Escreviamnuma mesa inclinada sobre aqual iam produzindo a tinta.Um jarro de água e doispincéis, um para cada cor,feitos de bambu,completavam seusrudimentares instrumentos.

Após a morte do últimofaraó da 20ª dinastia, em1070 a.C., os dias de glóriado Egito faraônico chegaramao fim. O país foi dividido emduas províncias: a 21ª

dinastia governou o BaixoEgito, com sua capital emTânis, no extremo nordestedo delta; no Alto Egito, opoder ficou nas mãos dosumo sacerdote de Amon.Voltaram as agitaçõesinternas, o império sefragmentou, foi invadido poroutros povos, e uma sucessãode dinastias estrangeirasgovernou o fértil Vale do Nilo:líbios, núbios, assírios epersas. Em 404 a.C., duasdinastias nativas, a 29ª e a

30ª, voltaram ao poder,governando o Egito até 343,quando mais uma vez ele foiinvadido pelos persas. Poucodepois, em 332, Alexandre, oGrande, da Macedônia, incluiuo Egito no seu impériomundial. Um dos seusgenerais, Ptolomeu, tomou opoder no Egito e fundou suaprópria dinastia, governandoaté o ano 30 a.C., quando opaís foi anexado ao ImpérioRomano.

Embora os ptolomeus

fossem macedônios gregos,assimilaram a cultura egípcia,adotando as vestimentas dosfaraós e reclassificando osdeuses locais num novopanteão grego-egípcio, alémde darem continuidade aoembelezamento do país comprédios em estilo faraônico,mandando construir novostemplos em Filae, Kom Omboe Edfu, entre outros. Elestransformaram Alexandria namaior e mais cosmopolitacidade do mundo antigo. A

última rainha da sua dinastia,Cleópatra VII, uma políticabrilhante, manteve o Egitoindependente do poderioromano aliando-se a JúlioCésar, com quem se casou eteve um filho. Quando JúlioCésar foi assassinado,Cleópatra se casou comMarco Antônio, dando-lhe trêsfilhos. Ao serem derrotadospor Otaviano, o novoimperador romano, Cleópatrae Marco Antônio suicidaram-se para não serem presos e

levados para Roma comoescravos.

Os novos senhores doEgito governaram de Roma.Construíram a fortalezaBabilônia do Egito, àsmargens do Nilo, ao norte deMênfis — a pouco mais de dezquilômetros das pirâmides deGizé — de onde passaram acontrolar a nova província doImpério. Para agradar aopovo, continuaramconstruindo templos em estilofaraônico, adorando deuses

egípcios e mantendo astradições do país, como amumificação dos mortos. Asperseguições aos pregadorescristãos, a nova religião quesurgia, foram tão rigorosasque o cristianismo nãofloresceu no Vale do Nilo.

Quando o cristianismofinalmente se tornou areligião oficial de Roma, em323, iniciou-se umacampanha para destruir todosos templos pagãos doImpério. No Egito, o estrago

arquitetônico foiespecialmente cruel,sobrando apenas os prédiosmais afastados ouparcialmente cobertos pelasareias do deserto.

No dia 24 de agosto de394, quando uma últimainscrição hieroglífica foitalhada no templo de Filae, aantiga cultura do Egito dosFaraós chegou ao seu final.

Extinguia-se um mundo.

Segunda Parte

—O mundo dos

faraós

MÊNFIS

A inexpressiva vila de Mênfisfica ao sul do Cairo, umaviagem rápida no táxi donúbio Mohamed. Havia umpequeno museu, apenas uma

sala construída sobre umagigantesca imagem de pedrade Ramsés II. Ela foraencontrada caída econservada no próprio local.Nos fundos existia um jardimcom outras estátuas menorese uma plataforma de pedraonde Ápis, o animal sagradodos egípcios, eraembalsamado antes de serenterrado no Serapeum, emSaqqara.

— Não dá para imaginar —comentei com Beto — que

este já foi um dos lugaresmais importantes do mundo.

— Não existe nada aquicapaz de lembrar uma cidade— ele concordou. Mesmoassim, como vinha fazendodesde nossa chegada ao país,não parou um minuto de tirarfotos.

Mênfis foi a capital políticado Egito dos Faraós durante amaior parte do tempo,enquanto Tebas, no sul,permanecia como capitalreligiosa, onde eram

realizadas as grandescerimônias. Construída porvolta de 3100 a.C. porNarmer, quando da unificaçãodo Alto e do Baixo Egito, elaficava na fronteira entre osdois antigos reinos, o pontoestratégico onde o Vale doNilo se transforma no grandedelta.

Uma das maiores cidadesde sua época, abrigavapalácios, jardins e magníficostemplos, como o dedicado aoseu deus criador, Ptah. No

século V a.C., o viajante ehistoriador grego Heródoto adescreveu como “uma cidadepróspera e um centrocosmopolita”.

A maioria da populaçãomorava em casinhas feitas dejunco, madeira e barro,construídas nos locais maiselevados para não serematingidas pelas enchentes.Eram simples, geralmentecom uma única divisão equase sem móveis. Serviampara dar abrigo nas noites

frias e proteger do solinclemente e das terríveistempestades de areia. Nasépocas de muito calor, asfamílias procuravam locaisainda mais elevados paratomar ar fresco e fugir domormaço dentro das suasdesconfortáveis moradias.

As habitações possuíamapenas algumas esteiras,poucos utensílios de cozinha ealguns vasos de argila. Comonão havia talheres, osmoradores comiam com as

mãos. A alimentação incluíapão, cebola, alho, feijão,lentilhas, rabanetes epepinos. O peixe, seco econservado, era consumidomuitas vezes com pão ecerveja não-fermentada,constituindo parte importanteda alimentação. Eles sócomiam carnes e frutas nosdias de festa. Utilizavamarados puxados por bois paraplantar trigo, algodão, linho,cevada, gergelim, legumes,frutas e oliveiras. Ao redor

das casas faziam pomares ehortas, cultivavam uvas ecriavam carneiros. As casasdos artesãos eram bemmelhores que as doscamponeses.

Os ricos viviam emmoradias confortáveis, feitascom tijolo cru, bem decoradase mobiliadas com camas,mesas e cadeiras, e osbancos tinham assentos decouro ou de palha. Além dosalimentos comuns,consumiam frutas, queijos,

carnes de animais domésticose selvagens e tomavam vinhode tâmara, uma bebida muitopopular.

Em suas atividades decaça e pesca no Nilo,navegavam em pequenas efrágeis falucas, embarcaçõesfeitas de feixes de papirosatados. Os pescadorestrabalhavam em grupos eutilizavam enormes redes. Osnobres, porém, pescavamapenas por diversão, com oauxílio de lanças. Os mais

jovens costumavam sair embigas: iam ao rio pescar,apanhar aves ou caçarhipopótamos e crocodilos.

Os camponeses e artesãosvestiam-se apenas com umpedaço de tecido, amarradoem forma de tanga em voltada cintura. As mulheresusavam uma túnica longa eos meninos geralmenteandavam nus. Os ricosvestiam trajes maisrequintados, saiotespregueados, e suas mulheres,

vestidos bordados comcontas. Nas cerimônias, tantoos homens quanto asmulheres usavam pesadasperucas negras. Além disso,independentemente da idadee do sexo, os egípciosgostavam de usar imensasjóias: tiaras, brincos, colares,anéis, braceletes e pulseirasde ouro, prata, pedrassemipreciosas, contas devidro, conchas ou pequenaspedras polidas de coresbrilhantes.

A religião e assuperstições popularesdesempenhavam papelimportante na sociedadeegípcia, regulando todos osaspectos da vida e da morte.Havia cerimônias paracelebrar os acontecimentosindividuais, como nascimento,casamento e morte, e oscoletivos, eventos queenvolviam toda acomunidade, como astradicionais festas nas épocasde colheitas. A religião

influenciou também asmanifestações artísticas,voltadas especialmente paraa glorificação dos deuses edos faraós, seusrepresentantes na Terra. Asesculturas e as pinturasretratavam a figura humanasempre com a cabeça e aspernas de perfil, enquanto otronco e os olhos erammostrados de frente.

Os antigos egípciosacreditavam numa vida apósa morte e no retorno do

espírito ao corpo. Conforme aposição social do indivíduo esua riqueza, o túmulo podiaser um simples buraco narocha, uma seqüência decâmaras escavadas namontanha ou mesmo umapirâmide, todos construídosna orla do deserto arenoso,para garantir a preservaçãodas múmias. Para o jazigolevavam livros (essenciaispara conhecerem os rituais depassagem), alimentos,objetos de uso diário e as

riquezas pessoais. Por cruelironia, esses tesouros, quedeveriam servir para auxiliá-los na eternidade, foram osresponsáveis pelas violaçõesdas sepulturas por ladrões decemitérios ao longo dosséculos.

As tumbas eramdecoradas com pinturasrepresentando cenascotidianas de suas vidasterrenas, os futuros encontroscom os deuses e a próximavida feliz que esperavam

viver, acompanhadas pordescrições hieroglíficas.Acreditavam que, agindoassim, garantiam o confortona vida após a morte, pois osafrescos, relevos e imagens,mais do que meras peçasilustrativas, possuíam o domde transformar em realidadeo que simbolizavamfigurativamente: quanto maisperfeitos, maiores as chancesde fazerem existir aquilo querepresentavam. A maior partedo nosso conhecimento sobre

essa maravilhosa civilizaçãovem da análise das pinturas,dos textos e objetosencontrados nos sepulcros.

Os egípcios cultuavamnumerosos deuses, comfunções e aspectos variados,normalmente representadospor formas humanas comcabeças de animais. Algunseram cultuados em todo oterritório e outros adoradosapenas em determinadoslugares. Entre os deuses maispopulares estavam Osíris e

Ísis, e o filho do casal, Hórus.O faraó era a encarnação

de Hórus, o deus vivo quegovernava a Terra. Esse reidivino era o elemento maisimportante da sociedade;seus atos asseguravam apreservação da ordem erecordá-los provava a largaduração da sua eficácia.Quando morria, davam-lheum templo onde era adoradocomo qualquer outro deus.Esses monumentosretratavam um mundo

ordenado de modointemporal, no qual o reiconfraternizava com os outrosdeuses, recebia as suasbênçãos e assegurava o seubem-estar.

Abaixo do faraó estavamdiversos grupos sociais:nobres, sacerdotes, escribas,soldados, artesãos,camponeses e escravos. A coramarelada com que a peledas mulheres de todas asclasses era retratada naspinturas no interior dos

túmulos sugeria que elas seexpunham ao sol bem menosque os homens, pintados coma pele avermelhada.

Aos nobres, donos degrandes propriedades, eramreservados os principaispostos do exército, alijandoos soldados profissionais daspatentes de comando. Ossacerdotes enriqueciamporque ficavam com parte dasoferendas feitas pelapopulação aos deuses, alémde serem dispensados do

pagamento de impostos.Eram também proprietáriosde muitas terras e gozavamde grande prestígio devido àssuas funções religiosas, poisnos templos elesrepresentavam o faraó,impossibilitado de estar emtodos os lugares ao mesmotempo.

Os escribas, quedominavam a difícil escritaegípcia, encarregavam-se dacobrança dos impostos, daorganização das leis e dos

decretos e da fiscalização daatividade econômica emgeral. Os artesãos exerciamas mais diversas profissões:pedreiros, carpinteiros,desenhistas, escultores,pintores, tecelões, ourives...Muitas das suas atividadeseram realizadas nas grandesobras públicas, como templos,cemitérios e palácios.

Os camponeses formavama grande maioria dapopulação. Plantavamespontaneamente nas

propriedades do faraó, porconsiderá-lo um deus, e nasterras dos sacerdotes, ondetinham direito a uma pequenaparcela dos produtos colhidos.Além disso, trabalhavam naconstrução dos diques ecanais de irrigação. Nosperíodos das cheias, eramdeslocados para a construçãodos palácios, complexosfunerários e enormestemplos.

Os escravos, na maioriaprisioneiros de guerra, eram

submetidos a vários tipos detrabalho. Tanto podiamplantar nas terraspertencentes aos temploscomo executar tarefasdomésticas. Camponeses eescravos muitas vezes seconfundiam, sobretudo pelacondição semelhante de vida.

Embora nada do esplendorde Mênfis tivesse sobrevivido,sua importância podia seravaliada pela sua necrópole,repleta de pirâmides reais,riquíssimos túmulos de

nobres, altos funcionários,generais e animais sagrados.Essa cidade dos mortos, quetinha Saqqara como centro,abrangia uma área de 35quilômetros entre o vale e odeserto, desde o platô deGisé, no norte, até Dachur, nosul.

Eu gostaria de terconhecido Mênfis em suaépoca de fausto, mas agoranos detivemos pouco mais deuma hora no vilarejo.

Voltamos ao táxi de

Mohamed e partimos paraAbu Sir, o primeiro complexode pirâmides que visitaríamosna necrópole de Mênfis, umapequena amostra do que nosaguardavam os dias seguintesno interior do país. Nossomotorista núbio estacionouseu carro à sombra de umagrande palmeira, onde ficarianos esperando, e lá fomosnós em direção à pequenaesplanada.

O bauab postado naentrada do sítio arqueológico

nos pediu sessenta librascomo taxa para ingressar nolocal. Ele tinha um assistenteque falava um pouco deinglês e nos serviu deintérprete. Além deles, outrosdois caras estavamencostados no portão.

— Pagamos cinco librascada um — eu disse.

Ele baixou para vinte.— Dez — ofereci.Ele explicou que o lugar

estava fechado e eu deveriapagar 20 libras para ele fazer

de conta que não nos viuentrar.

— Se está fechado —respondi —, vamos embora.

Dei-lhe as costas e o Betome acompanhou em direçãoao táxi. O bauab veiogritando, dizendo quepoderíamos entrar pelas dezlibras oferecidas.

Pagamos.Logo que iniciamos a

subida em direção àspirâmides, apareceu um outrosujeito se intitulando inspetor

e dizendo que precisávamospagar uma taxa extra parafilmar. Voltei e pedi meudinheiro ao bauab. Fui tãoincisivo que ele me devolveuas libras com cara de choro.Disse que iríamos embora, efomos caminhando emdireção ao portão. Ele veionovamente atrás de nós,gritando que poderíamosfilmar à vontade sem pagarnenhuma taxa extra. Dei-lhenovamente as vinte libras evoltamos para visitar o sítio.

Beto acompanhou anegociação um poucoconstrangido. Até essemomento eu havia notadoque meu companheiro deviagem não era muitoeconômico. Se continuassegastando da forma comovinha fazendo, logo estourariaseu orçamento. Viajávamoscom patrocinadores pessoaise cada um tinha o seu própriodinheiro, mas eu havia feitoum planejamento inicial esobreviver dentro dele fazia

parte do desafio quedecidíramos enfrentar. Eu já ohavia alertado sobre essefato, mas pouco adiantara.Agora, vendo como se davamas negociações na prática, eleentrou no esquema daaventura, e a partir dessemomento passou a ser bemmais econômico do que eu,muitas vezes deixando-meencabulado diante daimpetuosidade das suasbarganhas.

Touché!

Abu Sir não era grandecoisa. Valeu apenas portermos subido numa daspirâmides e fotografado oplatô de Gizé à distância.Além disso, olhando em volta,podíamos avistar dez dasdezenas de pirâmidesconstruídas no Egito.

Quando voltamos ao táxi,Mohamed nos disse que obauab havia reclamado dopequeno baquiche.

— Dividido por cinco,disseram, não dá quase nada

para cada um — contou omotorista, acrescentando: —Eu lhes dei mais dez libras.

Não sei quem estavaenrolando quem, mas eu nãoiria mais brigar por 1,5 dólar.No final do dia, ao pagarpelos serviços do núbio,acrescentei as dez libras. Maiso seu próprio baquiche.

Continuamos para o sulaté o sítio arqueológico deSaqqara, ponto central docemitério que durante maisde 3.500 anos recebeu os

mortos de Mênfis. Apesar dasua importância histórica, olocal permaneceu anônimoaté a metade do século XIX,quando o egiptologistafrancês Auguste Mariettedescobriu a entrada para oSerapeum, uma rede degalerias e túneis subterrâneosconstruídos como tumbaspara as múmias do sagradoboi Ápis, uma dasencarnações do deus Ptah.

O próprio complexofunerário do faraó Dsojer, da

3ª dinastia, ao qual pertencea famosa pirâmideescalonada, só foi descobertoem 1924, estando ainda emprocesso de restauração.

Nos primórdios dacivilização egípcia não haviadiferença entre os mortos.Tanto os reis como seussúditos eram enterrados emcâmaras subterrâneascobertas com uma grossa lajeretangular construída comtijolo cru, cujo acesso dava-sepor uma entrada encimada

por uma estela funerária,coluna de pedra na qual eramgravados o nome e os títulosdo falecido.

O iluminado Dsojer foi oprimeiro faraó a assumir-secomo uma personificaçãohumana do sagrado e seutúmulo deveria representaressa grandeza. Iniciado porvolta de 2650 a.C. peloarquiteto Imhotep, mais tardedeificado por sua genialidade,esse mausoléu modificou acultura funerária do Egito,

conferindo-lhe os contornosaos quais ainda a associamos.

Imhotep começou aconstrução do jazigo realdentro da tradição original,embora ele fosse bem maisambicioso que as sepulturasaté então concebidas. Aprincípio, o inventivoarquiteto pensou em construiruma enorme mastaba no altode um poço profundo, ligadoa uma grande criptasubterrânea. A idéia foiamadurecendo e se tornando

mais ambiciosa, até que eledecidiu dar uma grandevisibilidade ao seumonumento.

Logo que a mastabaesteve concluída, Imhotepresolveu colocar sobre elaoutra camada de pedra, damesma altura que a primeira,porém com um perímetromenor, formando um grandedegrau entre as duasplataformas. À medida queele foi dominando essatécnica, principalmente a

capacidade de colocargigantescos blocos de pedrasobre outros ainda maiores, acobertura da tumba foiganhando camadasadicionais, cada uma menorque a anterior, até formarseis grandes degraus, umaestrutura piramidal comsessenta metros de altura. Oresultado final configurou-seglorioso, o primeiromonumento de pedra doEgito.

Caminhamos até o lado

norte da pirâmide, onde haviaa serdab, uma pequenacâmara contendo umaestátua em tamanho naturaldo faraó, com duas aberturasna altura dos seus olhos,necessária para a alma deDsojer se comunicar com omundo exterior. A serdabficava ao nível do chão, e mebastou subir numa pedra paraconseguir olhar para dentroda câmara, um verdadeirotête-à-tête com a imagemsagrada do faraó. Era uma

réplica da original, que eu játinha visto no Museu Egípciodo Cairo, mas a sensação foiestranha demais — era comoespiar o passado milenar.

Ao lado da serdab ficava aentrada da pirâmide, seisquilômetros de labirintosescavados na rocha ligandoas diversas galerias, entre asquais a câmara mortuária.Infelizmente havia risco dedesabamento e, apesar dosmeus apelos, a permissãopara ingressar no local nos foi

negada.Ironicamente, o túmulo de

Imhotep nunca foi localizado.Esse homem fora do comuminventou, ao mesmo tempo,um novo estilo funerário,criando a pirâmide comomausoléu, e a arquitetura depedra, dando às sepulturasdos faraós a consistênciaimortal tão desejada. Alémdisso, com suas obrasindestrutíveis, Imhotep foi umdos grandes responsáveispela preservação da cultura

egípcia, fazendo-a chegar atéos dias de hoje.

A necrópole de Saqqaraera imensa. O calor dodeserto estava insuportável eas distâncias queprecisávamos percorrer entreum monumento e outro eramenormes. Mohamed noslevava em seu velho táxi paraum lado e outro; mesmoassim ainda nos sobravamgrandes caminhadas pelaareia fofa com o sol a pino,torrando nossas cabeças. Era

desagradável, mas foi graçasa esse clima seco e quenteque tantos resquícios dacultura faraônica chegaramaté nós.

Após bisbilhotar diversaspirâmides, tumbas e outrosmonumentos, entre os quaisas ruínas do mosteiro de SãoJeremias, construído noséculo V e destruído pelosmuçulmanos no século X,voltamos ao táxi econtinuamos nossa viagempara o sul em direção a

Dachur, um riquíssimo sítioarqueológico dentro de umaárea militar cujo acesso só foiaberto aos visitantesestrangeiros em 1996.

O faraó Sneferu, fundadorda 4ª dinastia — pai deQuéops —, ficou conhecidocomo o maior construtor depirâmides do Egito. Seusarquitetos se dedicaram tantoao assunto que acabaramdando aos túmulos faraônicosa forma que conhecemosatualmente: pirâmides

geometricamente perfeitas.Visitamos primeiro a

curiosa pirâmide Curvada.Seus construtores decidiramcobrir os vãos deixados entreos degraus, dando às suasparedes externas uma formalisa, como deveria ser a figurageométrica da pirâmide. Numdeterminado momento, noentanto, sentindo que aestrutura não suportaria opeso excessivo dorevestimento, elesdiminuíram bruscamente sua

inclinação, colocando aspedras na horizontal,deixando seu vérticeachatado.

A grande inovação foi oseu revestimento com pedracalcária. Apesar da suasilhueta “aleijada” e do fatode os guardas montados emcamelos estarem vigiandoatentamente nossos passos,pedi ao Beto para disfarçar efotografá-la com carinho, poissuas paredes continuavamlisas, algo raro na atualidade.

Com o passar do tempo,todas as pirâmides tiveramesse revestimento arrancadopara servir de material para aconstrução de outras obras,deixando-as novamente comum aspecto escalonado.

Mas os arquitetos deSneferu não desistiram. Aobra seguinte, conhecidacomo pirâmide Vermelha, foiprojetada num ângulo menor,o mesmo da parte superior dapirâmide Curvada. Suaestrutura suportou o

revestimento sem problemas,tornando-se o primeiro dessesmonumentos a atingir aelevação de uma pirâmideperfeita, possibilitando, maistarde, a construção docolosso de Quéops, no platôde Gizé.

A ÚLTIMA MARAVILHADO MUNDO

As três famosas pirâmidesde Gizé, construídas durantea 4ª dinastia, no século XXVIa.C., mereciam uma atenção

especial. Por isso, reservamosdois dias para visitá-las,dispensando nosso taxistanúbio.

No século II a C., o poetagrego Sidon elegeu as setemaravilhas do mundo entãoconhecido pelo seu povo,entre elas as três pirâmidesem Gizé. E não sem razão. Ointerior de cada uma delas,com seus corredores, aspassagens, os dutos deventilação, a grande galeria ea câmara do faraó, revelava

toda a capacidade inventivado povo egípcio. Como tudoisso foi construído ainda é umgrande mistério. Supõe-seque teriam erguido rampas decascalho e areia. Depois detalhados e colocados sobretroncos roliços, os blocos depedra teriam sido arrastadospor grupos de homens rampaacima, com o auxílio decordas. Há ainda alguns quecreditam sua construção aseres extraterrestres.

Era difícil saber como

essas gigantescas pedrashaviam sido colocadas lado alado e umas sobre as outras.Eram quase da minha altura esó imaginar movê-las já medava calafrios. Como foramtransportadas pelo rio até oplanalto? Esse enigma mecorroía mais do que a esfinge,um pouco mais abaixo, entreas pirâmides e o Nilo.

Quarenta e seis séculosapós sua construção,continuam a ser umespetáculo impressionante.

Elas integram um grupo denove monumentos,distribuídos pela esplanada,em ordem crescente detamanho: Miquerinos,Quéfren e Quéops, a maior detodas, também chamada deGrande Pirâmide.

Quando a GrandePirâmide, a mais velha dastrês e a maior do Egito, foiconcluída, ela media na base250 metros de cada lado, e146 de altura. Após todo essetempo, sua altura foi reduzida

em apenas nove metros. Emsua construção foramempregados 2,3 milhões deblocos de pedra calcária, amaior parte deles com pesomédio de 2,5 toneladas.Alguns blocos, no entanto,chegavam a pesar setentatoneladas, trabalho de cemmil homens durante vinteanos.

A um reduzido número depessoas era permitido entrarem seu interior, o que nosobrigou a chegar bem

cedinho, pois as autorizações,por sinal caríssimas, eramfornecidas apenas aosprimeiros da fila. E tão difícilquanto consegui-las eralivrar-nos dos vendedoresambulantes, dos charreteiros,cavaleiros e cameleirosoferecendo transporte dentrodo parque. Como acontecenos sítios turísticos em todosos países pobres, osachacadores infernizavam avida dos deslumbradosvisitantes, levando os mais

nervosos à exasperação.Primeiro entrei eu, depois

o Beto, pois era proibidoingressar com qualquerequipamento fotográfico.

Subi uns cinco metros pelolado externo da face norte eingressei na pirâmide poruma abertura do tamanho deuma porta normal. Ela davapara um corredor em declive,onde eu podia permanecerem pé, observando airregularidade das suasparedes, uma prova de que

esse acesso não fazia partedo projeto original. Vintemetros adiante o corredorestava bloqueado. Casopudesse continuar, seguiriapor mais oitenta metros atéuma sala inacabada, trintametros abaixo do nível dosolo, uma armadilha paradesviar os indesejados queporventura conseguissementrar no mausoléu.

No ponto em que essefalso corredor estavaobstruído iniciava uma rampa

íngreme, forrada com umassoalho de madeira compequenos frisos, para aspessoas não resvalarem, ecorrimãos nos dois lados. Elatinha quarenta metros decomprimento e um metro delargura. Seu teto, com apenas1,3 metro, era muito baixo,obrigando-me a subiragachado, uma posição bemdesconfortável. Por causadessa seção, os claustrófobosnão se aventuram pelointerior da pirâmide. Essa

rampa me levou à GrandeGaleria, uma magníficaescadaria com 47 metros decomprimento e 8,5 de altura.

Olhando pelo seu ladointerno, protegido dasintempéries ao longo dosmilênios, via-se que as pedrasutilizadas na obra haviamsido talhadas com talprecisão, ficando tão bemajustadas umas às outras, ecom uma superfície feita depedra calcária tão bem polidae de acabamento tão

perfeito, que era quaseimpossível notar as suasjunções.

No final da Grande Galeriaprecisei agachar-menovamente para cruzar umapassagem com dois metrosde comprimento e o teto daaltura da minha cintura,exatamente do tamanho deum bloco de pedra. Ela melevou a uma pequenaantecâmara, conhecida comoCâmara da Rainha. Cruzeioutra passagem da mesma

altura e finalmente saí naCâmara do Rei, onde foraenterrado o faraó.Infelizmente, havia apenas ocenotáfio onde fora colocadoo seu caixão há mais de4.500 anos. A maioria daspirâmides havia sidosaqueada ainda naAntiguidade.

Quem havia entrado juntocomigo estava apressado, elogo fiquei sozinho na salamortuária, uma sensaçãoextraordinária de quietude e

isolamento. O salãoretangular era pequeno, compouco mais de cinco metrosde largura por dez decomprimento e um alto pé-direito. Olhando para os ladose para cima, apesar da poucailuminação artificial, podia-senotar o tamanho descomunaldas pedras utilizadas.

Diferentemente do restoda construção, a Câmara doRei fora construída comblocos negros de granito, umasegurança extra. O teto era

formado por nove grandesvigas de mais de um metrode largura, sobre as quais seapoiavam outras quatro,também de granito,separadas por vãosuniformes, para que asquatrocentas toneladas depedra do vértice da pirâmidefossem distribuídas por igualsobre sua estrutura interna.Embora o local estivesse bemno centro da construção,dutos laterais de ventilação,abertos na ocasião da

construção do mausoléu,mantinham o local seco ebem arejado.

Encostei-me numa dasparedes e aos poucos fuiescorregando, ficando decócoras com os braçosenlaçando as pernas, acabeça apoiada nos joelhos.Os corredores não haviam melevado apenas para dentro dapirâmide, mas metransportado para um outromundo cheio de labirintos,incompreensível para mim.

Tentei imaginar o significadodisso tudo: o isolamento dasala, o sarcófago de pedravazio na minha frente, otamanho da pirâmide, aépoca da sua construção, arazão de ser de tão magníficaedificação.

Pensar que alguns homensforam capazes de idealizaralgo tão especial me faziaimaginar a espécie humanadotada de extraordináriacapacidade criadora. Mas, aomesmo tempo, era preciso

lembrar que, assim comoexistiram humanos capazesde tal proeza, existiramtambém humanos capazes deviolar tamanha simbologiapara roubar as riquezasmateriais em seu interior.Ficou intacto somente o quenão pôde ser carregado.

Ou será que só ossaqueadores eram humanos?

Saí um poucodesnorteado. Com as mãosnos bolsos e chutando aspedrinhas do chão, caminhei

a esmo pelo parque em buscado eixo original da minhavida, tão insignificante dianteda extraordinária sensaçãoque acabara de experimentar.

Além das outras pirâmidese da esfinge, existia em Gizéalgo ainda mais fantástico ecuja existência eu ignorava: obarco solar do faraó. Elehavia sido utilizado paracarregar a múmia de Quéopsatravés do Nilo até a GrandePirâmide. Após a cerimôniafúnebre fora enterrado, para

mais tarde transportar a almado rei até o outro mundo, aoencontro dos deuses. Existiamcinco desses barcos, massomente um ficou preservado.Descoberto somente em1954, num grande valoprotegido por gigantescaslajes de pedra ao lado dapirâmide, ele foicuidadosamente restaurado.Sobre esse lugar foiconstruído um pequenomuseu para abrigá-lo,mantendo-o o mais próximo

possível do seu local deorigem, apenas alguns metrosacima do lugar onde foradesenterrado. Do mesmoponto podia-se ver o valovazio e, um pouco maisacima, o magnífico barco.

Se olhar para as pedrasdas pirâmides e imaginar queelas foram colocadas nestelocal há quase cinco milêniosjá me ouriçava os sentidos,ver um barco de madeira coma mesma idade era aindamais excitante. Feito de

cedro, ele tinha o madeiramecompleto: convés, proa epopa elevados, os remosestavam no lugar e os abrigospara o faraó e seusbarqueiros permaneciamintactos. Fiquei com aimpressão de que, se fossecolocado no rio, sairianavegando.

Era inacreditável, mas,sem dúvida, eu estava diantedo barco mais antigo domundo, construído trezeséculos antes de Deus

entregar a Moisés as tábuascom os Dez Mandamentos.Quando a Arca da Aliança foiconstruída, ao pé do MonteSinai, o barco de madeira dofaraó Quéops já tinha mais demil anos de idade, umaexistência digna de serreverenciada. Essa sensaçãode volta no tempo começou aemergir aos poucos, à medidaque eu ia me inteirando dosdetalhes da curiosaembarcação, imaginando suahistória, a forma como foi

utilizada e, em especial, comoo faraó esperava voltar a usá-la no futuro. Dava o quepensar...

Essas especulaçõestraziam consigo uma pitadade nostalgia, um incômodosentimento de frustração.Parecia-me ter entradoatrasado em cena, quando aparte mais interessante dapeça já havia se desenrolado.A história da humanidade eramuito longa e o meu papel sereduzia a uma pontinha num

ato intermediário; sequerconhecia todo o roteiro.Limitava-me à consciência dehaver integrado o elenco deforma involuntária, numdeterminado momento, masnão tinha a menor idéia dequando deveria voltar aosbastidores, sair de cena. Parafalar a verdade, nem melembrava de como eram osbastidores.

Sobrava-me apenas a féde que por certo havia umroteirista e, antes de as

cortinas se fecharem porcompleto, todos os atoresregressariam ao palco,reunidos num ato final,independentemente daimportância de cadapersonagem, para osaplausos, ou as vaias, na horado julgamento final pelodiretor.

Na saída do pequenoprédio encontrei o maiorbafafá, uma volta abrupta aopresente: um policial passouexigindo dinheiro dos

ambulantes amontoados nolocal por onde saíam osturistas. Os camelôs nãoqueriam colaborar e o guarda,enfurecido, puxou o revólvere com a outra mão baixou ocacete em meio mundo. Beto,que estava me esperando dolado de fora, procurou abrigona portaria do museu,receoso de que acabassesobrando para ele, pois atoda hora aparecia alguémlhe pedindo as licenças porestar fotografando dentro do

parque. Ele tinha as licenças:para a máquina fotográfica,para a filmadora, para omicrofone, para o tripé... masisso não o livraria dobaquiche.

Ainda tivemos um poucode sol para admirar a esfinge,esse monstro lendário quepululava em todos os meuslivros escolares, parecendoquerer saltar das páginascoloridas e ganhar vidaprópria. Muito sono perdiimaginando que, se algum dia

passasse diante dela e nãoconseguisse decifrar seusenigmas, eu seria cruelmentedevorado. Conhecida pelosegípcios como Abu al-Hol, Paido Terror, foi batizada pelosgregos de esfinge por lembraro mito do leão com cabeça demulher que lançava desafiosaos viajantes e fulminavaaqueles que não conseguiamresponder-lheadequadamente.

Sobre seu encontro com aesfinge, escreveu o fabuloso

escritor-viajante Pierre Loti:“De repente, seu rostoapareceu, mais duro emumificado sob a frieza doluar, um grande rostomisterioso, soberbamenteposto lá em cima, contra océu, a olhar por incontáveisséculos o horizonte vazio. Eela sorria desdenhosa, apesardas mutilações do tempo quelhe deram o nariz chato dascaveiras... E, aos poucos,emanava dela um fascínioterrível. Fiquei hipnotizado

por aquele olhar fixo, numenlevo de imobilidade,silêncio e nada...”

Esculpida diretamentenum monte calcário havia4.500 anos antes, o colossode pedra media 72 metros decomprimento por vinte dealtura. Fazia parte docomplexo funerário do faraóQuéfren, representando suaimagem. Quando a necrópoledo platô de Gizé foi deixadade lado pelos faraós, aesfinge passou por séculos de

abandono, sofrendo asconseqüências dasintempéries do deserto.Restaurada pelo faraó TutmésIV, em 1400 a.C., passou aser adorada como o deusHoremakhet. Em 1798,Napoleão a encontroupraticamente coberta, apenasparte da cabeça emergindoda areia.

Talvez ela fosse maisenigmática parcialmenteenterrada no deserto, suafigura sobrenatural aguçando

a curiosidade dos que aencontravam pela primeiravez. Para mim, vê-la assim defrente... do lado esquerdo...do lado direito... de baixo... epor trás, longe... perto... epor fim postar-me à suasombra, foi como se umfascínio tivesse sido desfeito.Não a decifrei, nem ela medestruiu. Saí pensando que agrande esfinge, aquela querealmente a todos atormenta,ainda continua sonolentadentro de cada um de nós.

Voltamos para a cidadetarde da noite num Passatfabricado no Brasil em 1978.Seu esperto proprietário,também chamado Mohamed,como quase todo mundo noCairo, ficava postado na saídadas pirâmides à espreita dosretardatários, seresembasbacados que se haviamdemorado além da contaadmirando todos os detalhesdas obras e, ao sair,descobriam que não haviamais transporte público para

o centro. Mesmo assim,conseguimos barganhar umpreço razoável com ele, noque fomos ajudados pelo fatode sermos brasileiros, do paísonde seu adorado carro haviasido fabricado. Acrescido deum pequeno baquiche, claro.

Como recompensa pelocompanheirismo do Betonesses dias de árduascaminhadas sob o escaldantesol do nordeste da África,convidei-o para jantar noMcDonald’s, onde comemos

McFalafel à base de taameya.

Terceira Parte

—Alexandria

NA CIDADE DE

CLEÓPATRA

Perguntei ao taxista de ruase ele sabia onde ficava aestação ferroviária Ramsés.Uma pergunta óbvia,

qualquer taxista deveriaconhecê-la, era a maior dacidade. Minha verdadeiraintenção era saber se o carafalava inglês, ou pelo menosentendia. Ele fez um sinalafirmativo com a cabeça ejogamos nossas mochilas nobanco de trás. Poucosminutos depois ele parou emfrente ao hotel RamsésHilton. O maldito haviaentendido apenas a palavraRamsés e, vendo nossascaras de estrangeiros,

imaginou que estávamos àprocura do tal hotel. Setivesse reparado na nossabagagem, teria visto que nãotínhamos jeito de quempagava 230 dólares apenaspara tomar um banho edormir uma noite.

Desci do táxi e ataqueialgumas pessoas na calçadaaté encontrar alguém capazde entender inglês e explicarao motorista aondedesejávamos ir.

— Mahattat Ramsés —

disse o sujeito ao taxista.A h , mahattat? Ora, essa

palavra era uma das poucasque eu conhecia.

Paguei-lhe o valorinformado na recepção donosso hotel e ele ficoufurioso, alegando — emperfeito inglês! — ter feitouma volta enorme ao passarno Hilton.

— Dane-se — gritei.Eu havia pedido que nos

levasse à estação de trem e opreço da corrida estava

correto. Ninguém o mandoupassar em hotel algum.Duvidava do seu prejuízo, avolta nem foi tão grandeassim. Mas se teve prejuízo,bem feito; o golpe não deucerto.

— Aqui nesta cidade,quem menos corre anda detáxi — comentei com Beto.

Na estação, pedi duaspassagens para Alexandria naprimeira classe do Turbini, ummoderno trem direto queatravessaria o delta e nos

levaria em pouco mais deduas horas até oMediterrâneo. Depois daminha terrível experiênciacom os trens populares naÍndia dois anos antes,recusava-me a embarcar emqualquer trem sem primeiraclasse, embora isso muitasvezes pouco significasse. Ovalor correto da passagemera setenta libras, mas ofuncionário da ferrovia mecobrou cem, imaginando queeu não entendia os curiosos

números locais.— O senhor me cobrou um

valor errado — reclamei. —Aqui no bilhete está escritosetenta — eu disse,mostrando-lhe o campo ondeaparecia o preço dapassagem (um V com umponto em forma de losango,em pé, ao lado), para ele verque eu conhecia a grafia dosnúmeros.

Com a maior má vontade,ele cancelou o bilhete eemitiu outro, cobrando-me as

setenta libras. Saí do guichêcom o peito estufado desatisfação, feliz com a minhavivacidade.

— Esses pilantras achamque vão me passar a pernaassim tão fácil! — disse paraBeto quando voltei com aspassagens.

Ainda tínhamos tempo,fomos tomar um suco e daruma olhada nas capas dasrevistas e nos jornaisexpostos num quiosquedentro da estação,

especialmente do Al-Ahram, oprincipal diário do mundoárabe. Distraímo-nos e quaseperdemos o trem olhando asfotos do jornal, cujo textonada entendíamos. Mas eradivertido ver as fotografiaspublicadas na seçãointernacional e tentarimaginar o que estavaacontecendo no resto domundo.

— A sensação de nãosaber ler é terrível —comentei com Beto, largando

o jornal na banca.Meu amigo estava às

voltas com algumas latinhasde Coca-Cola light. Ele temianão encontrar mais o seurefrigerante predileto quandosaíssemos do Cairo, e tratoulogo de fazer um pequenoestoque.

Quando fomos embarcar,não encontramos o nossovagão. Pergunta daqui,pergunta dali, subimos com oTurbini em movimento efomos ter com o chefe do

trem.— Os assentos de vocês

ficam no vagão três — eleexplicou.

— Eu sei que ficam novagão três — respondi, poiseu conhecia os númerosestampados no bilhete. —Acontece que não estamoslocalizando o vagão três.

— Fica lá na frente — elerespondeu. — Na segundaclasse.

— Segunda classe?O bilheteiro me enganara

da única maneira que eu nãoconseguiria descobrir: jamaispoderia saber que o vagãotrês não pertencia à primeiraclasse do trem. Assim,mesmo reclamando, ele meroubou vinte libras.

Fiquei indignado, paradizer o mínimo.

Não pelo valor, poucomais de três dólares,tampouco por ter sidopassado para trás, issoacontecia às vezes. Asvigarices a que nos expomos

numa viagem como essa sãotantas, e tão complexas, queé impossível evitar todas. Masminha revolta era pelo fatode o cara ter utilizado umgolpe tão baixo para meespoliar.

— Puxa! — reclamei com oBeto. — Assim não vale, nãotem a menor graça roubaralguém que não tem comosaber que está sendoroubado, sem chance de sedefender. Esses larápiosprecisam ter um pouco mais

de ética.Pensei em rogar-lhe uma

praga, jogar-lhe uma grandemaldição vingativa, daquelasde enrubescer a própriamúmia, mas desisti.Provavelmente não fariaefeito sobre ele, servindoapenas para atormentar-me aconsciência nos diasseguintes, quando osmomentos agradáveis daviagem me fizessem esqueceros infortúnios deixados paratrás.

Relaxamos.Até que a segunda classe

era bem confortável. Nossovagão era limpo, tinha ar-condicionado e serviço debordo. Na verdade, um luxo!Percorrendo a composiçãodescobri que diferia daprimeira classe apenas notamanho das poltronas. Nestahavia apenas três fileiras debancos e o espaço para aspernas era bem maior.

Deslizamos suavementepelo delta, cortando lavouras

e mais lavouras num dosterrenos mais férteis doplaneta. Dava gosto observaros felás trabalhando na terra,extraindo do solo enriquecidopelo húmus do Nilo asmaiores hortaliças que eu jávira. Logo estávamoscosteando o Mediterrâneo.

Em Alexandria, tomamosum táxi meio a contragosto.Sempre preciso de algumashoras para me ambientar,tempo normalmente gastotomando um café na estação

ou no aeroporto, olhandomapas, consultando guias,informando-me com ospoliciais. Mas já era tarde,chovia, estava frio — umvento soprava furioso pelasruas estreitas —, e eu tinha oendereço do hotel aondequeria ir. Assim, acabeicedendo aos apelos de umdos taxistas que nos cercaramna saída da estaçãoferroviária.

