Eliane Brum A crença do direito à felicidade

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A crença do “direito à felicidade” – que vem despreparando a atual geração de adultos. Artigo de Eliane Brum sobre a Sugiro a leitura deste artigo da colega Eliane Brum, colaboradora da Revista Época. Essa verdade precisa ser lida e compartilhada entre adolescentes, novos pais e pais veteranos. Com o abraço do amigo escritor João Pedro Roriz. *** A CRENÇA DE QUE A FELICIDADE É UM DIREITO TEM TORNADO DESPREPARADA A GERAÇÃO MAIS PREPARADA Por Eliane Brum da Revista Época Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor. Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade. Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste. Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante,

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A crença do “direito à felicidade”

– que vem despreparando a atual geração de adultos.

Artigo de Eliane Brum sobre a

Sugiro a leitura deste artigo da colega Eliane Brum, colaboradora da Revista Época.  Essa verdade precisa ser lida e compartilhada entre adolescentes, novos pais e pais veteranos. Com o abraço do amigo escritor João Pedro Roriz.***A CRENÇA DE QUE A FELICIDADE É UM DIREITO TEM TORNADO DESPREPARADA A

GERAÇÃO MAIS PREPARADA Por Eliane Brum da Revista Época

Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.

Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.

Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.

Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.

Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.

É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?

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Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país.

Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.

Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.

A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.

Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.

Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.

Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.

Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.

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O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.

Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.

Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.

Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.

Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba.

(Eliane Brum escreve às segundas-feiras na Revista Época.)

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Esses filhos perplexos diante da velhice dos paisO cinema anuncia novos arranjos para o envelhecer e traz um olhar irônico sobre essa relação familiar quase sempre conflituosa

ELIANE BRUM 24/06/2013 16h41 - Atualizado em 15/08/2013 13h29

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Uma sequência de filmes mostra que a velhice mudou – ou está mudando. Isso diz bastante sobre o aumento da expectativa de vida, já que um dos temas cruciais da sociedade contemporânea passa a ser como ser velho nestes tempos. E faz com que atores e atrizes sem muita chance de viver papéis desafiadores por conta da idade, muitos deles obrigados a uma aposentadoria não desejada, passem a ter a chance de interpretações magistrais, como foi o caso de Emmanuelle Riva e de Jean-Louis Trintignant, no excepcional Amor. Ou tem levado atores consagrados a se aventurar na direção depois dos 70, como fez Dustin Hoffman no encantador O Quarteto. São filmes em que a velhice é contada pelo olhar de quem a está vivendo e há várias formas de pensar sobre o que está sendo dito, dentro e fora da tela. Minha proposta é refletir sobre uma em particular: nos últimos quatro filmes exibidos por aqui e que já estão ou devem estar chegando às locadoras e às TVs por assinatura, os filhos ou estão ausentes ou são uns atrapalhados, oscilando entre a boçalidade e a incapacidade de dar conta da própria vida.     

Em O Excêntrico Hotel Marigold, o mais fraco deles, um dos casais britânicos vai parar na Índia porque a filha gastou o dinheiro dos pais numa aventura empreendedora na internet. Assim, precisam encontrar uma opção mais barata de moradia, o que os leva ao excêntrico hotel do título. Ainda que depois a opção se mostre interessante, mesmo que por caminhos tortuosos, não foi uma escolha num primeiro momento. E sim uma reação à atrapalhação da filha, que se arriscou não com o seu próprio dinheiro, mas (convenientemente) com o dos pais, o que também é uma marca da nossa época.

No ótimo E se vivêssemos todos juntos?, a filha do casal interpretado por Jane Fonda e Pierre Richard é uma chata pretensiosa que só aparece para (tentar) mandar nos pais e dar palpite na vida deles, para em seguida desaparecer. Já o filho do Don Juan interpretado por Claude Rich é muito mais participativo e francamente esforçado, mas o pai tenta escapar de todo jeito das boas intenções filiais porque esse filho só é capaz de enxergá-lo como alguém que vai quebrar a qualquer momento – o que é verdade, mas está longe de ser toda a verdade.   

Em Amor, a maravilhosa Isabelle Huppert está menos maravilhosa no papel de filha do casal que se descobre velho de repente, numa manhã qualquer, em um segundo. Esta personagem, às voltas com um casamento que parece emocionante apenas pelas razões erradas, encarna a filha perplexa diante dos pais. Perplexa e apavorada diante da fragilidade e da finitude dos pais. Ela tenta intervir, ela tenta se impor, ela tenta dizer e fazer coisas sensatas – e tudo falha. Ela tenta principalmente ser potente, mas mal dá conta da própria vida. Seu diálogo com o pai, enquanto a mãe não sabe de si, é uma das cenas antológicas desse filme belíssimo.

