Ele é cineastas - ClipQuick · Suzy e de Sam não é a minha. Aquela casa e aquela família são...

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Ele é um dos cineastas mais originais do nosso tempo. "Moonrise Kingdom" é a história de um primeiro amor adolescente. Estreia na quinta-feira Entrevista Francisco Ferreira, em Carmes JZi 1 11 "Moonrise Kingdom" , Suzy Bishop e Sam Shakusky, dois miúdos de 12 anos, fogem de casa por amor. Ela é uma rapariga solitária. Ele é um escuteiro destemido, habituado a manuais de so- brevivência: é órfão. Estamos em 1965, numa ilha imaginária da Nova Inglaterra. Que futuro os espe- ra? Que futuro tem aquela fuga romântica em déca- da de utopias? Os adultos inquietam-se, partem no seu encalço: os pais Bishop (Bill Murray e Francês McDormand), o chefe dos escuteiros (Edward Nor- ton), o polícia local (Bruce Willis) e até uma temí- vel assistente social (Tilda Swinton). Enquanto is- to, roda num gira-discos portátil o 45rpm de "Le Temps de L'Amour". Canta Françoise Hardy. É o tempo de um primeiro beijo numa praia deserta. Num reino inventado, amargurado, aventureiro, como o reino do primeiro amor. O texano Wes An- derson conta mais, em conversa gravada pouco mais de um mês, no último Festival de Carmes. Foi escuteiro quando era criança? "Moonrise King- dom" é baseado em memórias suas de infância? É vagamente baseado em memórias de infância, mas eu nunca fui escuteiro. Ou melhor, experimen- tei ser durante um par de semanas mas desisti. Aquilo não era para mim. Este filme tem um certo tom de nostalgia. Em que sentido? Tentei recordar-me da emoção de me apaixonar pela primeira vez aos 12 anos. É um sentimento universal que não conhece frontei- ras. Isto foi a maior inspiração do filme. Lembrei- -me de pequenas memórias, de pessoas que conhe- ci de raspão, algures, e que depois acabaram por levar-me a personagens. Contudo, a infância de

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Ele é um dos cineastasmais originais do nossotempo. "MoonriseKingdom" é a históriade um primeiroamor adolescente.Estreia na quinta-feira

Entrevista Francisco Ferreira, em Carmes

JZi 1 1 1 "Moonrise Kingdom" , Suzy Bishop e Sam

Shakusky, dois miúdos de 12 anos, fogem de casa

por amor. Ela é uma rapariga solitária. Ele é umescuteiro destemido, habituado a manuais de so-

brevivência: é órfão. Estamos em 1965, numa ilha

imaginária da Nova Inglaterra. Que futuro os espe-ra? Que futuro tem aquela fuga romântica em déca-

da de utopias? Os adultos inquietam-se, partem noseu encalço: os pais Bishop (Bill Murray e Francês

McDormand), o chefe dos escuteiros (Edward Nor-

ton), o polícia local (Bruce Willis) e até uma temí-vel assistente social (Tilda Swinton). Enquanto is-

to, roda num gira-discos portátil o 45rpm de "Le

Temps de L'Amour". Canta Françoise Hardy. É o

tempo de um primeiro beijo numa praia deserta.Num reino inventado, amargurado, aventureiro,como o reino do primeiro amor. O texano Wes An-derson conta mais, em conversa gravada há poucomais de um mês, no último Festival de Carmes.

Foi escuteiro quando era criança? "Moonrise King-dom" é baseado em memórias suas de infância?É vagamente baseado em memórias de infância,mas eu nunca fui escuteiro. Ou melhor, experimen-tei ser durante um par de semanas mas desisti.

Aquilo não era para mim. Este filme tem um certotom de nostalgia.Em que sentido? Tentei recordar-me da emoçãode me apaixonar pela primeira vez aos 12 anos. É

um sentimento universal que não conhece frontei-ras. Isto foi a maior inspiração do filme. Lembrei--me de pequenas memórias, de pessoas que conhe-

ci de raspão, algures, e que depois acabaram porlevar-me a personagens. Contudo, a infância de

Suzy e de Sam não é a minha. Aquela casa e aquelafamília são criações de ficção. Já a ilha em que o

filme se passa tem coincidências com uma ilha queeu visitei com frequência nos últimos 15 anos. Umlocal isolado, sem automóveis, ao qual só se pode

chegar de/erry. Cada vez que lá chego, parece queo tempo volta para trás. Mas é um local que tam-bém não faz parte da minha adolescência.