— Qual é o preço de umacorrida até o Hotel Ailema? —

perguntei-lhe.— Trinta libras — ele

respondeu prontamente.— Pago oito libras —

ofereci, dando-lhe as costas.— O.k. — ele disse, quase

gritando.Virei-me a tempo de ver

seu largo sorriso. Colocamosas mochilas no velho táxi emandei que nos levasse aoAilema, no centro. Não ficavana baía, na beira doMediterrâneo, nem era bemlocalizado, mas havia servido

de inspiração para Miramar, oúnico livro de Naguib Mahfuzque não se passava no Cairo.Por isso, rumamos para lá.Será que eu iria sentir no ardo velho hotel o climapassado no romance? Estavaexcitado com essapossibilidade.

Para minha totaldecepção, o Ailema nãoexistia mais. Pior: foracomprado por um outroqualquer, sem o menorpedigree, situado no andar de

baixo, e agora tanto o sextoquanto o sétimo andar doantigo prédio pertenciam aum novo hotel. O taxista nãose surpreendeu com ofechamento do Ailema,levando-me a deduzir que odanado já sabia que estavanos conduzindo para um hotelinexistente.

Que o vivaldino tinha lá osseus planos, eu logo percebi.

Quando voltamos para otáxi, ele aproveitou meurápido momento de

perplexidade e tentou noslevar para um hotel caríssimo,onde certamente ganhariauma polpuda comissão. Opreço baixo cobrado pelacorrida deveria sercompensado pelo baquiche dohotel, que ele receberiaenquanto estivéssemos nacidade. E quando fizéssemosa l g u m tour, como eleesperava, na comissão dohotel estaria embutida umaparte para ele. Em qualquerserviço extra arranjado pelo

hotel ele ganharia umpercentual. É assim no mundotodo, não seria diferente noEgito. Então, a solução écortar o mal pela raiz. Porisso, não gosto de pegar táxinessas ocasiões; ficamosreféns. Obviamente, todasessas comissões saem donosso bolso.

Mas o espertalhão nãocontava com uma surpresa:estávamos procurando umahospedaria tão barata queseu baquiche não passaria de

alguns centavos. Por isso,tentou nos induzir a um hotelcaro.

Ordenei que nosconduzisse ao hotel Union,pois, segundo o meu guia deviagem, “the rooms are someof the cleanest in Alex” e, oque era melhor, algunsquartos tinham sacadas comvista para a enseada, dasquais poderíamos ver o mar eo castelo onde na Antiguidadeexistiu o Farol de Alexandria.Além do mais, o Union ficava

pertinho do Cecil, o maistradicional hotel da cidade.Verdadeira instituiçãoalexandrina, construído em1930 em estilo belle époque,era o preferido de WinstonChurchill, num período emque uma espaçosa suíte notérreo abrigava o escritórioafricano do serviço secretobritânico. Poderíamos tomar onosso café no Cecil, curtindoum pouco do seu charme.

Beto ficou esperando notáxi enquanto subi ao quinto

andar para ver se o Uniontinha vagas. O taxista meacompanhou, uma péssimaidéia, tava na cara. Logo intuíque ele estava armandoalguma falcatrua para cimade mim.

— Vocês têm quartodisponível? — perguntei narecepção.

— Para quantas pessoas?— Duas.Enquanto rolava essa

conversa, o taxista começou afalar com o recepcionista em

árabe, e o sujeito, que jáestava pegando as chavespara mostrar-me o quarto,virou-se e me informou quenão havia vagas.

— E para amanhã? —insisti.

— Nem para amanhã —ele disse.

Voltei para o táxi com omotorista nos meuscalcanhares, tentandoconvencer-me a ir para o carohotel que nos havia indicado.Fiquei tão chateado com a

sacanagem deles que pedi aoBeto para descer do carrocom nossas mochilas.

— Vamos ficar aqui — eudisse ao taxista.

— Aqui? — ele retrucou,surpreso. — No meio da rua?

— Sim — eu respondi,furioso. — No meio da rua!

Dei-lhe as oito libras e,como eu esperava, ele ficouindignado, alegando quetinha nos mostrado doishotéis e o preço foracombinado para nos levar

apenas ao Ailema. Fiquei tãobrabo, despejei-lhe tantosimpropérios no meuportuguês-inglês-árabe queele entrou no carro e saiucantando pneu.

— Beto — eu disse quandoficamos a sós —, desconfioque esses caras estavamarmando para cima da gente.Só para confirmar, vai lá epergunta se eles têm vagas.

Dito e feito.Beto logo voltou com a

informação: havia vários

quartos, podíamos escolher omelhor.

— Esses golpistas não vãobotar as mãos no nossodinheiro — eu disse, pegandoas mochilas. — Vamosprocurar outro hotel.

— Só não entendi o que orecepcionista do hotel ganhoupor dizer que não tinha vagas— Beto comentou.

— Ora — respondi —, porcerto o taxista prometeudividir com ele sua comissãose nos levasse para um hotel

de luxo.Acabamos nos

hospedando no Crillon, noquarteirão ao lado, tãorazoável quanto o anterior.Tinha uma ampla sala de cafécom sacadas e vista para abaía. Se o Farol de Alexandriaainda estivesse de pé,poderíamos apreciá-lo nahora do chá, suas luzesalertando os marinheiros paraos perigos da terra. Emboranosso quarto ficasse na rualateral, tínhamos uma sacada

com vista para o mar. O únicoproblema era na hora de medeitar. Se não o fizesse comtodo o cuidado, o estrado sedesprendia da cama e caía nochão, fazendo o maiorbarulho. Além de acordar osoutros hóspedes, me deixavacom alguns hematomas nascostas.

— Pelo menos —lembrava-me Beto, sua vezde levantar-me o moral,quando isso acontecia —,este hotel está dentro do

nosso orçamento.— Claro — eu concordava,

pondo-me em dúvida serealmente conseguiríamosviajar pelo país com o mesmopoder aquisitivo dos egípcios.

A Alexandria atual,Iskendariya para os egípcios esimplesmente Alex para osturistas, não guardaravestígios do seuextraordinário passado.Fundada por Alexandre, oGrande, em 331 a.C., para sera capital africana do seu

império, nada havia na cidadeque lembrasse o grandeconquistador macedônio. Ospalácios de Cleópatra VII, daépoca em que Alexandriarivalizava em magnitude comRoma e Atenas, jaziamperdidos no fundo do mar.Quanto à esplêndidabiblioteca, até hoje não seconhece o seu local exato. Nolugar do famoso farol —inaugurado em 283 a.C., nailhota de Faros, hoje ligadaao continente por um aterro

—, e com suas pedras, osultão mameluco Qaitbeymandou erguer uma fortalezano século XV.

E. M. Foster chegou àcidade em 1916, quandoestava escrevendo Passagempara a Índia. Durante os trêsanos em que trabalhou noEgito, escreveu Alexandria: ahistory & guide. Segundo ele,um guia de tudo queAlexandria não tinha mais.

A cidade renasceu quandoNapoleão invadiu o Egito, em

1798, devido ao seu portoestratégico, tornando-senovamente uma das maismovimentadas doMediterrâneo, atraindocomerciantes turcos, gregos,judeus, italianos, sírio-libaneses, franceses,armênios e ingleses.Multicultural, rica e com umpassado envolvente, logo setransformou em musa degrandes poetas, escritores eintelectuais refinados, como obritânico (nascido na Índia)

Lawrence Durrell, autor domaravilhoso O quarteto deAlexandria. A grandeinfluência francesa aindapodia ser notada nas placascom os nomes das ruas,normalmente bilíngües.Enquanto no Cairo a palavraá r a b e sharia vinhaacompanhada da palavrastreet, em Alex ela vinhaacompanhada da palavra rue.

Porém, uma vez mais,quando Gamal Abdel Nassersubiu ao poder,

nacionalizando as grandesempresas e estatizando aeconomia, a cidade entrouem decadência. Os residentesfranceses e britânicos foramexpulsos, a maioria dosestrangeiros, quarenta porcento dos seus trezentos milhabitantes, foi embora, pondofim ao seu cosmopolitismo.Atualmente, não passa demais uma das tantasmegalópoles do mundopobre, abrigando cincomilhões de habitantes,

exclusivamente egípcios.Recentemente foi

inaugurado um edifíciopretensioso para abrigar umagrande biblioteca, captar umpouco do seu passado mítico.Denominada BibliotecaAlexandrina, seu tetoinclinado em direção ao mar,metade abaixo do nível dochão, metade acima, emforma de disco solar, pareciaemergir da água, um segundosol nascendo doMediterrâneo. Construída sob

uma gigantesca rotunda, suasala de leitura, em sete níveis— os sete domínios do saber—, é a maior do mundo. Parao egípcio Robert Solé,Alexandrina só terá sentido“se conseguir ser, como suagloriosa ancestral, um centrode encontro internacional.Terá ainda de afirmar aliberdade da cultura num paísque tem o péssimo hábito decensurar livros”.

Nossos dias em Alexandriaforam cinzentos. A cidade,

desenhada pelo próprioAlexandre, voltada para omar e com ruas retilíneaspara facilitar a livre circulaçãodos ares mediterrâneos, noscastigou com chuva e ventosininterruptos. O final doinverno africano fez com quenos limitássemos a passearde bonde elétrico pelossubúrbios e dar pequenas erápidas caminhadas pelaavenida beira-mar sempreque uma nesga de solconseguia transpor a camada

de nuvens repletas de água.Se soubéssemos que seria aúltima vez que veríamoschuva no Egito, teríamos sidomais condescendentes com omau tempo alexandrino.

Almoçávamosfreqüentemente no Anfuchi,próximo ao porto, a antigaparte turca da cidade, cenáriopreferido dos personagens deDurrell, especialmente asprostitutas e os comerciantesdesonestos. Embora tivessecaído em profunda

decadência — ou talvez porisso mesmo —, o bairromantinha os restaurantesmais típicos, onde se podiasaborear um peixe ao estilodos velhos tempos.

Chegamos ao Kadoura sobuma chuva torrencial,acompanhada por um ventoque fazia a água subir dochão e empapar nossascalças. Aberto 24 horas, éconsiderado o melhor lugarpara se comer um peixe nestaparte do Mediterrâneo,

informação que por si só jáhavia me deixado com águana boca, embora o Beto nãoestivesse muito entusiasmadocom o local escolhido para onosso almoço.

Em frente ao restaurantehavia uma peixaria com umainfinidade de peixessemivivos se arqueando sobreas caixas de gelo. Escolhi doisgrandes baltis, o peixe maiscomum da região, barganheirapidamente um pequenodesconto e corri para o

Kadoura, onde Beto meesperava. Os peixes tinhamuns vinte centímetros decomprimento, eramachatados e de cor cinza, coma barriga mais clara. Empoucos minutos eles nosforam servidos fritos,acompanhados de arroz,batata, saladas e pães, tudoincluído no valor pago napeixaria.

Só então o Beto me disseque não gostava de peixe!

Troquei o balti dele pelo

meu arroz e uma Coca-Cola, eà noite, para recompensá-lo,fomos jantar no McDonald’s etomar um capuccino noBrazilian Coffee Store,considerado por todos omelhor café do Egito, umarelíquia dos velhos e bonstempos da cidade.Inaugurado em 1929, tinhauma bandeira do Brasil noteto e uma pintura na paredeinformava que o “Brésil tinha60 milhões de habitantes eproduzia 75 por cento do café

consumido no mundo”. Nãohavia bancos para nossentarmos, apenas um longobalcão. Uma velha máquinade moer café ficava à vistados clientes e o preço eracaríssimo para os padrõesegípcios. O prédio era velho,mal conservado e todoencascurrado, e mesmo assimestava sempre lotado. O caféera realmente muito bom,mas ninguém falavaportuguês, o que, para nós,dava um toque de nonsense.

Tínhamos um problemaburocrático para resolver. Namaioria dos países seria umasimples rotina; no Egito nostomaria um dia inteiro deaborrecimentos:precisávamos prorrogarnossos vistos. A Embaixadada República Árabe do Egitohavia posto em nossospassaportes duas informaçõescontraditórias: uma dizia quenossos vistos expiravam nodia 21 de março de 2004(noventa dias após a

emissão), outra dizia quevalia por trinta dias. Pelo sim,pelo não, resolvi procurar oServiço de Imigração.

Após uma longa espera nafila, a funcionária nosinformou que precisávamos,sim, renovar os vistos.

— Tragam uma fotocópiado passaporte e do visto atual— ela pediu.

Por sorte, na calçada aolado do prédio havia umafotocopiadora e um espertosujeito tirando cópias para os

turistas apressados,ridiculamente caras, mas erapegar ou largar. Voltamoscom os documentos, masfaltavam as fotos do Beto. Elese esquecera de levá-las e foiobrigado a sair em busca deum fotógrafo, enquanto fiqueipreenchendo meu formulário.Ele voltou em seguida.

— Que rápido! — falei.— Havia um fotógrafo na

saída do prédio — ele contou,faceiro.

Voltamos para a fila só

para descobrir que afuncionária não aceitarianossos papéis; havíamospreenchido os formulárioscom caneta vermelha, a únicaque eu tinha. Por sorte, nasaída do prédio havia um caravendendo canetas azuis. Nemperguntamos o preço, jásabíamos de antemão queseríamos explorados.

Como não tínhamos direitoa outro formulário, tivemosque passar a caneta azul porcima do que havíamos escrito

em vermelho, cuidando paranão borrar as informações.Uma hora depois estávamosnovamente diante do guichê,com tudo refeito. Apósexaminar detalhadamente apapelada, ela disse que sópoderia prorrogar o meu vistopor dois meses.

— Está bom — concordei.— O senhor colocou aqui

sessenta dias — ela falou,devolvendo-me o papel.

— Não é a mesma coisa?— tentei argumentar, meio

sem jeito.— Não! — ela respondeu,

irritada com a minhaignorância. — O senhorprecisa preencher mais umformulário, escrevendo “doismeses” no espaço reservadoao prazo.

Isso significava sair doguichê, preencher outrodocumento e entrarnovamente na fila. Feito isso,um outro problema: a taxa aser paga era de 11,10 librasegípcias. Eu não tinha a

quantia exata e ela não tinhatroco.

— A senhora pode ficarcom o troco — respondi. —Dê de gorjeta a alguém. Nãovou sair da fila por causa deuns poucos centavos.

— Não — ela disse — Osenhor precisa trazer o valorexato.

Irritados com a excessivahonestidade da funcionária,saímos pela rua à procura dealguém que pudesse trocarnosso dinheiro. Por sorte,

havia um cambista na saídado prédio, o que nos custouum alto baquiche.

Entregamos toda apapelada, fizemos opagamento e fomosmandados para uma sala deespera, onde quaramos nãosei por quanto tempo,entretidos com as figurasbizarras dos turistas queperambulavam pelo local. Lápelas tantas, outrofuncionário veio ter conosco,seu chefe queria nos ver.

Fomos até outra sala, ondenossas fotos foramatentamente comparadasconosco, sem a menorcerimônia.

Mais uma vez, a foto doBeto provocou o maiorrebuliço. Fomos dispensados,o chefe precisava consultaroutro chefe, alguém acimadele. Algum tempo depois fuichamado ao guichê e recebimeu passaporte. Beto foichamado novamente, umoutro chefe, talvez superior a

todos que já nos haviamatendido, queria vê-lo,conferir se era mesmo ele ocara da foto. Muitasexplicações depois, saímoscom nossos vistosprorrogados, um dia inteirodedicado à burocracia egípcia,famosa em todo o mundodesde os tempos dos faraós.

Os escribas, ao contráriodo que comumente seapregoa, não eramintelectuais inquietos ecriativos, mas burocratas a

serviço do poder central.Jamais paravam de fiscalizar,calcular taxas, escreverrelatórios, constatar, anotar eeditar. Se naquela época jáexistissem carimbos,provavelmente seriamexímios também na arte decarimbar. As imagens quedeles nos chegaram lembramum carreirista, ar entediado,disposto a sacrificar a maiorparte da vida em troca de umemprego seguro, emboraaborrecido. Como todo

burocrata que se preza,manipulava seu poderoprimindo os subalternos ebajulando os chefes. Suasmaiores aventuras eramenganar ou roubar seussuperiores e praticar o maisdeslavado tráfico deinfluência. Eramimprescindíveis, por issonunca seriam deixados delado. Independentemente dascrises de fome que volta emeia assolavam o reino, elescontinuavam firmes em seus

postos.Os atuais burocratas até

nome próprio têm: muazzafs.São os herdeiros dessaestirpe aristocrática, genteque trabalha pouco, ganhamenos ainda, mas tem acerteza de que nunca serádemitida, um grandeprivilégio nos países deeconomia instável. Pelocontrário, serão cada vezmais bajulados pelosgovernos populistas. Quandoassumiu o poder, Nasser

assegurou a todo cidadãocom diploma universitário umcargo no serviço público. Comos atuais 3,5 milhões deassalariados, o funcionalismoconsome grande parte doorçamento do Estado egípcio.

Eu já estava no país haviabastante tempo e cada vezsentia mais saudades de umaboa cerveja gelada. Mas oEgito não tinha bares e asúnicas possibilidades decomprar uma cerveja eram os

restaurantes dos hotéis deluxo — fora do nossoorçamento — e aspouquí ss imas free shops,lojas de bebidas alcoólicasexploradas pelo governo,destinadas exclusivamenteaos turistas. Por isso fiqueitodo motivado quandodescobri que em Alexandriahavia um bar. Não umsimples bar, no estiloocidental. Mais que isso: oCap d’Or era consideradopelos forasteiros que

conheciam o país o melhor doEgito. Era um dos últimosremanescentes das tabernasgregas existentes antes darevolução comandada porNasser.

Lá fomos nós, debaixo dechuva.

E para quem ansiava porum bar, o local era de encheros olhos, no melhor estilokitsch ocidental. Em um paísonde apenas visitantes —leia-se cristãos! — ingerembebidas alcoólicas, um bar,

para ser bom, basta ter aaparência de bar, e essetinha: algumas mesas e umbalcão com tampo demármore, com bancos altosna frente; as paredescobertas de armários comportas de vidro, fundosespelhados e cheios degarrafas; ambiente escuro ealguns egípcios em frente auma tevê assistindo a umshow de uma cantora usandocalças jeans e com os ombrosde fora, realçando o fato de

estar sem sutiã. Aliás, esse“toque egípcio” destoava umpouco do estilo dos barescristãos tradicionais, ondemesmo mulheres bonitas natevê fazem menos sucessoque fracas partidas defutebol.

As insinuações da cantoranão despertariam a atençãode um colegial brasileiro, masos poucos homens no Capd’Or estavam embasbacados,vidrados na tevê.Cochichavam e soltavam

gritinhos histéricos quando amoça aparecia em close, ablusa deixando imaginar osbiquinhos dos seios. A tevêera por satélite e estavasintonizada numa emissorados Emirados Árabes, aversão sueca dos paísesislâmicos.

Enquanto saboreava umaStella encostado no balcão,um dos freqüentadores, deterno e gravata, seaproximou.

— Há pouco estiveram

aqui duas mulheres muitobonitas perguntando por unscaras parecidos com vocês —ele disse. — Vocês queremque eu vá chamá-las?

— Não, obrigado —respondeu Beto.

O cafetão não insistiu,mas ficou ao redor, puxandoassunto. Disse chamar-sePablo. Era filho de pai egípcioe mãe grega, casado comuma colombiana. Era um bompretexto para se aproximarde dois sul-americanos, mas

para seu azar estávamosinteressados apenas numabebida gelada.

Amanheceu com o maiortemporal, vento e chuva emabundância. Até mesmo aságuas da pequena baíaestavam agitadas, e fora dabarra o Mediterrâneo rugiafurioso. Estava na hora decair fora, procurar um climamais seco, mesmo que paraisso precisássemos enfrentaro deserto do Saara.

Quarta Parte

—A travessiado Saara

SIUAH

Comprar passagens para ointerior já nos deu uma idéiadas dificuldades que teríamospela frente nas semanasseguintes. Ninguém falava

inglês no terminal rodoviário,não sabíamos como nos fazerentender. Queríamos entrarno deserto, mas todosachavam que desejávamosviajar de volta para o Cairo.Finalmente, encontramos umsimpático jovem, GamalHassan, dono de umalanchonete vizinha aoterminal, que nos salvou, poisfalava um pouco de inglês.Comprou as passagens e noscolocou dentro do ônibus,diante dos olhares curiosos

dos demais passageiros,berberes de turbante egallabeya voltando para assuas aldeias nos pequenosoásis do Saara.

Gamal Hassan tinha 22anos e era um fanáticozamalkaui, um dos maisradicais que conheci em todoo Egito. Tão fanático que porbaixo da camisa social usavauma camiseta branca,símbolo da sua ferrenhaopção. Seu fanatismo só eracomparado ao de outros

fanáticos, os ahlaui,identificados pelas camisetasvermelhas. A rivalidade entreos dois times era tamanhaque as autoridades egípciaschegavam a ponto deprecisarem convocar juízeseuropeus para arbitrar osseus embates, verdadeirasguerras civis, pois nenhumegípcio ficava alheio a um doslados quando eles entravamem disputa.

O Ahli defende suaimagem proletária com

ferocidade. Seu primeiropresidente foi o lídernacionalista Saad Zaghlul, nadécada de 1910. Já oZamalek tem fama de sermais burguês, mas nem porisso menos popular em todo opaís. Para se ter uma idéia daforça dos dois lados, bastalembrar um incidente ocorridoem 1999, durante umenfrentamento no Cairo: oZamalek retirou o time decampo aos cinco minutos doprimeiro tempo por causa de

um cartão vermelho.Os dois clubes cairotas

fornecem dois terços daseleção nacional de futebol,chamada “os faraós”. O Egitoqueria sediar a Copa doMundo de 2010 e GamalHassan pediu-me paraescrever de modo favorávelao país.

— Meu pai estava noMéxico em 1970 e torceu peloBrasil — ele contou, comsincera felicidade. — NoEgito, todos torcemos pelo

Brasil.— E se a Copa for no Egito

e a final for entre Egito eBrasil, como fica? — pergunteipara me divertir com ele.

— Bem, aí você vai nosdesculpar, mas vamos torcerpelo Egito.

Gamal deve ter ficado bemchateado quando a Fifaanunciou a Copa do Mundo de2010 para a África do Sul,pois eles tinham mesmoesperança de sediar o evento,embora eu não imaginasse

como pudessem fazê-lo.

Foram nove horas deAlexandria até Siuah, 605doloridos quilômetrossacolejando dentro do velhoônibus. Seguimos pela costamediterrânea até MarsaMatruh, onde nos afastamosdo litoral, cruzamos o platôlíbio e mergulhamos nodeserto por uma estradinhaaberta poucos anos antespelo Exército egípcio,chegando no meio da tarde

ao pequeno oásis,considerado pelos seuspoucos visitantes como umadas maravilhas do mundoatual.

Na borda do Grande Marde Areia do Egito, ogigantesco campo de dunasque cobre o oeste do Egito eo leste da Líbia, o oásis estádoze metros abaixo do níveldo mar, numa depressão comuma largura variando entrenove e 28 quilômetros, e comoitenta quilômetros de

comprimento.Descemos do ônibus e

fomos cercados por diversoscarroceiros, os táxis locais.Escolhi uma pequena carroçade um eixo tocada por umgaroto; seu burrico mepareceu bem-tratado.

— Leve-nos ao hotelAlexandre — pedi.

O oásis tinha menos devinte mil habitantes e a vilaera realmente pequena, meiadúzia de ruelas ao pé dasruínas de uma fortaleza do

século XIII, mas estávamoscansados demais para ircaminhando até a hospedaria.Além disso, iríamosdesapontar os inúmeroscarroceiros que esperavam achegada do ônibus vindo dacidade grande, onde éramosos únicos forasteiros. Siuahestá no fundão do deserto, nafronteira com a Líbia, a quasemil quilômetros do Cairo,distância que a deixa fora docircuito turístico do Egito.

Infelizmente para a

maioria das pessoas quevisita o país, felizmente paranós.

As agitadas Cairo eAlexandria haviam ficado paratrás, nem parecíamos estarno Egito. Em Siuah, todas ascoisas estavam nos seusdevidos lugares. Sentíamosuma certa segurança nosemblante de cada pessoa,como se o mundo em voltanão estivesse girando tãorapidamente quanto nosoutros lugares.

Seus moradores,originários de um grupoétnico nômade de origemcamita (descendentes deCam, o segundo filho deNoé), são nativos daBarbária, como os romanoschamavam o norte da África.Os berberes habitam a áreaque vai do Marrocos até Siuahdesde a pré-história, portantobem antes da chegada dosárabes à região, e falam umalíngua camito-semítica.

Tradicionalmente hostis

aos não-muçulmanos, tãologo pisamos na vila fomosorientados pelos governantes,um conselho formado pelosxeques das nove tribos locais,a destruir qualquer tipo debebida alcoólica queporventura tivéssemostrazido, a não “demonstrarafetos em público” e a usarroupas modestas. Sehouvesse alguma mulherconosco, ela não deveriadeixar o corpo à mostra,especialmente a parte

superior dos braços, osombros e as pernas. Haviavárias fontes públicas nooásis, onde poderíamosbanhar-nos. Desde que, éclaro, o fizéssemos comroupas, principalmente asmulheres.

— Se esses critérios valempara as estrangeiras, imagineas nativas — comentei comBeto.

Logo descobrimos que asmulheres locais levavam umavida totalmente reclusa.

Geralmente se casam aocompletar dezessete anos, ea partir desse momento nãopodem falar com nenhumhomem, a não ser o marido, opai ou os irmãos. Nas rarasocasiões em que saem empúblico, mantêm todo o corpocoberto. Mas os homenspodem ter mais de umaesposa, como prometera oProfeta, uma maneiraeficiente de aliciar novos fiéis.

Como nosso quarto napousada era muito

desconfortável econstantemente ficavainundado — um corre-corredanado para colocar nossascoisas em cima das camas —,passávamos os diascaminhando pela calmíssimavila, bisbilhotando a vidaalheia — Beto tentando tirarfotos camufladas —, e nosdedicando a comer asguloseimas feitas de tâmara.Estávamos num dos lugaresmais pitorescos e idílicos dopaís, verdadeira miragem

encravada no coração doSaara, entre os lagos Siuah eZeitun, à sombra demontanhas rochosaserodidas.

Neste oásis famoso emtodo o norte da África porsuas tamareiras e oliveiras,as pequenas casas de tijolocru estavam esparramadasem meio aos jardinsluxuriantes formados portrezentas mil palmeiras esetenta mil oliveiras, umamancha verde-escura

contrastando com a aridezamarelada do solo. Os pátiosfloridos estavam conectadospor uma extensa rede decórregos alimentados pormais de trezentas fontes deáguas límpidas, que brotavammilagrosamente do chão.

Localizado na origem daantiga rota das caravanas quetransportavam tâmaras atéMênfis, o oásis dificilmenterecebia forasteiros. Desde aAntiguidade, os poucos quese aventuravam a cruzar o

deserto até Siuah eramperegrinos em busca dofamoso oráculo do templodedicado a Amon, construídona 26ª dinastia, no século VIa.C., sobre os escombros deum templo ainda mais antigo.

Halet, nosso pequenocarroceiro, tinha dezesseisanos e era bem simpático,embora tivéssemos uma certadificuldade para nosentender. Seu inglês eraesforçado, mas normalmente

esbarrávamos em seusotaque berbere. Ele nosapanhou no hotel bemcedinho, como havíamoscombinado no dia anterior, enos levou para conhecer asruínas do Templo do Oráculo,vítima do tempo e dosotomanos, que utilizaramsuas pedras para outrasfortificações, e de umarestauração malfeita após a IIGuerra Mundial.

Sobrara muito pouco dofamoso local, na parte alta de

um morro. Em 331 a.C.,Alexandre, o Grande, à frentede um exército reduzido, veiode Alexandria perguntar aooráculo se ele realmente erafilho de Zeus e, portanto, deorigem divina. O sábiooráculo, precavido, confirmouas esperanças do bravogeneral macedônio,acrescentando ser eletambém filho de Amon, o quelhe dava direito ao título defaraó do Egito. Confirmadasua ascendência divina, o

general mandou construir acidade de Alexandria, àsmargens do Mediterrâneo, deonde pretendia governar seuvasto império. Apesar dagarantia do oráculo de queele era mesmo um deus,Alexandre morreu dez anosdepois.

— Provavelmente foi nestelocal que o oráculo recebeuAlexandre — disse para Beto,mostrando o coração dosantuário.

— Não dá para imaginar —

ele se limitou a responder,enquanto fotografavadetalhadamente cada umadas pedras.

Além de um viajantegrego que visitou Siuah noano 160 d.C., seus moradoressó tiveram contato comoutros europeus em 1792,quando alguns intrépidosaventureiros se arriscaramaté o oásis, poucos delesescapando com vida paracontar o que viram deinteressante na aldeia

berbere. A região só foiincorporada ao Estado egípcioapós a II Guerra Mundial,embora permanecesseisolada até a década de 1980,quando o exército abriu apequena estrada que vinhade Marsa Matruh. Maisrecente ainda era apermissão para forasteirosentrarem na região.

Graças a esse isolamento,eles conservam seu dialetoberbere e cultivam umasociedade completamente

diferente do resto do Egito,praticando seus hábitos ecostumes como vêm fazendodesde a época em que seusantepassados descobriramesta ilha verde em meio aodeserto escaldante.

Após visitarmos o templodo oráculo sagrado, Halet noslevou na sua pequena carroçaàs ruínas de outro templodedicado a Amon, construídopor Nectanebo — o últimofaraó do Egito — durante a30ª dinastia, e a várias fontes

naturais de rara beleza, umadelas graciosamentechamada Cleópatra.

O burrico andava devagar,e passávamos os diassentados na carroça,sacolejando pelo oásis,visitando uma curiosidadeaqui, outra acolá. Fizemos umacordo com o garoto para seutáxi ficar à nossa disposiçãoenquanto estivéssemos navila mediante um pagamentofixo por dia. Era bom paraele, que tinha uma renda

garantida, e para nós, poissaía mais em conta do quealugar uma carroça cada vezque desejássemos passearpelo oásis, visitando seusarredores.

Certa manhã escalamos omonte Gebel Dakrur, aliperto, de cujo cume tivemosuma vista maravilhosa detodo o oásis, desde o lagoZeitun até o lago Siuah,passando pelos palmeiraiscom o casario no meio. Umpouco mais longe, podíamos

ver as escarpas rochosas dadepressão onde ficava ooásis. Entre julho e setembro,no alto verão, os moradoresse dirigem ao local para tratarde seus reumatismos.

— Após vinte minutosmergulhados na areiaescaldante, eles tomam umacaneca de chá fervendo —explicou Halet. — Otratamento demora três diase todos ficam curados.

Num belo fim de tardefomos até Fatnas, uma fonte

de água doce numa pequenailha dentro do salobro lagoSiuah. Mais do que nosbanharmos na graciosapiscina natural, queríamosapreciar o pôr-do-sol por trásdas pequenas montanhasrochosas do deserto. Na orlado oásis, onde o verdeterminava abruptamente,podíamos notar o fundo dolago, cada vez mais seco. Emalguns lugares o lodo estavatão esturricado que podíamoscaminhar sem afundar as

botas no que deveria ser umaárea coberta de água.

Enquanto Beto preparavaseu equipamento fotográficopara registrar o entardecer,encontramos alguns viajantesocasionais, entre eles DoraBeckett, 28 anos, bombeiraem Paris. Ela tirara duassemanas de férias no Egito ese juntou a nós para conheceros oásis do DesertoOcidental, o Saara egípcio àesquerda do Nilo. Nossoburrico era tão lento, embora

apanhasse constantementepara apressar o passo, nosdeixando constrangidos, queo dispensamos e voltamoscaminhando para o povoado,onde chegamos no começo danoite.

Os seis quilômetros nosdeixaram famintos, e meuapetite foi saciado com aiguaria mais estranha doEgito: sopa de molokhiyya,um caldo com aparência dealga verde e consistênciamucosa. A folha de

molokhiyya (um vegetalcomum no Oriente Médio),após picada, foi cozida juntocom carne de frango desfiadae temperada com louro,cardamomo, cebola,coriandro, suco de limão emuito alho até desmanchar-se, formando uma espessapasta esverdeada. Não estavaruim, embora não fosse muitoagradável aos olhos nem aotato.

Dora me acompanhou nasopa e no chá egípcio; Beto

preferiu espaguete comrefrigerante. Mais tarde fiqueisabendo que no século XI ocalifa Al-Hakim proibiu a sopano Cairo por considerar seuaspecto repulsivo demais.Pelo visto, a providência dosoberano muçulmano aindanão havia chegado a Siuah.

O GRANDE MAR DE

AREIA DO EGITO

Quem conhece o Saara(deserto, em árabe) somentepelo cinema imagina que eleseja uma gigantesca e

compacta duna de areia. Naverdade, a areia cobreapenas um quarto da suaárea de 8,6 milhões dequilômetros quadrados, umBrasil inteiro. A palavradeserto vem do francêsdésert, e significa vazio. Nadamais. O Saara é um imensovazio forrado de areia, rochase cascalho — principalmentecascalho.

Em meio a esse grandevazio existem os chamadosmares de areia, enormes

extensões cobertas porincontáveis dunasjustapostas. A Terra possuidezoito mares de areia,quatro deles no norte daÁfrica. Um desses, o quartomaior do mundo, o GrandeMar de Areia do Egito, cobreparte do Egito e da Líbia,começando no Mediterrâneo ese estendendo por oitocentosquilômetros em direção aoSudão, soterrando espantosos72 mil quilômetrosquadrados. Ele possui

algumas das maiores dunasdo mundo, uma delaschegando a 140 quilômetrosde comprimento.

Algumas estão emmovimento, outras não. Em1970, alguns especialistas,depois de observá-las pormeio de satélites,classificaram-nas, segundo osseus formatos, em cincograndes grupos, quatro delesencontrados no Egito:

Linhas Paralelas —também chamadas seif ou

sword — são formadas pelosventos, geralmente estão emmovimento e suas ondulaçõeslembram as lâminas curvasdas espadas árabes;

Ondas Paralelas — levadaspelo vento, sua altura vaiaumentando até que a areia,depositada em sua crista,comece a deslizar pelo outrolado em quedas abruptas,formando pequenosprecipícios. São largas elongas, dispondo-se em ondasparalelas e com pequenos

vales entre elas. Costumamdeslocar-se a uma velocidademédia de dezenove metrospor ano;

Crescentes — como umacordilheira, vão se formandocom a colisão de pequenasdunas, conservando umformato montanhoso comseus lados distintos;

Estrelas — criadas quandoos ventos sopram em váriasdireções, geralmente sãoencontradas isoladas. Emboraexistam no Egito, elas são

raras.Onduladas e belas, as

dunas são traiçoeiras e têmdesafiado os viajantes aolongo dos séculos. Mesmoassim, continuam sendo umadas partes menos exploradasdo planeta, atraindo todo tipode gente, inclusive nós. Euqueria mergulhar nesseoceano movediço, e essa eraa oportunidade. Estávamosjunto ao Grande Mar de Areia,ponto de partida ideal parauma expedição ao seu

interior.Siuah fica numa depressão

cascalhenta, está abaixo donível do mar e forma umecossistema até certo pontocompreensível, pois se tratade uma área relativamentegrande. Como seria um oásispequeno, apenas uma lagoacercada por coqueiros edunas nos cafundós do Saara?Essa imagem, bailando emminha mente desde ostempos juvenis, poderiaagora se tornar realidade,

bastando um pouco dedesprendimento.

Bir Wahed (literalmente,fonte no oásis em árabe)preenchia exatamente essadescrição, além do fato desua fonte ser de água quente.Encravado no meio do Saara,o oásis não passa de umapequena lagoa cercada porcoqueiros, onde vive apenasuma família. Fica a poucosquilômetros da vila, e comoem Siuah não existemcamelos, precisávamos alugar

um jipe com tração nasquatro rodas e adaptado paraviajar sobre as dunas. Betogostou da idéia. ConvidamosDora e ela aceitou dividirconosco os custos da pequenaexpedição.

Tigr, o dono do nossohotel, indicou-nos Nasser, umjovem e feliz proprietário deum Land Cruiser. Muito gentil,providenciou nossos vistos,pois precisávamos de umaautorização especial dapolícia egípcia para entrar no

deserto. Combinamos umaincursão de um dia pelasdunas do Grande Mar deAreia. Sairíamos cedo,visitaríamos dois outros oásispelo caminho e concluiríamosnossa jornada em Bir Wahedno fim do dia, paraapreciarmos o pôr-do-sol apartir das areiasincandescentes do Saara.

Antes de sairmos dopovoado, abastecemo-noscom vários litros de águamineral. Nasser havia ficado

responsável pelosmantimentos, mas nãoconfiávamos muito nas suasprovidências. Acostumadocom o clima quente daregião, se fosse destinar-nosa mesma quantidade delíquidos de que elenecessitava, provavelmentepassaríamos apuros. Semcontar algum problemamecânico, pois seu jipe nãome pareceu muito confiável.

— Sou um bom mecânico— ele garantiu quando lhe

transmiti minha preocupaçãocom o estado do carro.

Sentei-me no banco dafrente juntamente comHassan, um ajudante deúltima hora, como sempreacontece nessas ocasiões.Beto e Dora se acomodaramno banco traseiro, juntamentecom nossas tralhas. Afrancesa usava um turbantede seda vermelho, compradoem Paris quando decidiuviajar para o Egito. Mais doque o sol, eram os costumes

tribais que a preocupavam.Aconselhados por ela, quehavia testado a utilidade dapeça nos dias anteriores,compramos dois turbantes,investimento que se mostrouextremamente útil naqueledia e nos seguintes, quandofomos descobrindo aversatilidade da indumentáriaárabe. Além de evitar aincidência do sol diretamentenas nossas cabeças, serviapara nos proteger das rajadasde areia, cobrir o chão na

hora do chá e, se precisofosse, como uma pequenatenda, devido ao seutamanho considerável.

Tão logo deixamos oterreno cascalhoso da vila eentramos nas dunas, Nassermurchou os pneus do jipe,deixando-os com pouquíssimoar para melhorar a aderênciae impedir que atolássemos nosolo fofo. Em poucos minutos,todos os resquícios dapresença humana haviamdesaparecido e logo

mergulhamos numa solidãode dar dó. Exceto pelobarulho do Land Cruiser e oarfar das nossas presenças,parecia que o mundo haviasubmergido sob o céu maisazul que eu já tinha visto.Lugar mais árido é impossívelde haver no mundo, pensei.Ia comentar com os outros,mas desisti; eles já estavamtensos demais e umaobservação dessas não iriaajudá-los a relaxar paracurtirem melhor o passeio.

“Ver solidões passaremumas após as outras, prestaratenção ao silêncio e nadaouvir, nem um canto depássaro, nem um zunido demoscas, porque não há nadavivo em lugar nenhum”,escreveu Pierre Loti em seuLe désert, de 1895, sobre oEgito.

Passado o impacto inicial,começávamos a nos adaptarao vazio quando galgamos acrista de uma grande duna eparamos de repente, tendo à

nossa frente apenas o céusem nuvens. Imediatamenteabri a porta e saltei doveículo, espantado com acena: as rodas dianteirasestavam no ar, o chassi,enterrado na areia com o jipeno limite de precipitar-sepenhasco abaixo.

— Deve ter uns quarentametros de profundidade —Nasser se limitou a comentarquando já estávamos todosdo lado de fora, estupefatoscom a posição inusitada do

carro.Encontrávamo-nos num

campo de Ondas Paralelas. Láembaixo havia um pequenovale, onde outra grande dunacomeçava a crescer atéprecipitar-se novamente novazio.

— Vamos? — disse Nasser,entrando no jipe.

— Vamos aonde? —perguntei, desconfiado dasanidade mental do rapaz.

— Seguir em frente.— Você vai descer esse

perau com o jipe?— Claro.— Então vá sozinho.Ele foi!Ligou o carro, engatou

uma marcha reduzida e selançou montanha abaixo. Ojipe desceu de barriga,deixando um largo sulco naareia escorregadia da duna.Quando chegou lá embaixo,no fundo do vale, andoualguns metros para não atolare parou, fazendo sinal paradescermos caminhando.

Sem alternativa, seguimosem frente, enterrando asbotas até as canelas naparede fofa da duna. Foi umgrande esforço chegar até láembaixo, chapinhando naencosta quente e pegajosa.

— Na próxima vez, voudescer contigo dentro do jipe— falei quando embarcamos.

E a próxima vez logo seapresentou, já na dunaseguinte, mais depressa doque eu havia imaginado.Muni-me de toda a minha

coragem e desci pelogigantesco tobogã de areiadentro do jipe. Além dosarrepios, senti apenas um friona barriga. Beto e Dorapreferiram descer a pé,seguindo o carro.

— O que você sentiu? —perguntou-me a francesaquando nos reunimosnovamente.

— Uma pequena vertigem,nada mais — respondi.

Encorajados pela minhapreguiça, na duna seguinte

descemos todos dentro dojipe, assim como em todas asoutras que se seguiram.Embora não estivéssemosacostumados com esse tipode estrada, logo descobrimosque era seguro, pois o carro,como se fosse um brinquedoinfantil, descia semi-enterrado no chão, incapaz devirar ou provocar qualqueroutro tipo de acidente.

Quando a ausência de corparecia ter engolido tudo ànossa volta, repentinamente

nos deparamos com umminúsculo oásis, apenas umalaguna rodeada por juncosnuma pequena depressãoentre as dunas. Fiqueiimpressionado com a visão,tentando imaginar de ondehavia saído essa água, seestávamos cercados pormontanhas de areia por todosos lados.