Em O Quarteto, que se passa num “lar para velhos” que foram cantores e músicos antes de perderem a voz, a memória ou a saúde, os filhos não estão lá. Surgem, ao fundo, nos dias de visita, mas nenhum dos personagens principais parece ter filhos. Artistas de ópera, eles possivelmente não

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tiveram tempo para a maternidade ou a paternidade. E esta não parece ser nem uma questão, nem um motivo de arrependimento, o que é bastante interessante. Se tiveram filhos, o fato não foi tão marcante a ponto de ser citado, o que de novo é bem interessante. O quarteto é primeiro um trio, que se ampara e se diverte na velhice como os amigos de uma vida inteira que foram e ainda são. A quarta personagem, que chega para fechar o grupo, é uma diva atormentada pela perda da potência, que no seu caso se expressa pela voz que falha. Ela terá de descobrir que pode cantar mesmo com uma voz que não é – nem jamais voltará a ser – a da juventude. E para isso terá de amarrar alguns fios esgarçados do passado.

Só estou citando os últimos filmes, mas antes destes já tivemos outros em que os filhos aparecem ora perdidos, ora oportunistas na vida dos pais, como no delicioso Elsa & Fred. O que vale a pena perceber é que, cada vez mais, ao contar a velhice pelo olhar de quem a vive, conta-se também da perplexidade dos filhos apatetados diante dos pais. Não mais os pais velhos como um estorvo para filhos que mal dão conta da sua vida, sem saber se os enfiam num asilo ou os carregam para casas ou apartamentos onde mal cabem eles. E sim filhos atrapalhados ou boçais que, quando aparecem, tornam-se um estorvo para os pais.

A ponto de em E se vivêssemos todos juntos? deixarem o filho de um para fora do portão e ainda lhe darem um banho de mangueira para que vá embora de uma vez e não volte tão cedo. São velhos poderosos – e que reivindicam seu poder mesmo em uma condição de fragilidade – os do cinema. Poderosos porque não se deixam apartar de sua história na velhice, ao contrário. Apropriam-se dela e a usam para viver com intensidade seus últimos capítulos, apesar das inevitáveis perdas e limitações.   

Cabe esclarecer que esta questão, a dos filhos diante da velhice dos pais, que aqui se torna a principal, nos filmes é secundária, quando não inexistente, o que também é muito significativo. Como filha de pais que envelhecem, eu me identifico com esses filhos perplexos e atrapalhados. Como uma mulher que envelhece, me identifico com esses velhos, nos quais me espelho para o futuro não mais tão distante. Em qualquer um dos casos, consigo encontrar discernimento para perceber o quanto é sensacional que os filhos, que se acham tão centrais na vida de seus pais, a qualquer tempo, sejam colocados no seu devido lugar.

“Minha mãe (ou meu pai) virou criança.” Esta frase, corriqueira na boca de filhos que parecem exaustos, me provoca alguma desconfiança. Soa mais como uma tentativa de potência de filhos que estão se sentindo bem impotentes. Ou soa como uma tentativa de mostrar que sabem o que fazem ou para onde vão, quando de fato se encontram completamente perdidos. Até porque é uma marca do nosso tempo o retardamento da vida adulta, de preferência para sempre. E a velhice dos pais, os adultos por excelência, afunda todas as esperanças inconfessadas de ser adolescente para sempre em pelo menos um lugar no mundo.

Sinto compaixão por esses filhos, como senti pelos filhos dos velhos do cinema. Como senti por mim mesma à certa altura. Ao perceber que meus pais estavam envelhecendo, em determinado momento achei que tinha de assumir também o comando da vida deles. Considerei que, para ser uma boa filha, tinha de ter todas as respostas. Ou, invertendo o lugar, me apropriar do famigerado “eu sei o que é melhor para eles”. Aos poucos fui percebendo que estava me tornando uma chata pretensiosa. Com tanto medo que eles quebrassem que queria carregá-los no colo, mas minha estropiada coluna vertebral mal dá conta de sustentar meu próprio peso.