Peço-lhe para voltar ao tom nostálgico: é assim

que recorda a infância e a adolescência? Nem porisso. Não me lembro de me sentir uma criança par-ticularmente feliz. Sou muito mais feliz hoje a fa-

zer filmes do que no tempo em que tinha que ir

para a escola. Não sei como é que os espectadoresvão reagir a "Moonrise Kingdom". Acho que cada

pessoa o vai interpretar à sua maneira. Para mim é

uma espécie de comédia triste. Muito triste, até.

Nasceu no final dos anos 60. "Moonrise Kingdom"passa-se em 1965. Porquê? Os meus filmes ten-dem a não marcar um tempo preciso, são algo ana-crónicos nesse sentido, mas desta vez senti necessi-

dade de marcar uma data. O ano de 1965 foi umaescolha espontânea feita no momento em que euestava a escrever o papel do narrador da história.

Representa o fim de um sentimento inocente so-

bre a América. O fim de um verão e de uma esta-

ção. Não o consigo explicar melhor. "Moonrise

Kingdom" foi um filme difícil de fazer e só nos de-

mos conta disso durante a rodagem. Isto foi uma

surpresa porque a minha equipa estava organiza-da, mas é sempre assim: quando se liga a câmara

nunca se sabe o que vai acontecer.Acha que a dificuldade veio do facto de ter duas

crianças nos papéis principais? Certamente. Este

é o meu sétimo filme, já não se cometem tantos

erros. Por outro lado é preciso desafiar esse confor-

to e um sentido de organização que eu acho aborre-cido. Neste filme há muitos uniformes, dos escutei-

ros à polícia, e muitas personagens que represen-tam instituições: a família, o chefe dos escuteiros

interpretado pelo Edward Norton, a assistente so-

cial interpretada pela Tilda Swinton. Basicamente,estou a falar de um mundo em que os adultos jáconstruíram uma maneira de se controlarem uns

aos outros. Ora, os miúdos, Suzy e Sam, estão foradesse mundo. Querem sair dessa cadeia.

"Moonrise Kingdom" tem um elenco incrível. Al-

guns atores já trabalharam consigo, outros são

estreantes no seu cinema. O que o faz escolher

um ator? Como decorre esse processo? É um pro-cesso muito intuitivo e orgânico. O Bill [Murray] é

um dos meus atores favoritos, acaba sempre por en-

trar, este é o sexto filme que faço com ele. As coisas

correm sempre bem e ele está cada vez melhor. Não

estou só a falar da forma única como ele dá vida às

personagens, também da maneira como ele diverte

e contagia as rodagens. A sua presença no set, pelo

menos no dos meus filmes, é terapêutica.E Edward Norton? Foi inexcedível. Apaixonou-sede tal forma pelo projeto que se comportou quasecomo um produtor. Durante as filmagens instalei-

-me numa casa para trabalhar aos serões com o

meu montador, Andrew Weisblum, e com o meudiretor de fotografia, Bobby Yeoman. O Edwardvisitou-nos para fazer uns ensaios e decidiu ficarali a dormir até ao fim da rodagem. Queria partici-par no processo criativo. Depois o Bill veio jantar e

pediu-nos para ficar. Começamos a ser 'invadidos'

pelo elenco. Eu tenho-me correspondido com o Ed-ward e a Tilda Swinton ao longo de todos estes

anos. Sempre nos dissemos que tínhamos que fa-

zer um filme juntos e agora aconteceu. O mesmo

se passou com a Francês McDormand: conheço-ahá muito tempo. O caso do Bruce Willis é diferen-te. Eu queria utilizar a sua persona de homem soli-

tário e amargurado no cinema americano e escrevi

a personagem do polícia a pensar nisso.

A pensar no "Die Hard" ["Assalto ao Arranha-

-Céus"]? Não cheguei a esse ponto, o meu políciaé mais pacato.Já as crianças... Eu acho que elas são as únicas

personagens que sabem o que querem. São mais

eficientes, muito mais do que os adultos, que são

um bocadinho pachorrentos. Há uns tempos assis-

ti a uma entrevista com os irmãos Dardenne sobre

o seu último filme, "O Miúdo da Bicicleta". Eles

falaram dos meses que passaram em ensaios como miúdo para chegar àquele resultado. Estava tu-do calculado ao milímetro. Quando se trabalhacom crianças, este método é mais eficaz. Em"Moonrise Kingdom", passou-se o mesmo com a

Kara Hayward, que interpreta Suzy, e o Jared Gil-

man, que faz de Sam: eles sabiam o argumento de

cor, melhor do que os atores adultos e do que eu.Criou uma família de atores, uma expressão cine-

matográfica muito própria [a sua assinatura é ime-diatamente reconhecível] e também um grupo defãs muito fiel. Preocupa-se com o que eles pen-sam do seu trabalho? Não penso no público dessa

maneira nem creio que esse seja o procedimentocorreto. Preocupo-me em ser claro e conciso a con-

tar uma história quando estou a escrever um argu-mento, com a fluidez da narrativa, mas fico-me

por aí. O que vão as pessoas sentir com os meusfilmes? Bom, isso é uma pergunta que não me cabe

a mim responder. Cada um que fale por si. Mas

deixe-me acrescentar isto: por vezes filmo coisas

com a consciência de que só vou divertir uma mino-ria. Ainda assim, filmo-as tal e qual como quero.Não faço cedências.