— Os oásis do Saara sãopequenos milagres de Deus— comentei com Dora quandodescemos, ela tão

boquiaberta quanto eu.— Só podem ser — ela

concordou.Havia uma choupana

coberta com juncosressequidos e uma velhatenda esfarrapada ao lado daágua, abrigo para algumviajante mais audacioso.Paramos para tomar um chá eapreciar a beleza selvagemdo lugar. Enquanto Nasserabastecia o radiador do jipe eHassan colhia alguns arbustosressequidos para o fogo,

resolvi entrar no lago. Dorafez o mesmo; afinal,estávamos bem longe dasvistas dos xeques de Siuah.Beto ficou do lado de fora,fazendo fotos. A visão aoredor era impressionante:inacreditavelmente,estávamos nos banhandonum aguaçal rodeados pelasinfindáveis dunas doabrasador deserto do Saara.

A parada só não foi maisrelaxante porque nossos doisbons amigos egípcios não

tiravam seus olhos libidinososda francesa. Não sei o que sepassava em suas cabeças,acostumados a ver asmulheres da vila com oscorpos completamentecobertos. Talvez estivessemespantados com a atitudeimoral e decadente da cristãeuropéia; talvez estivessemencantados com a alegriadela e maldizendo suaspróprias concepçõesreligiosas. Não sei como suasmulheres interpretavam o

contato deles com asestrangeiras queeventualmente passavam porSiuah. Mais tarde Dora mecontou sobre suas tentativasde conversar com algumasmulheres da vila sobre essasquestões familiares, mas elasse negaram a falar.

Do ponto de vistabiológico, não existemdiferenças entre os sereshumanos,independentemente do lugarem que vivam. Mas as

questões culturais, mais doque aproximar, são asverdadeiras vilãs dos conflitosentre os povos.Incrivelmente, ao contrário doque tudo indica, quanto maisas telecomunicaçõesevoluem, mais se intensificamessas diferenças. Parece queos grupos humanos, aexemplo dos animaisselvagens, estão cada vezmais empenhados emdemarcar com rigidez os seusterritórios.

Atraídos pela água, umasérie de diminutos animaisperambulava pelasredondezas do oásis.Cascudos desfilavam emvárias direções, deixandouma esteira de rastros naareia quente; minúsculosroedores corriam entre osesparsos tufos de grama,enquanto cobras e outrosrépteis se moviam sob oareal. As dunas fazemreverberar os ruídos dasuperfície, facilitando a

locomoção da faunasubterrânea em busca dealimento. Existem mesmoalguns animaiscompletamente cegos, avisão substituída por umaaguçada audição, capazes dedetectar o movimento decupins e outros insetos agrande distância, emergindoda areia exatamente embaixoda presa.

Reiniciamos a viagem,subindo e descendo dunasgigantescas. Paramos

algumas vezes nos valesentre elas para apreciarpequenos fósseis marinhos,uma prova de que o Saarafora mar em alguma épocapassada. Seu aspecto atualfoi formado há mais de cincomilhões de anos, mas, antesdesse período, muitos lugaresreceberam água suficientepara se cobrir de vegetação,e aí viveram diversasespécies de animais aquáticose grandes mamíferos.

Eu não tinha a menor

noção sobre qual direçãoestávamos seguindo. Nãohavia sinais perceptíveis paraorientar meu senso delocalização, mas Nassercontinuava firme no volante,na maioria das vezesacelerando além dorecomendável. Quandoreclamei da velocidade,explicou-me que era para nãocorrermos o risco de atolarnas partes mais fofas dodeserto.

Como contestar um

argumento desses? Só merestava rezar para ele estarsendo sincero e não apenasquerendo se exibir para abonita francesa.

Lá pelas tantas chegamosem outro oásis, menor e maisbonito que o anterior. A lagoadevia ter uns cinqüentametros de comprimento poruns dez de largura,afunilando-se numa daspontas. Também estavacercada de juncos e haviamuitos pássaros sobrevoando

o local, disputandoavidamente os poucosalimentos disponíveis. Algunseram nativos, outros,migratórios.

— Se você fosse umpássaro destes, qual gostariade ser? — perguntei a Dora.

— Qualquer um — eladisse —, desde que fosse ummigratório.

Gostei da resposta, masfiquei pensando nos pássarosendêmicos do Saara, cujomaior trabalho é encontrar

comida. No ano anterior euhavia percorrido a Amazôniae ficara deslumbrado com afartura de alimentos naregião, tanto para oshumanos quanto para osanimais.

— Se esses passarinhossoubessem que existe umlugar tão abundante emcomida como a Amazônia —comentei com Dora —, porcerto também se tornariammigratórios.

— Iriam voando para lá —

ela disse, rindo.— E este lugar ficaria

ainda mais deserto —comentei.

No fim da tarde, aosubirmos uma duna alta,avistamos lá embaixo BirWahed, uma mancha verde-escura em meio aomonocromático deserto.Quando nos aproximamos,encontramos outro jipe: duasjaponesas haviam chegadoantes de nós.

— Nem aqui nos livramos

dos turistas japoneses —disse Dora, indicando com acabeça as duas asiáticas.

Surpreendentemente, elasestavam indo embora antesdo grande espetáculo, o pôr-do-sol, para alegria dafrancesa.

— Devem estar com medode voltar para Siuah de noite— comentei com Beto.

Fomos recebidos por umgaroto que nos conduziu atéos fundos de um abrigo, umaestrutura de madeira coberta

com junco e fechada comlonas, onde funcionava umapequena cozinha utilizadapara fazer chá e chicha.

No pátio interno havia umtanque escavado no chãoonde jorrava água sulfurosa auma temperatura de trintagraus. Dora mergulhou napiscina natural; eu preferificar apenas com as pernasdentro da água, sentado naborda de pedra, umasensação extremamenteagradável. O garoto serviu

chá para todos e ainda pediuma chicha. Embora não sejadado a fumar, o ambientepedia um comportamentoadequado. Beto, comosempre, preferiu caminharpelos arredores tirando assuas fotos.

O oásis devia ter unsquinhentos metros por cem.No meio ficava a casa daúnica família que morava nolocal. O pátio ao redor estavacultivado, e quase todo oterreno era coberto por

palmeiras verde-escuras. Aágua que saía da fonte ondeestávamos escorria pelo solo,irrigando e tornando fértilaquele pedaço de mundo.Havia muitos pássaros efartura de comida para osmoradores.

Perguntei a Nasser porque essa família tinha oprivilégio de viver no paraíso,e ele se surpreendeu comminha curiosidade. Elesmoravam ali porque moravamali, e pronto. Seus pais

moraram ali, seus avóstambém. Em alguma épocadistante, algum caravaneiroresolveu ficar no oásis, edesde então seusdescendentes habitam o lugarsem que passe pela cabeçade alguém pedir algumdocumento de posse da terra.

Descansados, resolvemoscaminhar até o topo de umapequena elevação rochosaperto do oásis para apreciar oentardecer de um lugar ondetivéssemos uma ampla visão

do deserto. O espetáculo foimaravilhoso. As curiosasformações das dunascomeçaram a formar sombrasfantasmagóricas com umarapidez impressionante. Océu, pouco antescompletamente azul, foiescurecendo e logo fomosenvolvidos por um douradoofuscante, como se fôssemosbonecos em miniatura dentrode um gigantesco baú cheiode ouro. Tão bonito quantoolhar para o sol

desaparecendo era olhar paraos lados, ver as sombras seencompridarem em desenhosdescomunais.

Sem a presença ofuscantedo sol, o deserto foirecuperando sua variedade detons, desde os mais escurosaté os mais brilhantes, àmedida que a superfície iavariando de tonalidade. Areia,rochas e fósseis emitiam suaprópria luminosidade e empoucos minutos, como deveser o crepúsculo de um

grande ato, tudodesapareceu, envolvido pelamaior escuridão que jápresenciei.

Mal conseguimos achar ocaminho de volta para ooásis.

BAHARIYA

Dora pretendia voltar paraAlexandria, tomar um ônibusaté o Cairo e de lá seguirpara o oásis Bahariya antesde regressar a Paris. Bahariya

era também o nosso destino,mas...

— Mas o quê? —perguntou-me Beto.

— Eu não gostaria devoltar ao Cairo.

— Por quê?— Quando viajo, não

gosto de voltar. Prefirosempre seguir em frente.

— Seguir de Siuah diretopara Bahariya? — perguntou-me ele, um pouco espantado.

— Sim.— Bem — ele disse, — se

tu achas que podemos fazerisso, podes contar comigo.

Cada vez me afeiçoavamais ao meu parceiro. Elevinha conquistando a minhaconfiança aos poucos, semprebem disposto e sem reclamarde nada, uma grande virtude.A expedição não tinha umguia, apenas um líder. Eu melimitava a indicar oscaminhos, segui-los ou nãodependia de cada um.Algumas vezes ele não seguiaas minhas orientações e

acabava enfrentandodificuldades além donecessário. Mas sempreencarava as situaçõesadversas com coragem,arcando sozinho com asconseqüências das suaspróprias decisões, a melhorforma de aprender osmalabarismos de uma viagemdeste tipo, uma pequenametáfora da própria vida. Eagora, quando estava prestesa levar a nossa experiênciano deserto a um nível bem

mais arriscado, ele semanteve firme.

— Tu estás quase prontopara ingressar no clube — eulhe disse.

— Que clube?— Dos Viajantes Sem

Destino, popularmenteconhecido pelos seusadversários sedentários comoClube dos Malucos SemCausa...

Fui falar com Dora.— Seguir pelo deserto até

Bahariya? — ela me

perguntou, incrédula, na horado almoço.

— Por que não? — devolvi-lhe a pergunta. — Já temosexperiência com o deserto.

Ela riu de uma formadebochada, como só osfranceses conseguem rirquando estão diante dealgum nativo sul-americano.

— Até Bir Wahed foramapenas cinqüenta quilômetrose já foi aquele sufoco! DeSiuah até Bahariya são 420quilômetros pelo deserto

desolado, calor abrasadordurante o dia e frio cortante ànoite — ela argumentouquando parou de rir, vendo-me tão sério quanto nocomeço do almoço.

— Veja o mapa — eudisse, mostrando-lhe o Saara.— Antigamente existia umatrilha de caravanas que faziaesse trajeto. Durante a IIGuerra Mundial, os exércitosaliados percorriam essa trilhapara enfrentar os tanques deRommel no norte da África.

Ela ainda está traçada nomapa, e creio que um bomjipe pode trafegar por ela.

Sentindo que a bombeiraespecializada em resgate depessoas em pânico haviagostado do desafio, continuei.

— Vamos seguirpraticamente pela borda doGrande Mar de Areia, isto é,não será um trajeto tão difícilquanto o de Bir Wahed. Emalguns lugares vamos cruzaras dunas, mas será a menorparte da viagem.

— Quanto vamos gastar?— Não acho que seja

muito caro. Dividindo portrês, vai equivaler à volta dequase dois mil quilômetrosque precisaríamos fazerretornando pelo Cairo.

— Acho uma loucura — eladisse.

— Por isso mesmo é quedevemos tentar — arrisquei,procurando mexer com seusbrios.

— Aquele carro não dá,quase se desmanchou ontem

— disse Beto.— Procuramos outro, mais

novo. Existem vários jipes emSiuah, podemos escolher ummelhor.

— O jipe do Ali mepareceu bom — disse Dora,se referindo a outro moradorda vila, com quem ela haviaconversado antes de nosconhecer.

— Você fala com ele? —perguntei.

— Falo.Não tocamos mais no

assunto durante o resto doalmoço. Na manhã seguinte,quando nos encontramos noAbdu’s para o café, orestaurante onde fazíamos asnossas refeições, no centro davila, Dora já havia pesquisadotodas as informaçõesnecessárias para a travessia.Ali tinha um bom jipe e noscobraria um preço razoável.

— Ele se encarrega dosnossos vistos, da tenda e dosforros, compra osmantimentos e leva um

mecânico por precaução.Prometeu que, se tudo correrbem, em dois dias estaremosem Bahariya.

Logo que descobriramnosso plano, as japonesasresolveram nos acompanhar.Alugaram seu próprio jipe emontamos parte daexpedição em conjunto. Comoelas eram apenas duas, ebem baixinhas, todos osalimentos foram levados comelas. Os dois carros erampicapes Toyota, bem

desconfortáveis. Mas aprópria aparência rude dosveículos nos passava aimpressão de que tinham sidofeitos para o deserto.

Saímos de Siuah numa belamanhã, um pouco depois dasjaponesas, e sem o talmecânico. Ou melhor: apenascom o mecânico. Ali, oproprietário do jipe, não iriajunto, conforme o combinadoanteriormente com Dora. Emvez disso, seu mecânico,

Senussi, um rapaz bastantejovem, pertencente a umatribo local de origem líbia,faria as vezes de motorista.

— Ele desempenha bemas duas coisas — disse Ali,quando nos apresentou orapaz.

O inusitado da viagematraiu muitos curiosos.Quando saímos do centro davila, em frente à mesquita,uma pequena multidãoestava em volta do carro,apontando para nossas

mochilas no bagageiroexterno e dando palpitesentre sonoras gargalhadas.

— Espero que estejamcomentando como seria bomnos acompanhar — falei paraDora.

— Não tenho tanta certeza— ela se limitou a dizer, malconseguindo disfarçar atensão.

— Amanhã à tarde vocêsestarão em Bahariya — gritouAli na hora da despedida.

— Incha allah —

respondeu o chofer.— Se Deus quiser —

repeti.Senussi acelerou e

seguimos para o oriente, emdireção ao Vale do Nilo,deixando a fronteira com aLíbia para trás. Iríamos cruzarmetade do território egípciono sentido oeste/leste, naspegadas das antigascaravanas que levavamtâmaras para Mênfis.

Passamos ao lado doGebel Dakrur e seguimos por

um aterro dividindo o lagoZeitun ao meio. Na sua baciaocidental avistei algunsflamingos se alimentando naságuas salobras. Perto de nós,a terra ressequida indicava oavanço do deserto sobre ooásis, um sinal nadapromissor.

Andamos menos de cincoquilômetros e o carrocomeçou a falhar. Senussidesceu, mexeu em algumacoisa sob o capô econtinuamos, embora o motor

volta e meia desse umarateada. Perguntei se não eramelhor voltarmos, e eleprometeu parar em seguida efazer uma revisão geral.

Paramos em Abu Shuruf,uma bonita fonte ladeada porpalmeiras a 34 quilômetrosde Siuah. Numa pequenatenda, um rapaz nos ofereceuchá e biscoitos. Imaginei sero lugar onde Senussipretendia fazer a tal revisão,mas ele se limitou a ficarestendido sobre os grossos

tapetes, conversandoanimadamente com ovendedor de chá. A fontehavia sido represada numgrande tanque, com trêsmetros de profundidade e aságuas mais límpidas que vi noEgito. Estava coalhada depequenos peixes, outranovidade, e desaguavadiretamente no lago Zeitun.

Reiniciamos a viagem, ecinco quilômetros depois, emfrente à aldeia abandonadade Az-Zeitun, o jipe enguiçou

novamente. Senussi desceusem dizer nada, abriu o capôe começou a fuçar o motor.Desaparafusou, abriu, fechou,tornou a abrir, mudou fios,trocou peças, e nada de o jipepegar. Às vezes algumaferramenta caía no chão, umachave mais pesada,obrigando-o a se arrastarpara baixo da picape, sujandoainda mais a sua gallabeyabranca amarelecida.

O sol começou aesquentar e Dora foi se

abrigar dentro da picape,abrindo as toldas lateraispara o vento circular melhor.Beto se afastou para fazerfotos e eu fiquei olhando parao lado da isolada aldeia,algumas casas de tijolo crudanificadas pelo vento e pelaareia do planalto cascalhoso.Alguns anos antesarqueólogos encontraram nasredondezas uma série detúmulos da era romana,alguns ainda em escavação,mas pouco reveladores.

Uma pessoa saiu não seide onde e ficou conversandocom Senussi, dando palpitessobre os reparos a seremfeitos. Enfiei a cabeça sob ocapô e vi que estavammexendo na bobina.Problema elétrico, imaginei.Cheguei a pensar em daralgumas sugestões, masdesisti. Nossos vocabulárioscomuns, tanto em inglêscomo em árabe, não eramsuficientes para conversarmossobre assuntos tão técnicos.

Fiquei esperando pelaproteção de Alá. Afinal,estávamos em seu território.

Quase duas horas depois,finalmente o defeito foiconsertado. O jipe pegou,saltamos para dentro ereiniciamos a viagem. Maistrês quilômetros e paramosem Ain Safi, num posto decontrole do exército, ondefomos abordados porsoldados armados com fuzis emetralhadoras e caras poucoamistosas. Apresentamos

nossos documentos,principalmente os vistosespeciais para trafegarmosnesta parte do país, respondia algumas perguntas e fomosautorizados a prosseguir,mergulhando de vez naimensidão inóspita do maiordeserto do planeta, ummundo hostil formatado pelasolidão da natureza e osilêncio humano. A próximaaldeia, Bawiti, estava a 378quilômetros de distância, nooásis Bahariya.

Senussi continuava mudo.Dora, Beto e eu nos olhamosem silêncio. Ninguém falou,mas todos sentíamos amesma coisa: insegurança.Por maiores que fossem ashabilidades mecânicas donosso motorista, nãoestávamos no veículo maisadequado para a longatravessia. Além do mais, oque nos pareceu divertido nocomeço — colocar nossassacolas de mantimentos nojipe das japonesas —, eu

agora considerava um grandeabsurdo. Por sorte havíamoslevado, por iniciativa nossa,alguns litros extras de água.Mas não tínhamosparâmetros, não sabíamos seseria suficiente caso nãoencontrássemos o outrocarro.

De qualquer modo, nossacaravana motorizada seguiuem frente, em direção aoLevante.

Volta e meia o arremedode estrada desaparecia por

completo, a trilha de cascalhosubmergindo, coberta pelaareia levada pelo vento.Curiosamente, nessesmomentos nosso motoristaafundava o pé no acelerador,aumentando a velocidade dojipe. Sem os solavancos dosburacos, planávamossorrateiramente pelas areiasescaldantes, deixando paratrás dois sulcos paralelosmarcando as dunasimaculadas, sinais que logoseriam também apagados

pelo movediço solo dodeserto.

No lusco-fusco doentardecer, notei a expressãotensa de Senussi e seu olharassustado, um misto de medoe encabulamento, emboradesejasse aparentar ocontrário. Ocasionalmentetentava afastar uma moscaimaginária da testa, gestoque o obrigava a soltar umadas mãos do encardidovolante. Nada falava, nãoemitia o menor sinal verbal,

limitava-se a seguir emfrente, querendo nos passar aimpressão de que sabiaperfeitamente o que estavafazendo, aonde ia. Euesperava que fosse verdade,embora nada confiante.Silêncios profundos sãosintomas de tensão, deincertezas, nunca deconvicção.

Meu guia de viagemLonely Planet sobre o Egitorecomendava aosestrangeiros que porventura

decidissem penetrar nodeserto que levassem umguia com muitos anos deexperiência, de preferênciaum morador local. Não sópara mostrar as belezasnaturais desse ecossistematão interessante, masespecialmente para nosconduzir com segurança porum dos lugares maistraiçoeiros do mundo.Olhando para o rapaz ao meulado, fiquei com sériasdúvidas se ele preenchia tais

requisitos.Como ele não falava, eu,

sentado ao seu lado, tentavainterpretar nossa situaçãopelos seus gestos. E esseseram claros: transmitiamdesconforto e insegurança.Podia notar, na sua facemorena, que também ele nãoconfiava no que estávamosfazendo, especialmente nocarro. Por que não voltamospara pegar outro veículo,fiquei pensando. Mas aresposta era simples: se

fizéssemos isso, ele perderiaseu trabalho. Eu já conheciade longa data essa situação.Nas regiões muito pobres doplaneta, as pessoas sedispõem a executar qualquertrabalho por um punhado demoedas, mesmo que não sesintam qualificadas para aempreitada. Sempre é melhordo que nada, do que ficarsentado à sombra de algumaárvore cavucando entre osdedos do pé enquanto abarriga ronca de fome.

Embora na maioria dostrechos pudéssemos divisaros sinais da trilha, Senussiinsistia em fazer algunsatalhos, entrando nas dunas ecorrendo o risco deatolarmos. Logo percebi queestávamos procurando oacampamento onde o jipe dasjaponesas deveria estar nosesperando. Ele haviacombinado alguma coisa como outro motorista, e como nosatrasamos, não tinha certezade onde nos encontrávamos.

Era muito difícil calcular adistância percorrida, nãohavia sinais geográficosindicando nossa localização. Ecomo o dia estava seesvaindo e nada doacampamento, estávamosdesorientados.

— Estamos perdidos? —perguntou-me Dora, tocandolevemente no meu ombro.

— Não! — respondi semme virar para trás, e no tommais convicto que me foipossível.

Eu temia ouvir dela aterrível expressão “eu nãodisse?”. Mas não. Embora elativesse relutado bastante emconcordar com a travessiapelo deserto, em momentoalgum reclamou ou deixoutransparecer que noshavíamos arriscado além dorecomendável. Ela eratreinada para essas situaçõese mostrou-se à altura dodesafio. Beto tinha menosexperiência, mas também semanteve firme. Tanto ele

como Dora confiavam emmim, o que só aumentava aminha responsabilidade pelosmeus bons caravaneiros. Aúnica desconfiança no grupoera a minha em relação aonosso chofer. E ela logo seagravou.

Ao tentar vencer umaduna mais alta, começamos aatolar. A velocidade foidiminuindo à medida que ospneus iam se enterrando naareia. Senussi engatou amarcha reduzida, dando uma

breve sobrevida aomovimento do jipe, utilizadopara ele virar à esquerda natentativa de começar adescer, mas logo paramos porcompleto. Ele engatou amarcha a ré e tentou voltardescendo a duna, mas o carronão se moveu. Os pneuspatinavam, atirando a areialonge e se cravando cada vezmais no chão rarefeito.

Descemos, angustiados; osol já havia desaparecido e anoite começava a abocanhar-

nos. Ele esvaziou os pneus etentamos novamente, agoraajudados pela força dosnossos braços. Não foisuficiente. Dora, a bombeiraparisiense, se ajoelhou ecomeçou a retirar a areiaatrás das rodas, gestoseguido por todos nós.

— Temos uma pá? —perguntei ao Senussi.

— Não — ele respondeu,sem levantar a cabeça.

Fiquei pensando por quediabos não tínhamos uma pá

no carro. Deveria ser aprimeira ferramenta aembarcar. Em vez disso, sótínhamos as mãos. Retiramosa areia e o jipe avançoualguns centímetros, menos doque o necessário paraembalar e saltar fora doatoleiro. Senussi, encolhidoem seu silêncio acabrunhado,subiu no bagageiro e jogoupara baixo os sacos com ostapetes e cobertores queutilizaríamos para dormir.Sem nada falar, como se não

estivéssemos presentes,retirou a areia da frente dopneu e estendeu um cobertorsob a roda, formando umtrilho. Logo entendemos oque ele estava fazendo,fizemos o mesmo com asoutras rodas.

Ele ligou o motor, acelerouforte e soltou a embreagem.Mesmo vazios, os pneuspatinaram, puxaram oscobertores para baixo dasrodas e os lançaram longe,para trás do veículo, sem, no

entanto, o carro sair do lugar.Repetimos a operação, masde nada adiantou.Continuávamos tão atoladosquanto antes.

— Precisamos segurar oscobertores — eu disse. — É ojipe, não os cobertores.

Todos concordaram.Repetimos a operação, agoracom Beto, Dora e eusegurando os cobertores paraeles não serem sugados pelospneus. Avançamos um metro,mas logo nossas forças foram

insuficientes para impedir queos cobertores novamentefossem jogados para tráspelos pneus patinando.

— Vai ter que ser assim —eu disse, já que nossomotorista nada falava. Ao seuinglês deficiente se juntara oencabulamento cultural,sentindo-se responsável pelaconfusão em que estávamosnos metendo.

— Vamos de metro emmetro — Dora concordou.

Repetimos a operação

várias vezes, até queconseguimos levar a picapepara a parte baixa da duna,retirando-a do atoleiro eseguindo em frente, já noitealta. Continuamos andandoem círculos, feito baratascorrendo na areia quente,subindo e descendo dunascolossais, correndo o risco deatolarmos novamente, embusca da trilha abandonada.Quando a terrível palavra“perdidos” começou a tomarforma na minha mente, para

alívio de todos nós,especialmente o tensoSenussi, subitamente nosencontramos rodando sobre afaixa de cascalho marcando adireção correta a seguir.

Ufa!Iluminada pelos faróis do

velho jipe, a areia brilhavaem várias tonalidades,transpassada por bancos decascalhos e fragmentos derochas. Além da saltitantenesga de chão focada à nossafrente, nada mais podíamos

ver. Cada vez nosaprofundávamos mais naescuridão. Acostumado amanter todas as variáveis daminha vida sob controle,chocava-me constatar queestávamos à mercê do acaso.

Pareceu-me que Senussihavia desistido de encontrar ooutro jipe. Embora lutassecontra os pensamentos ruins,tentando afastar as energiasnegativas, uma história bemdesagradável me veio àmente.

Em 524 a.C., o rei persaCambyses, que haviaconquistado o Egito no anoanterior, enviou de Tebas umexército de cinqüenta milsoldados para matar ooráculo de Siuah e destruirseu templo. O poder do porta-voz de Amon era tamanhoque estava ameaçando aautoridade dos novossenhores do país. Apesar detoda a logística queacompanhou tão grande forçamilitar, os poderosos persas

jamais chegaram ao seudestino. Perderam-se poucoantes de chegar a Siuah enenhum deles sobreviveu aodeserto.

Está bem, não andávamosa cavalo. Éramos viajantesmodernos, tínhamos um jipe.Mas essa era uma esperançaque logo se esvaía no ar. Denada adiantaria termos umjipe se ele atolassedefinitivamente nas dunas enão conseguíssemos avançar.Eu estava assim, nesse

devaneio sombrio, quandosubitamente algo piscou nobreu do deserto. Foi àsnossas costas, mas apiscadela iluminou osmontículos de cascalhoesparramados à nossa frente.Aliás, mais do que aluminosidade refletida sobreas pedras, o que chamouminha atenção foram aspequenas sombras projetadaspor eles. Pareceu-me algosobrenatural, tão inusitadoquanto surpreendente,

impossível de ser analisadopelas súbitas descargaselétricas que me percorreramos neurônios já meioentorpecidos.

Embora estivesseesperando ansiosamente umsinal de vida exterior, a faíscade luz foi tão rápida, algo tãodeslocado em meio ao torporem que me encontrava, quenão consegui reagir. Nem eunem os outros. Apenasregistramos em nossasmentes desoladas que algo

havia acontecido. Antes quepudéssemos manifestarqualquer reação física, omenor movimento que fosse,a luz piscou novamente.Agora, sim, num lampejohipersônico, percebemos:eram os faróis do outro jipenos sinalizando oacampamento.

A palavra alívio éinsuficiente para o quesentimos nesse momento.

Senussi deu meia-volta eestacionamos ao lado da

picape azul das japonesas.Abdullah, o simpáticomotorista, veio nos ajudar aarmar nossa tenda, dizendo-se muito preocupado conosco.

— Faz umas quatro horasque estou aqui esperandovocês — ele disse,gesticulando muito.

Senussi entabulou umaconversa no dialeto local efomos jogados para fora doassunto. Eu não sabia o quediziam, mas podia intuir:falavam da nossa experiência

recente, claro, quandoficamos perambulando embusca do acampamento. Pelomenos a alegria voltou aorosto do nosso amedrontadomotorista.

O acampamento foramontado ao pé da paredeabrupta de uma grande duna,dando-nos a proteçãonecessária para enfrentar anoite. Como essa formaçãoavança apenas 19 metros porano, não corríamos o risco deser soterrados enquanto

dormíssemos, a não ser queuma violenta tempestade deareia nos pegasse durante osono, o que ninguémacreditava que pudesseacontecer.

A janta estava pronta,cozida numa fogueira emfrente à grande tenda dasjaponesas. Abdullah haviatrazido uns poucos galhosressequidos de palmeira e ofogo serviu também para nosaquecer. Sentamos em círculosobre um largo tapete

vermelho e comemos full compão árabe e tomamos leite decabra. De sobremesa,tâmaras adocicadas. Abdullahnos ofereceu uma bebidaalcoólica caseira, mas eu nãoquis provar, estava com dorde cabeça. Serviu-me apenaspara descobrir que a proibiçãodo álcool não passava deconversa para enganar oslíderes religiosos de Siuah.Como o frio caía intenso,aquecemo-nos com algumascanecas de chá de menta.

Yuki Nakayama, umaestudante de jornalismo de22 anos, e Moemi Nagase,funcionária da Volkswagenem Tóquio, estavamaproveitando as férias noEgito. Moemi comemoraria oseu 22º aniversário em brevee estava encantada por fazê-lo no deserto. Abdullahcomeçou a contar das suasvárias mulheres. Além dastrês egípcias, tinha umaesposa polonesa que uma vezpor ano vinha visitá-lo em

Siuah, um assunto queinteressava a Dora.Tagarelavam pelos cotovelose logo os deixei conversando.Estava exausto, queria dormiro mais cedo possível paraacordar antes do nascer dosol na manhã seguinte.

O céu estrelado iluminavao deserto. A claridade eratanta que os carros e astendas projetavam sombrascurtas, esmaecidas pelapenumbra produzida pela altaparede da duna às nossas

costas. Para fixarmos bem abarraca, havíamos removidoum pouco de areia, e agoranosso abrigo estavaparcialmente encravado naencosta arenosa, um poucosoterrado pela areia queescorria da crista.

Uma lona estendida sobreuma estrutura móvel, emformato canadense, cobriasomente as duas laterais e ofundo da improvisada tenda.Forrei o chão com algunstapetes e me enfiei no saco

de dormir. Alguns minutosdepois Dora apareceu, forabuscar sua mochila. Para afrancesa, Abdullah estava seinsinuando demais, tentandocriar muita intimidade com asmeninas, então ela resolveudormir com as duas, deixandonosso pequeno abrigo apenaspara Beto e para mim, umaótima solução para todos.

Era minha primeira noiteno Saara e eu não imaginavaa intensidade do frio pelamadrugada. Consegui

permanecer bem aquecido,mas Beto, sem um saco dedormir, apenas com oscobertores trazidos porSenussi, sentiu muito frio.Melhorou um pouco quandolhe sugeri colocar maiscobertores embaixo do queem cima do corpo, uma formade proteger-se da gélida areianoturna.

Os egípcios dormiram noscarros, enrolados nos seusgrossos cobertores trançadoscom crina de camelo.

Acordei com um nascer dosol maravilhoso. O céudespertou com um azul bemfraquinho e foi aos poucosficando lilás, depois laranja efinalmente amarelo. Senussi eAbdullah levantaram-se emseguida, providenciando logoum gostoso chá para o nossodesjejum. Enquanto asmulheres se arrumavam,aproveitamos para caminharem volta do acampamento,filmar o despertar de um novodia naquela vastidão de areia

e pedras esquecida até porAlá.

A picape de Abdullah tinhaum compressor, utilizado paraencher os pneus da nossaToyota, levando-me a crerque seguiríamos pela trilhacascalhenta em vez demergulhar novamente nosbancos de areia. O que eunão imaginava era que osdois motoristas, dispostos ase exibir para as meninas,tivessem decidido apostarcorrida deserto afora, o que

fizeram durante boa parte damanhã, gargalhando eacenando quando um jipeultrapassava o outro.

— Parece que estamos norali Paris-Dacar — comentouDora.

— Sim — respondi —, sóque sem equipes de apoio.

Paramos ao meio-dia paratomar chá e comer pão,protegidos pela sombra doscarros. Esperamos o caloramainar e partimosnovamente. Aos poucos

moldávamo-nos à situação, eos aborrecimentos da tardeanterior pareciam teracontecido há muito tempo.Estávamos tranqüilos, enossas almas já começavama adquirir certa confiança deque tudo acabaria bem, logochegaríamos ao nossodestino.

Pouco depois da saída, umpneu furou, e ficamos apenascom mais um estepe.Abdullah seguiu em frente,mas, dando por nossa falta,

voltou ainda a tempo de nosajudar. Eles diminuíram avelocidade, e pela primeiravez tínhamos a nítidaimpressão de que realmenteviajávamos juntos, umapequena e solidária caravana.

À medida que nosafastávamos de Siuah, íamosnos distanciando também doGrande Mar de Areia.Passamos a rodar numadescomunal planície decascalho e pequenasformações rochosas, vez por

outra uma colina baixa paraquebrar a monotonia dapaisagem. A trilha ficou maisvisível e no fim da tardechegamos a Bawiti, o maiordos povoados do oásis, comcerca de trinta mil habitantes.Estávamos cobertos de pó,todos os ossos fora do lugar,mas imensamente satisfeitos.Satisfeitos e orgulhosos;havíamos vencido um desafioe tanto! Mais do que astraiçoeiras areias do desertodo Saara, foram os nossos

medos que ficaram para trás.— Gostei da experiência —

Dora se limitou a dizer.— Obrigado — respondi,

contente com oreconhecimento dela.

Localizamos uma pequenapousada. Banho tomado,saímos para jantar, traçar osplanos para os próximos dias.Dora estava em dúvida se nosacompanhava ao oásisseguinte, mais ao sul, ou sevoltava para o Cairo.

Bahariya está situado numadepressão com dois milquilômetros quadrados, cercade 335 quilômetros asudoeste do Cairo e poucomais de duzentos quilômetrosa oeste do Nilo. Importantecentro agrícola durante oMédio Império, suaprosperidade se estendeu atéo século IV d.C., quandoataques de tribos inimigas e adecadência do ImpérioRomano fizeram a regiãoperder importância, e grande

parte dela foi tomada peloavanço do deserto.

Foi em Bahariya querecentemente um guardadescobriu uma grande tumbacom várias múmias quandoseu burrico enfiou a pata numburaco, enquanto patrulhavao oásis.

O famoso arqueólogoegípcio Zahi Hawassencontrou nas escavaçõesquatro tipos diferentes demúmias. Algumas estavamsimplesmente envoltas em

tiras de linho, outras jaziamdentro de caixões deterracota enfeitados comdesenhos de faces humanas.Muitas estavam cobertas comuma espécie de cartolina,feita de linho ou papiro, edecoradas com motivosreligiosos faraônicos,enquanto as maisespetaculares tinhammáscaras douradas e foramchamadas pelo egiptólogo de“múmias douradas”. Com elashavia sido enterrada uma

grande quantidade deutensílios, incluindo figuras dedeuses egípcios de terracota,jóias e moedas da épocagreco-romana, uma delasestampando a bela face deCleópatra.

A necrópole foi estimadaem seis quilômetrosquadrados e os arqueólogoscontinuam trabalhando nolocal, de onde já resgataram234 corpos. Eles esperamencontrar milhares deles,acompanhados de seus

pertences. O fértil solo dooásis era apropriado para aprodução de bons vinhos detâmaras, bebida apreciadapelos nobres, atraindo ricosfazendeiros e comerciantesgregos e mais tarde romanos,uma elite cujos hábitosestavam agora se revelando.O período greco-romano, ointerlúdio de seiscentos anosentre a era faraônica e achegada do cristianismo aoEgito, está sendoreconstituído, ajudando-nos a

conhecer o dia-a-dia daspessoas que viviam naquelaépoca.

Após visitar o sítioarqueológico, resolvemoscaminhar pelo oásis, conheceros poços de águas termais efotografar um pouco oscostumes locais.Atravessamos uma áreacoberta de palmeiras,assustamos um rebanho decabras e seguimos até Al-Beshmo, uma fonteextremamente quente.

Mesmo assim, algumaspessoas tomavam banhotranqüilamente enquantooutras enchiam coloridosbaldes de plástico ecarregavam água para suascasas.

Um pouco mais abaixo, aágua sulfurosa escorriaamarelada por entre avegetação, deixando asmargens do córrego como setivessem sido contaminadaspor uma poderosa ferrugem.A correnteza era

acompanhada por umanuvem de vapor, filtrando avisão e deixando ainda maisocre as palmeiras e o extensodeserto se esparramando aperder de vista em todas asdireções.

Convenci Dora a seguirconosco para sudoeste. Haviauma rústica estrada asfaltadaque cruzava o deserto emdireção a Farafra, o oásis, a185 quilômetros de Bahariya.Um ônibus vindo do Cairopassava por Bawiti e seguia

para Qars al-Farafra, aprincipal vila do menor oásisdo Deserto Ocidental.

— Em Qars al-Farafrapodemos organizar umacaravana de camelos eatravessar o Deserto Branco— disse para Dora na hora doalmoço.

— Eu gostaria muito deconhecer o Deserto Branco —ela comentou. — Disseram-me que é um dos lugaresmais bonitos do Saara.

— Dividindo novamente as

despesas por três —argumentei —, podemosmontar nossa própriacaravana sem gastar muitodinheiro.

— Uns dias andando decamelo pelo deserto vão mefazer bem — ela disse,pensativa, tamborilando namesa e olhando para asdunas ao longe,esparramadas além da bordado oásis.

FARAFRA

Embarcamos para Farafranum velho ônibuspraticamente vazio. Comexceção de um rapaz muitoalto e cabeludo estatelado

num dos bancos traseiros emais um par de passageiroslocais, não havia maisninguém no veículo. Aestreita faixa asfaltada nãotinha acostamento e emalguns trechos a pista estavaparcialmente coberta pelaareia. Não encontramosnenhum outro carro, nemvindo nem indo, e tambémnão paramos uma única vez,pois não havia presençahumana ao longo da rodovia,totalmente desprovida de

referências visuais. Paraqualquer lado queolhássemos, víamos apenasrochas, cascalho e areia, umquadro sem qualquernatureza viva, aqueles sinaisque tanto nos agradamquando vistos da janela deum ônibus em movimento.

Sei que para os amantesdos desertos, e são muitos,dizer que não existe vidanessas paragens é umagrande heresia. Mas para umviajante originário dos

trópicos verdejantes, aimensidão descolorida eestagnada e os dois lados daestrada estavam impregnadosde ausências. Como se apaisagem tivesse recebidoapenas a pintura de fundo efora abandonada às pressas,antes de ser concluída.

Três horas após a saída,paramos numa barreira decontrole da polícia. Ospoliciais entraram,perguntaram nossos paísesde origem e nos mandaram

embora. Pouco depois oônibus estacionou num postode gasolina, isolado entremeia dúzia de casas, paraabastecer. Perguntei aomotorista se estávamos longede Qars al-Farafra e ele fezum sinal que era ali mesmo,deveríamos descer.

— Qars al-Farafra —repeti, quase soletrando apalavra para ele entenderbem.

Ele repetiu o seu gestoimpaciente, uma ordem para

cairmos fora do ônibus. Umpouco desconfiado — o localnem de longe lembrava umavila —, fiz sinal para os outrose descemos, meio acontragosto. Quando o ônibusse afastou, ficamos naestrada, acompanhadosapenas por nossas mochilas.O cabeludo que viajaraconosco também haviadescido e caminhava resolutona direção de onde tínhamosvindo.

— Vamos atrás dele — eu

falei. — Pela rapidez dospassos, deve saber algo quenão estamos sabendo.

Logo avistamos a placa doEl Badawiya Safari & Hotel,um bonito prédio de tijolosaparentes, isolado na beirada rodovia. Na recepçãoencontramos o grandalhãocabeludo, com quem Doraacabou dividindo um dos doisúnicos quartos disponíveis.Não era barato, mas o quartoera bom, o banheiro eraconfortável e o prédio,

impecavelmente limpo, omelhor hotel até entãoencontrado no Egito.

Mais tarde descobri omotivo da limpeza: era feitapor mulheres! Na manhãseguinte, tão logo saímospara o café, um grupo dearrumadeiras, jovens vestindouniformes de camareira,invadiu as dependências dohotel. Nas minhas viagenspelos países não-cristãos,onde as mulheresnormalmente são mantidas

afastadas do contato com oshomens, especialmente seforem estrangeiros, os hotéissão conservados porfuncionários masculinos.Esses indivíduos não levam omenor jeito, são incapazes deexecutar determinadastarefas profissionais, aocontrário das mulheres, quedesempenham com qualidadequalquer tipo de trabalho.

Dora veio nos apresentarseu colega de quarto, o talcabeludo, um mexicano da

capital. Sebastían GarcíaAnderman tinha dezenoveanos e trabalhava num kibutzem Israel. Tirou uma semanade férias e resolveu dar umavolta pelo Egito. Pegara oônibus no Cairo e descera emFarafra; também desejavaconhecer o Deserto Branco.Tinha 2,02 metros de altura epesava 104 quilos. Tanto nósquanto ele ficamos surpresospor encontrar um vizinhonaquelas paragens.

— Faz quase um ano que

estou viajando — elecomentou — e ainda nãotinha visto nenhum latino-americano.

A vila deve seu nome ao forteonde as pessoas serefugiavam quando atacadaspor tribos inimigas. Asescaramuças eram tãocorriqueiras que as famílias játinham seus quartospreviamente definidos eabastecidos com víveressuficientes para um longo

cerco. Atualmente vivem nolocal 2.900 moradores, amaioria beduínos mantendosua cultura tradicional numdos lugares mais isolados doEgito. Os portais das casaseram decorados com versosdo Alcorão e muitasresidências tinham nasparedes desenhos de barcosou aviões, sinal de que seufeliz morador era um haji,alguém que havia feito o haj,a peregrinação a Meca.