Com a gentileza que lhes é peculiar, meus pais escutavam meus palpites e minhas pregações e, claro, faziam exatamente o que queriam. Devagar fui me dando conta de que era só o que faltava ter vivido e experimentado tanto para chegar à velhice e ter de suportar uma filha tentando mandar neles. Percebi que o importante era estar por perto não só para o que fosse preciso, mas pelo prazer

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da companhia, e continuar capaz de escutá-los. Se precisam da minha ajuda, eles mesmos me dizem – não só com palavras, mas de maneiras mais sutis. E se fazem coisas que eu considero mais arriscadas, tanto a decisão quanto o risco continuam sendo deles, como sempre foram. Não por minha majestosa concessão, mas porque não tenho nenhum direito de impor qualquer vontade. Se depois de me tornar adulta eu nunca permiti que meus pais interferissem de forma autoritária na minha vida, por que é que eu me acharia no direito de me meter de forma autoritária na deles quando estão envelhecendo? Escutar de verdade ainda é o começo e o fim de qualquer relação de respeito mútuo – e de amor.   

Mas nós, os filhos, nos atrapalhamos mesmo. E acho muito divertida a ironia com que somos tratados nessa sequência de filmes, mesmo quando não estamos. (Como assim não estamos, nós, tão centrais na vida dos pais? Que horror!) Alguns se atrapalham porque se confrontar com a velhice dos pais é se confrontar com a certeza de que não há mais jeito de escapar da vida adulta. E, para quem achou que poderia continuar sendo filho para sempre, é uma complicação virar gente grande de uma hora pra outra. Ao tentar dar ordens aos pais, esses filhos na verdade estão dizendo: “Não me deixem sozinho nesse mundo tão ameaçador. Não me desamparem!”. E a irritação que manifestam diante das limitações dos pais muitas vezes é um jeito tosco de disfarçar o pavor que sentem diante do desamparo iminente. Isso para alguns.

Para todos a velhice dos pais anuncia a própria velhice. É talvez o primeiro grande confronto com a fragilidade e com a finitude. Os filhos que olham aterrorizados para os passos claudicantes dos pais não temem apenas que eles caiam, mas principalmente que serão os próximos a ter pernas que vacilam. Ainda que não confessem nem para si mesmos, talvez seja este o maior horror. E este é um momento bem periclitante da vida. E quando isso se dá por volta dos 40, 50 anos, o confronto acontece quando o corpo está dando os primeiros sinais inequívocos de que já não somos tão jovens. É um duplo desafio, a velhice dos pais e o anúncio do próprio envelhecer. Que nem se compara, e isso também é preciso lembrar, com o desafio abissal que é ser velho – e ser velho nesse mundo em que, além de todas as dificuldades da idade, é preciso brigar para ser respeitado. E escutado.   

Como já contei aqui, compartilho com um grupo de amigos o projeto de envelhecermos juntos num condomínio construído por nós em uma cidade pequena perto de uma grande. Uma cidade pequena por ser mais amigável a quem tem limitações físicas, sem contar que perder o pouco tempo de vida que resta empacado no trânsito não parece uma boa ideia. E perto de uma grande porque queremos continuar indo ao cinema, ao teatro, às livrarias e aos cafés e restaurantes, e numa cidade maior as alternativas gratuitas ou de baixo custo de eventos culturais são mais promissoras para quem vive de aposentadoria. Nossas casas terão fundos para um pátio comum, para o caso de querermos nos encontrar, e frente individual, para a rua. O pacto, já antigo entre nós, parte da ideia de envelhecer no mundo – e não apartado dele, como acontece com a velhice asilada – e perto de quem sabe de nós. Além de nos dar a possibilidade de amparar as dificuldades um do outro e de baratear os custos de manutenção. Neste sentido, nos aproximamos dos personagens de E se vivêssemos todos juntos?, mas com um pouco mais de privacidade.  

Tenho encontrado gente na mesma faixa etária com projetos semelhantes com o seu grupo de amigos. E acredito que esta também é uma mudança importante. Acho que a minha geração está diante dessa questão como nenhuma outra. E tem aprendido algo importante com sua própria perplexidade diante da velhice dos pais. A questão dos meus pais, que sempre viveram com salário de professor, o que todo mundo sabe o que significa no Brasil, era fazer uma poupança para não depender dos filhos na velhice. A frase clássica dos pais bacanas, que hoje estão nos 70, 80 anos, é: “Não quero dar trabalho para os meus filhos dependendo deles”. Ou: “Não quero incomodar os meus filhos”.

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A frase da minha geração – e que já se anuncia na boca dos velhos do cinema – é outra:– Incomodar os meus filhos? Nem me importaria. O que não quero é que os meus filhos me incomodem! 

(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)