A escrita dos argumentos é um processo difícil

para si? Em "Moonrise Kingdom" voltou a colabo-rar com Roman Coppola. Neste caso, foi. Eu cha-

mei o Roman porque tinha os ingredientes mas não

estava a conseguir criar uma história. Passámos

um mês juntos a escrever e ele ajudou imenso. An-

tes disso eu só tinha 15 páginas e milhares de ideias

soltas. Ele foi a bóia de salvação. Sinto que o estilo

dos meus filmes depende muito da escrita, embora

este processo não seja muito consciente. Escrevi

agora outro argumento que completei depressa.Vai passar-se na Europa. Eu quero fazer um filme

aqui. Mas não posso acrescentar mais nada.

Martin Scorsese disse recentemente que adora o

seu trabalho e que é um dos seus maiores fãs.

Ficou surpreendido? Fiquei agradecido porquetambém sou grande fã dele.

E de quem mais? Acho que o meu cinema se poderáencontrar algures num cruzamento entre IngmarBergman, Pedro Almodóvar e os irmãos Coen. Pelo

menos, penso neste triunvirato insistentemente. São

os meus role models. São autores que fundaram as

suas próprias produtoras e conseguiram sempre fa-

zer os filmes como queriam, coisa que muito admiro.Por falar em liberdade: quando parte para uma

rodagem, tem as coisas preparadas ao detalhe?Segue um sistema rígido? Não, as minhas roda-

gens são muito abertas tal como todo o processocriativo, de resto. Começo por 'pescar' ideias e refe-rências muito distintas e vou anotando tudo numcaderno sem saber ainda se elas vão fazer parte do

filme. Depois tento saber se as posso por em práti-ca, neste caso com o Adam Stockhausen, que tam-bém se ocupou da direção artística de "The Darjee-ling Limited" e com quem já fiz alguns filmes publi-citários. Ele é excelente a inventar coisas imprová-

veis. O comboio indiano de "The Darjeeling..." foi

inventado por ele.

Saiu incólume da tarefa de realizar um filme de

animação como "O Fantástico Sr. Raposo"? Foi

um alívio voltar à live actiorí! Ah, sim, mas eu ado-

rei fazer aquela animação. É curioso: o processo de

trabalho com os animadores não é muito diferentedo trabalho com os atores de carne e osso. Eles

trazem a sua própria personagem para os desenhos

e para o modo como se interpreta cada momento.

Contudo, falta algo à animação que para mim é pre-cioso: aqueles curtos períodos de pura loucura quese vivem numa rodagem. Aprendi muito com a ex-

periência da animação. Há décors em "Moonrise

Kingdom" que eu não teria tido coragem de usar se

não tivesse feito "O Fantástico Sr. Raposo". Apren-di a respeitar e a tirar partido dos storyboards. São

uma coisa muito comum para alguém como Spiel-

berg, por exemplo, mas eu nunca os tinha utilizado.No cinema americano atual, você trabalha com or-çamentos muito superiores aos do modelo do ci-nema indie mas está livre da alçada dos grandesestúdios, já que os seus filmes são produzidospor si. Tem sempre o final cut Realiza um cinemade autor completo, coerente, mas também temum pé na indústria, filmando com grandes estre-las do box-office. Sente que tem uma posição pri-vilegiada? Teve sorte? Claro que tive sorte mas as

coisas não são nada simples. É verdade que o pro-cesso tradicional de fazer um filme nos EUA é habi-tualmente conduzido por produtores e não por ci-

neastas mas sempre houve exceções, dentro da

própria indústria. Veja o caso dos filmes do Chris

Nolan: têm orçamentos elevadíssimos mas não dei-

xam de ser projetos muito pessoais. Eu sou ameri-

cano, nasci no Texas, moro em Nova lorque, mas

sempre fui conduzido por uma cultura francesa de

cinema de autor. Acontece que tenho tido a possi-bilidade de fazer as coisas que quero, como eu que-ro. Tanto melhor. A

Acho que o meu cinema se poderáencontrar algures num cruzamentoentre Ingmar Bergman, PedroAlmodóvar e os irmãos Coen