As mulheres são famosas

em todo o país por fabricarembelos vestidos e osagricultores cultivamoliveiras, palmeiras, figueiras,pessegueiros, goiabeiras,laranjeiras, macieiras,girassóis, trigo e arrozirrigados por mais de cemfontes, a maioria aberta pelogoverno na década de 1960,durante um programa dereassentamento deagricultores na região.Tentando desafogar o Vale doNilo, onde vivem noventa por

cento da população egípcia, ogoverno federal criou umprojeto chamado Novo Vale,ligando os oásis do DesertoOcidental. Apesar da grandequantidade de dinheiroinvestido, os resultados foramdesanimadores e atualmentese sustentam mais napropaganda oficial do que emdados reais.

Ao caminharmos pela vila,fomos abordados por umsenhor dirigindo uma picape.

— Al-salamu aleykom —

ele nos disse, sem descer daviatura.

— A paz esteja com osenhor também — respondi.

— Sou o prefeito —explicou.

Perguntou quais eram osnossos países e se prontificoua nos ajudar casonecessitássemos de algo.Agradecemos a gentileza econtinuamos nosso passeio.Ainda não sabíamos, mas apartir de Qars al-Farafranossos passos seriam

minuciosamenteacompanhados pela políciaegípcia. Afinal, a cada diaestávamos nos afastandomais dos roteiros turísticostradicionais, além deviajarmos por conta própria,desgarrados dos grandesgrupos organizados. Aabordagem do prefeito, únicaautoridade local, foi apenasum prenúncio das agruras queviveríamos nos diasseguintes, à medida quefôssemos nos embrenhando

na imensidão árida do interiordo país.

Jantamos no hotel,embora fosse mais caro doque os restaurantes de rua.Outros viajantes encontradospelo caminho haviam noscontado que os legumes eramorgânicos, cultivados naprópria horta do El Badawiya,e a comida era de primeiraqualidade. Saad Ali, um dosproprietários, também tinhauma fazenda onde criavacamelos.

— Dromedários — ele mecorrigiu. — No Egito nãoexistem camelos, somentedromedários. Até tenteiimportar alguns da Índia, masnão se desenvolveram.

Ele alugava os animais,juntamente com seustratadores, para quemdesejasse organizar umacaravana para cruzar oDeserto Branco. O espertobeduíno também arranjava osguias e providenciavacobertas, alimentos e água.

Depois de demoradareunião, decidimos contrataros serviços do árabe. Ele nosprometeu que em três diaspercorreríamos a parte maisbonita do deserto semprecisarmos nos preocuparcom nada; ele e seusempregados seencarregariam de tudo queera necessário para a nossacaravana.

— Por um preço bemrazoável — ele prometeu.

— Posso imaginar! — eu

disse.

Os camelos sobrevivem semágua durante três semanas,tempo utilizado parapercorrer cerca de quinhentosquilômetros. Nossa travessiaseria bem mais rápida emuito mais curta, o que noslivrava, já de saída, doproblema de ficarmos semtransporte. Teríamosalimentos e água suficientepara a nossa jornada, tudoseria previamente calculado.

Afinal, queríamos apenasconhecer o Deserto Branco,experimentar um pouco asensação de viver nesseambiente tão vasto e isolado,nos aproximar da peculiarcultura beduína. Éramosviajantes curiosos, nãodesmiolados querendo morrerde sede.

Saad Ali, no entanto, tinhaoutra preocupação: nós!Como reagiríamos? Como noscomportaríamos? Eu já haviaparticipado de uma rápida

caravana de camelos nafronteira da Índia com oPaquistão dois anos antes,mas os outros nunca haviamsubido no lombo de umanimal tão alto. Por isso, elenos fez assinar umdocumento em que nosresponsabilizávamos porqualquer acidente queporventura viesse a ocorrerconosco.

“Outdoor trips, by theirnature, involve some degreeof danger and risk. I am

aware that participating in ElBadawiya Safari & Hotel’soutings may expose me tocertain risks and dangers. Irealize that all participantsare responsible for their ownvisit and that El BadawiyaSafari & Hotel managementor employees will NOT acceptany responsibility or liability.”

— Seja o que Alá quiser —falei para Dora enquantoassinava o papel do precavidocomerciante.

Na madrugada seguinte,

Saad Ali nos levou no furgãodo hotel até sua fazenda,cinco quilômetros ao norte davila, onde encontramos oscamelos-árabes à nossaespera. Os dois cameleiros,Tamer, 29, e Abdulh, 28 anos,moradores do oásis, estavama postos e todos osmantimentos haviam sidocomprados, principalmenteágua, pão e latas de fullsemicozido.

Minha única preocupaçãoera nos perdermos, algo difícil

de acontecer devido aoconhecimento dos guias, masnão impossível. Mesmo osnativos do Saara às vezes seconfundem quando o solo ficavarrido por alguma grandetempestade de areia. Porisso, quando vi que nossasmontarias eram fêmeas comcrias novas e que oscamelinhos nosacompanhariam na travessia,fiquei mais tranqüilo: em casode desespero, poderíamosnos alimentar com a carne

dos pequenos animais e como leite das camelas. Euconhecia histórias de pessoasque haviam sobrevivido nodeserto graças a essasreservas de proteínaambulantes.

Aos equipamentoscarregados nas enormesbolsas que pendiam doslombos dos animais foramacrescentadas as mochilas.Fomos apresentados àsnossas montarias, seguramosas rédeas e seguimos os dois

simpáticos rapazes.Caminharíamos um poucoantes de montar, umamaneira de nos integrarmosao ambiente. Os camelosestavam presos por umpequeno buçal e a rédeatinha apenas uma perna, uminstrumento quase fictício,pois eles se limitavam aseguir o animal da frente, quedeterminava a direção e avelocidade da marcha. Esse,por sua vez, era puxado porTamer. Os camelinhos

seguiam atrás, zurrando efazendo suas mães zurraremainda mais alto, antecipaçãode que o isolamento buscadono deserto seria mais visualdo que sonoro.

Os passos dos animaiseram bem rápidos, obrigando-nos a caminhar num ritmoalém do normal, quasepuxados por eles. Usávamosroupas com mangas egrandes turbantes para nosproteger do sol, e logoficamos superaquecidos. Os

cameleiros vestiam gallabeya,mas a longa camisola emnada dificultava as suas ágeispassadas. Após uma longacaminhada resolvemosmontar, uma cena e tanto.Por já conhecer asdificuldades, adiantei-me aosdemais, que ficaramobservando.

Tamer fez um sinal e oanimal foi se ajoelhando, atéficar com a barriga apoiadano chão. Eu pulei para o seudorso e me acomodei nos

grossos cobertores estendidossobre o lombo, as pernasabertas ao máximo, os péssem o menor apoio, e meagarrei com todas as forçasna arcada dianteira do arção.Bem firme, fiquei esperandopelo baque. A uma novaordem do beduíno, o camelolevantou-se rapidamente, aostrancos, por etapas, jogando-me ora para trás, ora para afrente, quase me deslocandoa coluna. Por muito pouconão fui jogado de cabeça nas

pedras pontiagudas ao redor.Sebastían, com seu peso

descomunal, obrigou ocamelo a um grande esforçona hora de se levantar.Acostumado com os franzinoshomens do deserto, o coitadonão esperava transportar ummexicano tão bem nutrido.Dora, leve como convém auma moça parisiense, nemteve seu peso notado peloanimal. No início desajeitada,logo estava firme sobre oscobertores coloridos.

Finalmente, estávamos todosmontados, exceto Beto. Elepreferiu continuar a pé.Armado com seuequipamento, corria por todosos lados para melhorfotografar a pequenacaravana.

Seguimos nos desviandodas grandes rochas brancasdesgastadas pela erosão. Ovento esculpira curiosasfiguras e as lascas de pedraque haviam se desprendidodurante os séculos forravam o

chão com um espinhentotapete de cascalhopontiagudo, traiçoeirasarmadilhas para os cascoscarcomidos dos animais. Oscamelos também tropeçavamnas dobras de areia ouafundavam as patas nosmontículos fofos distribuídosaleatoriamente pelo chãocoberto de seixos. Essespequenos acidentes nãoalteravam o seu trote, mas assacudidelas me faziambalançar sobre seu lombo, às

vezes quase perdendo oequilíbrio e por pouco nãodesabando no chão.

Aqui e ali a areia nua erasalpicada de solitáriosarbustos, ressecados sob oolho entorpecente do sol, masum apetitoso banquete paranossos dromedários. Quandoavistavam essas fontes dealimento, enveredavam nadireção delas e nada os faziavoltar ao curso normal daviagem. Precisávamosesperar que arrancassem

algum galho e só entãopartíamos novamente.Satisfeitos, apuravam o trotee se distraíam mastigando osgravetos retorcidos em suasbocas rudes.

Esses tufos de vidavegetal eram tão ressequidosque os guias os juntavam empequenos feixes de lenha,depois utilizados nasfogueiras ao meio-dia e aoentardecer, fonte de calorpara nós e necessários paracozinhar os alimentos.

Aos poucos o calor ia seacentuando, mas não era tãodesagradável quanto eu haviaimaginado. O clima eraextremamente seco e umapequena aragem davaconstantemente o bendito arda sua graça. Além do mais,meu turbante vinha semonstrando de uma utilidadebem maior que o esperadopara um simples retalho depano. Como as roupasespeciais que nos protegemdo frio, essa peça da

indumentária árabe faziamilagres. Esvoaçante aovento, ela provocava sombrasem deixar de ventilar.Quando era evitado o contatodireto com o sol, o calorperdia muito da suaintensidade.Psicologicamente, a vastidãodo deserto ao redor nos davaa sensação de arejamento, aocontrário do que sentimosquando estamos sufocadosnum grande centro urbano.

Perto do meio-dia, a

coluna diminuiu o ritmo elogo saiu de formação. Tamerparou, imediatamenteimitado pelo animal da frente.Em seguida, os demais foramse colocando ao lado dele,obedecendo a uma ordemgravada em seus genesancestrais.

— Gebel el-Khona — disseAbdulh, indicando a florestade rochas ao nosso redor.

Estávamos em meio a umcampo repleto de altíssimosesqueletos de rochas brancas

pontiagudas há milênioscorroídas pelo vento,formando as mais surrealistasimagens. Imaginei que esselugar, visto à noite poralguém que não soubesseestar em meio ao deserto,passaria a impressão de umaselva fantasmagórica,formada por gigantescosseres disformes apontandopara o céu.

O chão arenoso,principalmente em torno dosmonólitos, estava coberto por

uma fina camada de quartzodesprendido das rochas e demilhares de minúsculosfósseis brancos reluzindo aosol. Aos poucos nossas almasiam mergulhando nessasolidão inóspita, fazendo suaspróprias viagens. O horizontesem fim e a desolação dolugar, que num primeiromomento nos passava asensação de liberdade física,iam se apertando sobrenossas mentes, uma mesclaheterogênea de pessoas

subitamente reunidas nosgrotões do Saara, sobre umsolo sem árvores e sob umcéu sem nuvens. Como únicoponto em comum tínhamos acuriosidade inerente aosseres humanos.

As compridas sombrasformadas pelas costeletas deareia desapareceram aoreceberem os raiosperpendiculares do solescaldante. Embora apaisagem fosse a mesma doinício da manhã, os contornos

das pequenas fissuras efendas rochosas haviamadquirido novasprofundidades e as diversastonalidades das dunas tinhamse dissolvido com a claridadeexcessiva, o sol a pinomergulhando-nos num mundodesprovido de cor e de todosos demais sinais perceptíveispelos nossos apuradossentidos.

Era o deserto emmovimento, utilizando sualinguagem particular para se

comunicar conosco. Para mimesses sinais nada diziam, maspara Tamer e Abdulh eramlugares-comuns, asinformações que osorientavam, indicando oscaminhos mais seguros ealertando para os possíveisperigos. Embora nadavíssemos — apenas deserto emais deserto cravejado demonólitos retorcidos —, o soloestava riscado por incontáveispistas. Invisíveis sob o amorfocascalho, essas trilhas

estavam profundamentegravadas na memória dessespovos que há milêniosvagueiam por essas partes domundo, capazes de decifraras mais monótonaspaisagens.

Não fosse essa sabedoriaquase divina, não teríamos amenor chance de cruzar oDeserto Branco, muito menosde voltar para casa. Até asnossas pegadas, deixadas emvolta do acampamento,desapareciam pouco depois

de feitas, cobertas por umfino manto de areiacontinuamente emmovimento sobre a superfíciemais perene do Saara.

Os camelos foramdesencilhados e agrupadosperto do acampamento, osadultos com as patasmaneadas para não seafastarem muito. Algunsanimais se agacharam, outrospermaneceram em pé. Oequipamento de cozinha foiretirado da bolsa lateral de

um dos camelos, os alimentosrecolhidos de outra e algunscobertores, antes usadoscomo pelegos, foramestendidos sobre a areia, umtapete para nos sentarmoscom as pernas cruzadas.

Protegidos por nossosturbantes, fizemos umdemorado lanche, pão comfull e algumas frutas,principalmente laranjas emaçãs colhidas na fazenda deSaad Ali. O café da manhãhavia sido farto, ainda não

estávamos com fome.Aproveitamos para beberbastante água; o céutranslúcido nos prometia umatarde escaldante.

Após o descanso,montamos novamente eseguimos em frente. Dessavez Sebastían continuou a pé,acompanhando Beto. Os doisbeduínos me pareciam tãoseguros, sem ao menos olharpara os lados à procura dealgum sinal mais evidente,que não ousei duvidar da

direção tomada. Adeterminação deles nãodeixava dúvida de queestavam nos conduzindo parafora do deserto, comoesperávamos, embora cadavez nos embrenhássemosmais nesse mundão feito deareia, cascalho e rochasesquisitas.

Imersos em nossospensamentos, admirados como inusitado da viagem,permanecíamos calados, cadaum ruminando suas próprias

memórias, algumaspassagens das nossas vidassubitamente despertadas pelanova realidade na qualestávamos mergulhando. Acada passo que os camelosdavam, mais nos isolávamos,nossas fantasias mentaisabsorvendo todos os nossossentidos, jogando-nos numaoutra dimensão. A passagemdo tempo só se fazia sentirnas dores em nossas bundas,que sofriam com a posiçãodesconfortável. Vez por outra

eu encolhia uma perna esentava-me sobre ela,aliviando um pouco o traseirodo atrito com os cobertoresgrosseiros sobre os quais nossentávamos. Fora isso, tudo omais permanecia imóvel,horas, horas e mais horas damais pura monotonia.

Colhemos alguns arbustosressequidos durante a tarde eno fim do dia chegamos a umlocal muito bonito. Pequenasdunas pontilhadas dealtíssimas pedras brancas

erodidas. Imaginei queiríamos acampar sob aproteção de um desses blocosde rocha, mas os beduínosmontaram nossoacampamento um poucoafastado, bem no alto de umamontanha de areia.

— Para as lascas de pedraque se soltam não nosatingirem durante a noite —explicou Abdulh.

Fazia sentido, pensei,seria como acampar embaixode uma árvore durante uma

tormenta. Mesmo assim,soava estranho escolhermos olugar mais descampado paraenfrentar a noite. Além domais, nosso acampamentoconsistia apenas emcobertores e tapetes, nadapor teto.

Orientados por Abdulh,forramos o chão com doisenormes tapetes, um azul eoutro vermelho, colocamostudo que foi retirado doscamelos sobre suas beiradas,fazendo uma pequena parede

para evitar a invasão daareia, e estendemos oscobertores por cima. Quandofôssemos dormir, bastava nosenfiarmos embaixo deles.

— Vai ser uma noiteprotegida pelas estrelas —Dora comentou.

Camelos alimentados,Tamer e Abdulhprovidenciaram a janta.Fizeram fogo com osarbustos, colocaram umagrande panela sobre osbraseiros e cozinharam arroz

com moranga. Após o farto edelicioso jantar tomamos cháe tão logo escureceu Tamerimprovisou uma lamparinacortando uma garrafa deplástico um pouco acima domeio, enchendo-a até ametade com areia eenterrando uma vela dentro,completamente protegida dovento. A luz amarelada nosuniu em volta do seu pequenocírculo bruxuleante, isolando-nos completamente domundo exterior ao deserto.

Satisfeitos, fomos paradebaixo das cobertas.Sebastían e eu tínhamosgrossos sacos de dormir, Doratinha um saco leve e Betonão tinha nada. Por isso,demos a ele um cobertorextra, e mesmo assim Betoreclamou do frio a noite toda.Tamer e Abdulh tinham seuspróprios forros.

Deitados lado a lado etendo por teto um lindo céuestrelado, ficamosconversando enquanto a lua

não saía; não estávamosacostumados a dormir tãocedo. Uma estrela cadentedeixou um rastro luminoso nocéu, atraindo nossa atenção.O mexicano, conhecedor dofirmamento, explicou-nos oocorrido e passou a citar onome de cada astro.

— Os fragmentos deasteróides, cometas e outroscorpos celestes em órbita doSol, quando cruzam a órbitaterrestre e colidem com nossaatmosfera, provocam um

atrito tão grande com asmoléculas de ar que o calorproduzido lhes derrete asuperfície, incandescendo o arà sua volta, produzindo osmeteoros, como esse quevimos há pouco rasgar o céu.

— Não caem na Terra? —perguntou Dora.

— A maioria, não. Apenasalguns objetos maiores, maisresistentes, conseguemchegar ao solo, os meteoritos.O maior que se conhece caiuna Namíbia, onde está até

hoje. Chama-se Hoba e pesa66 toneladas.

— E as estrelas? —indagou Beto.

— Aquela mais brilhantese chama Sírio — respondeuSebastían, apontando para aconstelação do Cão Maior. —É uma das maiores estrelasdo céu.

— Às nossas costas — eudisse, entrando no assunto —está o planeta Vênus,conhecido no Brasil comoEstrela-d’alva, a primeira

estrela a aparecer nohorizonte, a oeste.

— Será que existe gentenas estrelas? — perguntouDora.

— Claro — Betorespondeu.

— Então devem estar nosolhando neste momento —completou Sebastían.

— Vocês já pensaram —eu disse, bancando oarqueólogo do futuro — seuma tempestade de areia noscobre durante a noite e

nossos corpos só venham aser descobertos daqui a milanos?

— O que vão falar a nossorespeito? — perguntou Beto.

— Vão olhar nossosrelógios e dizer: ‘olha,naquela época eles jáconheciam relógio’ — brincouSebastían.

— E como o saco dedormir do Ortiz é em formade sarcófago, vão dizer queele era o chefe da tribo —comentou Dora.

— E eu que estou semsaco de dormir? — perguntouBeto. — O que vão dizer demim?

— Ora — respondeu Dora—, vão dizer que você, Tamere Abdulh eram nossosescravos.

— Será que é assim queos arqueólogos de hojeinterpretam as escavações?— perguntou Sebastían.

— Espero que não —respondi.

A lua apareceu e as

estrelas perderam um poucodo brilho. A claridade, atéentão exclusiva do céu,estendeu-se pela areia e odeserto fundiu-se com aabóbada celeste; uma luzdifusa parecia brotar de todosos lados. Éramos pequenosdemais para intervir nessarealidade, então decidimosdormir.

Despertei com a claridadebrilhando nos meus olhos,uma faixa laranja colorindo o

horizonte, dourando osgrossos grãos de areia àminha frente. As estranhasformações rochosas refletiamvárias tonalidades de rosa,seus contornosfantasmagóricos recortando oazul-claro do céu, um jogo decores maravilhoso. Foi oamanhecer mais rápido quejá presenciei, pois em poucossegundos o dia havia setornado tão claro que nãodava para notar sinais dalonga noite.

Quando acordei porcompleto, vi Tamercomeçando a preparar nossodesjejum. Sem pressa, elereacendeu a fogueira da noiteanterior, colocando maisgalhos secos sobre as brasasadormecidas. Encheu umavelha chaleira de água comfolhas de chá de hortelã e acolocou sobre o braseiro,acrescentando blocos deaçúcar cristalizado quando olíquido já fervia. Chameimeus amigos e eles foram

despertando um a um, amagra Dora reclamando dedores nas costas.

— Que noite fria! —suspirou Beto.

Saímos dos nossos ninhose nos acocoramos em voltada fogueira, esperando pelabebida quente. Tamer alinhouas pequenas canecas dealumínio numa bandeja delatão e despejou o chá emcada uma delas de umaaltura de quase meio metro,formando um arco líquido

efervescente no ar. Quandocheias, as canecas ficaramcobertas com um colarinhoespumante, acrescentandobeleza à saborosa bebida.

Admirei-me com aprecisão dos gestos delicadosdo homem rude à minhafrente. Para mim, o desjejumnão passava de uma refeiçãoimprovisada no meio dodeserto, mas para ele, aocontrário, fazia parte darotina da sua vida desde quenascera, como se eu

estivesse preparando um caféna cozinha da minha casa.

A areia em volta do localonde dormíramos tinhamarcas de pequenaspegadas, algum animalnoturno nos visitara, atraídopelo cheiro dos nossosalimentos.

— Os rastros são deraposas — explicou Tamer.

Desmontamos oacampamento, arrumamos acarga nos camelos ereiniciamos nossa jornada,

cortando o belo e misteriosoDeserto Branco em direção aum ponto imagináriodeterminado por Tamer. Euachava que deveríamosseguir para a esquerda, masTamer nos levou para o ladodireito. Logo estávamosnovamente perdidos emnossos devaneios, nossasmentes percorrendo seupróprio território, viagensfictícias paralelas à linhaseguida pelos camelos.

Perto do meio-dia

paramos para recolhergravetos para o fogo doalmoço. Tamer explicou quelogo descansaríamos, e euresolvi seguir a pé,caminhando ao lado docamelo para descansar abunda da incômoda posição.Paramos ao lado de unsgrandes tufos de palmeiras,um abrigo naturalsurrealisticamente nascidoem meio à desolação doDeserto Branco.

Tamer cozinhou

demoradamente umagenerosa porção de full edepois esmagou cada um dosgrãos do feijão. Acrescentoucebola, moranga e tomate efez uma paçoca paracomermos com pão. Bebemoschá e nos esticamos umpouco. Não tínhamos pressa,não íamos a lugar algum.Nosso objetivo eraperambular pelo deserto,fazendo do caminho nossodestino.

— Somos mesmo do Clube

dos Viajantes Sem Destino —comentou Sebastían,completamente integrado aogrupo.

Na hora de levantaracampamento, estourou umvento muito forte, eresolvemos esperar eleamainar para seguirmosadiante. Nossa próxima etapacruzaria uma área totalmentedesprovida de abrigos, e comuma ventania tão intensa nãoteríamos condições deacampar ao anoitecer. Os

camelos foram amarrados aalguns metros de distância elogo ficaram camuflados emmeio à areia. Agachados paramelhor se protegerem, quasenão os víamos.

O vendaval soprava commuita força, levantando aareia como se o chãoestivesse em movimento.Uma espécie de mantodourado, com a altura de ummetro, cobriu o solo, varrendotudo que encontrava pelafrente e açoitando os

arbustos. Puxamos nossostapetes para junto do capãode palmeiras e nos abrigamosda tormenta, protegidos pelopequeno triângulo formadopelas árvores no lado opostoao vento.

A tempestade não cedeu epermanecemos confinadosem nosso bivaque até oanoitecer. Estirados sobre ostapetes, protegidos nos sacosde dormir sob os cobertores,passamos a tarde inteirabocejando e falando

bobagens. O único problemaera na hora de ir ao banheiro.Para não constranger nossaamiga francesa — e ela paranão nos constranger —precisávamos contornar aspalmeiras e enfrentar ovento, colocando a bunda natempestade de areia, umalixa natural a açoitar nossostraseiros.

Improvisamos ummacarrão no jantar edormimos até a manhãseguinte. Embora a

tempestade continuasse tãoforte quanto no início,tomamos rapidamente umchá e resolvemos seguiradiante. Mesmo nãoenxergando um palmo àfrente do nariz, decidimosapostar no sentido deorientação dos nossos guias.Eles garantiram que, seconseguíssemos suportar odesconforto do vendavalarenoso e topássemos seguirdireto, não teríamosproblemas em chegar ao

nosso objetivo antes doanoitecer.

Enfiei-me em meuanoraque de náilon comcapuz, coloquei os óculos desol e enrolei o turbante emtorno da cabeça, nãodeixando nenhuma parte docorpo exposta ao açoite daareia. Cada um se protegeucomo pôde e seguimos emfrente. Na altura em queestávamos a tempestade nãoera tão densa quanto pertodo chão, atingindo em cheio

os beduínos. Mesmo assimeles seguiam, passos largos,indiferentes ao vento, rumo aalgo existente apenas emsuas imaginações.

Até onde meus cansadosolhos podiam alcançar, era sóareia e mais areia emmovimento, um tapetemovediço lapidando ocascalho e esculpindoimagens retorcidas naspontas das grandes pedras.Eu não conseguia imaginar oque era mais desprovido de

vida, se o deserto ressequidoou o céu sem nuvens. A linhado horizonte se tornaraimperceptível, minha visãonão conseguia alcançá-la,esmaecida ora pela areia, orapelo azul desbotado doinfinito.

Trotamos toda a manhã etoda a tarde nessascondições. O ambienteexterno desfez-se porcompleto e nos voltamos paranossos devaneios interiores,nossos pensamentos vagando

por lugares ainda maisestranhos, cada um de nósprocurando despertar nofundo da nossa mentepensamentos que nosmantivessem entretidos nestelimbo onde o espaço e otempo nada significavam.Imersos em nós mesmos,nem as dores na bunda eramcapazes de nos trazer devolta ao mundo real.

Subitamente, comoobedecendo a uma ordeminaudível, meu camelo parou

e se ajoelhou, um movimentobrusco que quase mederrubou, absorto que estavaem viagens anteriores. Todosos animais pararam.Descemos e continuamos apé, puxando os teimososdromedários. Eles serecusavam a seguir emfrente, obrigando oscameleiros a gritar ordensestranhas e a açoitar osanimais com varas colhidasjunto a alguns arbustos.

Seguimos lentamente, e

menos de um quilômetrodepois encontramos aestrada, onde logo apareceuo veículo que nos levaria aooásis.

DAKHLA

Fomos apresentados aoNasser, proprietário de umvelho Peugeot, que por umaquantia razoável prontificou-se a nos levar até Mut, a

principal vila do oásis Dakhla,nossa próxima parada nadireção do Vale do Nilo,trezentos quilômetros asudeste de onde estávamos.

Dora regressou ao Cairo ede lá seguiu para a França.Sebastían, que deveria voltarpara Israel, gostou da nossacompanhia e me perguntouse poderia nos acompanharmais um pouco pelo Egito.

— Claro — concordei. —Nos próximos dias vamosmesmo precisar de um

segurança.Sacolejamos no ruidoso

automóvel até chegarmos aGharb el-Mawhoub, umpequeno oásis situado asetenta quilômetros de Mut,onde Nasser morava. Osimpático motorista nosconvidou para entrar novilarejo e conhecer suaresidência. O costume localrezava que as visitas fossemrecebidas com algo paracomer e beber, por isso fomosrecepcionados com chá-da-

índia e sementes de girassol.Sua filha pequena apareceuna sala, e foi só, não vimosnenhuma das mulheres dacasa.

O oásis Dakhla se estendepor uma depressão estreita ebastante longa, com dunas deambos os lados. Abriga cercade setenta mil pessoas, sendotreze mil em Mut, suaprincipal vila, abastecidas porseiscentas fontes de águanatural que brotam do chão

para irrigar as lavouras dearroz, mangas, laranjas,tâmaras, azeitonas epêssegos. Esses frutos,ressequidos, são vendidos noCairo na época do Ramadã.

Habitada desde a pré-história, durante o períodoNeolítico, a região estevecoberta por um grande lago.Pinturas rupestresrecentemente encontradasmostravam elefantes, búfalos,girafas, gazelas e avestruzesvivendo em suas margens. À

medida que as águas forambaixando e as terras setornando improdutivas, opovo foi migrando para leste,em direção ao rio, formandoos primeiros assentamentoshumanos no Vale do Nilo.

Mut nada tinha deinteressante além das ruínasda parte antiga da cidade, umlabirinto formado porestreitas ruelas ladeadas porcasas de tijolo cru, a maioriadesabando. Pretendíamosapenas dormir um pouco,

descansar da fatigantejornada pelo Deserto Branco,forrar o estômago com asiguarias da culinária local eseguir viagem em direção aoVale do Nilo.

Ao sairmos da pousada namanhã seguinte, Nasserestava nos esperando comseu velho Peugeot.

— Aonde desejam ir? —perguntou-nos. — Posso levá-los por um bom preço.

— O que há de importantepara conhecermos neste

deserto? — perguntei, poissabia que não iríamos noslivrar dele tão cedo.

Por certo dormira nopróprio carro, em frente aopequeno hotel, esperandoganhar mais alguns trocadoscom os curiosos estrangeiros,coisa rara nestas bibocas. Eletinha 42 anos, três filhos paracriar e sabe-se lá quantasmulheres para sustentar. E,pelo que me pareceu,ganhava a vida levando gentepara cima e para baixo na sua

velha sucata. Agora, comnossa presença, em vez dasfamigeradas libras egípcias,esperava encher os bolsoscom reluzentes dólaresamericanos.

— Fontes termais... —começou.

— Não temos interesse —atalhei.

— Caminhadas pelasdunas...

— Nem pensar! —respondeu Beto.

— Camelos...

— Estamos fartos decamelos — cortou Sebastían.

— Posso levá-los às ruínasdos povoados medievais deBalat, Bashendi e As-Qasr,para vocês verem como eramas aldeias do oásis antes dachegada dos árabes ao Egito.

— Está melhorando —respondi. — Mas ainda não éo suficiente para nos manteraqui por mais alguns dias.

Vendo que não seria fácilbotar as mãos em nossodinheiro, ele lançou sua

última cartada:— Conheço uma

montanha, perto da minhaaldeia, onde existem váriascavernas escavadas na rochacom tumbas de mais de doismil anos de idade — falou,esperando a nossa reação.Vendo o meu interesse,acrescentou: — Conheço umapessoa que sabe comoarredar umas pedras e entrarnuma caverna onde se podemver algumas múmias aindaintactas.

Avançamos para o norte, unstrinta quilômetros por umaestradinha secundária, aindadentro do oásis. Viramos paraoeste e pouco depoisdobramos à esquerda, emdireção ao sul, entrando nodeserto. Rodamos algunsquilômetros por uma trilhapedregosa e chegamos ao péde uma montanha rochosacom uma das faces todaesburacada, pequenascavernas, antigos sepulcrossaqueados durante os últimos

séculos.Subimos a encosta

íngreme resvalando naspedras ovaladas, lapidadaspelo áspero vento carregadode grãos de areia desdetempos imemoriais. Atémesmo minhas botas, comgrandes agarradeiras nosolado, derrapavam comfreqüência. Mas nossacuriosidade era tanta quelogo estávamos no topo damontanha.

O tal amigo de Nasser, um

sujeito com cara de coveiro eque morava pelos arredores,levou-nos para uma pequenaplataforma, arredou algumaspedras e nos mandou olhar.Ficamos petrificados com avisão. O túmulo não passavade uma caverna primitiva,escavada diretamente narocha, onde podíamos vervárias múmias lado a lado,cobrindo todo o chão. Amaioria jazia em perfeitaordem, outras não passavamde esqueletos cobertos com

panos esfarrapados ealgumas ossadas estavamcompletamente expostas,pouco mais do que uma sériede tétricas caveiras.

Embora fosse algocorriqueiro para essa gentedo fundão do deserto,“descobrir” uma tumba cheiade múmias com vinte séculosde idade foi realmenteextraordinário para nós.Fiquei agachado na entradada caverna, um poucochocado com a situação. Era

uma experiênciaterrivelmente estranha.Acostumado a chamar dehistóricos os cemitérios comduzentos anos, onde apenasas lápides continuampresentes, esta viagem peloEgito estava corrompendotoda a minha noção detempo. Ver assim, atirados nochão, os corpos, mesmoressequidos, de sereshumanos que tenham vividohá tanto tempo maisconfundia do que explicava,

subvertendo toda a noçãoque temos do sentido danossa existência na Terra. Eracomo olhar uma sucataretorcida, um motor antigojogado no ferro-velho paraser corroído pelo tempo.

Uma coisa é vermos umamúmia num museu, algopreservado para as geraçõesfuturas saberem como viviamas pessoas no passado, nadamais do que uma curiosidadecultural. Outra coisa bemdiferente é encontrar uma

série de múmias em seuhabitat natural, da formacomo foram enterradas. Porassim dizer, ao vivo!

Será que isso é tudo queresta de um ser humano apósalguns séculos? Será que avida acaba assim, mesmo queembalsamada? Ou será queainda existe alguma energianum corpo humano mesmoapós o que chamamos demorte? Será que os espíritosdessas múmias reencarnaramem outros corpos e continuam

suas jornadas? Ou será que jáestão no céu? Quem sabe noinferno? No purgatório, talvez.Ou apenas abandonados nodeserto, o mais provável.

O mexicano balançava acabeça, incrédulo, enquantoBeto tirava mil e uma fotos,todos aturdidos com asurpresa.

— Que triste destino paraum ser humano — disse Beto,quando finalmente alguémconseguiu falar.

Quando contornamos a

montanha para descer pelooutro lado, passamos emfrente a outra caverna, essacompletamente fechada.Perguntei ao coveiro sepodíamos afastar as pedraspara observar o interior. Elenão queria, mas comecei aremovê-las e logo abrimosum pequeno buraco que nospermitiu ver que tambémestava repleta de múmias.Com os flashes das câmerasfotográficas podíamosobservá-las melhor.

— Espero que nãosejamos amaldiçoados portermos violado os seustúmulos — comentouSebastían.

Eu ia falar-lhes sobre amaldição da múmia, masfiquei quieto, já estávamostensos demais com ainusitada visita.

Ficamos tão satisfeitosque sucumbimos aosencantos de Nasser:alugamos seu carro e durantealguns dias visitamos todos

os lugares sugeridos por ele,um sem-número de ruínasfaraônicas, greco-romanas eárabes; tumbas, mausoléus,mesquitas e minúsculasaldeias onde seu povo viviada mesma forma que seusancestrais viveram nosúltimos milênios.

Alguns povoados pareciammoradias de marimbondos:feitas de barro e tijolo cru,eram casas justapostas,construídas umas sobre asoutras, aléias estreitas e

cobertas para proteger osmoradores do calor, dossaqueadores do deserto e dastempestades de areia.Pareceu-me que, quandomortos e mumificados, elesteriam mais espaço paramorar do que quando vivos.

AL-KHARGA

Nasser nos colocou numavan e nos despachou para Al-Kharga, a principal vila dooásis Kharga, 189 quilômetrosmais a leste, de onde

pretendíamos seguir paraLuxor, no Vale do Nilo.

Passamos pela vila Balat,onde durante o AntigoImpério as caravanas vindasda Núbia encontravam-secom os mercadores quefaziam a rota Mut/Al-Kharga,um importante mercado naépoca dos faraós. Andamosum pouco mais, e aopassarmos por Teneida, umapequena aldeia, ouvi domotorista uma históriahorripilante.

— Quando os italianosconquistaram o oásis Kufra,na Líbia, em 1930, algunsnômades da região preferiramarriscar suas vidas no desertoa viverem sob controleestrangeiro em sua própriaterra. Cerca de quinhentaspessoas, homens, mulheres ecrianças, saíramapressadamente eatravessaram mais detrezentos quilômetros peloGrande Mar de Areia atéchegarem a Uwaynat, na

fronteira com o Egito. Apenaspara descobrirem que lá nãochovia fazia anos.

— Morreram? — perguntei,esperando pelo pior.

— Sem comida para eles eseus camelos, alguns ficarampor lá, esperando a morte.Outros, mesmo sem conhecera região, decidiram continuara pé até Dakhla. Por sorte,uma patrulha britânicaencontrou o grupo que ficouem Uwaynat, conseguindosalvar muita gente.

— E os que vieram paraDakhla?

— Após 21 diascaminhando pelo deserto,três deles chegaram aTeneida. Uma operação deresgate foi montada paraajudar os que haviam ficadopelo caminho. Os nômadeseram tão resistentes quecerca de trezentos delessobreviveram.

— Qual foi a distânciapercorrida a pé de Uwaynataté Teneida? — perguntei.

— Quase setecentosquilômetros. Sem água.

Um pneu furou eprecisamos trocá-lo no olhodo sol. Fiquei imaginandocomo seria perambular poresta imensidão dias a fio,sem água e sem comida,fugindo de uma guerra entreeuropeus, gente do outro ladodo mundo, bárbarosespalhando medo e terrorpelas pacíficas comunidadesdo deserto africano.

Chegamos a Al-Kharga

tarde da noite e fomos diretopara um hotel, a mais baratadas hospedarias citadas emmeu guia de viagem, e a piorencontrada no Egito. A únicavantagem era cada um ter oseu próprio quarto.Estávamos em 16 defevereiro, Dia do Repórter, eimaginei que ficar sozinhoseria um prêmio emhomenagem à minhaobstinada profissão, escolhidaainda na adolescência,influenciado pela

possibilidade de viajar e pelosgrandes relatos radiofônicostransmitidos pelas emissorasde Porto Alegre.

Entrei no quarto e acendio pequeno e sujo bico de luzque pendia do teto, na pontade um fio desencapado,envolto em tantas teias dearanha que a luminosidadequase não conseguia filtrar-sepor elas. A súbita claridade,mesmo que tênue, e o rangerdos meus passos no pisoencardido amedrontaram os

habitantes permanentes doquarto, fazendo-os saltar emtodas as direções, dando vidaao ambiente até então inerte.

Subitamente despertados,arrancados da letargia emque viviam no seu adoradomundo imundo, moscas comcabeças enormes, mosquitoscom longas pernas,percevejos, pequenoscamundongos, lagartixasbranquelas, aranhas pretas,lacraias, escaravelhos ebaratas de tamanho

descomunal dispararam emdireção aos seus esconderijosnas frestas das portas, noarmário, embaixo da cama edentro do colchãoesfarrapado.

Ficou claro já nesseprimeiro contato, tão logominha enorme sombra seprojetou sobre eles, que osdanados tinham aversão aoser humano. E com bonsmotivos, pois do ponto devista puramente biológico —essa é a visão deles —

representamos uma pragacom um potencial dedestruição bem maior do queo mais violento deles.

Visão, aliás, com a qualconcordo plenamente.

Ao vê-los reagir comtamanho nojo e repugnância,debandandoatabalhoadamente diante daminha presença, pude sentirque me consideravamamedrontador, desagradávele repulsivo. Melhor assim,pensei, enquanto estendia

meu lençol de náilon sobre acama para que meu saco dedormir não precisasse entrarem contato com os lençóissebosos.

Bastou apagar a luz para aharmonia voltar a reinarnesse pequeno mundo, cadaum no seu devido lugar:insetos para um lado,jornalista para o outro.

A estrada para Luxor, noleste, estava bloqueada paranão-egípcios. Não havia

transporte coletivo e ostaxistas não quiseram noslevar até lá: temiam osperigos dessa região doSaara. Não ficou bem claro;nem eu nem Beto ouSebastían conseguimosentender se eles tinhammedo de nós, dos terroristasislâmicos, da polícia ou doExército Egípcio.

Conferir as informaçõescom várias pessoas para nãosermos passados para tráspor algum espertalhão nem

seguirmos orientaçõeserradas às vezes maisatrapalhava do que ajudava.Cidadãos sem interessecomercial em nos prestar esteou aquele serviço acabavamnos dando sugestõesconflitantes, aumentando aconfusão. Sem contar osproblemas com a língua,como o risco das perguntasafirmativas, tipo “esse ônibusvai para tal lugar?”. Mesmonão tendo compreendido apergunta, mas para não

parecerem grosseiros,acabavam dizendo que sim,uma maneira polida de selivrarem de perguntas quelhes fugiam ao entendimento.

Para azar de quemembarcasse no dito ônibus!

Além desses contratemposcorriqueiros em viagens comoa que vínhamos fazendo,notei uma certa inquietudedas pessoas sempre que nosaproximávamos comperguntas sobre transportepara Luxor, o principal centro

turístico do Egito.— Algo não está me

cheirando bem — foi ocomentário de Sebastían.

O mexicano tinha lá osseus medos. Era judeu eestava vindo de Israel,cruzara a fronteira egípcia noSinai. Beto Scliar também erajudeu, e eu desconfiava quehavia algum tempo nossospassos estavam sendomonitorados pelasautoridades do país, intuiçãodespertada pelo nosso

encontro nada casual com oprefeito de Qars al-Farafra.

Pela primeira vezproblemas étnicos e religiososme pegavam na estrada.Acostumado a acompanhar oconflito entre árabes e judeuspela mídia brasileira, grandeparte alimentada pelasagências de notícias norte-americanas, dominadas pelosjudeus, só agora medeparava com a questão navida real.

Tinha a polícia medo de

que dois judeusperambulando livrementepelo interior pudessemdespertar a ira de algumgrupo muçulmano radicalbaseado nos arredores deAsyut? Ou, pelo contrário,estavam com medo dosrapazes — o mais velho comdois passaportes, um delessupostamente falso — seaproximando sorrateiramentede Luxor, onde pouco tempoantes turistas forammassacrados por terroristas

quando visitavam o templo dafaraó Hatshepsut, umatragédia que abalou aeconomia do Egito por faltade visitantes nos anosseguintes?

Beto fotografava e filmavaaté a sombra dos egípcios.Suas câmeras, lentes e tripéschamavam a atenção de meiomundo por onde passávamos.Sebastían tinha umaminúscula câmera digitalutilizada para fotografar efilmar, algo que fazia de

modo extremamente discreto.Apesar do seu tamanho, eraum sujeito meio tímido. Mas oque poderia ser chamado dediscreto por uma pessoacomum poderia muito bemser classificado comocamuflado por qualqueragente de inteligência políticade um país apavorado com oterrorismo. E como euentrava nessa história, umcara fazendo perguntas atorto e a direito econtinuamente tomando

notas em todos os lugares poronde passava?

— Só há uma maneira dedescobrirmos se há algoerrado conosco — eu dissepara Sebastían.

— E qual é? — perguntouBeto, também preocupadocom nossa situação.

— Seguir em frente e verno que vai dar — respondi.

Quinta Parte

—O Vale do

Nilo

ASYUT

Após muita indagação,acabamos descobrindo que asolução — pelo menos foi oque a maioria nos disse — eraseguirmos para Asyut,

também no Vale do Nilo, 240quilômetros ao norte, ondepoderíamos embarcar numtrem para Luxor. Era umdesvio e tanto, mas nãotínhamos alternativa.

— Já que vamos até Asyut— comentei com Sebastían—, podemos visitar Tell al-Amarna, um pouco mais aonorte.

— Tell al-Amarna? — eleperguntou.

— É um dos lugares maisintrigantes de todo o Egito,

com uma história deencantamentos e maldiçõesque chegam até os diasatuais — respondi.

Um táxi que saía paraAsyut com quatro passageirosegípcios resolveu nos levarjunto; pagávamos em dólaresamericanos, uma iscadificilmente recusada emqualquer canto miserável domundo. Iniciamos aconturbada viagem logo apóso almoço, e ao atravessarmosa periferia de Al-Kharga

fomos parados num postopolicial. Perguntaram nossasnacionalidades, para ondeestávamos indo, e nosmandaram seguir viagem.Achei que ficaram aliviadosquando expliquei queseguiríamos até Asyut, ondepretendíamos embarcar paraAssuã, demorando-nos omínimo possível na cidade.Pareceu-me que não citarLuxor ou Tell al-Amarna osdeixou mais calmos.

A saída do oásis foi muito

bonita. A subida íngremeencaracolada nas escarpas dadepressão nos levounovamente ao planaltodesértico do Saara. Passamospor Al-Munira, um dos maisinfames presídios egípcios, elogo fomos parados numaoutra barreira de controlepolicial. Era bem maior que aanterior, administrada peloexército. Já sabiam da nossapresença no veículo, por certoavisados pelos policiais nasaída da cidade. Mandaram-

nos descer, perguntaramaonde íamos e recolheramnossos passaportes, liberadosalguns minutos depois.

— Agora vamos precisarmesmo ir até Assuã — Betocomentou comigo.

— Quando chegarmos emAsyut resolveremos o quevamos fazer, se ficamos nacidade, seguimos para Luxorou visitamos Tell al-Amarna— respondi-lhe, nem de longeimaginando o que nosaguardava.

Fomos fiscalizados emmais dois postos policiais,documentos conferidos eliberados, e sempre nosperguntavam pelo nossopróximo destino. Quandochegamos em frente àentrada do aeroporto, a trintaquilômetros de Asyut, fomosnovamente parados, não emum posto de controle, masnuma barreira montada narodovia. Dessa vez o policialque chefiava a operação faloudemoradamente pelo rádio

com alguém, com certeza umsuperior, antes de nos liberar.O motorista e os outrospassageiros acompanhavamtudo, mas não falavam entresi nem conosco, numa atitudeclaramente defensiva.

Cinco quilômetros adiantefomos mais uma vez parados,agora por um comboio militar.Após uma longa conversaentre o oficial e o nossomotorista, seguimoscustodiados pelos veículosmilitares. O carro do

comandante na frente, comcinco soldados armados commetralhadoras, fuzis epistolas automáticas; nossotáxi e uma outra picape atrás,repleta de soldados portandoarmas pesadas.

O comboio parou umpouco mais adiante. O oficialnos mandou descer e colocarnossas mochilas na picape, enos convidou para viajar nasua viatura, liberando o táxi,que seguiu apenas com osegípcios — aliviados!

— Agora entendi por que otaxista exigiu nossopagamento adiantado —comentou Sebastían.

— Será que ele sabia doque estava por vir? —perguntei.

— É possível — respondeuo mexicano. — Ele não abririamão do nosso dinheiro.

Passamos por um conjuntode prédios que me pareceuum complexo militar,cruzamos uma regiãoinfestada de grandes

indústrias e logo foramsurgindo muitos casebres, umsinal claro de que estávamosentrando na periferia dacidade.

Eu queria saber seestávamos diante de umaoperação de rotina ou se apresença do comboio nosaguardava havia sidodeterminada por nossaentrada na região. Mas oclima estava carregado,ninguém dentro da viaturaparecia sentir-se à vontade.

Os militares estavam tensos;nós permanecíamos de olhosarregalados. O excesso dearmas à nossa volta, mais doque os soldadosuniformizados para a guerra,criava a desagradávelsensação de violência, algoque poderia irromper aqualquer momento,dependendo apenas de ummovimento em falso dealguém.

Eu continuava com medode perguntar o que se

passava, se estávamos presosou que tipo de operação eraaquela. Na verdade, eu queriaprotelar o máximo possívelqualquer tipo de decisão,tanto da parte deles quantoda minha. Enquanto nossasituação estivesse sendoadministrada com essaambigüidade, tudo erapossível, inclusive algumanegociação extra-oficial. Ossoldados pareciam ainda maiscautelosos em entabular umaconversação, mas aos poucos

foi ficando evidente quealguém deveria fazer algo,pelo menos tentar esclarecerqualquer mal-entendido quepudesse estar havendo. Porfim me apresentei, naesperança de que o oficialfizesse o mesmo.

— Meu nome é MohamedMahmud — ele se limitou aresponder.

Não era muito, mas já eraalgo. Imaginei que o futebol,como sempre, seria um bomassunto para desanuviar o

ambiente.— Você gosta de futebol?

— perguntei.— Sim — ele respondeu

secamente.Um a zero, pensei.— O Egito se candidatou a

sediar a Copa do Mundo de2010... — arrisquei.

— É verdade.— Caso seja o escolhido,

vocês vão receber muitostorcedores brasileiros — eudisse.

Isso foi o que eu disse,

mas o que estava tentandodar a entender era que“muitos outros iguais a nósaparecerão por aqui... e aí, oque vocês vão fazer, prendertodo mundo?”.

— Seria muito bom paranós. Nosso país precisa deturistas.

Dois a zero!— Nós somos jornalistas e

uma das nossas funçõesnesta viagem é escreversobre as possibilidades de oEgito sediar a Copa... —

menti, esperando aliviar anossa barra.

— Espero que vocêsgostem do Egito — elerespondeu. E acrescentou, emoutro tom de voz, bem maisamável: — Nós gostamos detratar bem os visitantes. Éuma pena que já estejaterminando o horário do meuexpediente, preciso voltarlogo ao quartel. Não fosseisso, eu convidaria vocês paratomarmos um cafezinho.

Três a zero!

— Fica para quandovoltarmos para a Copa doMundo — eu disse.

— Combinado — ele faloude um modo bem maisrelaxado.

Goleada!— Vocês sabiam que

estávamos vindo por estaestrada? — ataquei antes queele se refizesse da súbita boavontade com os jornalistasbrasileiros, cujas opiniõescertamente seriam levadasem consideração pela FIFA na

hora de escolher o país-sededo Mundial.

— Sim — ele disse, pelaprimeira vez virando-se paratrás para falar comigo. —Quando vocês pararam noprimeiro posto de controle emostraram os passaportes,nossos colegas de lá nospassaram um rádio. Por issoviemos ao encontro de vocês.

Então não era umaoperação de rotina, masmobilizada por nossa causa.Estaríamos presos? Afinal,

havíamos cruzado umterritório não permitido aosestrangeiros. Estaríamos sobcustódia militar? Ou eraapenas uma proteção contraos terroristas que infestavama região? Eu não queriaperguntar, poderia precipitaras coisas. No momentoestávamos sendotransportados com segurança,e isso era tudo. Se eledesejasse que soubéssemosmais sobre o assunto, já terianos revelado.

Entramos na cidade efomos levados diretamentepara a estação ferroviária.Mohamed Mahmud nosapresentou a outro oficial queestava nos esperando naentrada do prédio juntamentecom um grupo de soldados,também fortemente armados.

— Vocês estão indo paraAssuã, certo? — disse o novooficial, muito mais umaordem do que uma pergunta.

— Sim... — balbuciei.Assuã fica ao sul de Luxor,

por onde o trem passaria demadrugada. Não era bem oque havíamos planejado,mas, dadas as circunstâncias,se conseguíssemos nos safardessa enrascada iríamos paraqualquer lugar do Egito.Visitaríamos Luxor maistarde.

— Então venham.Ele nos levou até o guichê

de passagens, falou com ofuncionário e me informouque havia um trem saindo às18h30, dentro de meia hora,

portanto.— Queremos três

passagens na primeira classe— solicitei.

— Este trem não temprimeira classe — o bilheteirorespondeu. — Só segundaclasse.

— Então não vamosembarcar — respondi aooficial. — Não vamos viajar anoite toda numa segundaclasse.

— Vocês precisam pegaresse trem — ele insistiu.

Minha péssima experiênciana Índia havia me afastadodefinitivamente da segundaclasse dos trens orientais.Além do mais, eu achava quejá estava na hora de testar ahospitalidade egípcia.Estávamos presos ou elesqueriam apenas nosproteger? Essa era aoportunidade para descobrir aresposta.

— Há um trem às 23h30com primeira classe —explicou o funcionário da

ferrovia, notando o impasseentre nós e os militares.

— Então esperamos essetrem — respondi.

Eu não estava satisfeitocom a situação, mas tambémnão queria provocar maioresconflitos. Pretendia espicharos nossos direitos o máximopossível, mas não tanto quepudesse romper a frágilconfiança arduamenteconquistada junto às forçasde segurança. Beto eSebastían estavam cuidando

das mochilas num dos cantosdo saguão da estação, e de láacompanhavam o desenrolarda história. Também estavamdescontentes, mas tinhammenos intenção ainda decausar confusão.

— Vocês vão esperar até23h30? — perguntou o oficial.

— Sim.— É muito tempo.— Vamos dar uma

caminhada pela cidade —respondi.

— Não podem — falou o

oficial, extremamentecontrariado com a situação.

— Por que não podemos?— perguntei.

— É muito perigoso.— Nós sabemos nos

cuidar, somos viajantesexperientes — afirmei.

Diante da minhadeterminação, ele resolveupostergar o problema.Conduziu-nos para a cantina,dentro da área de embarque,onde ingressamos passandopor um detector de metais,

como faziam todos os outrospassageiros. Na cantina,mandou que deixássemos asmochilas num canto e disseque poderíamos comer algo,tomar um chá, enquantoesperávamos o trem.

— Nós vamos sair parajantar — eu disse, depois deacomodar nossas coisas.

— Jantem aqui dentro —ele insistiu.

— Queremos jantar nacidade — falei, sem deixardúvida sobre as minhas

intenções. — Queremos umbom restaurante.

— Vocês conhecem acidade? — ele perguntou.

— Não.— Então por que vocês

querem sair para jantar nacidade?

— Exatamente paraconhecê-la — eu disse.

Vendo que não haviasaída, eu estava mesmodecidido, ele chamou quatrosoldados, armados com fuzise metralhadoras, e mandou

que nos acompanhassem aum restaurante do outro ladoda rua. Comemos galinhacom arroz e tomamos chá,dividindo a mesa com nossaenigmática escolta.

Foi tudo o queconseguimos.

Eu gostaria de teraproveitado as horas deespera caminhando a esmopor Asyut, observando aspessoas, o visual das vitrinas,o tráfego apressado do fim detarde. Espreguiçar-me numa

praça e ficar xeretando a vidaalheia sem a preocupação deser perturbado por alguém.Enfim, não estar na cidadeapenas de corpo.

A polícia deveria controlaros terroristas, não os turistas.A sensação que tive foi dealguém que perdeu aliberdade. Ao atravessar a ruacom um bando de policiaisem meus calcanhares, e comtodos os transeuntes meolhando com espanto, senti-me constrangido, como se

tivesse cometido algumairregularidade. Faltava-meapenas um par de algemasnos punhos, pensei.

Na volta, ficaram nosrodeando até a chegada dotrem. O oficial era o único afalar inglês, não havia comoconversar com os outrosmilitares. Mas elespermaneciam quase grudadosem nós, fazendo um bolinhoao nosso redor, como a nosproteger de algum inimigoinvisível prestes a lançar suas

balas em nossa direção,provocando uma situaçãobem desagradável. QuandoBeto saiu sorrateiramente emdireção ao banheiro, trêssoldados partiram no seuencalço perguntando, aosgritos, aonde ele pensava queia. Beto explicou e eles oacompanharam.Constrangido, o pobre rapazvoltou sem resolver seuproblema.

Fomos levados para aplataforma de embarque e

quando o trem chegou, ogrupo nos acompanhou até ovagão. O oficial mandou ochefe do trem guardar nossabagagem num compartimentochaveado, no vestíbulo dacomposição. Casoprecisássemos de algo emnossas mochilas durante anoite, não teríamos acesso.Ele indicou nossas poltronas esó desembarcou ao ouvir oapito da locomotivaanunciando a partida.

Ante os olhares curiosos

dos demais passageiros emeu cansaço físico, minhairritação mental e meudesconforto emocional, fecheios olhos, cobri o rosto commeu boné e só acordei àssete horas da manhã, quandonosso expresso entrouapitando na gare de Assuã.

ASSUÃ

Situada logo abaixo daprimeira catarata (existemoutras cinco no Nilo, todas noSudão), durante milêniosAssuã foi a porta sul do Egito,

importante entroncamento decaravanas de elefantes (aregião era habitada porelefantes até pelo menos2600 a.C.) e camelos quetransportavam escravos,ouro, marfim, especiarias eroupas. Chamava-se Swenet(comércio), nome mais tardeadaptado para o árabe As-Suan (mercado).

Seu templo principal,dedicado a Khnum, o deus-carneiro, criador dahumanidade e protetor das

cataratas, a sua esposa Satise a sua filha Anukis, ficava nailha Yebu (elefante), depoisrenomeada pelos gregos deElefantine. Fortaleza naturalprotegida pelas turbulênciasdo rio, a cidade se tornoucapital do primeiro Nome(Estado) do Alto Egito, alémde potente base militar,utilizada pelos faraós paraatacar a Núbia, o Sudão e aEtiópia.

Atualmente o lugar é bemmais modesto. O templo

dedicado ao grande deus estáem ruínas e na parte norte dailha vivem duas pequenascomunidades de refugiadosnúbios. A moderna Assuã ficana margem oriental do Nilo,em frente à ilha Elefantine, etem poucos atrativos: umapedreira de granito onde sepode ver um obeliscoinacabado com 42 metros decomprimento e pesando1.168 toneladas, abandonadono próprio local onde estavasendo talhado devido a uma

inesperada rachadura numdos lados; um museu queprocura preservar a culturanúbia, cujo país, após seranexado pelo Egito,desapareceu sob as águas dolago Nasser, represadas pelafamosa barragem de Assuã; aprópria barragem e o hotelOld Catarata, sem dúvida umdos lugares mais charmososdo mundo, construído noinício do século XX parahospedar a nobreza européiaque vinha passar férias.

Aproveitamos os dias nacidade para descansar daextenuante travessia dodeserto e preparar nossadescida pelo Nilo até Luxor.Obviamente, eu não haviadesistido de visitá-la de formaindependente, sem precisarme integrar a um grupoturístico oficial, e imaginavaque, descendo o rio numafaluca, os tradicionais veleirosque sobem e descem essaságuas desde os tempos dosfaraós, conseguiria passar

despercebido pela PolíciaTurística. Ficaríamos à mercêde possíveis grupos rebeldesao longo do caminho, mas senos mantivéssemos afastadosda costa, não despertando aatenção dos moradores dovale, a camuflagemfuncionaria.

Pelo menos era o que euesperava.

Havia muitas dessaspequenas falucas em Assuã,utilizadas para rápidospasseios turísticos em volta

dos grandes hotéis. Seencontrasse algum marujomais sensível a um punhadode dólares, tinha esperançasde que ele topasse descer orio conosco, mesmo que issosignificasse afastar-se de casapor vários dias. Os núbios atéhoje não se integraramtotalmente à sociedadeegípcia. Conservam sualíngua, seus costumes e umacerta rebeldia em relação aogoverno. Eu contava comesse espírito aventureiro,

embora soubesse que velejaraté Luxor fosse umaempreitada extremamenteárdua. O Nilo corre para onorte, mas os ventos sopramsempre do Mediterrâneo parao continente, tornando aslongas travessias lentas edesconfortáveis.Precisaríamos levarremadores para vencer ascalmarias, o que demandariamais gente no barco.

— Se conseguirmos pelomenos sair de Assuã e

navegar durante uns quatroou cinco dias, poderemosdespistar a polícia e pegar umônibus local até Luxor —sugeri aos meus parceiros.

— Estou dentro —respondeu Beto, com aimediata concordância deSebastían.

Acomodados num hoteldentro do nosso orçamento,cuja sacada tinha umapequena vista para o Nilo,nos dividimos. Meus jovenscompanheiros tinham

interesses comuns, passavamos dias conversando sobremúsica, apreciando omovimento das belaseuropéias passeando pelobulevar ao longo do rio, ounos quiosques com Internet,teclando com seus amigos aoredor do mundo. Eu preferiaficar sentado à toa nosbancos da praça central ougastar minhas tardes vagandosem motivo pelocongestionado mercadopúblico, o verdadeiro coração

da cidade — que pouco haviamudado nos últimos séculos!—, e terminar meu diaapreciando o pôr-do-soltomando um bule de chá navaranda do Old Catarata, emfrente ao Nilo.

Palacete com aresvitorianos, o mais famosohotel do país, com seusterraços de arcadas mouriscascom vista para o rio, teve suaparte externa utilizada comocenário do filme Morte noNilo, baseado no livro

homônimo de Agatha Christie,escrito no próprio hoteldurante uma das costumeirasvisitas da escritora ao Egito.

O interior árabe édecorado com as lendáriaslitografias do escocês DavidRoberts, feitas em 1838, e eleestá localizado em meio a umfrondoso jardim, na ribanceirado Nilo, que corre lá embaixo,espremido entre pedrasgigantescas. Distorcidas, suaságuas serpenteiam furiosascom grande rapidez,

espumando e quebrando aárida monotonia do desertoque as aprisiona.

No meio do rio está aponta sul da ilha Elefantine,com o templo dedicado aodeus Khnum sendorestaurado. Mais ao longe,por sobre a barranca do ladooposto, podemos ver algunsmausoléus e o deserto semfim, coberto por umentardecer milagroso.

Segundo os viajantes maisexperimentados do mundo,

ninguém deveria morrer semse hospedar, pelo menos umavez, no histórico hotel paratomar chá ao pôr-do-sol. Meuorçamento não permitia talproeza — instalar-me numasuíte com sacada para o Nilo,cuja diária custava US$ 1.217—, mas para um furtivochá..., desde que resolvesseum pequeno problema.Atração da cidade pela suatradição e esplêndida vista,ele passou a ser visitado porbandos de turistas, que

perturbavam o sossego dosseus freqüentadoresendinheirados a ponto de agerência proibir a entrada denão-hóspedes em seu recinto.

Mas nada que umapequena lamúria nãoresolvesse...

Meu primeiro pôr-do-solvisto de um dos alpendres dohotel, pouco depois da horado chá, foi um dos momentosmais marcantes da viagem.Após percorrer seus jardins,dar um discreto mergulho na

piscina e ter uma breveconversa com os segurançasno ancoradouro junto ao rio láembaixo, subi por umaescada perfumada por floressilvestres e me dirigi a umapequena plataformaprojetada sobre a barranca dorio, pouco mais de umadezena de metros acima dassuas águas turbulentas.Protegido do penhasco poruma mureta de pedras, oterraço estava cheio demesinhas atendidas por um

pequeno bar no centro.Sentei-me em frente a umcantor núbio tocando cançõesfolclóricas numa viola, pedium bule de chá e me prepareipara o espetáculo.

Uma faixa laranja seesparramou diante dos meusolhos, pintando de sépia aencosta oriental dasmontanhas rochosas cobertasde areia. Aos poucos, assilhuetas das tumbas nohorizonte foram recortando acena em pequenos pedaços

negros, enquanto lá embaixo,no leito do rio, os marinheirosnúbios recolhiam as velasbrancas das falucas edeslizavam suavemente pelaságuas escuras em direção àssuas casas na ilha, únicopedaço de terra que lhessobrara da sua outrorapoderosa pátria.

Logo uma pequena nesgada lua nova começou a surgirno horizonte, pouco acima dolocal onde o soldesaparecera, fazendo o dia

trocar de lugar com a noite.Um pouco mais acima, surgiua primeira estrela. A lua ficoupoucos minutos no céu etambém desapareceuengolida pelo Saara, deixandoa estrela solitária ainda maisbrilhante. Um manto negrocobriu o deserto, e tanto o riocomo o céu foram tomadospor incontáveis estrelas.

Era a noite chegando paramudar o comportamento daspessoas, dar-lhes de umanova tarefa.

No início dos tempos,havia apenas uma sopaprimordial, um mar líquido einerte envolvendo a Terra. Aoacordar, Aton, o deus-sol, pôsfim ao caos e à escuridão,tirando da sua própriasubstância os deuses que oauxiliariam: Shu, o ar, eTefnut, a umidade. Esseengendrou Nut, a deusa docéu, e Geb, o deus da terra,dos quais nasceram Ísis,Osíris, Seth e Néftis.

Um belo dia, Aton se

cansou de tão árdua tarefa esubiu ao céu, entregando aTerra aos faraós eincumbindo-os de manterem-na a salvo das constantesameaças da escuridão. Porisso, no Egito nada estáassegurado, tudo recomeça acada dia, cíclico como asenchentes do Nilo. Assim, apartir de agora, com o deus-sol ausente, cabia a nós,humanos, preservar a suaobra até o raiar do novo dia,uma obra ameaçada pelas

forças do caos, liberadasassim que o criador-guardiãomergulhou no horizonte.

Bastava fechar os olhos,deixar-me impregnar pelosom da viola do músico núbioà minha frente, para sentirtodas as divindades do AntigoEgito baixarem sobre o OldCatarata e me envolveremcom seu manto confeccionadocom pedaços de infinitosmistérios.

Uma rápida corrida de táxi

até Shellal, no lado sul davelha barragem de Assuã, apouco mais de dezquilômetros da cidade, ealguns minutos numa lanchaimpulsionada por um motorde popa e chegamos aofamoso templo dedicado àdeusa Ísis, a grande popstarda Antiguidade, construídoem meio aos rochedos daprimeira catarata.

A partir de 1902, com aconstrução da velha barragemde Assuã, a ilha Filae, onde

ficava o complexo, passavasubmersa seis meses por ano,período em que as águaseram represadas. Quandotodos imaginavam que essetesouro da humanidadeficaria completamenteperdido, ironicamente ele foisalvo por outra obra, a nova egigantesca barragem deAssuã, capaz de inundar umaárea muito maior. Graças aopatrocínio da Unesco, entre1972 e 1980 as construçõesem Filae foram desmontadas,

pedra por pedra, ereconstruídas em Agilkia, umailha próxima, vinte metrosmais alta, a salvo do lagoNasser, na mesma posiçãoem que estivera a construçãooriginal.

Surgido no delta do Nilocomo uma crença local ereverenciado em Filae a partirdo século VII a.C., o culto aÍsis expandiu-se por todo opaís. Ela e seu irmão-esposoOsíris, deuses reinantes sobrea Terra, povoaram o Vale do

Nilo e ensinaram aoscamponeses as técnicas daagricultura e as regras dacivilidade, trazendo paz eprosperidade para o povo,fato responsável pela idolatriados antigos egípcios peladupla.

A vida deles não foi fácil,apesar de todo o seu poder.Casal belo, feliz e poderoso,logo atraiu a inveja dosoutros deuses. Seth, irmão deOsíris, acabou seapaixonando por Ísis, e,

enciumado, atraiu Osíris parauma armadilha, tentandolivrar-se do rival. Ao recebê-lopara um grande banquete,Seth o trancou num caixão eo jogou no Nilo para quemorresse. Ísis, com seuenorme poder mágico,conseguiu encontrar o maridoe escondê-lo provisoriamentenum pântano, deixando-o asalvo do perverso irmão-cunhado.

O vingativo Seth, aodescobrir o esconderijo

durante uma caçada de javali,retalhou o corpo de Osíris eespalhou os pedaços pelo rio.Ao saber da nova tragédia,Ísis, inconformada, saiu umavez mais à procura do esposo,auxiliada pela irmã Néftis.Após longa e sofrida busca,ela finalmente encontrou ospedaços de Osíris, comexceção do falo, comido porum peixe, e os embalsamoucom a ajuda de Anúbis, odeus-chacal da mumificação.A deusa não perdeu tempo:

transformou-se numa ave e,ao bater as asas, fez Osírisressuscitar, restituindo-lhe omembro perdido. Em seguida,planando suavemente sobre ocorpo do bem-amado, incitousua virilidade para unir-se aele, gerando Hórus, criandouma nova vida a partir de umdefunto. Cumprida a profecia,Osíris pôde finalmente seguirpara o além, tornando-se oprotetor dos mortos, cujoreino passou a governar.

As lágrimas de Ísis, que

volta e meia chorava a mortedo esposo, eram responsáveispelas cheias periódicas doNilo. Mesmo assim, e apesarde todo o sofrimento que lheatormentava o coração, elacriou o menino, protegendo-ode Seth, pois sabia que algumdia ambos iriam disputar otrono do Egito.

Seth tentou trapacear,alegando que Hórus não erafilho de Osíris. Isso os levou aum impasse, e duranteoitenta anos os deuses

discutiram quem deveria ser oherdeiro. Segundo o Livro dosmortos, certo dia Rá disse aHórus: “Deixe-me ver o quese passa em teus olhos.” Paraexaminá-los melhor, mandouHórus olhar “para aqueleporco negro”, e aí o olho dodeus-falcão imediatamente seferiu. Segundo o texto, issoaconteceu porque o porco, naverdade, era Seth disfarçadopara atacar Hórus. Comocastigo, Rá ordenou quedaquele momento em diante

o porco fosse consideradouma criatura abominável, oque explica o fato de osegípcios não comerem suacarne nem beberem seu leite,costume mais tarde adotadopelos judeus e pelosmuçulmanos.

Ajudada pela maioria dosdeuses, Ísis utilizou toda asua magia para combater oassassino do esposo e, depoisde longas peripécias, Hórusacabou ocupando o trono.

Daí em diante, todo faraó

passou a ser um Hórus e,após sua morte, um Osíris, oSenhor do Mundo Inferior.Enquanto isso, Ísis acumulouas funções de mãe exemplar,protetora das crianças e dasmulheres grávidas, além deassegurar a fecundidade e afertilidade da Terra. Por terressuscitado o esposo,permitindo a todo homemalcançar a vida eterna, é elaquem intercede a favor dosdefuntos.

No período greco-romano,

o templo de Filae foiconsagrado a Ísis, e umainscrição num dos pilonosdava uma idéia do seu poder:“Grande e poderosa soberanados deuses, cujo nome asdeusas exaltam, dona damagia benéfica que expulsa odemônio pelas palavras deseus lábios. Sem o seuconsentimento ninguémousaria pisar o chão dopalácio: só a sua vontadepode coroar reis. É chamadafonte de vida, pois dá vida à

Terra, e cada um vive o queela ordena. Tudo leva a suamarca, e nada se realiza semela, no céu, na Terra ou noalém.”

A partir da conquistaromana, esse poder seespalhou e ela se tornou amais adorada das divindadesegípcias, idolatrada em quasetodas as partes do mundo, daÁfrica às ilhas britânicas.

Os sacerdotes de Filaeforam os últimos a resistir àcristianização do Império

Romano. Mesmo depois queRoma adotou o cristianismo,o culto a Ísis continuou maispopular do que a novareligião por muito tempo.Ironicamente, muitas vezesconfundida pelos fiéis com aprópria Virgem Maria (as duasmães divinas deram à luz semum genitor e tanto uma comoa outra foram representadasamamentando a criança-rei),ela foi venerada em Filae até550 d.C., dois séculos depoisde o paganismo ter sido

proibido por Roma. E assimmesmo porque o imperadorJustiniano mandou fechar ostemplos da ilha.

Nos séculos seguintes,foram construídas igrejascristãs junto ao complexo, asala hipostila foi transformadanuma capela e os baixos-relevos em suas paredesforam rasurados,considerados símbolospagãos. Quando osmuçulmanos tomaram oEgito, pelos mesmos motivos

danificaram as inscrições etransformaram o lugar numsítio islâmico. Em 1799,Napoleão Bonaparte, paraconquistar a ilha, usouartilharia pesada, danificandoainda mais as construções,apenas recentementerestauradas.

O magnífico complexo,rodeado por palmeiras e comseus monumentos espalhadospor toda a ilha, tinha seucoração no santuáriodedicado a Ísis. Como todos

os templos egípcios, essetambém era formado por umconjunto de salas enfileiradasde modo que a seguintesempre fosse menor e porisso, menos iluminada que aanterior. Assim, à medida queos sacerdotes avançavam,iam se distanciando da luz epenetrando numa penumbraque favorece o mistério e aveneração.

Após atravessar o longopátio externo do templo,ladeado por duas fileiras de

grandes colunas, cruzei oprimeiro pilono, formado porduas torres oblongas comdezoito metros de altura,decoradas com relevosgigantescos mostrandoPtolomeu XII, o pai deCleópatra, golpeando seusinimigos. Entre as largastorres, um suntuoso portaldava acesso ao pátio interno,com um pequeno templodedicado ao deus Hórus, ondeos faraós eram sagradosdescendentes mortais do

deus, legitimando assim o seuenorme poder na terra.

Ao cruzar o segundopilono, bem menor que oprimeiro, saí na sala hipostila,cujo teto — quando existia —era sustentado por dezenormes colunas de pedra.Passando por essa sala,cheguei finalmente à cela deÍsis, onde a estátua de ouroda deusa ficava dentro de umpequeno oratório esculpidonum bloco de granitovermelho. Embora o oratório

esteja atualmente no MuseuBritânico, pude ver a base depedra onde ficava o barcoutilizado para asperegrinações da imagemsagrada pelo Nilo durante ascerimônias em que o ídolosaía do templo, únicaoportunidade para os fiéisvenerá-lo diretamente, sem aintervenção dos sacerdotes.

Certa noite, perambulandopelas ruas de Assuã,deparamos com um

casamento. Ou melhor, ospreparativos da noiva para acerimônia. Havia umapequena aglomeração emfrente a um salão de beleza,animada por uma banda demúsica formada por cincojovens tocando instrumentosde percussão típicos do Egito.Logo apareceu a noiva,trajada à maneira ocidental,um belo vestido brancorendado. A grinalda haviasido colocada sobre o véu,também branco, deixando-a

apenas com os olhos de fora.Ela saiu do cabeleireiro debraço dado com o pai, quevestia terno e colete azul-marinho e usava uma gravatapreta com bolinhas brancas.Foram cercados pelo grupo,que, dançando e jogandoarroz, os acompanhou até ocarro, onde entraram eseguiram para a festa.

Imaginando o fartobanquete que os aguardava,demos a volta e fomos aomercado público comer kofta

com chá de menta.

Sebastían andavaimpressionado com o assédiodos trambiqueiros de rua, quelhe ofereciam maconha eheroína. Ele usava cabeloslongos, às vezes soltos, entãopresos num rabo-de-cavalo, oestereótipo do usuário dedrogas criado pela mídiaocidental e fartamentedivulgado no Oriente.

— Não sei por que achamque consumo drogas — ele,

ingenuamente, exclamava,com freqüência.

— Isto é um truque muitocomum por estas bandas —resolvi explicar-lhe. — Oimportante é não vacilar.

Viajando pelo Oriente,somos constantementeabordados por rapazesoferecendo drogas. Sãopaíses com um rígido controlepolicial e as penas impostasaos traficantes e usuáriosbeiram a desumanidade,especialmente quando

aplicadas aos estrangeiros.Em fevereiro de 2005, oparanaense Rodrigo Gularte,32 anos, foi condenado àmorte na Indonésia, a maiornação muçulmana do mundo.Ele foi preso no aeroporto deJacarta com seis quilos decocaína escondidos em suaspranchas de surfe. Algunsmeses antes, outro brasileiro,o instrutor de vôo livre MarcoArcher Cardoso Moreira, 42anos, já havia sido condenadoà morte por fuzilamento por

um crime semelhante: eletentara entrar no país com13,4 quilos de cocaínaescondidos em sua asa-delta.

De modo geral, a drogaoferecida nas ruas não existe;os garotos locais não têmdinheiro nem coragem paratraficar num país muçulmano.É apenas uma armadilha paraextorquir dinheiro dosvisitantes. Se o incautoviajante se rende ao preçobaixo e à propalada altaqualidade do produto, acaba

marcando um encontro numlocal mais discreto, onde serárealizada a transação. Nessahora, um policial aparece eprende todo mundo.Temendo os rigores das leislocais, normalmente o turistaoferece uma propina para opolicial, uma maneira de selivrar de cadeias onde muitosentram e poucos saem.

Acabam combinando umpreço extremamente alto,tanto o policial como otraficante sabem quanto

dinheiro o infeliz estáportando. Feito o pagamento,o falso traficante e o nãomenos falso policial,previamente mancomunados,dividem os dólares, e oingênuo viajante volta paracasa mais cedo.

E o que é mais ridículo:imaginando ter passado aperna num policial corrupto!

Mesmo advertido, nossoamigo mexicano passou aandar acompanhado por umdesses rapazes. Uma noite,

Beto e eu ficamospreocupados no hotel, poisSebastían saíra com o talsujeito e até altas horas nãohavia regressado. Saímos emseu encalço, perguntandoaqui e ali pelos dois. Todos ostinham visto juntos, masninguém sabia aonde haviamido.

Enveredamos por algumasruelas e nada de encontrar omexicano. Aos poucos nossaansiedade foi aumentando;não fazia sentido ele

desaparecer assim, sem maisnem menos, exatamente emcompanhia do cara que lheoferecera maconha no diaanterior.

Estávamos nos dirigindopara a polícia quando o vimosvoltando para o hotel. Disseque fizera um longo passeio,fora até a casa do egípcio,nos arrabaldes de Assuã, etudo havia corrido bem.Ficamos aliviados, mas nãodeixei de lhe passar umadescompostura:

— Neste tipo de viagem,acabamos nos expondo amuitos riscos — disse. — Porisso, devemos seguir algumasregras básicas, como sempresabermos por onde cada umanda.

Eu não estava acostumadoa me preocupar com meusacompanhantes nas viagensanteriores, e cuidar dosrapazes estava sendo umanovidade. Apesar dos alertas,eu voltaria a enfrentarproblemas semelhantes mais

adiante, e a sensação não foiboa.

ABU SIMBEL

Não estava em meus planosiniciais visitar Abu Simbel. Asautoridades militares nãopermitiam a presença deviajantes independentes nos

280 quilômetros da rodoviaque levava ao vilarejo, noextremo sul do país, a tão-somente quarentaquilômetros de distância doSudão, território antigamentepertencente à Núbia. A únicamaneira de conhecer omagnífico templo construídopor Ramsés II para que aindaem vida fosse cultuado comoum deus, era fazer parte deum grupo turístico e seguirem comboio, protegido pelaPolícia Turística. Mesmo

assim, só eram permitidosônibus e a estrada ficavaaberta apenas no início damadrugada, para a ida docomboio, e no fim da manhã,para a volta.

Tentei, tentei, converseidaqui, perguntei dali, masnão tive êxito. Para me dirigirà fronteira com o Sudãoprecisaria mesmo juntar-me aoutros turistas e seguir emgrupo. Fiz uma pequenareunião com Beto e Sebastíane eles votaram pelo passeio

convencional, o lugar valia apena. Acabei concordando,embora um poucocontrariado, especialmenteporque precisaria mesubmeter a um rígido controlemilitar, o que tira a graça dequalquer viagem. Menos malque o nosso próprio hotelalugou uma van, reuniu umpequeno grupo e lá fomos nóspassear custodiados pelapolícia!

Ugh!Acordamos às 3h20,

ranzinzas. Juntamo-nos aocomboio na saída da cidade eficamos esperando a hora dapartida, às 4h30. Ronronamosaté o alvorecer, às seis damanhã, quando uma faixaalaranjada no horizontedesértico nos despertou.Melhor: eu despertei; osoutros continuaram dormindo,esparramados nos bancos,com os pescoços molengascaindo para os lados eimportunando os passageirosvizinhos.

Entre um posto decontrole policial e outro,seguimos pelo planaltoarenoso, pontilhado pormorros baixos e pedregosos,do lado ocidental do lagoNasser, cujas águas haviamcoberto totalmente o Vale doNilo, onde antigamente osmoradores da Baixa Núbiaplantavam as lavouras queabasteciam a população doseu país.

Durante milênios aprimeira catarata, em Assuã,

marcou a fronteira sul doEgito. Entre ela e a sextacatarata, pouco abaixo deCartum, capital do Sudão,ficava a Núbia, um país ricoem ouro, famoso em toda aAntiguidade pela valentia dosseus guerreiros e caminhonatural entre o Egito e aÁfrica Negra, motivo pelo qualas duas nações nuncaviveram em paz. Quando opaís dos faraós atingia o seuapogeu, invadia a Núbia comfortalezas e templos; quando

os faraós entravam emdecadência, o Egito erainvadido pelos núbios.

Existem indícios deassentamentos humanos naNúbia com dez mil anos deidade. Perto de Abu Simbel,arqueólogos encontraramrecentemente vestígios decasas, esculturas emmonólitos e o mais antigocalendário do mundo, feito depedra, datando de oito milanos atrás. Até cerca de5.500 anos atrás, Núbia e

Egito estavam no mesmonível de desenvolvimentohumano. Suas populaçõestinham animais domésticos,plantavam lavouras ecomeçavam a formarpequenas aldeias.

Embora os dois povostivessem ancestrais comuns,estavam se diferenciandoetnicamente. Os núbios eramnegros, altos e longilíneos.Suas características físicasestavam bem mais próximasdos africanos do sul do que

dos egípcios. Falavam umalíngua nilo-saariana; osantigos egípcios falavam umalíngua afro-asiática. Com aunificação do Egito, o reino donorte se desenvolveurapidamente, enquanto osnúbios permaneceramisolados, especialmentedevido à infertilidade do solo,cultivável apenas numaestreita faixa de terra no Valedo Nilo.

Eles eram cristãos desde oséculo V e quando o Egito se

tornou muçulmano, no séculoVII, seus governanteschegaram a fazer um acordode paz. No século XIV, noentanto, sultões egípciosatacaram a Núbia, depuseramo último rei cristão e o fio daespada do Profeta converteuo povo ao islamismo,anexando o país. Em 1899, osbritânicos dividiram a regiãoentre o Egito e o Sudão, e osnúbios perderam seuterritório. Quando a grandebarragem de Assuã foi

concluída, em 1971, criando omaior lago artificial domundo, a única parte fértil dosolo núbio, o Vale do Nilo,ficou inundada e a populaçãofoi reassentada em outrasregiões do Egito.

Os núbios, a exemplo devárias outras nações naTerra, ficaram sem umapátria. Pobres e semrepresentação política,continuam até hojeesquecidos pelo mundomoderno. Nem o lago que

cobriu sua terra leva o seunome: preferiram chamá-lode Nasser.

Chegamos a Abu Simbelàs 7h15.

— Vocês precisam estar devolta às 9h, pararegressarmos a Assuã —informou nosso motorista.

Corremos para abilheteria, junto com outrosmil turistas despejados porvários ônibus vindos deAssuã. Alguns chegavamdiretamente do Cairo, um vôo

penoso e caro, apenas paraficar pouco mais de uma horano impressionante lugar. Issoera uma afronta à minhaliberdade, ao prazer de viajar.Para quem, como eu, gostade curtir o passeio, fazerpequenas descobertas aolongo do caminho, parandoaqui e ali para saborear ogosto das terras longínquas esuas belas histórias, o tourorganizado pelos egípciosestava me deixando com osnervos à flor da pele.

Indignação era pouco paraexprimir o meu sentimentonaquela fria manhã,tristemente abatido nummomento que deveria ser depuro encantamento.

O mundo, por intermédioda Unesco, gastou umafortuna incalculável paradesmontar os templos de AbuSimbel, mais de mil blocos depedra, e transferi-los parauma colina mais alta,impedindo assim queficassem submersos no fundo

do lago Nasser, logo que abarragem fosse concluída.Agora, as autoridadesegípcias faziam de tudo paraafastar os visitantes, sempreem nome de um estadopolicial que, a pretexto decombater terroristas,mantinha no poder políticoscorruptos e antidemocráticos.Desde a independência, nosanos 50, o Egito teve apenastrês presidentes. E issoporque os dois primeirosforam assassinados, do

contrário estariam aboletadosno governo até hoje.

Chegamos ao pátio emfrente ao templo às 8 horas,depois de quarar numa filapara comprar ingresso enoutra para entrar, passandopor várias revistas e um sem-número de detectores demetais. Tínhamos uma horapara apreciar tudo, umverdadeiro absurdo.

Resolvemos nos separar;cada um tinha seu próprioritmo. Beto estava

interessado em fotografar,Sebastían em verrapidamente os templos. Euescolhi o templo maior,dedicado a Ramsés II, o maisimportante, e decidi deixar otemplo menor, dedicado aNefertari, sua esposapreferida, para o final, sedesse tempo. Preferiaconhecer um a meu modo aver dois superficialmente. Eutinha comprado um guiaespecífico sobre o sítioarqueológico e desejava

conferir cada detalhe.Escavado diretamente

numa montanha rochosa nolado ocidental do Nilo, noséculo XIII a. C., o templo foidedicado ao seu próprioconstrutor, Ramsés II. Ogrande faraó desejava, assim,ser admirado como um deusantes mesmo de morrer.Deve ter conseguido essemérito em sua época, masnão por muito tempo. Com opassar dos séculos, perdidoem meio ao nada, ele foi aos

poucos sendo soterrado pelasareias do Saara, a ponto deacabar completamenteesquecido pela memóriahumana.

O colosso só foiredescoberto em 1813, e poracaso, pelo explorador suíçoJohann-Ludwig Burckhardt.Conhecido por Ibrahim IbnAbdallah, ele estavabisbilhotando a regiãodisfarçado de comercianteárabe quando avistou umadas cabeças de pedra

emergindo da areia.Imediatamente a notícia deque Ibsambul não era apenasuma lenda correu o mundo,atraindo os grandesaventureiros da época.

Demorou apenas quatroanos para Giovanni Belzoni,sempre ele, conseguirdesobstruir parcialmente aporta de entrada e ingressarno santuário. Em 1829,quando três quartos dotemplo ainda estavamencobertos pela areia, Jean-

François Champollionescreveu, completamentedeslumbrado, que Abu Simbeljustificava plenamente aperigosa viagem pela Núbia.O lendário arqueólogo alemãoHeinrich Schliemann, tão logoo conheceu, definiu-o como “amais poderosa obra de artedo mundo”. Somente nocomeço do século XX omonumento foi totalmentedesassoreado.

Agora estava eu, com umolho no relógio e outro no

guia, estupefato diante dosquatro desmedidos ídolos depedra. As soberbas esculturaspareciam surgir da montanhapor algum fenômenoinexplicável. Se o faraóconstruiu o monumento paraser admirado por toda aeternidade, conseguiuplenamente, pois mesmoagora, 34 séculos depois,pessoas do mundo todoacorrem diariamente a AbuSimbel para se encantaremcom a magnitude da obra,

apesar da má vontade dasforças de segurança do país.

A fachada do templo, com35 metros de largura por 31de altura, talhada em arenito,é formada por quatrocolossais estátuas do faraósentado no trono, olhandomajestosamente para ohorizonte desértico,suavemente acariciadas pelosol. Elas têm vinte metros dealtura e a cabeça de cadaimagem mais de quatrometros entre uma orelha e

outra. A linha dos lábios temmais de um metro de largura,esboçando um sorrisotranqüilo, de alguémplenamente satisfeito comsua condição divina, capaz dedesdenhar da finitude da vidacarnal. Perfeitas em suamonumentalidade,reproduzem com exatidão afisionomia do soberano. Alémdelas, há uma série deimagens menores, não menosmagníficas, representandodeuses e alguns membros da

família real, entre eles suamimada esposa, a rainhaNefertari. Algumas peçasestavam danificadas, masnem por isso perderam suaexuberância.

Fiquei imaginando oespanto das pessoas simplesdaquela época. Descendo oNilo em suas pequeníssimasfalucas vindas do interior daÁfrica, de repente, numacurva do rio, deparavam comas imagens gigantescassaindo da montanha,

sentinelas ameaçadorasemanando a fria autoridadede um grande monarca.Capazes de ver além dohorizonte em sua eternacontemplação, podiam serinterpretadas como umasaudação de boas-vindas,mas também um aviso dealerta, deixando bem clarasas proporções do poder entreos visitantes e o reino no qualestavam entrando. Casoafrontassem o soberanocausando-lhe algum dissabor,

enfrentariam uma ira com amesma dimensão.

Entrei no templo por umaalta porta, guarnecida pelasquatro estátuas gigantes esob a imagem de Ra-Harakhti. Saí no pronau, umasala retangular com 18metros de comprimento porquase 17 de largura,sustentada por oito imagenscom dez metros de altura,dispostas em duas fileiras,representando Osíris com asfeições de Ramsés II. O teto

da nave central é decoradocom afrescos da deusaNekhbet, protetora do AltoEgito, enquanto os tetos dasduas naves laterais sãoestrelados.

A decoração das paredescelebra ostensivamente asglórias militares do faraó,várias pinturas mostram-noespancando os seus inimigos,sua fúria caindo sobre oslíbios, os núbios e outrosescravos negros e asiáticos.Filho do faraó Séti I, um

grande general, Ramsés II,também general destacado,assumiu o trono com 25 anose conduziu o reino a um dosseus momentos de maiorglória, tornando-se o maiorfaraó de todos os tempos,único a ter o nome numaavenida do Cairo.

Na parede norte é possíveller sobre as várias fases dacampanha militar contra oshititas e seus aliados,empreendida na Síria doNorte, no quinto ano do seu

reinado. Num determinadomomento da batalha, vendo-se numa situação difícil,protegido apenas por suaguarda pessoal e commilhares de soldados inimigosà sua frente, o faraó invocouAmon, lembrando-lhe suanatureza divina:

Amon, meupai, o que sepassa?Um paiporventura

esquece umfilho?

O grande Amon ouviu assúplicas do filho predileto e,graças a sua intervenção, ofaraó conseguiu safar-se naúltima hora, socorrido pelachegada do seu exército.Hábil político, Ramséstransformou a derrota parcialnuma grande vitória,comemoradainterminavelmente em todo oreino. A paz só foi conseguida

anos depois, quando ele secasou com a filha dosoberano hitita e o Egitoentrou numa fase de grandedesenvolvimento. A partirdessa época, o faraó-sol nãose apresentou mais comofilho de um deus, mas opróprio deus encarnado,aproveitando o longo reinadode 67 anos, o mais longevoda Antiguidade, para semeargrandes obras por todo oEgito.

Passando o pronau entrei

na sala hipostila, bem menor,sustentada por quatro pilaresquadrados pintados com asimagens do faraó diante devários deuses. As paredes sãodecoradas com cenaslitúrgicas, entre as quais otransporte da barca sagradaque o levaria para o mundodos mortos. Tudo lembra aglorificação do grande rei.Alguns baixos-relevosmostram o faraó que, umavez divinizado, se adorava efazia oferendas a si próprio.

Da sala hipostila passei aum pequeno vestíbulodestinado às oferendas, mascomo não havia levado nadapara ofertar-lhe — a não ser aminha curiosidade —,ingressei diretamente nosantuário, a 65 metros daporta de entrada, esculpidono coração da montanha. Olugar mais íntimo e secretodo templo é formado por umapequena câmara de quatrometros por sete, onde fica aimagem de Ramsés II

divinizado, sentado junto àtríade Ptah, Amon-Rá eHarmakis.

Embora dentro damontanha, o templo foiconstruído de forma tãoprecisa que duas vezes porano, durante o solstício deverão e o de inverno, logoque amanhecia um raio de soldeslizava sobre as águas doNilo e entrava pelo portal.Cruzava o pronau, a salahipostila e o vestíbulo emtoda a extensão e iluminava

as imagens de Amon-Rá,Ramsés II e Harmakis nofundo do santuário.Curiosamente, a estátua dePtah, o deus criador que,portanto, viveu na época dastrevas, no lado esquerdo,nunca era alcançada pelosraios do sol, permanecendosempre na escuridão. Apóscerca de vinte minutos, a luzdesaparecia e o interior dotemplo voltava à suapenumbra misteriosa e degrande sugestão mística.

Outras oito câmarasmenores e menos ornadasenvolvem lateralmente anave central, onde eramarmazenados os tributostrazidos pelos núbios edemais súditos ao grandefaraó. Essas salas não haviamsido totalmente restauradas,escapando à curiosidade dosvisitantes. Vazias e escuras,em seu interior se podiasentir um pouco a passagemdo tempo pela história dahumanidade, um bom lugar

para refletirmos sobre acondição humana, não fosse apressa com que a políciaqueria nos tirar de AbuSimbel.

Atualmente, para osturistas apreciarem asbelezas do templo em suaplenitude, ele estáinternamente iluminado poruma luz artificial apropriada,capaz de permitir visitaçãosem deteriorar as pinturasmilenaresextraordinariamente

preservadas, algo realmentefeito para durar por toda aeternidade.

Eternidade, sim, é apalavra mais apropriada paradefinir Ramsés II, até hojepresente entre os grandessoberanos da históriauniversal.

Ainda na Antiguidade, seutúmulo foi saqueado e suamúmia roubada. Recuperada,foi transferida para a tumbado pai, Séti I. Quando essasepultura também foi

profanada, a múmia deRamsés II foi escondidanovamente, voltando a serdescoberta somente em1881, num esconderijo pertode Luxor. Levada para o Cairoe exposta à visitação pública,sofreu mais um ataque, dessavez de um fungodesconhecido. Agredido portodos os lados, o velho faraóprecisou enfrentar um inimigoainda mais impiedoso: aburocracia egípcia.

Somente em 1976, quase

um século após ter sidoenviado para a capital, ogoverno consentiu que elefosse removido para sertratado na França. O grandefaraó sobrevoou as pirâmidese aterrissou em Paris,recebido como chefe deEstado pela GuardaRepublicana. Os cientistasdescobriram que o velhomagro, cabelos ruivos, narizlongo e aquilino, quandomorreu, estava entrevado porreumatismo, claudicava um

pouco e havia tido abscessosdentários.

Submetido a irradiaçãopara ser curado e protegidodefinitivamente dos fungosque o atacavam, ele voltoupara o Egito, onde pudeconhecê-lo pessoalmente noMuseu Egípcio do Cairo.

Em Abu Simbel, junto aoGrande Templo havia ummenor e mais delicado,dedicado à deusa Hathor,mandado construir porRamsés II para glorificar

Nefertari. Seguia o padrão dotemplo principal, exceto pelofato de que, contrariando oscostumes egípcios da época,as estátuas da rainha eramdo mesmo tamanho dasestátuas do faraó, uma provado seu grande amor pelaesposa.

Não foi possível visitá-lo,não deu tempo, preciseivoltar correndo para acondução, onde o motoristame esperava impaciente.Mesmo assim, a beleza

enigmática do local foi maisforte do que a má vontadedas autoridades egípcias,propiciando-me um belosonho na volta para Assuã.

Sexta Parte

—Descendo o

Nilo

FALUCA

Depois de muito perambularpela avenida costeira emAssuã, conversa daqui,conversa dali, encontrei umcapitão que topou nos levar

rio abaixo. Ele atendeuprontamente a todas asminhas exigências, pelasquais pediu um preço queachei barato demais.

— Esse cara não vaicumprir o prometido —expliquei para o Beto. — Elenão quer perder o cliente, porisso estipulou um valor tãobaixo. Quando estivermos nobarco, não teremosalternativa senão aceitar oque ele nos impuser, comousar a água do rio para lavar

as panelas em vez de águamineral, como solicitei.

Fiquei de dar umaresposta mais tarde econtinuei meus contatos.Tínhamos o tempo necessárioe a permanência na cidadeestava bem agradável. Nossohotel era bom e barato,embora o banheiro ficasseinundado sempre quetomávamos banho. A comidanos pequenos restaurantes,em casas flutuantes na beirado rio, era de boa qualidade e

o movimento dos turistassempre nos mantinhaentretidos. Além do mais,tomar chá na varanda do OldCatarata ao entardecerestava se tornando uma dasrotinas mais agradáveis emmeus dias egípcios.

A notícia de que trêsestrangeiros estavamprocurando um veleiro paradescer o Nilo logo seespalhou pelo cais. Acabamosdescobrindo Ibrahim RifaiIbrahim, um capitão núbio

com trinta anos e muitasimpatia. Ele nos fez umaproposta confiável:

— Não posso levá-los atéLuxor. Precisaríamos cruzaruma barragem em Esna e issoalertaria as forças desegurança.

Sugeriu conduzir-nos atéEdfu, quatro dias rio abaixo,de onde poderíamos contratarum carro particular para noslevar a Luxor. Além do mais,para cumprir todos os pedidosda minha longa lista,

precisaria nos cobrar um valorbem mais caro do que osolicitado pelo capitãoanterior, cujo preço eu lhehavia mostrado como formade barganha.

Era a primeira vez no Egitoque alguém não cediaimediatamente às minhasexigências, umademonstração de que ele nãovenderia algo que nãopudesse nos entregar.Regateei um pouco, comomanda a etiqueta local, e ele

nos fez um pequenodesconto. Achei o preçoadequado e combinamospartir na manhã seguinte. Ocapitão Ibrahim teria toda atarde para comprarmantimentos, combustível,água e preparar o barco paraa longa viagem,providenciando salva-vidas ecobertores, pois dormiríamosno convés, expostos àsintempéries, já que o veleironão possuía área coberta.

Bem, chamar o Flamingo

de veleiro era mesmo excessode boa vontade. Exceto pelofato de ele ser movido poruma grande vela triangular,em tudo o mais ele se pareciacom uma canoa. Tinha setemetros de comprimento portrês de largura. Construídoem madeira, seu fundo eracoberto por um assoalhosobre o qual foram colocadosvários tapetes, sua bordainterna não ultrapassandocinco centímetros. Como nãohavia lugar para sentar,

viajaríamos deitados ouescorados nos cotovelos. Seumastro chegava a dezesseismetros de altura e a velabranca estava bastante puída.Dois enormes remos naslaterais nos antecipavam quedurante as calmarias ele seriamovido a músculos humanos.

Ibrahim cumpriu todos ositens do nosso negócio,exceto dois: algumas vezesvelejamos à noite, quando elehavia prometido quenavegaríamos somente

durante o dia, atracando nobarranco do rio na hora dedormir. Mesmo assim, quandoisso aconteceu não reclamei,pois logo me dei conta: quemdecidia a hora de velejar erao vento, não o nosso capitão,muito menos os passageiros.O Nilo corre para oMediterrâneo, contrariando osventos, fazendo da nossaviagem uma constantenegociação com a natureza eseus humores imprevisíveis.

Levamos um terceiro

tripulante, clandestino, paraajudar com os remos, quandoo combinado era apenas umajudante. Além de ocuparespaço no exíguo convés, eramais uma pessoa paradividirmos a comida. Se eusoubesse deleantecipadamente, teriasolicitado mantimentosadicionais, o que nãoaconteceu. Mesmo assim, AbuBack, 24 anos, tambémnúbio, não atrapalhou, devidoà sua grande simpatia e sua

utilidade nos remos, emboranão falasse inglês, obrigando-nos a esperar que Ibrahim lhetraduzisse nossas piadas,contadas para passar o tempoquando ficávamos presos nacalmaria do rio.

Embarcamos no meio damanhã.

— Está ventando muito,precisamos esperar um poucomais para zarpar — explicou ocapitão, consertando umfogareiro cujos pavios eramfeitos de mechas de algodão,

algo que eu achava que nãoexistia mais desde aAntiguidade.

As mechas ficavam com aparte inferior embebidas noquerosene, no recipiente decombustível, permitindo-lhester sempre a outra ponta embrasa. Achei nosso fogareiromuito arcaico, mas nãoprecisou muito para eudescobrir que só elefuncionaria no convés doFlamingo durante astormentas, quando o

fogareiro de pressão apagavadevido ao forte vento.

Levantamos âncora pertodo meio-dia, completamentedesestabilizados por umaterrível tempestade, à mercêda endiabrada dança dasondas. Todas as outrasfalucas estavam no porto eimaginei que o esperto núbiotratara de sair antes quedesistíssemos da viagem eele perdesse os assustadosclientes. A bagagem estavaprotegida num pequeno

compartimento fechado naproa, mas os objetos quecarregávamos, como ascâmeras fotográficas,precisavam ficar amarradosem nossos corpos para nãoescorregarem para a águatoda vez que o veleiroadernava, sua baixíssimaborda quase mergulhando noNilo. Exímio nadador, Betoera o menos agitado, emboraa possibilidade de cair naságuas poluídas não o atraíssemuito. Eu, bom sagitariano,

estava ainda mais arredio aum banho inesperado.

Meia hora depois paramosnum posto de controle dapolícia, ainda na cidade, e láfoi o esperto Ibrahim falarnão sei o que para osguardas, provavelmente umamentira, dizer quevoltaríamos logo para Assuã,éramos turistas esquisitosquerendo dormir na margemdo rio. O policial responsávelestava almoçando eprecisamos aguardar sua

volta. Foi uma longa edescabida espera, mas tinhaum propósito: engrandecer omomento e a autoridade dochefe da repartição peranteos seus subordinados, mesmoque isso desgostasseimensamente os visitantes —num país que sobrevivegraças ao turismointernacional. Mas era assimque as coisas funcionavam noEgito e compreender essesdetalhes da sua cultura faziaparte do aprendizado da

minha viagem.O chefete demorou tanto

que almoçamos na faluca.Reiniciamos a viagem nomeio da tarde, enfrentandoum terrível vento frontal,movidos por uma grandeesperança e alguns temores.O dia já ia findo e aindavíamos os prédios mais altosde Assuã em nossaretaguarda, uma pequenaidéia do ritmo da nossajornada nos dias seguintes:demorado e desagradável.

Todo esse sacrifício paradriblar a polícia e chegar emLuxor por conta própria.

Quando a faluca sechocava com as ondasprovocadas pela ventania,borrifos de água amareladase espalhavam pelo convés,umedecendo aos poucosnossas cobertas. Certasmarolas balançavam o veleirocom tanta intensidade quesuas bordas quase tocavam alinha d’água, dando-nos aimpressão de que iríamos

emborcar e afundar naságuas agitadas. Todas ascoisas soltas sobre oscolchonetes escorregavampara os lados, impedidas decair na água apenas peloscobertores enrolados e postosnas laterais do barco, e queeram utilizados comoalmofadas para nosencostarmos quandoestivéssemos cansados deficar deitados no convés.

Para aproveitar o vento,seguíamos em ziguezague, o

barco adernando para umlado e outro ao mudar derumo. A ventania era tantaque ao virarmos em direção àoutra margem o Flamingoquase parava, e a retomadaficava cada vez mais lenta.

Apenas uma hora após asaída, ao movermos o lemepara reposicionar o barco, eleparou no meio do rio. A forçado vento e a correnteza doNilo se anulavam, e nósficamos imóveis, presos naságuas barrentas. Nem bem

havíamos iniciado nossavelejada e os remos foramcolocados na água. Abu Backsaiu do seu esconderijo juntoàs mochilas e foi auxiliado porAbas Mohamed Dahab, 26anos, o outro núbio datripulação.

Com muito esforço dosremadores e com grandealívio para nós, conseguimosatracar numa das margens. Ocapitão amarrou o cabo doveleiro numa grande pedra,posicionando-o com

segurança junto à barrancado rio. Descemos, e como nãotínhamos outra coisa parafazer, Abas Mohamedresolveu providenciar a janta.As luzes de Assuã aindaapareciam no horizonte,deixando nosso moral láembaixo. Todas as tensõesdo dia se refletiam na nossamudez, uma sensação tãodesagradável que nos tirou acuriosidade sobre o que ocozinheiro estava preparandopara aliviar nossa fome. Aliás,

nem fome tínhamos. Depoisde tanta areia, eram as águasque nos angustiavam.

De repente, como serecebesse uma ordem, ovento acalmou e pulamospara dentro da faluca companelas e tudo. Jantamos umpouco atabalhoadamente,com nossas tigelas dealumínio chacoalhando, masdando graças a Hórus porseguirmos em frente. Lá pelasdez da noite paramos paradormir. Atracamos numa

enseada estrelada, nossostripulantes estenderam umalona sobre o veleiro, uma ralaproteção contra o vento e osereno da madrugada, edormimos até o amanhecer,firmes como se estivéssemosem terra, mas sem relaxarum único músculo. De tãotensas, nossas mentes nãotiveram espaço nem paravagar pelos sonhos nebulososque normalmenteacompanham as noites.

Saímos pela manhã em

meio a uma grande calmaria.Tomamos café enquanto obarco descia lentamentepelas águas sonolentas; nemparecia o mesmo rio da noiteanterior. Agora, nossoproblema era justamente afalta de vento.

— Com muito vento,velejar fica perigoso —explicou o capitão. — Mascom pouco vento, ficaimpossível. Precisamos de ummeio-termo — concluiu.

É, eu já tinha notado!

Pelo menos podíamosapreciar a paisagem ao nossoredor, algo impossível atéentão. E ela era de inspiraçãodivina, um verdadeiro edesmedido mar de areia epedras amareladas cortadopor uma estreita e longa faixaverdejante de campos eplantações, localizada àsmargens das águas plácidasdo rio. Os limites entre o ocreprofundo do Saara, o verde-esmeralda das lavouras e aságuas barrentas do Nilo

pareciam ter sidomilimetricamente traçadoscom uma régua, pois nãohavia faixas intermediárias ougradações de cor entre umambiente e outro. Nãoexistiam praias, e logo quedesapareciam os últimos pésdas plantações, começavamos primeiros torrões dodeserto, onde nada crescia.Raras vezes em minhasandanças eu vira tãodelineado o choque entreesses três elementos

conflitantes da natureza:água, vegetação e areia.

Velejando lentamente,remando às vezes, fomosdescendo. Passamos ao largodo grande mercado decamelos de Daraw e lá pelomeio-dia atracamos novilarejo de Kom Ombo,quarenta quilômetros ao sulde Assuã, onde descemoscom as pernas bambas.Fomos logo conhecer ofamoso templo, umaconstrução gêmea cujo lado

esquerdo fora dedicado aodeus Haroeris, uma dasformas de Hórus, e o direito aSobek, o deus-crocodilo, adivindade local. Foireconfortante caminhar umpouco, espichar as pernas,embora andássemos semprecom a sensação de que logoseríamos abordados poralgum policial e enviados devolta para Assuã num carromilitar. Isso se não fôssemosexpulsos definitivamente dopaís.

“Vocês de novo!”— era aexpressão que não queriacalar em meus tormentos.

De volta ao barco,almoçamos e seguimos rioabaixo, passando a maiorparte da tarde deitados noraso convés, estiradospreguiçosamente ao sol.Sebastían lia e Beto remexiano equipamento fotográficoenquanto os dois ajudantesfumavam, sentados na bordada faluca com os pés dentrodo rio, e eu logo os imitei. Era

agradável sentir a brisaquente do Saara me tocandoo rosto e as águasespumantes do Nilo mebanhando os pés, posição quedeve ter sido repetidamilhões de vezes pelosantigos egípcios nas suasinfindáveis viagenstransportando pedras paraconstruir pirâmides, obeliscose templos suntuosos paraagradar aos seus exigentesdeuses.

O ambiente era realmente

emblemático, impossível nãoser contaminado pelosmilênios de história quepairavam sobre a região,impregnada até hoje degrande força mística, emborano meu caso não fossemAmon, Osíris, Hórus e Ptahque me envolviam a alma,mas um sentimento bemterreno: o espírito juvenilcomandado pela alegria dequem faz uma gostosatravessura confiante de quesairá impunemente da

situação. Feito criança,imaginei-me singrando aságuas do mitológico Nilo comuma faluca abarrotada detesouros descobertos nastumbas do deserto,sorrateiramente surrupiadosdas múmias milenares etransformados em glórias eriquezas para todo o sempre.

Nosso capitão núbio,sentado na popa, se limitavaa controlar a vela e o leme,trocando de lado sempre quechegávamos perto da

margem, dando continuidadeao eterno ziguezague a quenosso barco estavasubmetido, mudandocontinuamente de direçãopara se adaptar ao ventoadverso. Ibrahim passavahoras com o ar distraído euma fisionomia melancólica,olhar perdido na imensidãodo deserto que se estendiaacima da linha d’água, poucoalém da estreita várzeaesverdeada do vale.

Será que pensava na

pátria que seu povo não tinhamais?

Fora o arrastar-se donosso barco, tudo ao redorparecia estar parado.Continuamos assim até ovento desaparecer porcompleto. A calmaria noslevou para a margem e logoestávamos perto demais deum alto paredão de rocha eareia no lado esquerdo doNilo. Nesse ponto, próximo àsruínas de Silsila, de cujaspedreiras os faraós tiravam o

material utilizado paraconstruir os templos daregião, o rio se estreitava esuas águas corriam maisrapidamente entre dois altosbarrancos, provocandoredemoinhos e ameaçandonosso pequeno veleiro.

Abu e Abas rapidamentepegaram os remos ecomeçaram a remar comforça. Ibrahim passou-me oleme com a orientação demantê-lo sempre na mesmaposição, apoiou uma

comprida vara na encostaameaçadora e ajudou aafastar a faluca do rochedo.Regressamos para o meio dorio empurrados apenas pelosmúsculos dos dois fortesrapazes.

Resolvido o problema,voltamos à posição habitual,esparramados no convés,aquela lassidão domingueirade dar dó, descendo o riomais lentos que as águas,horas, horas e mais horas.Minha única atividade era

arrastar-me para um lado eoutro, buscando proteçãocontra o impiedoso solafricano na sombra da grandevela, e contar algumaspiadas.

— Ibrahim...— Sim...— Você conhece aquela da

velha senhora inglesa, todaenrugada, apaixonada pelasmúmias egípcias?

— Não.— Pois um dia ela estava

tomando chá com suas

amigas no alpendre do OldCatarata quando uma delasperguntou por que elagostava tanto de estudar asmúmias do Egito. Conheceessa, Beto?

— Não.— Sebastían?— Também não.— Bem... então ela

respondeu: porque isso fazsentir jovem!

Todos rimos muito, excetoAbu. Esperamos Ibrahimtraduzir a piada para o núbio,

e só então nosso amigoclandestino riu. Riu tanto,tanto que todos caímos nagargalhada: Abu rindo dapiada, nós rindo do Abu. Eratudo o que tínhamos parafazer no barco, rir uns dosoutros.

Entre um riso e outro,podíamos ouvir pedaçosesfarrapados de conversas,que vinham das margens, osagricultores aproveitando oentardecer para cultivar umpalmo a mais da preciosa e

escassa terra. Não davam amínima para o Flamingo,jamais imaginando apresença de americanosendinheirados numaembarcação tão primitiva edesconfortável, exatamentecomo eu previra. Logo a noitecaiu, e com o nosso balançarnas ondas as silhuetas dosfelás, apesar das suas túnicasbrancas, surgiam e sumiamtal qual uma aparição.

Desde a nossa saída, nãohavíamos cruzado com

nenhuma outra faluca, clarademonstração do isolamentoda região. Nas duas margens,um pouco acima do vale,podíamos notar as escarpasdo deserto mudando deconsistência, o arenito sendoaos poucos substituído pelapedra calcária, comumenteencontrada nos templos doBaixo Egito.

De repente veio, semsabermos de onde, um ótimovento. Foi um alvoroço total.Os rapazes guardaram os

remos, o capitão içou a vela elá fomos nós, deslizandovelozmente em direção aoMediterrâneo. Passamos aolargo das ruínas do templodedicado ao faraó Horemhebe seguimos num ritmofrenético até quase meia-noite, quando o cansaçopegou a todos de jeito.Atracamos numa bonita ilha efomos tratar do jantar.Adaptados à nova realidade ecom o desconforto provocadopelo medo da inusitada

situação sob controle,estávamos famintos, prova deque o nosso mundo voltava agirar em torno do seuverdadeiro eixo.

Como havia acontecido noDeserto Branco, Ibrahimimprovisou uma ótimalamparina com meia garrafade plástico, areia e uma vela.Protegido do vento, o paviode luz despejava suaclaridade trêmula, cobrindode nuances esmaecidas pelapenumbra o acampamento,

até há bem pouco tempo sobo ofuscante sol do deserto.Satisfeito com o efeitoprovocado pelo seuengenhoso arranjo, o capitãomontou mais duaslamparinas, colocando umasobre a faluca, sua chamatrêmula funcionando comoum pequeno farol, refletindopingos de luz nas águasescuras do rio.

Na manhã seguintevelejamos impulsionados porum ótimo vento, ganhando

velocidade. Perto do meio-diaparamos numa pequenaaldeia núbia, ondecompramos alguns peixespara o almoço. Os moradores,especialmente as crianças,correram encantados emdireção ao barco logo queperceberam os desajeitadosintrusos. Os dois metros dealtura do mexicano, ascâmeras fotográficas do Betoe as minhas bermudasaguçavam por demais acuriosidade do pessoal; nunca

tinham visto gente tãoesquisita por aquelas bandas.O vento estava bom,precisávamos aproveitá-lo, oque, infelizmente, nosimpedia de estreitar o contatocom tão simpáticas pessoas.

Distraí-me durante boaparte da tarde apreciando apaisagem. Sentado na bordado veleiro, um pé no convés eoutro dentro d’água, gostavade ficar imaginando quantasvezes um gesto tão simplescomo esse havia se repetido

ao longo deste rio tão antigo,testemunha dos primeiroshumanos nascidos nesteplaneta há mais de setemilhões de anos. Volta emeia, para aliviar um pouco ocalor extremo, abaixava acabeça e molhava o rostocom as águas do Nilo meescapulindo por entre osdedos.

— Por que você ainda nãose casou? — perguntei aAbas.

— Sai muito caro casar —

ele respondeu.— Quanto? — indaguei.— No mínimo cinqüenta

mil libras.Fiz as contas e cheguei a

cerca de oito mil dólares, umaquantia realmenteexorbitante paratrabalhadores como ele. Aliáscomo todos eles: nenhum dostrês era casado. Os núbiosainda conservavam muitasdas suas antigas tradições e,pelo que Abas me contou, ocasamento era uma das mais

importantes.Antigamente as

festividades duravam duassemanas, atualmente eles secontentam em comemorar asbodas em apenas seis dias.Na primeira noite, os noivosfestejam separadamente,cada um com seus amigos eparentes. Na segunda noite anoiva, acompanhada por seusconvidados, vai até a casa donoivo, onde todos dançam ecantam as tradicionaismúsicas núbias até o

amanhecer, quando ela voltapara a casa dos pais.

No terceiro dia, os noivostêm as mãos e os péspintados com belas tatuagensde hena. Então é a vez donoivo e de seus convidadosirem em procissão, cantandoe dançando pelas ruas dopovoado, até a casa da noiva,onde chegam à noitinha. Elepermanece três dias naresidência dela antes devoltar para a casa da suafamília. Só então o casal vai

viver junto na sua novamoradia.

No fim da tarde atracamosnuma ilha bonita earborizada. Limpamos obarco, reorganizamos nossasmochilas e nos preparamospara mais uma noite tranqüilasob as estrelas. Seria nossaúltima noite no Nilo equeríamos curtir cadamomento da melancólicapaisagem ao nosso redor,absorver a mística sabedoriaque nos vinha acompanhando

desde que pisamos nonordeste da África.

Mas, para nosso espanto,nossas esperanças sefrustraram rapidamente.Pouco antes do pôr-do-solsurgiu na curva do rio umbarco a motor puxando umafila de falucas. Amarradasumas às outras, com as velasarriadas, vinham entupidas degente. Atracaram ao nossolado e logo desceu umbatalhão de guias e serviçais.Esquadrinharam a área,

limpando o terreno eerguendo barracas. Em poucotempo montaram um grandeacampamento com umaenorme fogueira no centro etendas especiais servindocomo latrinas. Os turistasdesceram e se puseram aoredor da fogueira, ondemúsicos tocavaminstrumentos de percussão efaziam malabarismos como seestivessem num circo.

Para nossos vizinhos, deveter sido muito divertido.

Dançaram, cantaram,comeram, beberam egritaram até altas horas danoite. Estavam tão entretidosque sequer notaram, nafaluca ao lado, além dos trêsnativos, outros trêsestrangeiros.

— Será que estamos tãosujos que não conseguem nosdiferenciar dos núbios? —perguntou-me Sebastían.

— Melhor assim —respondi.

Encolhidos em nosso canto

e procurando despertar omínimo possível a curiosidadedeles, restou-nos comoconsolo para tamanhaindiferença a constatação deque estávamos muito pertode Edfu, nosso destino final.

Ironicamente, era terça-feira de carnaval no Brasil,uma das minhas festaspreferidas. Estávamos tãofora da nossa realidadedurante a descida do Nilo quesomente dei-me conta dissona hora de preencher meu

diário, já dentro do saco dedormir. Confesso que estarlonge das nossas folias medeixou um pouco melancólico.Sou muito apegado a algunsrituais brasileiros, comocarnaval, futebol, nossasfestas populares. No anoanterior eu havia desfiladocomo destaque na ala Paz, naescola de samba ImperatrizDona Leopoldina, em PortoAlegre, e agora isso meparecia parte de um outromundo. Antes de virar para o

lado e tentar dormir, prometia mim mesmo não sair maisdo país nesta época do ano.

EDFU

Zarpamos de madrugada,antes da nossa barulhentavizinhança acordar. Não haviavento e fomos a remo atéEdfu, onde chegamos no meio

da manhã. Ancoramos umpouco afastados, para nãochamar a atenção dospoliciais, nos despedimos dosnossos queridos amigos efomos caminhando até apequena cidade, as mochilaspesando cada vez mais.

— Parece uma cidadefantasma — comentei comSebastían. — As ruas estãocompletamente desertas.

Não demorei muito paradescobrir o motivo: todos osmoradores estavam no bazar,

um sem-número de tendasnas proximidades do templodedicado a Hórus. E não erapor acaso: milhares depessoas, vindas em ônibus egrandes navios de cruzeiro,chegavam todas as manhãs,procedentes de Luxor, paravisitar o mais bem preservadodos santuários egípcios,descoberto recentemente,sob uma montanha de areianos arredores da cidade, ondepermaneceu protegido dasintempéries e dos humanos.

Era impossível caminhar ummetro sem esbarrar naspessoas — verdadeiramultidão em desalinho, umaaglomeração sem igual —,todas freneticamente ávidaspor sorver aquela atmosferaimpregnada de história.

As escavações, iniciadasna metade do século XIX,acabaram trazendo à tonauma jóia rara: emboraconcluído há apenas 2.100anos, ele reproduzia comperfeição o padrão clássico

dos templos dos antigosfaraós. Era uma fortaleza com137 metros de comprimentopor 79 de largura, protegidapor grossas muralhas ealtíssimos pilonos, algo pararealmente mexer com aimaginação dos fiéis, aspessoas comuns que naquelaépoca só podiam apreciá-lopelo lado externo, visto queingressar em seu interior eraprivilégio dos sacerdotes.

Enquanto Beto e Sebastíanvisitavam o templo, fiquei

cuidando das mochilas,estirado na entrada docomplexo. Havia muita gentenos arredores, não podíamosdar moleza para os gatunosque por certo estavam entreos turistas, esperando amenor chance para se darembem na vida sem precisarfazer muito esforço. Quandoos dois voltaram, foi a minhavez, e pude conferirdemoradamente cada detalheda magnífica obra.

Os locais de contato do

faraó com os deuses eram ostemplos. Muitos deuses edeusas estavam associados alocalidades específicas,reminiscência de um períodoremoto em que o seupatronato se limitava a umacerta comunidade. Ossacerdotes ligados a um cultolocal tendiam a apresentarsua interpretação particulardo sistema divino centrando-ono seu próprio santuário. Esseprocesso era apoiado pelofato de que, em épocas

anteriores, muitas divindadestinham sido reduzidas a umasituação de igualdade porserem apresentadas emforma humana. Mesmo que odeus tivesse surgido como umanimal sagrado, a cabeçadesse animal era colocadasobre um corpo humano, casode Hórus, o deus-falcão deEdfu.

Os deuses podiam serfacilmente agrupadossegundo padrões querefletiam a antiga sociedade,

sendo mais comum umatríade formada por marido,mulher e filho. Assim, umtemplo servia não só ao deusoriginário da localidade, mastambém a outrosconsiderados hóspedes, comopodíamos ver nas capelas deHathor, Ra e Osíris em voltada capela principal, dedicadaao próprio Hórus. Por isso,não havia hostilidade entrecentros teológicos. Adiversidade geográfica eraapenas mais um elemento do

mistério divino.Inicialmente, o templo era

o lar das imagens habitadaspelos deuses. A arquiteturarefletia a das mansões dasclasses mais elevadas, compilonos, sombrios pátios decolunatas e átrios hipostilos,isolando os aposentosparticulares na parte de trás.Porém, ao contrário das casasdos mortais, erguidas comtijolo cru, os templos foramconstruídos em pedra paradurarem por toda a

eternidade. Suas plantaseram desenhadas sobre umeixo perpendicular aocaminho processional quelevava ao Nilo, pois algumasfestividades incluíam otransporte das imagens paraoutros templos, únicomomento em que os fiéispodiam entrar em contatocom os deuses. Atrás dacapela de Hórus, pude veruma réplica do barco demadeira utilizado paratransportar sua imagem

coberta de ouro nessasocasiões, quando ela saíapara navegar pelo lagosagrado e visitar outrossantuários.

As paredes internas eramutilizadas para registrarresumos pictóricos dosprincipais elementos do ritualreligioso, enquanto noexterior apareciam cenas dofaraó triunfando sobre seusinimigos. Em Edfu, o primeiropilono, com 36 metros dealtura, guarnecido por dois

colossais falcões de granito,mostrava cenas em baixo-relevo do faraó Ptolomeu XII(pai de Cleópatra), em cujoreinado o templo foraconcluído, agarrando osinimigos pelos cabelos.

O traçado do templotornou-se, inevitavelmente,alvo de uma associaçãosimbólica. Seu pilono era arepresentação de umhorizonte montanhoso, comuma passagem central onde osol nascente deveria surgir

primeiro para iluminar seuinterior. Todo o edifícioestava carregado de energiadivina, latente na própriaestrutura das paredes.

Os templos ofereciam aosdeuses uma moradacondizente com sua naturezasobre-humana, mas, uma vezpresentes, eles aindanecessitavam de atençãoconstante para assegurar asua benevolência, obtida pormeio de três rituais diários,uma dramatização da vida

cotidiana dos homens. Aoamanhecer, as portas dosantuário eram abertas, paracantarem um hino deadoração. O sacerdoteentrava, ornamentava aimagem e a purificava,apresentando-lhe depois umasérie de oferendas, comofrutas, flores, vinho, leite eoutras comidas e bebidasrecolhidas dos fiéis no grandepátio das oferendas, naentrada do templo. Ao meio-dia e à noite cumpria-se um

ritual semelhante, em sentidoinverso. Preces, purificações eofertas de alimentos eram ascaracterísticas principaisdessas cerimônias, podendojuntar-se a música dassacerdotisas e a queima deincensos, fabricados na salahipostila interna. Em troca,esperava-se que o deustivesse um comportamentorazoavelmentemisericordioso.

Em teoria, o faraó era aúnica pessoa capaz de se

comunicar com os deuses,mas, na prática, essa funçãoprecisava ser delegada aossacerdotes, funcionáriosaltamente qualificados. Seugrande mérito era a purezaritual do corpo enquantoestava presente no santuário,conseguida basicamente pormeio de dois banhos diárioscom água purificada, numlocal específico na salahipostila externa, do ladoesquerdo de quem entrava notemplo. Fazia parte do ritual

de purificação raspar todos ospêlos do corpo, inclusive assobrancelhas. A tarefaprincipal de um sacerdote eraservir ao deus, mas haviaoutros deveres de carátererudito ou administrativo,como estudar os documentosda biblioteca, do lado direitoda sala hipostila, e instruir osnoviços. Os templosfuncionavam também comoescolas, onde eles ensinavama escrever e a desenhar,artes estreitamente

interligadas.Cada santuário era o

centro de uma unidadeeconômica. No caso dosgrandes templos estatais, suariqueza era medida por seuscampos, exploração agrícola,gado e prisioneiros de guerra,bem como pelas ofertas deobjetos e apetrechossuntuosos feitas pelo faraó.Os templos eram cercadospor grandes muralhas e emseu interior havia armazéns,celeiros e gabinetes de

administradores, além dassuas casas. Em épocasposteriores, chegaram a teruma importância significativano comércio, além de manteras oficinas e fábricas sob seucontrole. Toda essa riquezapertencia ao deus, e asoferendas que lhe eramapresentadas não passavamde símbolos da produção totalda sua propriedade, de ondeprovinha o pagamento dossacerdotes e dos demaisencargos, como a construção

de um túmulo real. Ostemplos estavam, portanto,no cerne da vida econômicado Egito.

Concluída a visita aotemplo, nada mais tínhamospara fazer na cidade. Apósmuita discussão, bate-boca,empurra-empurra, safanões epescoções com os condutoresde caleche, contratamos umpara nos levar até a estaçãorodoviária, na outra margemdo Nilo. Eu preferia ircaminhando, mas o calor era

cada vez mais insuportável eas mochilas estavam muitopesadas. O Beto conseguiunegociar um preço bembarato pela corrida e nosaboletamos os três nadesengonçada carruagem.

Na metade da ponte ococheiro parou para acertar opagamento, pois cada um denós daria uma parte dodinheiro. Sebastían deu umanota de cinco libras e ocondutor disse que a nota erade cinqüenta centavos ou

algo parecido, um truque tãomanjado que até os taxistasde São Paulo já tentaram meaplicar. O mexicano tinhacerteza de que dera cincolibras; o egípcio tinha certezade que recebera cinqüentacentavos. Iniciou-se mais umbate-boca, com os envolvidosse ameaçando mutuamentecom a polícia. Por sorte,ficamos nas ameaças, poisnem nós nem o vivaldinotínhamos interesse em levar aameaça a cabo. Finalmente o

trapaceiro desistiu e voltoupara a cidade, enquantoatravessamos a pé o resto dalonga ponte, praguejandocontra os descendentes dolarápio árabe até a sua quintageração.

Chegamos do outro ladoapenas para descobrir queninguém aceitava nostransportar até Luxor,repetindo-se o problemaenfrentado em Al-Kharga. Ostaxistas tinham medo dosterroristas, não queriam

andar sozinhos pela rodovia.Os motoristas das lotaçõestinham medo da polícia e osônibus não transportavamestrangeiros, não tinhamlicença para isso.

Pelo menos foi o queentendi após muita enrolaçãode todos os lados. Comosempre, as informações eramconflitantes edesencontradas, além dadificuldade da língua. Não seio que era pior: eles falandoinglês ou eu falando árabe!

De qualquer modo, ninguémentendeu ninguém.

Estávamos quasedesanimando quando ouvi oapito de um trem. Corremospara a estação ferroviária, aliperto, e entramos num tremrural, ligando Edfu a Luxor.Eram apenas 107quilômetros, mas paramosem 25 povoados ao longo daferrovia. Abarrotado de gentemiúda, em seu interiorreinava uma desordem total,o maior rebuliço sempre que

o trem parava e umapequena multidão trocava delugar. Como não apareceuninguém para nos cobrar apassagem, chegamos emLuxor sem sobressaltos.

Ufa!Apesar de tudo, foi uma

viagem muito interessante.Os trilhos acompanhavam olimite oriental do vale. Ànossa esquerda corria o Nilo.Entre o rio e o trem, um valecom pouco menos de umquilômetro de largura,

totalmente cultivado com asplantações mais verdes quejá vi em minhas andanças. Dolado direito do tremcomeçava o deserto, umapaisagem estéril, inóspita ecruel, apenas escarpas,rochas e areia se estendendoaté o Mar Vermelho. Erapossível viajar do céu aoinferno com um simples virarde olhos.

Após tantas peripéciaspara chegar a Luxor semfazer parte de um grupo de

turistas, pessoas quenormalmente a vêem sócomo um grande museu a céuaberto, considerei atranqüilidade da nossaviagem final um pequenomilagre. Uma dádiva de Ísis,a quem havíamos adoradoem Filae; um presente domeu querido Ramsés II, porquem passei a ter grandeadmiração desde que oconhecera no Museu Egípciodo Cairo.

Sétima Parte

—Tebas

LUXOR

Existem evidênciasarqueológicas de que no localjá havia um assentamentohumano há seis mil anos, ummilênio antes da unificação

do Egito. Transformada emcapital pelo faraó MontuhotepII há mais de quatro mil anos,e posteriormente tornando-seo centro religioso da nação,Tebas só perdeu importânciacom o fim dos faraós. Osgregos privilegiaramAlexandria, os romanosgovernaram de Roma, equando os árabesconquistaram o país,fundando a cidade do Cairo,Tebas já estava praticamentesob as areias do deserto.

Somente no século XIX, coma redescoberta do Egito peloseuropeus, a região foirecuperada, seus templosdesassoreados e o interessepúblico retomado. A novacidade que surgiu passou aser conhecida como Luxor,nome do seu principal templo.

Instalados na cidade,optamos por atividadesdiferentes. Queríamos visitaros sítios arqueológicos, sim,mas antes pretendíamosconhecer a verdadeira Luxor,

entrar no clima dos seusmoradores, perambular porseus recantos menosagitados. Tínhamos tempo,estávamos num ótimo hotel,barato e bem localizado. OEgito é um país pequeno, epor mais que nosdemorássemos em cadalugar, estávamos sempreadiantados em nossaprogramação. O roteiro,planejado para ser percorridoem três meses, levaria menostempo, já dava para notar.

Ainda não havíamosterminado o segundo mês ejá estávamos chegando aofinal da expedição. Eu sentiaisso muito menos pelocalendário do que pelasensação de saudade em queàs vezes me surpreendiametido.

— Estou começando a ficarcom saudades do Egito —falei certo dia para osrapazes. — Isto significa queestamos nos aproximando dofim da viagem.

Beto e Sebastíandedicavam seus diasnavegando na Internet epasseando pela belíssimaavenida do cais, apreciando omovimento das agitadaseuropéias que chegavam esaíam dos incontáveis barcosde cruzeiro. Para deleite domeu amigo fotógrafo, haviana cidade um McDonald’s.Sebastían preferia uma boapizzaria, e ambos sedeliciavam com caldo decana-de-açúcar, o suco mais

doce que já provei noOriente, mais saboroso que amanga indiana.

Minha abstinênciaalcoólica estava chegando aolimite e decidi atacar oproblema de frente. Adorodescobrir os sabores dascozinhas estrangeiras,especialmente os quitutesque as pessoasexperimentam nos mercadospúblicos, a alma de cadacidade. A culinária é umaforma bem prática de

interagirmos com uma culturadiferente, um dos principaismotivos das minhas viagens.Agir como os moradoreslocais, mesmo que somentepor algumas semanas, abreum pouco mais os nossoshorizontes, amplia nossapercepção do que seja viver.

Mas tudo tem um limite.Embora admirador doshábitos & costumes alheios,não posso desprezar osnossos. Privar um brasileirotípico de uma cervejinha

gelada no alto verão é umatentado ao nosso patrimôniocultural. Passar dias, dias emais dias comendo apenas opão que Maomé amassou,não há cristão que agüente.Para alguém como eu, cujomaior sonho de consumo ésentir o cheiro da graxa deuma costela gorda pingandona brasa e a textura de umagarrafa de cerveja saindo dageladeira, comer favasmaceradas e beber chá dehibisco dia-sim-dia-também já

estava me deixando com oestômago revoltado. E o queera pior: com a gargantaviciada em bebidas quentesadocicadas!

Se ainda fosse um mateamargo.

— Vim aqui para conhecero Egito, não para me tornarum egípcio — comentei comos guris, surpresos com minharepentina revolta contra a leiseca imposta pelo Profeta.

Pareceu-me ouvir o Betomurmurar que eu estava

tendo uma recaída,aproximava-se a hora devoltar para casa, mas,inquirido, ele não confirmou.Será que a prolongadaabstinência estava melevando a ter alucinações?Pelo sim, pelo não, haviachegado a hora de evitar oagravamento do problema,impedir que a crise entrasseem estado agudo.

Poderia tomar umacerveja no restaurante do OldWinter Palace, a versão

tebana do Old Catarata, mastal luxo dilapidaria o meuorçamento. A bebidaprecisaria vir acompanhadado jantar, caríssimo. Estavalouco por uma cerveja, masnão a ponto de rasgardinheiro. Assim mesmo, nãosabia se eles atendiam a não-hóspedes. Provavelmentenão, pelo que pude notar domovimento em frente aohotel. Havia outros hotéiscinco estrelas em Luxor, ondeficavam os turistas

endinheirados, mas não tinhaa menor graça beber umacerveja americana rodeadode velhos cavalheiroseuropeus — no Egito!

Esse tempo já havia seextinguido.

Os restaurantes baratosnão vendiam bebidas, entãoapelei para a boa vontadedos comerciantes; sabia queeram ávidos por minhasreluzentes moedasestrangeiras. Esperavatambém que a possibilidade

de eles me cobrarem umpouco mais do que o valorestipulado no cardápio fosseum motivo extra para meatenderem. Valia a penasubmeter-me aosuperfaturamento dosespertalhões, tudo era muitobarato fora do circuitoturístico de Luxor.

Escolhi um local maisdiscreto, onde a comida mepareceu razoável, pelo menostinha um bom aspecto, e mesentei. Para alegria do

garçom, escolhi o prato maiscaro do cardápio.

— Também quero umacerveja — eu disse, ardistraído, quase assobiando...

— Não vendemos cerveja— o garçom respondeu depronto.

— Como?! — perguntei,fingindo grande surpresa.

— Não vendemos cerveja.Bebidas alcoólicas sãoproibidas no Egito.

— Não tem como vocêresolver o meu problema?

Olha, sou cristão, posso beberuma cerveja, para mim não épecado...

— Não — ele respondeu,taxativo.

— Posso pagar um extrase você me conseguir umacerveja. Umazinha já estábom.

— É proibido.— Olha, estou esperando

mais dois amigos para jantar,mas se você não vendecerveja, vou procurar outrorestaurante — falei, jogando

minha última cartada,enquanto fazia ummovimento como se fosse melevantar.

— Um momento —respondeu o garçom, e pelaentonação da voz senti queestava prestes a tomar umacerveja.

Apareceu o gerente.— Não podemos vender

cerveja. Se o senhor desejamesmo tomar uma cerveja,existem alguns hotéis de luxoque podem lhe vender, eles

têm licença para isso.Quantos burocratas

precisariam ser subornadospara um restaurante terlicença para vender bebidasalcoólicas?, pensei, mas nãocheguei a falar.

— Eu sei que os hotéis deluxo vendem cerveja —respondi. — Mas lá a comidanão é tão boa quanto aservida aqui no seurestaurante — completei,apelando para a auto-estimado sujeito.

— Nesse caso — ele disse,dando a sua cartada —, possomandar buscar uma cervejano hotel aqui perto e lheservir escondida.

— Duas, por favor — falei-lhe, esfregando as mãos.

A comida, na verdade,nem era lá grande coisa, masa cerveja, servida num bulecom tampa floreada e bebidanuma caneca de alumínio,estava geladíssima e era damelhor qualidade.

Fiquei freguês.

Visitamos os museusLuxor, com um belo acervo, eda Mumificação, onde lemosum pouco sobre as técnicasegípcias de embalsamar osmortos. Os lugares erampequenos e havia tantosvisitantes que perdemos oentusiasmo pelas múmias.Além do mais, para quem jáas havia encontradoabandonadas em plenodeserto, nos seus túmulosoriginais, revê-lasordenadamente dispostas em

balcões cobertos com vidronão chegava a emocionar. Omesmo acontecia com aspeças do museu, nada deespecial em comparação comas imagens encontradas nasruínas dos templos, nasposições em que foramconstruídas originalmente.

Os museus se prestavammais aos turistas apressados,gente com pouco tempodisponível para visitar o Egito.Podiam encontrar num únicolugar, devidamente

catalogada, uma síntese dagrande civilização.

No museu Luxor, abriapenas uma exceção: o Muralde Aquenáton, formado poruma série de pequenos blocosde arenito finamentedecorados mostrando o faraó,sua esposa Nefertiti e cenaslitúrgicas do templo. Faziaparte da capela mandadaconstruir que Amenófis IVmandara construir para otemplo em Karnak, aindaantes de ele ter mudado seu

nome para Aquenáton,transferido a capital para Tellal-Amarna e substituído Amone sua turma pelo deus únicoAton. Obviamente, após suamorte a capela foi demolida eos blocos de pedrareutilizados no miolo do nonopilono. Descobertosrecentemente, foramrestaurados, o painelremontado para enfeitar osegundo andar do museu.

O Egito tem uma históriatão longa e tão cheia de

mistérios que a gente acabase perdendo neste labirintode faraós. Mas algunschamam a nossa atenção,entre eles Aquenáton, opríncipe rebelde.

Filho do magnífico faraóAmenófis III, Amenófis IVgovernou o Egito a partir deTebas durante quatro anos.Nessa época, os poderes dosumo sacerdote chegavam asuperar os do faraó; muitasdecisões eram tomadas apartir das previsões dos

oráculos em Karnak. O novosenhor do Egito se rebeloucontra essa situação, rompeucom o politeísmo tradicionalque vinha sendo praticadodesde o início dos tempos e,em seu lugar, para espantode todos, adotou uma formade monoteísmo centralizadana figura do deus Aton,simbolizado pelo disco solar.Acessível a todos os povos daTerra, esse deus único tinhauma dimensão universal, nãosendo preciso dotá-lo de

forma humana ou animal,tampouco carregar suaimagem em procissão.

Compreensivelmente, osegípcios sempre tiveram umaligação especial com o sol,não só nas questõesreligiosas, mas também nodia-a-dia da população,principalmente paradeterminar as estações deplantio e colheita. Eles foramos primeiros a utilizá-lo comoreferência para um sistemade divisão e contagem do

tempo, até então restrito aocalendário lunar. O anocomeçava quando a estrelaSírio aparecia no mesmolugar onde o sol nascia. Ocalendário solar egípcio foiaproveitado na elaboração donovo calendário romano,instituído por Júlio César em45 a.C. Com pequenasalterações, em 1582 o papaGregório XIII o transformouno nosso calendário atual.

Embora o calendárioegípcio também tivesse 360

dias divididos em dozemeses, mais cinco dias extrasdedicados aos deuses, osanos eram zerados sempreque um novo faraó assumia. Épor isso que nas publicaçõessobre o Egito há tantasdisparidades nas dataçõesdos acontecimentoshistóricos. Neste livro, sempreque possível, baseei-me nasdatas publicadas no site dodr. Zahi A. Hawass,secretário-geral do SupremoConselho de Antigüidades do

Egito. Nascido no país em1947 e Ph.D. em egiptologiapela Universidade daPensilvânia, nos EstadosUnidos, ele é o egiptologistamais confiável da atualidade.

Amenófis IV mudou seunome para Aquenáton,“espírito do glorioso Aton”, emandou construir uma novacapital, Aquetáton, “ohorizonte de Aton”, namargem oriental do Nilo, umaárea inexplorada, 370quilômetros ao norte de

Tebas, uma região mais tardeconhecida como Tell al-Amarna, onde pôde inovar àvontade, longe dos olhosenfurecidos dos sacerdotes deAmon. Proibiu o culto aqualquer outro deus oudeusa, destituiu os sacerdotesdos seus influentes postos edestinou todas as verbasimperiais ao novo templodedicado a Aton, emAquetáton. Baniu as outrasformas de idolatria e mandouapagar os nomes dos antigos

deuses dos monumentos.A revolução de Aquenáton,

no entanto, não foi apenasreligiosa. A maneira como elese fez retratar, junto com suafamília, assinalou umaprofunda mudança na estéticaegípcia. Pela primeira vez,pinturas murais mostravam orei e sua esposa envolvidosem prazeres mundanos,posições puramenteartísticas. Em uma das cenas,Aquenáton aparece beijandoNefertiti num passeio de

charrete; noutra, a belaesposa está sentada em seucolo enquanto suas filhasaparecem brincando entreeles, um instantâneo familiarmoderno. As tradicionaiscenas de batalhas e vitórias,em que o faraó normalmenteera apresentado aos seussúditos, desapareceram daarte egípcia.

Sir William MatthewFliders Petrie, egiptólogoespecializado no períodoAmarna, escreveu em seu

livro Tell al-Amarna,publicado em Londres em1894: “Aquenáton destaca-secomo o pensador maisoriginal que já viveu no Egito,e um dos maiores idealistasque o mundo já teve.”

Os sonhos do faraó radicalduraram pouco mais de dozeanos. Subitamente, osprincipais membros da famíliareal foram morrendo e elepróprio veio a falecer. Apósum breve reinado do seusucessor, Tutancáten assumiu

o poder, mudou seu nomepara Tutancâmon, emhomenagem a Amon, etransferiu sua corte imperialpara Mênfis. Em Tebas, ospoderosos sacerdotescassaram o mandato do deusAton e recolocaram no topoda pirâmide divina o velho etradicional Amon, cercadopelos outros deuses, e seutemplo em Karnak voltou aoantigo esplendor; um novopalácio foi construído nasvizinhanças para Tutancâmon

participar das cerimôniasreligiosas.

Em Luxor, o templo fica bemno centro da cidade,passagem obrigatória emnossas caminhadas diáriaspra lá e pra cá, batendopernas a esmo ou procurandoum bom lugar para tomar umsuco de cana-de-açúcar. Estáseparado da avenida costeira,abarrotada de turistas eautomóveis, por uma mureta,e podíamos vê-lo de todos os

ângulos. À noite, quando ficailuminado, suas sombras,mais do que suas luzes,mexiam com a nossaimaginação; mesmo assimnão chegamos a visitá-lo pordentro, tudo podia ser vistoda calçada.

Construído pelo pai deAquenáton no século XIV a.C.,sobre as ruínas de umsantuário ainda mais antigo,sua estrutura original foiampliada várias vezes aolongo dos séculos por

Tutancâmon, Ramsés II,Alexandre e os romanos.Roma construiu uma fortalezamilitar em torno do templo,mais tarde chamada pelosárabes de Al-Uqsur (OsPalácios), dando à antigacidade de Tebas seu nomemoderno de Luxor.

Em matéria de templos,guardamos nossas energias enossa curiosidade para visitarKarnak, onde chegamos apósuma curta caminhada a partirdo centro de Luxor.

Enfrentando um calorinumano e um sol diabólico,passamos um dia inteiro sobo encantamento de tão divinolocal, na época chamado deIpet-Isut, “o mais perfeito doslugares”.

Mais do que um templo,trata-se de um espetacularcomplexo com mais de cemhectares de extensãoformado por lagos sagrados,pátios externos commagníficas colunatas, pátiosinternos finamente decorados

com relevos teológicos,santuários, quiosques,capelas, altares, pilonosgigantescos, salas hipostilas ealtíssimos obeliscos, todosdedicados aos famososdeuses tebanos e à glória dosorgulhosos faraós. Iniciadopor Sesóstris I há quarentaséculos, quando foiconsagrado a Amon, elepassou por ampliações aolongo de 1.500 anos, feitaspor todos os faraós que sesucederam no trono. Seu

tamanho atual equivale a dezgrandes catedrais, fazendodele o mais importante centroreligioso egípcio de todos ostempos.

Desenhado no mesmoestilo dos demais santuáriosdaquela época, Karnak sedestaca não só por seutamanho descomunal,resultado dos seus váriosacréscimos — cada reiquerendo deixar nele suaprópria marca —, mas por suaextraordinária sala hipostila,

uma espetacular florestaformada por 134 gigantescascolunas de pedra imitando opapiro, sem dúvida a maiordemonstração de poder vistaem todo o Egito. As grossascolunas estavam tãopróximas umas das outrasque não se podia ter noçãodo tamanho da sala, poisnossa visão ficava obstruídapelos gigantescos blocos dearenito.

Construída por Séti I eampliada por seu filho

Ramsés II, a sala hipostilatem 103 metros decomprimento por 52 delargura, área equivalente àsoma das catedrais de SãoPedro, em Roma, e de SãoPaulo, em Londres.Originalmente coberta e todadecorada com belíssimosafrescos, sua suntuosidade étamanha que me fazia sentirenclausurado em seu interior,mesmo tendo a abóbadaceleste por cobertura. Antesde ruir, o teto, pintado de

azul com estrelas de ouro egrandes abutres de asasabertas, tinha dois níveis: aspartes laterais, mais baixas,eram sustentadas por 122colunas em forma de papiroem botão, a quinze metros dochão; a nave central, maisalta, repousava sobre dozepapiros desabrochados, commais de vinte metros dealtura.

Ao descobrir Karnak em1828, Champollion exclamou:“Uma só coluna de Karnak

isoladamente é maismonumento que as quatrofachadas do pátio do Louvre.”

À noite tive mais uma dor decabeça com meuscompanheiros de viagem.Beto e Sebastían foramconferir seus e-mails numcybercafé enquanto fuicaminhar pelos labirintos deruas caóticas e empoeiradasda área residencial da cidade,visitar alguns lugares aindadesconhecidos. Combinamos

que nos encontraríamos norestaurante do hotel LuxorWena, às dez horas, parajantar. Apressei meu passeioe, para não me atrasar,acabei deixando de veralgumas coisas beminteressantes pelo caminho.No restaurante, esperei duashoras e eles não apareciam.Preocupado, fui ao cybercafée me disseram que amboshaviam saído muito tempoantes. Procurei-os em váriasruas, sem êxito. Cansado,

desanimado e preocupadocom os dois rapazes,especialmente o Beto, quesabia como eu achavaimportante nos mantermosinformados sobre o paradeirode cada um, voltei para ohotel.

Para meu alívio, mastambém minha indignação,encontrei os dois estiradosnas camas, comendo laranjas.Mudaram de idéia sobre ojantar, resolveram voltar parao hotel e não se dignaram me

informar sobre as alteraçõesno plano. Eles se deram contada descortesia, pois sabiamda minha grande preocupaçãocom a segurança deles, e mepediram desculpas. Mesmoassim, fiquei bastantechateado, pois a tranqüilidadedas nossas caminhadassolitárias pelos becos e ruelasmal iluminadas das cidadesegípcias dependia unicamentede sabermos sempre poronde cada um andava. Aceiteias desculpas e pedi que não

ficassem por ali, dando sorteao azar.

Funcionou.

VALE DOS REIS

Conversando com outrahóspede no café da manhã,descobrimos que osproprietários do Anglo, o bomhotel onde estávamos

hospedados, eram cristãos. Ofato era raro no Egito,especialmente nos últimostempos, quando os coptasestavam sendo perseguidospelos fundamentalistasislâmicos.

— Isso não significa nadapara mim — comentou Beto,para decepção da nossacolega de hotel, uma senhorafrancesa que costumavapassar longos períodos emLuxor. — Não sou religioso.

— Para mim também não

quer dizer nada — completouSebastían.

— Para mim significa, emuito — eu disse, entrandono assunto.

Mais do que entrar naconversa, acabei substituindoa francesa no acalorado bate-papo matinal. Pareceu-meque ela ficou um poucodesconcertada por encontrargente com tão pouca fé, e foitomar café em outra mesa.

— Significa o quê? — quissaber Sebastían, retomando o

assunto.— Significa que eles

devem ter um bar no hotelonde se possa tomar umacerveja — respondi.

— Isso é o que chamo depragmatismo — brincou omexicano.

Não deu outra.Após abrir indiscretamente

algumas portas, descobri queno porão, durante asprimeiras horas da noite,funcionava um pequeno bar,onde alguns homens se

reuniam para fumar chicha ebeber cerveja. E, para meutotal espanto, era atendidopor duas garçonetes.Mulheres maisdesengonçadas seriaimpossível, mas osfreqüentadores as tinham emgrande estima. Pedir umacerveja e ser servido por umamulher, independentementedos seus atributos físicos, erarealmente algo sensacionalno interior do Egito.

Alguns dias após nossa

visita a Karnak e já bemdescansados, resolvemosenfrentar outra pernadadesafiadora: percorrer osvales desérticos do outro ladodo Nilo, especialmente o Valedos Reis, o Vale das Rainhase o templo da faraóHatshepsut. A notícia de quepretendíamos cruzar o riopara conhecer a grandenecrópole tebana, onde aolongo dos séculos foramsepultados seus maisimportantes moradores, ricos

comerciantes, militares,nobres, príncipes, princesas efaraós, logo causou umrebuliço entre os guias quefaziam plantão em frente aonosso hotel.

Um deles, fazendogracinha para ganhar nossaconfiança, chamava o templode Hatshepsut de hot chickensoup (sopa de galinhaquente), pela semelhança dasua pronúncia em inglês. Nãofuncionou, pois achei abrincadeira de mau gosto:

fora lá que os turistas tinhamsido massacrados porterroristas enquantovisitavam o santuário,desencadeando essa grandeparanóia policial em que setransformara o Egito. Além domais, não queríamos fazerparte de uma excursão comhora para sair e hora parachegar. Pretendíamospercorrer o local por contaprópria, emboraprecisássemos alugar umcarro e gastar bem mais do

que se nos juntássemos a umgrupo grande.

Pegamos uma barca bemcedinho no embarcadouro emfrente ao templo Luxor,ficamos sentados ao lado dossimpáticos moradores deGurna, a vila dentro docemitério, às vezes sobre aspróprias catacumbas — o quefazia deles guardiões esaqueadores ao mesmotempo —, e cruzamos o riolentamente. Quandodesembarcamos do outro

lado, fomos imediatamentecercados por uma multidão deguias que nos ofereciamcondução para visitar ogrande sítio arqueológico.Podíamos alugar bicicletas,mulas ou camelos.

— Com esse sol... achoque não é uma boa idéia —comentou Sebastían, quandome viu examinando adentadura de uma mulavelha.

— Você tem razão —concordei.

Depois de demoradanegociação alugamos umavan com motorista para ficarà nossa disposição durante odia. Era a opção mais cara,mas, dividindo por três elevando em conta o fato deque a alugáramos fora docircuito turístico, dava parapagar. Os preços em Luxor,quando longe da áreafreqüentada pelosestrangeiros, eramextremamente baratos,permitido-nos algumas

mordomias impensáveismesmo em lugares como oBrasil e o México. Escrevi numpedaço de papel os nomesdos lugares que desejávamosvisitar e o entreguei aomotorista. Não sei se eleentendeu, mas deu otradicional sorriso e seguimosem frente, radiantes com aperspectiva da aventura.

Ainda na várzea, paramoso carro para conhecer oprimeiro grande monumentono lado ocidental de Luxor: o

Colosso de Mêmnon, um parde estátuas com dezoitometros de altura mostrandoduas gigantescas figurassentadas. Embora estivesseno local onde fora construídoo complexo funerário do faraóAmenófis III, ele tinha umahistória ainda mais curiosa,um pedaço da culturahelênica no nordeste daÁfrica. O sítio já era popularhavia mais de dois mil anos,quando os gregos vinham deAtenas para visitá-lo por

acreditarem que as imagenseram do lendário Mêmnon, reida Etiópia, filho da deusaAurora, morto por Aquiles naGuerra de Tróia.

Aurora se apaixonara porTitono, filho do rei de Tróia,de cujo amor nasceuMêmnon, mais tarde rei daEtiópia, no litoral do oceano.Aliado de Tróia, ele foi comseus guerreiros ajudar osparentes do seu velho paiquando a cidade foi cercadapelos gregos. O rei Príamo o

recebeu com grandeshonrarias e ouviu, encantado,sua narrativa sobre asmaravilhas da costa ondeficava seu glorioso reino.

Impaciente por uma boaluta, o valente Mêmnon levouseus soldados para o campode batalha já no dia seguinteà sua chegada, matandomuitos príncipes gregos epondo-os em desastradafuga, pelo menos até Aquilesaparecer e restabelecer aordem em suas fileiras. Em

seguida, travou-se uma feroze prolongada luta entre osdois heróis, com a vitória finalde Aquiles.

Quando Aurora viuMêmnon cair no campo debatalha, imediatamenteordenou que seus irmãos, osVentos, transportassem ocorpo dele para as margensdo rio Esepo. Ao anoitecer, amãe desolada, em companhiadas Horas e das Plêiades, foichorar o filho. A deusa Noite,compadecendo-se dela,

cobriu o céu de nuvens; todaa natureza chorou. Júpiterpermitiu que as fagulhas ecinzas da pira funerária setransformassem em aves, quesobrevoaram a fogueira atécaírem nas chamas.

Para preservar a memóriado seu grande rei, os etíopesergueram seu túmulo àmargem do rio, no bosquedas Ninfas, marcando o localcom duas enormes estátuas.Aurora até hoje continuachorando a morte do filho,

lágrimas que podem servistas ao alvorecer, sob aforma de orvalho, espalhadasna vegetação em todo o Valedo Nilo.

Em seu livro Mitologia,Thomas Bulfinch conta: “Aocontrário da maior parte dasmaravilhas da mitologia,ainda existem monumentoscomemorativos desses fatos.Nas margens do Nilo, noEgito, há duas estátuascolossais, uma das quais,segundo se diz, é de

Mêmnon. Escritores antigosafirmavam que, quando oprimeiro raio de sol nascentecaía sobre a estátua, ouvia-se, partindo dela, um somcomparável ao acorde dascordas de uma harpa.”

Os gregos acreditavamtratar-se dos lamentos deMêmnon, chorando junto comsua mãe. Infelizmente, noséculo III um imperadorromano, com a melhor dasintenções, mandou restauraras estátuas, abaladas por um

terremoto em 27 a.C. Nuncamais se ouviram as lamúriasde Mêmnon.

A profanação das imagenspor pedreiros romanos teriadeixado o grande rei etíopetão indignado a ponto deabandonar de vez a África e irjuntar-se à deusa Aurora noOlimpo? Ou quem sabe areforma teria posto fim a umsom provocado simplesmentepelo calor do sol da manhãque incidia sobre as pedrascongeladas durante a noite?

Sem o tempo necessáriopara resolver tamanhoenigma, voltamos ao carro efomos conhecer o Vale dasRainhas.

O sol parecia amolecernossas cabeças e as pernasse negavam a cumprir asdeterminações do cérebro.Tentando aliviar um pouco odesconforto do desertoescaldante, munimo-nos delitros e mais litros de água enos lançamos em busca dosmausoléus dos mais

poderosos reis daAntiguidade, uma espécie decaça ao tesouro tardia. Oslarápios que viveram oupassaram por estas bandasnos últimos milênios trataramde profanar, roubar edilapidar o grande cemitério,deixando pouco para vermos.Mesmo assim, munidos danossa fértil imaginação ebuscando muito maisconhecimento do que ouro ouqualquer tipo de glória,marchamos em frente.

O Vale das Rainhas ficavaum pouco mais adiante, nolugar onde 75 rainhas,princesas e príncipes foramenterrados. Infelizmente,apenas uma tumba estavaaberta à visitação. A maisimportante, onde forasepultada Nefertari — umadas muitas mulheres deRamsés II — restauradarecentemente ao custo deseis milhões de dólares,pagos por uma fundaçãonorte-americana, estava

fechada aos visitantes.Até a descoberta da

tumba de Nefertari, em 1904,a mais bela sepultura do valeera a destinada ao príncipeAmunherkhepshep, um dosfilhos do faraó Ramsés III,morto aos nove anos deidade. Ainda veríamos muitasoutras tumbas, mas entrarpela primeira vez nummausoléu da necrópole deTebas mexeu fundo comminha serenidade. Como todomundo, estava acostumado a

sonhar com uma visitadessas, cruzar o portal,descer as escadas e entrar nasala funerária de alguémenterrado há mais de três milanos...

As paredes do mausoléudo filho de Ramsés III sãodecoradas com uma série depinturas incrivelmenteconservadas, que mostram ofaraó apresentando seu filhoaos deuses, para que elefosse bem recebido na vidaapós a morte. Ali estavam

eles em fila, entre os quaisAnúbis, a quem caberia aincumbência de levar a almado pequeno herdeiro ao outromundo. A morte prematurado príncipe chocou a todos nacorte, especialmente suamãe. No quinto mês degravidez, a rainha ficou tãodeprimida que abortou. Ofeto, mumificado, foienterrado junto com o irmão,podendo ser visto no fundo dotúmulo, algo realmente capazde emocionar de qualquer

visitante, por mais viajadoque seja.

Nossa van havia ficadobem longe das tumbas, naentrada do vale, lá embaixo.O sol estava impiedoso,obrigando-nos a extenuantescaminhadas morro acima,morro abaixo. Por sorte, ofato de estarmos com umcarro próprio nos possibilitavaum ritmo bem mais lento, epodíamos descansar umpouco entre a visita a ummonumento e outro, ao

contrário dos gruposformados por pessoas emdesabalada correria atrás denervosos guias uniformizados.

Próxima parada: Deir al-Bahri, o templo deHatshepsut, escavado naencosta oriental do monteTebas, um local tão bonitoque me pareceu que anatureza havia seprogramado para hospedá-lo.Metade recortado na própriapedra calcária da montanha,metade construído na planície

à sua frente, ele me deu aimpressão de que estavasaindo do rochedo e seprojetando em direção àvárzea do Nilo. Atrás dele, asescarpas rochosas vindas dodeserto; à sua frente, um valeverdejante.

Seu estilo arquitetônico,que mais parecia um palácioconstruído em vários degrausdo que os tradicionaistemplos com pilonos,pirâmides e tumbassubterrâneas, deu-me a

impressão de haver saídosubitamente do Egito. Esseformato singular, além defazer dele um dos mais belosmonumentos do país,transformou-o num dosprédios mais conhecidos noexterior, perdendo empopularidade somente paraas pirâmides de Gizé.

Construído pela únicamulher faraó do Egito, na suaépoca devia ter sido aindamais extraordinário, antes deAquenáton retirar todas as

referências a Amon e, maisde mil anos depois, osprimeiros cristãos otransformarem num mosteiro,o que explica o nome Deir al-Bahri, Mosteiro do Norte.

Filha de Tutmés I,Hatshepsut assumiu comoregente e, com a ajuda dossacerdotes de Amon,governou durante vinte anos,levando o reino a um períodode paz e desenvolvimento.

Infelizmente, sua capelamais bonita, ao fundo, já

dentro da rocha, estavafechada para os visitantes.Mesmo assim pude ver,através de uma portagradeada, o local onde quasecem turistas foramcovardemente assassinadospor um grupo de fanáticosterroristas islâmicos em 1997,uma carnificina sem igual nahistória republicana do Egito.

Rodamos mais algunsquilômetros até a entrada doVale dos Reis, do outro ladodas montanhas, um cânion

formado por dois braços derios secos onde, de 1500 a.C.a 1000 a.C., foram sepultadosos nobres egípcios. Suasencostas arenosas, onde nadanascia, a não ser a esperançade imortalidade dos seusdefuntos, acabavaabruptamente na paredenorte do monte Gurna, umpico rochoso em formatopiramidal. Naquela época,bastava uma guarita naentrada do vale para mantera salvo dos ladrões a riqueza

sepultada junto com seussenhores. Mais tarde, noentanto, ninguém foi capazde proteger os tesourosfaraônicos enterrados nogigantesco cemitério.

O local, sob um solabrasador num céu semnuvens e desprovido dequalquer tipo de vegetação,encravado em meio àsmontanhas desérticas, por sisó já transmitia umasensação de intemporalidade.

Passamos ao largo do

jazigo de Ramsés II — játínhamos visto sua múmia noCairo — e fomos conhecer omausoléu dos seus filhos, omaior do Vale dos Reis. Aentrada, localizada a apenastrinta metros da sepultura dopai, fora descoberta porJames Burton em 1825 erevisitada por Howard Carterem 1904. Burton achou quese tratava de um simplesdepósito de material fúnebre;Carter, mais curioso, nãocontinuou as escavações por

falta de dinheiro. E nós nãoentramos porque a portaestava fechada; continuavamsendo feitas escavações emseu interior. Foi uma pena,sua história era comovente.

Em 1987, algumasmáquinas que estavam sendousadas no trabalho deampliação do estacionamentona entrada do Vale chamarama atenção do arqueólogonorte-americano Kent Weeks,desconfiado de que averdadeira porta para a

tumba, então batizada de KV5 (Kings Valley nº 5),estivesse nas proximidades.Após convencer asautoridades egípcias de quetinha razão, começou aescavar em 1989. Duranteseis anos ele removeuentulhos até encontrar, em1995, um portal dando acessoà maior descoberta do gênerodesde que Carter localizouTutancâmon.

Por trás do monte de lixoe pedras havia um pequeno

corredor dando passagempara o interior da gigantescasepultura. Ao remover osdetritos acumulados ao longodos séculos, Kent Weeks, suamulher e um grupo detrabalhadores locaisdepararam com um amplosalão com dezesseis colunas,algo ainda não visto no Valedos Reis. Dali saía umagaleria onde havia umaespetacular imagem de Osíris,e vários corredoresconduzindo às dezenas de

câmaras mortuárias ondeforam enterrados os mais decinqüenta filhos do prolíficofaraó. As salas estavamdispostas em diferentes níveisinterligados por escadas ecorredores, o mais longodeles com 443 metros decomprimento. Cobrindo umaárea de 1.264 metrosquadrados, essa verdadeiracidade subterrânea tem 130corredores e câmaras e,segundo Weeks, mais deduzentas ainda deverão ser

descobertas.Dentro do sepulcro foram

encontrados cacos de vasoscom inscrições em queaparecem os nomes de seisdos filhos de Ramsés II, alémde fragmentos de estátuas,jóias e pedaços de sarcófagose múmias. A presença dasinscrições e dos objetospreciosos sugeria que o lugarera usado para cerimôniasfúnebres da família real. Agrandiosidade do monumentoera um sinal da importância

política dos príncipes duranteo reinado de Ramsés II, poisas sepulturas dos filhos deoutros faraós eram bem maismodestas. Até agora só eraconhecido o túmulo de umdos filhos de Ramsés II,Meneptah, seu sucessor.

Caminhando vale acima,conseguimos entrar na tumbade Ramsés VI, cuja entradaconfundia-se com a deTutancâmon, um dos motivospelo qual ela continuoudesconhecida por milênios,

mantendo-se a salvo dosladrões. O sepulcrário haviasido escavado para Ramsés V,faraó durante apenas quatroanos. Ramsés VI deucontinuidade à construção domausoléu, utilizado tambémpara o seu sepultamento.Violado apenas vinte anosapós seu funeral, as duasmúmias foram transferidaspara o jazigo de Amenófis II,encontradas em 1898 elevadas para o Cairo.

Como nas outras tumbas,

entrava-se por um longocorredor decorado dos doislados com cenas da vida dofaraó, principalmente seufuturo encontro com osdeuses. Passamos poralgumas galerias e chegamosà câmara mortuária, ondepudemos ver o sarcófago depedra profanado. Fora abertocom violência pelos ladrões, esua tampa ficou quebrada.

Mas a importância datumba está no teto dacâmara funerária, uma

magnífica imagem dupla deNut delicadamente pintada eespantosamente bemconservada. Ela érepresentada na forma deuma mulher nua com estrelasenfeitando-lhe o ventre,curvando-se sobre a Terra.Numa extremidade, o sol,sustentado por umescaravelho com asas, nasciado seu útero.

Quatro chacais, queprotegem o horizonteoriental, estão postados em

adoração para que o solaparecesse e abrisse as suasportas, permitindo à alma dofaraó sair do mundo inferior erenascer à luz do amanhecer,entre as estrelas que cercama estrela Polar, centro douniverso celestial.

Em seguida o sol, agoraum homem com cabeça defalcão, navega num barcopelo rio celeste, por baixo docorpo de Nut. Finalmente, ànoite, é engolido pela deusaenquanto o rei contempla em

adoração, deste modopermitindo que a barca seretire em paz.

Visitamos ainda váriosoutros túmulos, inclusive o deRamsés III, o último faraóguerreiro. Sua construçãohavia sido ordenada pelofaraó Sethnakht, mas foiabandonada quando ospedreiros acabaram invadindooutro sepulcro, pertencenteao faraó Amenmesse.

— Era tanta sepultura queàs vezes algumas se

confundiam embaixo da terra— comentei com Beto.

Ramsés III mudou adireção do antigo corredor e,125 metros depois, construiuseu próprio mausoléu. Fora ahistória curiosa, pouco sobroudo lugar sagrado: o sarcófagoestá no Museu do Louvre, emParis; sua tampa, ricamenteilustrada, em Cambridge, e amúmia, no Cairo. Restou-nosadmirar as pinturas nasparedes, protegidas do toquedos turistas por um vidro

grosso.As tumbas eram

iluminadas com luzesartificiais especiais para nãoprejudicarem os afrescosmilenares. Era proibidofotografar em seu interior, ealgumas vezes fomosobrigandos a deixar oequipamento fotográfico naentrada, com o guardião, aquem precisávamos darpolpudos baquiches. Volta emeia Beto conseguiacontrabandear sua câmera e,

sem usar flash, tiravaalgumas fotos. Não sei comose alimentavam, mas emalgumas catacumbaspodíamos ver pequenoscamundongos correndo pelochão. Havia muitos turistas, equando conseguíamos ficarsozinhos nossa alegria eraimensa, dava para sentir opeso da eternidade buscadapelos faraós nas pinturas quedecoram as paredes ao nossoredor.

TUTANCÂMON

Para todos, uma enormedesgraça. Tutancâmon, ojovem faraó, estava morto, eseus súditos entraram numperíodo de grande tristeza, o

luto caindo pesadamentesobre o poderoso império,especialmente em Mênfis eLuxor, as duas grandesmetrópoles da Antiguidade. Opovo estava arrasado, anobreza, consternada. Osmilitares, por sua vez,estavam morbidamenteagitados, excitados com asucessão, já que a rainha nãodeixara herdeiros.

(Três milênios depois,hordas de turistasboquiabertos diante da sua

máscara mortuária, no MuseuEgípcio do Cairo, ochamariam carinhosamentede Tut, uma popularidade quenem Osíris poderia terprevisto.)

Naquela época, tão logo orei foi dado como morto, foiiniciado o processo demumificação, mais de doismeses de árduo trabalhorealizado pelosembalsamadores no temploem Karnak, ritual repetidosempre que movia alguém

suficientemente poderoso ourico para pagá-lo.

Eles fizeram um corte dolado esquerdo do abdome,por onde retiraram asvísceras, drenando a carcaça.Estômago, rins, fígado eintestinos foram colocadosem quatro vasos de alabastroe guardados num baúcanópico. Apenas o cérebro,extraído do crânio por meiode um gancho de metalinserido por uma das narinas,foi jogado fora, talvez um

prenúncio de que osacontecimentos que seseguiram não seriam fruto daracionalidade humana, masda fé espiritual do faraó e deseu povo, crentes de que apartir daquele momento avida prosseguiria porinspiração divina. No lugar docoração colocaram uma peçaem formato de escaravelho,envolvida em um textosagrado, para o espírito poderler o Livro dos mortos, ondeconstava o ritual necessário

para bem renascer na outravida.

O corpo permaneceu 35dias envolto em natrão,medida necessária para osfluidos remanescentes seremexpelidos e ele ficarcompletamente ressequido.Só então foi lavado com óleose ervas aromáticas, purificadoe embalsamado por um grupode sacerdotes usandomáscaras de Anúbis. Entre asfaixas de pano utilizadas paraenrolá-lo foram colocados

amuletos e talismãs,protetores vivificados pelaspalavras mágicas do sumosacerdote.

A múmia recebeu umatiara de ouro decorada comimagens dos deuses do Alto edo Baixo Egito. Colocada nocaixão, ela recebeu amáscara mortuária, feita deouro maciço e reproduzindosuas feições em vida. Sobreseu peito, os sacerdotespuseram um par de mãoscruzadas segurando os

símbolos do poder real.Finalmente, no

septuagésimo dia depois damorte, o cortejo fúnebre saiudo templo de Amon,atravessou o Nilo emcentenas de falucas edesembarcou na planíciedesértica ocidental, seguindopara o Lugar da Verdade,onde os mandatários egípcioseram enterrados haviaséculos. Fazia muito calor, umdossel colorido forneciasombra para o corpo

mumificado, transportadonum palanquim de madeiracarregado por doze homens,entre eles os ministros doAlto e do Baixo Egito. Alémdos trajes oficiais, elesusavam faixas de linho brancoem volta da cabeça, umamanifestação de pesar.

Seguindo o féretro, asmulheres choravam, gritavamlamentos e puxavamdesesperadamente oscabelos, expressando à suamaneira a imensa dor do

povo do reino. Atrás delas, aviúva, sacerdotes, amigos,cortesãos, funcionários e Aye,que participou do funeralcomo sumo sacerdote, capazde realizar rituais mágicos emfavor do espírito do falecido,e como encarnação de Hórus,pois ele seria o novo faraó.Nesse cargo, caberia a eleconduzir os rituais capazes deintroduzir a alma deTutancâmon no outro mundo,onde se fundiria com Osíris.

Um pouco mais atrás

vinha um grande cortejoformado por milhares dehomens de torsos nustransportando caixas e maiscaixas com os objetos que orei precisaria no outro mundo:tronos, sofás, carros deguerra, armas, imagens dedeuses, vestimentas de linho,comida preparada, louças,jóias, obras de arte,finíssimos vasos de alabastro,centenas de estatuetasmumificadas, os servos dofaraó na outra vida.

A multidão finalmenteparou diante da escadaria emfrente ao túmulo. O portaldava acesso ao corredor, nofundo do qual havia quatrocâmaras escavadas naencosta de calcário do cânion:antecâmara, anexo, câmaramortuária e sala do tesouro.O local não erasuficientemente majestosopara um faraó, devia ter sidopreparado para algumpríncipe do segundo escalão.Devido à morte súbita do rei,

foi-lhe dedicado de modoimprovisado.

As pessoas estavam tristesnão só pelo falecimentoprematuro do soberano, mastambém porque ser enterradoàs pressas, num lugar não tãonobre, era sinal de mauagouro. Outrosacontecimentosdesagradáveis se seguiriam,deixando seus súditostemerosos de que a vidafutura do rei não lhe seriafavorável.

Mas toda a superstição foiquebrada, pois Tut acabou setornando, pelo menos nomundo dos vivos, um popstardo século XX. Talvez nãofosse bem esse o seu desejo,mas foi o que acabouacontecendo. É possíveltambém que ele tenharessuscitado no mundo dosmortos, e de lá, transformadoem Osíris, se divirta com suanotoriedade mundana.

Milhares de oferendas eutensílios foram depositados

no mausoléu pelos fiéisfuncionários, entre os quaisseu trono, onde aparecia coma rainha sob a proteção dodisco solar, cestas de frutas,leques de penas e 36 ânforasde vinho, algumas com ainscrição da região, safra,nome do comerciante e afrase “muito boa qualidade”,sem contar o seu maravilhosotesouro, tudo para o confortodo rei no além-túmulo.

Enquanto isso, realizava-se a Abertura da Boca,

cerimônia destinada a auxiliara alma de Tutancâmon atranscender sua formaterrena e se transformar noespírito glorioso, o quedeveria ocorrer após umatraiçoeira jornada pelo mundoinferior, onde ele enfrentariamonstros cruéis, serpentesaterradoras e váriosjulgamentos. Caso superassetodos esses obstáculos, suaalma poderia renascer juntoaos deuses imortais,transformando-se ele próprio

em Osíris.Conduzidos por Aye, os

doze sacerdotes que oestavam ajudando no ritualentraram na catacumba,colocaram quatro incensáriosnos pontos cardeais e osborrifaram com água,demarcando o espaçosagrado em torno do grandesarcófago de pedratrabalhada onde seriacolocado o caixão real. Emseguida, invocaram os deusese sacrificaram vários animais

em comemoração ao triunfode Hórus sobre Seth, entreeles dois touros, patos einúmeras gazelas. Uma pernae o coração de um dos tourosforam imediatamenteoferecidos à múmia,enquanto o resto dasoferendas foi reservado parao banquete futuro do faraó,logo renascesse.

Aye, o sucessor, diante detodos os presentes ao funeral,pegou um instrumento ritualfeito de madeira e com sua

ponta curva tocou o nariz, osolhos, as orelhas, a boca, asmãos, os órgãos genitais e ospés do faraó, concedendo-lhepoder mágico. Pronunciandoos encantamentos do Livro daAbertura da Boca, citandoAnúbis e Hórus, ele concluiu acerimônia religiosa com aspalavras “Viva outra vez, parasempre”.

A múmia foi então retiradado palanquim e conduzidapelos carregadores pelosdezesseis degraus da

escadaria subterrânea. Elamedia quatro metros decomprimento por 1,6 metrode largura e levava à portaexterna da tumba.Ultrapassada, seguiram porum corredor descendente,com nove metros decomprimento e cerca de doismetros de altura, em cujofinal havia mais uma porta,por onde entraramdiretamente na antecâmara.Orientada no sentido norte-sul, ela não era grande, pelo

menos para os padrõesfaraônicos. Media 8,08 metrospor 1,68 metro. O cortejodepositou diversos utensíliosno anexo, a pequena salamedindo 4,35 metros decomprimento por 2,6 metrosde largura, com um pé-direitode 2,55 metros, tambémconstruída no sentido norte-sul e ligada à antecâmara poruma pequena porta na suaparede oeste.

Os carregadores deixarama múmia na antecâmara, para

os rituais finais, foram até suaextremidade norte, cruzarampela câmara mortuária e, àdireita dessa, entraram nasala do tesouro. Ela media4,75 metros por 3,8 metros etinha 2,33 metros de altura.Na parede leste, dentro deum enorme tabernáculofolheado a ouro, havia umcofre de calcita, onde ossacerdotes guardaram osquatro vasos canópicoscontendo as víscerasmumificadas do rei, os seus

órgãos sagrados.Em torno deles foram

colocadas gigantescasimagens de ouro de Neith,Selkit, Ísis e Néftis, as quatrodivindades que presidem amorte. Duas delas, as queficaram no lado direito eesquerdo da entrada, tinhamas cabeças viradas sobre umdos ombros, encarando demodo desafiador quemousasse penetrar naqueleespaço sagrado.

Entre o tabernáculo e a

entrada da sala do tesouroforam colocados dois outrosprotetores ainda maisapavorantes: a cabeça deuma vaca, de madeirafolheada a ouro,representando a deusaHathor, com um olhararregalado, grandes chifresnegros e o pescoço envoltonum pano de linho, e umaestátua de madeira emtamanho natural de Anúbis,sob a forma de um chacalsentado.

Entre as centenas depeças de ouro, prata, marfime outros materiaisvaliosíssimos ricamentetrabalhados, foram colocadosdois esquifes com os doisfetos mumificados —tentativas fracassadas deTutancâmon e da rainhaAnkhesenamum de perpetuara linhagem de Amarna.

A câmara mortuária, com6,37 metros de comprimentopor quatro metros de largura,construída no sentido leste-

oeste, tinha 3,6 metros dealtura. Suas paredes, emtorno do enorme sarcófago dequartzito rosado, forampreviamente pintadas comcenas destinadas a auxiliar aalma do rei no além-túmulo,minucioso trabalho feitodurante as semanas em que ocorpo estava sendomumificado.

Na parede leste, o faraó jáhavia sido pintado vestidocomo Osíris, mostrando aconfiança do seu povo em sua

bem-sucedida vida futura. Ocorpo também fora pintadomumificado, dentro de umsacrário ornado com coroasde flores, sobre a barcafunerária, puxada por dezaltos funcionários do palácio eos principais ministros do Altoe do Baixo Egito.

Na parede norte forampintadas duas cenas. Umamostra Tutancâmon/Osírisdiante do seu sucessor, Aye,caracterizado como Hórus,usando a coroa azul de rei e a

pele de leopardo de umsacerdote. Ele estavarealizando a cerimônia daAbertura da Boca, paragarantir o sepultamentocorreto do seu patrono Osíris,de quem herdaria o trono, epara incitar a alma dodefunto. A outra cena mostraTutancâmon como rei vivosendo recebido por Nut. Àesquerda, ele podia ser vistotocando Osíris, ao mesmotempo em que sua almatocava o seu próprio corpo

vivo.Na parede sul, em torno

da porta de entrada, o rei foipintado sendo saudado porHathor na vida após a morte.Ela lhe oferecia a vida,representada pela cruzerguida diante de sua boca.Atrás deles foram pintadosAnúbis e Ísis. Finalmente, naparede oeste, os pintoreshaviam retratado diversascenas retiradas do Livro dosmortos: o rei morto, sob aforma de escaravelho, diante

da barca solar, ao lado decinco divindades menores domundo além-túmulo. Abaixodelas viam-se doze babuínosrepresentando as doze horasda noite através das quais omorto deveria navegar antesde poder renascer no outromundo.

Seria nessa viagemtraiçoeira e imprevista que ofaraó utilizaria os onze remoscuidadosamente depositadospelos sacerdotes no chãoentre o sacrário e a parede

norte da tumba.Enquanto alguns

sacerdotes entoavamcantorias, outros colocavamguirlandas de flores nasimagens do faraó easpergiam o local com óleosaromáticos. Três belíssimoscaixões, em formato demúmias e com as tampaspintadas a ouro com o rostodo morto representado comoOsíris, foram cuidadosamentedepositados no sarcófago, umencaixado no outro. A múmia

foi então colocada no caixãomenor, fechado com pregosde ouro e prata. A seguir,tamparam os outros doisataúdes.

O último, com mais dedois metros de comprimento,estava magnificamentedecorado com faiança, vidrocolorido e pedrassemipreciosas. Em cada umadas suas extremidades forampintadas Ísis e Neith, bemcomo as mãos do faraócruzadas sobre o peito,

segurando o báculo e omangual, seus símbolos dedivindade. Inseridos em suatesta estavam representaçõesde Nekhbet e Wadjet,protetores do Alto e do BaixoEgito.

Num derradeiro ecomovente gesto, a rainha,profundamente emocionada,colocou uma pequena coroade flores sobre o caixão,imediatamente coberto pelossacerdotes com uma finíssimamortalha de linho.

O sarcófago, com os trêscaixões superpostos, estavapronto para ser lacrado,fechando para sempre aúltima morada do rei-menino,quando aconteceu oinesperado, uma fatalidadebrutal: na hora demanobrarem a enorme tampade granito vermelho pesandomais de doze toneladas, elarachou ao meio. Piorpresságio, impossível. Comoessa terrível desgraça nãopodia ser amenizada por

nenhum dos presentes, nemmesmo a viúva ou Aye, asduas peças foram encaixadase a rachadura foi preenchidacom gesso.

Imediatamente, para nãodar outra chance ao azar,que, como vimos, estavarondando os calcanhares deTutancâmon, hábeiscarpinteiros envolveram osarcófago com um gigantescosacrário, quatro caixas demadeira adornadas comfolhas de ouro e faiança

envernizada de azul, umadentro da outra. O sacrárioocupava quase toda a câmaramortuária, deixando apenas46 centímetros entre ele e asparedes da tumba, ondeforam depositados amuletosmágicos, destinados a ajudaro faraó em sua longa jornadapelo mundo inferior.

Os artesãos haviamdecorado as paredes externasde cada uma das quatrocaixas com inscriçõeshieroglíficas e aterrorizantes

símbolos de proteção,utilizados para afastar osespíritos maus da alma dofaraó e assustar osprofanadores de cemitério. Asportas, com dobradiças,foram construídas no ladoleste, cada caixa com umaporta dupla com puxadores,trancadas com um ferrolho.

Elas foram fechadas uma auma, e seus puxadoresenvoltos por cordéis decânhamo e marcados com oselo da necrópole real: Anúbis

sentado sobre os Nove Arcos,os inimigos tradicionais doEgito, representados por noveescravos agrilhoados. Amontagem do sacrário, feitaàs pressas, acabouacarretando mais algunstranstornos aos carpinteiros:algumas peças, previamenteconstruídas, foram colocadasnos lugares errados,dificultando o seu encaixe.Em determinados pontos, asmadeiras das paredes foramcolocadas na posição correta

na base da martelada,danificando um pouco amaravilhosa obra.

A entrada da câmaramortuária foi então fechadapelos pedreiros com pedras eargamassa. Para guarnecê-lae proteger o descanso eternodo rei, dois guardiões,enormes imagens pintadasem preto e dourado,sentinelas em tamanhonatural, foram colocadas umade frente para a outra.Vestidas com um saiote

triangular dourado e tendonuma das mãos uma clava ena outra um bastão,representavam o espírito deTutancâmon.

Os presentes foram aospoucos se retirando, deixandono mausoléu apenas a viúva,os sacerdotes e algunspresentes, oito pessoas nototal, participantes dobanquete funerário, compostode cinco patos, duastarambolas, um pernil decarneiro, vinho e cerveja. Eles

estavam usando coroas deflores e folhas e faixas delinho ao redor da testa, numadas quais se lia “Ano 8 doReinado de Tutancâmon”.

Após comerem parte dasoferendas sacrificiais dacerimônia de Abertura daBoca, os pratos foramquebrados, como parte doritual. O chão foiminuciosamente varrido, omaterial utilizado namumificação, as faixas deluto, todas as sobras do

ritual, inclusive as vassouras,foram colocados em dozepotes. Suas bocas foramlacradas e eles ficaramguardados no corredor deacesso ao sepulcro, longe dacâmara mortuária.

Terminando o enterro, asentradas das câmaras foramfechadas de dentro para foracom pedras e vedadas comargamassa de gesso, ondeforam impressos os selos deTutancâmon e da necrópolereal. A multidão voltou para o

outro lado do Nilo, e o querestou do corpo do garoto,assim como seus ancestrais,ficou protegido pelosguardiões na entrada do Valedos Reis.

Em duas oportunidadesladrões tentaram roubar atumba nos anos seguintes,mas não tiveram sucesso.Entraram no corredor, naantecâmara e no anexo,retiraram alguns itens e osesconderam do lado de fora,possivelmente para buscá-los

mais tarde. Foramdescobertos, presos e amaioria dos objetos foirecolocada no mausoléu,embora às pressas e de mododesorganizado. Para melhorara segurança do jazigo, osdoze potes contendo assobras da cerimônia fúnebreforam retirados e enterradosnum local próximo,permitindo que o corredor deacesso fosse inteiramentebloqueado com pedras. Acâmara mortuária, no

entanto, não chegou a serviolada.

Tutancâmon morreu muitojovem, seu reinado tevepouca importância, nãochegou a entrar para ahistória do Antigo Egito.Calcula-se que tivesse apenasdez anos quando assumiu otrono, em 1336 a.C. Casou-secom uma menina de dozeanos e morreu aos dezenove.Seu sucessor, Aye, ficouapenas quatro anos no poder,encerrando o breve ciclo dos

monarcas de Amarna. Ogeneral Horemheb tornou-sefaraó e fez questão deminimizar a passagem delespelo poder.

Quando o faraó Ramsés VIfaleceu, duzentos anos depoisda morte de Tutancâmon,ninguém mais se lembravadele nem da suainsignificante campa. Osoperários construíram suastendas exatamente em cimada entrada já soterrada dapequena tumba e escavaram

um enorme mausoléu paraRamsés VI na rochadiretamente acima do túmulode Tutancâmon, sem quererdespistando para sempre osprofanadores de cemitériosda Antiguidade, os caçadoresde tesouros, os cristãosperseguidores de heresias doImpério Romano, osseguidores de Maomé e, porúltimo, os arqueólogoseuropeus. Com o passar dosséculos, praticamente todosos sepulcros foram violados e

saqueados por bandidos ousimplesmente abertos pelosarqueólogos, menos o deTutancâmon.

Isso até um certo jovemdesenhista chamado HowardCarter começar a fazerescavações no Vale dos Reis.

HOWARD CARTER

Howard Carter nasceu emLondres em 9 de maio de1874, portanto 3.220 anosdepois de Tutancâmon. Nãoera filho de rei, mas de um

ilustrador de jornal, SamuelJohn Carter, de quem herdouo dom da pintura, valendo-lheum emprego no MuseuBritânico. Aos dezessete anosfoi convidado para trabalharno Egito, ajudar a reproduzirem aquarelas os exóticosafrescos encontrados nosjazigos e templos do país.Não sei se havia algumaprofecia, mas, se havia, elase cumpriu, pois as vidasdesses dois homens, mesmoem épocas tão diferentes,

nunca mais puderam sercontadas separadamente.

Carter havia descobertosua vocação, embora nem delonge imaginasse quetambém havia traçado seudestino, unindo-o a um faraóe à sua tragédia. Inicialmentecolaborando com renomadosarqueólogos, mais tardefuncionário públicoindisciplinado e por fimtrabalhando por contaprópria, durante quatrodécadas ele bisbilhotou cada

metro de areia nas duasmargens do Nilo, tornando-seum dos mais famososegiptólogos de todos ostempos.

Talvez por força dessedestino, ele era praticamentea única pessoa em todo oEgito que acreditava napossibilidade de o túmulo deTutancâmon ser encontradoentre as catacumbas do Valedos Reis. Mais do que isso,ele estava convencido de quea sepultura continha os

tesouros enterrados com ojovem faraó. O fato de algunsobjetos terem sidoencontrados escondidos nosítio arqueológico significavaque os ladrões haviam sidodetidos antes de consumar osaque. O novo depósito,contendo os doze potes comas sobras da cerimôniafúnebre de Tutancâmon,descoberto em 1907 pelosarqueólogos britânicosEdward Ayrton e TheodoreDavis, dava-lhe a certeza de

que a sepultura ficava nosarredores.

Sem ajuda oficial emunido apenas de algunsfragmentos de provas, entreas quais alguns selos do rei, ometódico Carter fez umlevantamento completo,catalogando minuciosamenteos objetos encontrados nosúltimos duzentos anos. Alémdisso, fez um detalhadomapa, anotando tanto oslocais onde tumbas foramdescobertas como as

escavações frustradas dosarqueólogos profissionais ouamadores que passaram peloVale dos Reis.

Pagando todas asdespesas do próprio bolso,dinheiro ganho fazendodesenhos para turistas outrabalhando como guia nolocal, ele estava prestes adesistir quando foiapresentado a lordeCarnarvon.

George Edward StanhopeMolyneux Herbert, o quinto

conde de Carnarvon, nasceuem 1866 no castelo deHighclere, no condadobritânico de Hampshire.Apaixonado por cavalos deraça e automóveis, já osdirigia em outros países daEuropa antes mesmo queessas máquinasextraordinárias fossempermitidas na Grã-Bretanha.Freqüentemente ia parar nostribunais por excesso develocidade e, segundo umarevista da época,

“ultrapassava ciclistas àespantosa velocidade de 32quilômetros por hora”.

Como era previsível em1901, ele sofreu um graveacidente na Alemanha.Recuperou-se, mas ficou comseqüelas nos pulmões, comdificuldade para respirar,principalmente no inverno.Aconselhado pelo médico,viajou para o Cairo em 1903,destino da nobreza durante oterrível inverno no HemisférioNorte. Cansado da vida fútil

de seus pares, saiu em buscade uma distração mais deacordo com suapersonalidade aventureira:procurar múmias nas areiasdo Saara.

Todas as manhãs, oobstinado aristocrata, alto,esguio, simpático, de rostocomprido, bigode e paixãopor blusões esportivos, saíada sua suíte no Hotel OldWinter Palace, em Luxor, e iaacompanhar as escavaçõesda sua equipe, não sem antes

se proteger da poeira e dosmosquitos com uma gaiola detela metálica construídaespecialmente para esse fim.

Após seis semanas detrabalho árduo, elefinalmente conseguiuencontrar uma múmia — degato!

O francês Gaston Maspero,diretor-geral do Serviço deAntigüidades Egípcias,aconselhou-o a contratar umarqueólogo de campo paraexecutar seus projetos, já que

ele estava disposto a investirdinheiro no ramo dasmúmias. Convencido, foiapresentado aodesempregado HowardCarter.

Os dois homens secompletavam. Um tinhadinheiro e gosto pelaaventura, o outro tinhaconhecimento e paixão pelodesafio. Em pouco tempodescobriram vários túmulos,alguns importantes, outros demenor significado. À medida

que as escavaçõesprogrediam, Carter iaeliminando do seu mapa asseções escavadas, umtrabalho minucioso necessáriodevido ao estado em que oVale se encontrava.

Os arqueólogos anteriorescavavam por intuição,transformando o local numqueijo suíço, buracos emontanhas de areia por todosos lugares, dificultando otrabalho de Carter. Mesmoassim, ele continuou

escavando intermináveistrincheiras, retirandotoneladas e mais toneladasde destroços e garimpandomontões de entulhos duranteanos, sua personalidadeinquebrantável posta à prova,submetida ao seu grandedesafio. Afinal, profecias nãopodem se realizar ao acaso,precisam seguir uma linhapreviamente determinadapelos deuses.

A I Guerra Mundial veio ese foi, e nada de

Tutancâmon. Lorde Carnarvonjá havia desistido e voltadopara Highclere, onde Carterfoi procurá-lo. Após muitasdelongas, convenceu seupatrocinador a bancar umaúltima temporada. Exultante,o teimoso arqueólogo voltouao Vale dos Reis para cavarnuma área ainda nãoexplorada, coberta pelasmoradias dos seus própriostrabalhadores, poucos metrosabaixo do já descobertojazigo de Ramsés VI.

No dia 4 de novembro de1922, pouco mais de umasemana após voltar daInglaterra, Howard Cartersaiu de casa, no pequenoplatô próximo à entrada doVale dos Reis, para mais umdia de trabalho na suainfrutífera rotina de caçadorde múmias. Já haviaconsumido uma enormequantia do dinheiro de lordeCarnarvon, além da melhorfase da sua vida. Será queaquilo estava valendo a

pena? Não teria se deixadolevar longe demais por suaobstinação em quererencontrar mais uma tumba noVale dos Reis, onde cadametro de areia já tinha sidorevirado nos últimos séculos?Arqueólogos mais experienteshá muito haviam declaradoque nada mais tinha para serdesenterrado por ali e ele jásabia que os egiptólogosandavam caçoando dosburacos que ele vinhaespalhando ao longo dos

anos.Ao chegar no local das

escavações preocupado comessas coisas, encontrou osoperários parados, sinalinequívoco de que algo muitosério havia acontecido.

— Encontramos a face deum degrau cortado no leito darocha — disse-lhe o capataz.

— Co-como? — balbuciouum atônito Carter.

Achou que era uma notíciaboa demais para ser verdade,mesmo assim imediatamente

se pôs a cavar, descobrindo oprimeiro degrau de umapequena escadaria, quatrometros abaixo da entrada datumba de Ramsés VI.Perplexo, percebeu que jáhavia cavado, em duasoportunidades anteriores, amenos de dois metros dolocal. Removeram o cascalhoaté o anoitecer, e no diaseguinte descobriram umaporta dando acesso aotúmulo, onde aparecia o seloda real necrópole tebana.

“Podia encontrar qualquercoisa, literalmente qualquercoisa além daquela porta, eprecisei de todo o meuautocontrole para nãoarrombá-la e investigar tudoali naquele mesmomomento”, ele escreveu noprimeiro volume do seu livroThe tomb of Tutankhamen,publicado em 1923.

Imediatamente telegrafoupara Carnarvon:

“Maravilhosa descobertano Vale. Tumba soberba, com

selos intactos. Espero suachegada para abrir.Felicitações.”

Carter recolocou osentulhos no lugar e passou aprovidenciar ajudantesespecializados e a comprarequipamentos para aempreitada, que só seriaretomada com a chegada doseu patrocinador.

A MALDIÇÃO DAMÚMIA

Nas semanas seguintes àprimeira descoberta deCarter, coisas estranhascomeçaram a acontecer no

Vale dos Reis.Charles Breasted nos

conta em seu livro Pioneer tothe past: the history of JamesHenry Breasted Archaeologist,publicado em 1940, citandoseu pai: “Um dia, poucodepois da descoberta, Carterenviou um assistente parabuscar alguma coisa em suacasa (...). Quando o homemse aproximou da casa, ouviuum débil grito quase humano.Depois, tudo ficou em silênciooutra vez — até mesmo o

pássaro parara de cantar. Aoentrar, ele olhou quaseinstintivamente para a gaiola,e viu lá dentro uma naja todaenrodilhada com o canáriomorto na boca. A notíciadesse fato espalhou-serapidamente, e todos osnativos agora diziam: Ai denós, é a naja real vingando-sedo canário por haver traído olugar da tumba — e agoraalguma coisa terrível vaiacontecer.”

Por essa época, o conde

irlandês Louis le WarnerHamon, adivinho equiromante, tornou-semundialmente famoso porfazer horóscopos e previsõescerteiras para os ricos efamosos da Europa. Ele tinhaentre seus clientes MarkTwain, Sarah Bernhardt,Oscar Wilde e a dançarinaespiã holandesa Mata Hari. Oconde previu as mortes deErnest Shackleton, HumbertoI, rei da Itália, Eduardo II, daInglaterra, além do czar

Nicolau II e de Rasputin,entre muitos outros. Todoseles ouviram as previsões desuas mortes diretamente domago, em seu escritório deestilo indiano na Bond Street,em Londres, ou em seuspalácios.

Louis Hamon conta emseu livro de memórias, Reallife stories, publicado em1934, que logo soubera dadescoberta no Egito,escrevera ao seu cliente,lorde Carnarvon, alertando-o

para não retirar qualquerrelíquia da tumba, nem levá-las para outro lugar. O fim damensagem dizia que “se eledesobedecesse a essaadvertência, seria feridoenquanto estivesse na tumba— desenvolvendo umadoença da qual jamais serecuperaria, e que a morte olevaria ainda no Egito”. Omédium explicou ter recebidoa mensagem do espírito deMeketaten, uma das filhas deAquenáton.

Carnarvon organizavasessões espíritas emHighclere, além de ser umhomem muito supersticioso.Embora a maldição tivessesido confirmada por seuvidente, ele estava tãoexcitado com a descoberta noEgito que não só prosseguiucom as escavações comomais tarde transferiu,ilegalmente, algumasrelíquias para a Inglaterra.

No dia 26 de novembro,Carter, seu assistente, o

engenheiro Arthur Callender,lorde Carnarvon e sua filhaEvelyn Herbert, o corredor deacesso ser novamentedesobstruído, entraram naantecâmara e no anexo,encontrando-os cheios deobjetos estranhos,maravilhosos eimpressionantes, o que osdeixou mudos de assombro.Carter descreveu esse diacomo “o maior dos dias, omais maravilhoso que jamaisvivi e que jamais viverei

igual”.A licença de escavação de

Carnarvon dizia que qualquerdescoberta desse portedeveria ser imediatamenteinformada às autoridades,que precisariam estarpresentes no momento emque alguém fosse entrar natumba. Por isso, Carter afirmaem seus relatórios que nãoingressaram na antecâmara,apenas a espiaram peloburaco deixado na porta pelosantigos ladrões e por eles

provisoriamente.Mas parece que não foi

bem assim.Em seu livro Tutancâmon,

a conspiração do Êxodo,publicado em 2002, oshistoriadores Andrew Collins eChris Ogilvie-Herald afirmam:“Além disso, há prova mais doque suficiente de que osmesmos quatro indivíduosvoltaram à tumba nos diasque se seguiram eilegalmente abriram a portalacrada entre as sentinelas,

ficando frente a frente com aúltima morada do faraómorto.”

É compreensível. Depoisde décadas e mais décadasfurungando atrás de umagrande descoberta, ter queesperar para abri-la e,possivelmente, dividir omomento glorioso comburocratas governamentaisnão combinava com aspersonalidades de Carter eCarnarvon.

Oficialmente, a tumba foi

aberta no dia 16 de fevereirode 1923, na presença deautoridades, convidados,jornalistas de todo o mundo,turistas e populares presentesno Vale dos Reis. À medidaque os tesouros iam sendorevelados ao público, omundo ficava cada vez maisfascinado pela descoberta deCarter.

O maior tesouro, noentanto, foi o próprioTutancâmon; os arqueólogosnunca haviam encontrado

uma múmia de faraó em seuestado original. Elacontinuava no interior dasquatro caixas de madeirapintadas de dourado, umadentro da outra. Na quartacaixa estava o sarcófago depedra esculpida com os trêsataúdes superpostos. Oúltimo caixão, contendo amúmia, media 1,5 metro.Feito de ouro incrustado comlápis-lazúli, turquesas eoutras preciosidades, pesavaquase uma tonelada, uma

jóia de extraordinário valor,tanto histórico quantoarquitetônico. Tudoexatamente como foraenterrado mais de 3.300 anosantes.

Carter havia entrado nagaleria dos imortais.

Costuma-se dizer que navida tudo tem um preço, e osdeuses egípcios nãodeixariam impunes aspessoas que desenterraramTutancâmon. Lá no mundoinferior, Osíris não deve ter

gostado da profanação dotúmulo do seu protegido, esua ira caiu sobre os vivos.

Apenas seis semanas apósa descoberta da múmia,George Edward StanhopeMolyneux Herbert, o quintoconde de Carnarvon, morreuno Cairo, aos 57 anos deidade. Vítima de uma infecçãogeneralizada provocada pelapicada de um mosquito noVale dos Reis durante asescavações, ele foi o primeiroa se juntar ao canário de

Howard Carter no além.Curiosamente, no momentoda morte de Carnarvou faltouluz no Cairo, problema quenenhuma autoridadeconseguiu explicar ao DailyExpress, fazendo o jornalpresumir que os dois eventostinham alguma ligação, umsinal de mau agouro,provavelmente relacionado àprofanação do túmulo deTutancâmon. Além disso, namesma noite morreu emHighclere o cachorro de

estimação do lorde, segundoa governanta, “como quefulminado por um raio”.

Especulou-se muito sobreos últimos dias do aristocratabritânico. Pessoas maispróximas comentaram queele morreu delirando,reclamando que “um pássaroestá me arranhando o rostocom as garras”. Ali Hassan,ex-chefe do SupremoConselho de Antigüidades doEgito, lembrou na época quetal frase já havia aparecido

num texto de maldição doséculo XXII a.C., no qual selia que Nekhebet, o abutre,“arranhará com as garras orosto de quem violar umtúmulo”.

A maldição não serestringiu ao rico lorde,atingindo também outraspessoas do seu círculo maispróximo. Aubrey Herbert, seumeio-irmão, morreuinesperadamente após aextração de um dente, emsetembro de 1923. O

comendador Mervyn Herbert,outro meio-irmão deCarnarvon, presente àabertura oficial da câmaramortuária, em 1923, morreuem Roma, sete anos depois.Richard Bethell, secretárioparticular de Carnarvon,morreu em circunstânciasmisteriosas em 1929. Seu pai,o terceiro lorde Westbury,desgostoso com o fato de quealgumas relíquias de Tuttivessem sidocontrabandeadas para sua

mansão em Londres,suicidou-se. No caminho parao enterro, uma criança de oitoanos caiu acidentalmente sobas rodas do carro fúnebrepuxado por cavalos e tambémmorreu.

Muitas outras pessoasligadas à descoberta dotúmulo real foram vítimas demortes estranhas nos anosseguintes, o que gerou fartonoticiário na imprensamundial sobre a maldição deTutancâmon.

Jay Gould, magnata dasferrovias, morreu depneumonia depois de pegarum resfriado, após uma visitaà tumba de Tut. O egiptólogofrancês Georges Bénéditemorreu de uma queda poucodepois de ter entrado nosepulcro real. Arthur Mace,colega de trabalho de Carterno Vale dos Reis, passou asofrer de um mal-estarcontínuo após a descobertada tumba e acabou morrendoem 1928. O egípcio Ali Kemel

Fahmy Bey levou um tiro daesposa no Hotel Savoy, emLondres, pouco depois deinspecionar os tesouros deTutancâmon.

Howard Carter morreu em1939 em circunstânciasmisteriosas, antes mesmo deconseguir catalogar todas aspeças encontradas comTutancâmon.

Todas essas mortes, emuitas outras que seseguiram, foram atribuídas àmesma maldição. O pavor

popular aumentou tanto queos museus começaram areceber pelo correio relíquiassurrupiadas dos túmulosegípcios, enviadas poranônimos com medo deserem atingidos pelamaldição libertada por Carterno Vale dos Reis.

A própria morte deTutancâmon, aos dezenoveanos, em conseqüência de umferimento na cabeça, nuncafoi esclarecida. A históriaoficial a atribui a um

acidente, provavelmente aocair de mau jeito do seu carrodurante uma expedição decaça e bater com a cabeçaem alguma pedra. Tambémhá suspeita de que ele tenhasido assassinado.

O paleopatologista BobBrier, em seu livro Oassassinato de Tutancâmon,publicado em 1998, 34séculos após a morte do rei,acusou o vizir Aye(provavelmente pai deNefertiti) pelo crime. Ele

chegou a essa conclusão apósexaminar os estudospatológicos dos restosmortais do jovem faraórealizados por Ronald G.Harrison, professor daUniversidade de Liverpool,feitos em 1968, quando asautoridades egípciaspermitiram que os restosmumificados fossemradiografados dentro datumba e as chapas reveladasnuma suíte do hotel OldWinter Palace, em Luxor,

especialmente preparadapara a pesquisa.

Assessorado porradiologistas, médicos,dentistas e egiptólogosexperientes, Ronald Harrisondescobriu um esqueleto cheiode lesões, inclusivehematomas sob o courocabeludo, algo que não haviasido relatado por Douglas E.Derry, professor de anatomiada Universidade Egípcia doCairo, que examinara amúmia em 1925, juntamente

com Howard Carter.Embora Ronald Harrison

não tivesse chegado a umaopinião definitiva, Bob Brier,após consultar outrosespecialistas, afirmou que,apesar de as provasapresentadas pelasradiografias não serem umaindicação incontestável deque houvera um crime, eramo que a polícia poderiachamar de “indicação decircunstâncias criminosas”. Ea suspeita recaiu sobre o vizir

porque foi ele quem assumiucomo faraó no lugar deTutancâmon, e, portanto, erao maior beneficiário da suamorte.

Bob Brier analisa um fatoocorrido há mais de 3.300anos sob a perspectiva atual:a morte não explicada de umjovem poderoso, um cadávercom marcas de ferimentos euma pessoa do círculo davítima que foi extremamentebeneficiada por essa morte.Qualquer policial de delegacia

de subúrbio diria tratar-se deum assassinato.

Em 2005, a múmia foimais uma vez retirada da suatumba, desta vez para sersubmetida a uma tomografiacomputadorizada. Depois defazerem 1.700 imagenstridimensionais da suaossada, os cientistas nãoconseguiram determinar acausa da morte.

No entanto, creio quehavia outros motivos maisimportantes do que a

ambição pessoal por trás damorte de Tutancâmon. Eleteria realmente se convertidoao politeísmo, sua dinastiadeixando de afrontar o podercelestial dos religiosos deTebas? Ou o garoto fizeraapenas uma concessão, paravoltar a revelar-se monoteístaquando se julgassesuficientemente experientepara assumir todo o poder deum faraó?

Fico com a últimahipótese, e a pista está no

trono dourado, encontrado naantecâmara da sua tumba eatualmente exposto no MuseuEgípcio do Cairo. A cenagravada em seu espaldarmostra a rainha de pé, emfrente ao faraó sentado,ambos sob os raios do discosolar. A imagem não só foiesculpida em ouro no tronode Tut como o próprio tronofora transportado para o seumausoléu, certamente para orei voltar a utilizá-lo na outravida, uma espécie de carta de

recomendação para Aton.Outra evidência de que

Tutancâmon não haviarompido com a heresia deAquenáton: quatro anos apóssua morte, quando o generalHoremhebe assumiu comofaraó, mandou destruirAquetáton até o seu últimoalicerce, reutilizando suaspedras em obras da região.As referências a Aton foramexpurgadas das inscrições emtodo o reino e as estátuas deAquenáton foram destruídas.

Além disso, ele mandouretirar os nomes dos quatroreis do período Amarna —Aquenáton, Smenkhkare,Tutancâmon e Aye — dosregistros oficiais. A lembrançadesse período foi eliminadado Egito e Aquenáton jamaisvoltaria a ser chamado porseu nome. Os documentosoficiais dessa época referem-se a ele como “o criminoso deAquetáton”.

A vingança de Amoncontra os hereges de Tell al-

Amarna não parou por aí;continuou através dosséculos. A maldição vingativa,libertada por Carter, acabouatingindo também todos queestiveram em contato comTut.

Howard Carter, logo quechegou ao Egito, em 1891, foiincumbido de desenhar ummapa de Aquetáton. Baseadoem pesquisas arqueológicas eem meticuloso levantamentotopográfico, conseguiumontar um documento

preciso, capaz de esclarecercom exatidão muitas dasdúvidas dos egiptólogos sobrea época revolucionária deAmarna. O trabalho foiconsiderado tão valioso que opróprio Carter o levou aocorreio, em Minya, umacidade próxima ao sítioarqueológico, e o enviou aoServiço de Antigüidades, noCairo, sob administraçãofrancesa.

O mapa nunca chegou aoseu destino, e continua

desaparecido.Ainda hoje o marido de

Nefertiti provoca polêmicaentre seus compatriotas. Oescritor egípcio Robert Soléescreveu recentemente emseu livro Egito: “Não sei bemo que pensar desse herege.Embora tenha o charme dorebelde e a aurora doinventor, Aquenáton destrói aimagem estável etranqüilizadora de umacivilização de quarentaséculos. Com ele, o tempo se

interrompe, o Egito deixa deser eterno.”

Minya, um pouco ao nortede Tell al-Amarna, tornou-seo centro da oposiçãofundamentalista islâmica aogoverno egípcio na década de1990. A repressão foiviolenta, e até hoje a cidadeparece mais uma guarniçãomilitar do que qualquer outracoisa, tamanha a quantidadede policias fortementearmados em suas ruas. EmAsyut, um pouco ao sul de

Tell al-Amarna, pudemossentir na pele o controle dasforças de segurança. Demodo que, mesmo no séculoXXI, a região de Tell al-Amarna parece continuar sobo efeito de algumencantamento maléficolançado pelos deusesafrontados por Aquenáton hámais de 3.300 anos.

Uma história e tanto,pensei, parado diante dosarcófago de Tutancâmon, nointerior da sua pequena

tumba. A múmia continuavaali dentro, por isso a câmaramortuária estava protegidapor uma parede de vidro eera mantida artificialmentefria.

— É uma pena nãopodermos vê-la mais de perto— comentei com Sebastían.

— Por outro lado — elerespondeu —, estamosprotegidos pelo vidro. Jápensou se a múmia resolve selevantar e vir tirar satisfaçõesconosco?

— Ela já tirou satisfaçõescom Carter e sua turma,aniquilando, um por um,todos os que interferiram noseu sono milenar — respondi.— A maldição da múmiaatinge apenas osprofanadores dos seustúmulos, os primeiros aperturbar sua eternidade.

— Como nós fizemos comaquelas múmias no deserto?— perguntou Beto.

— Talvez.— Então, se fomos

realmente os primeiros aentrar naquela tumba, comoo guardião nos disse, talvezsejamos atingidos por algumamaldição — concluiuSebastían.

— Se seremos ou nãovítimas de alguma maldiçãopor termos violado aqueletúmulo no deserto, só vamosdescobrir com o passar dotempo — respondi.

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SOLÉ, Robert. Egito. São Paulo,Ediouro, 2003.

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SumárioCapaOutros títulos da coleção ViagensRadicaisRostoCréditosAgradecimentosSumárioPRIMEIRA PARTE: Cairo

Dança do ventreChegadaOs árabesSaladinoCidadelaCidade medieval

O mercado de camelosCoptasMuseu Egípcio do Cairo

SEGUNDA PARTE: O mundodos faraós

MênfisA última maravilha do mundo

TERCEIRA PARTE: AlexandriaNa cidade de Cleópatra

EncarteQUARTA PARTE: A travessiado Saara

SiuahO Grande Mar de Areia do

EgitoBahariyaFarafraDakhla

Al-KhargaQUINTA PARTE: O Vale doNilo

AsyutAssuãAbu Simbel

SEXTA PARTE: Descendo oNilo

FalucaEdfu

SÉTIMA PARTE: TebasLuxorVale dos ReisTutancâmonHoward CarterA maldição da múmia

BibliografiaColofão

SumárioOutros títulos dacoleção ViagensRadicais

5

Rosto 8Créditos 9Agradecimentos 12Sumário 13PRIMEIRA PARTE:Cairo 17

Dança do ventre 18Chegada 86

Os árabes 128Saladino 153Cidadela 178Cidade medieval 202O mercado de camelos 255Coptas 274Museu Egípcio doCairo 290

SEGUNDA PARTE:O mundo dos faraós 346

Mênfis 347A última maravilha domundo 396

TERCEIRA PARTE:Alexandria 432

Na cidade de Cleópatra 433Encarte 500QUARTA PARTE: Atravessia do Saara 516

Siuah 517O Grande Mar de Areiado Egito 551

Bahariya 596Farafra 672Dakhla 753Al-Kharga 776

QUINTA PARTE: OVale do Nilo 797

Asyut 798

Assuã 833Abu Simbel 888

SEXTA PARTE:Descendo o Nilo 933

Faluca 934Edfu 993

SÉTIMA PARTE:Tebas 1022

Luxor 1023Vale dos Reis 1071Tutancâmon 1120Howard Carter 1168A maldição da múmia 1189

Bibliografia 1230

Colofão 1234