Elie Wiesel - Memória a Duas Vozes

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MEMRIA A DUAS VOZES OS AUTORES: Franois Mitterrand foi presidente da Repblicafrancesa durante catorze anos. Elie Wiesel, Prmio Nobel da Paz, escritor, autor do romance Testamento de Um Poeta Judeu Assassinado, editado pelas Publicaes Dom Quixote, na coleco Fico Universal. FRANOIS MITTERRAND ELIE WIESELMEMRIA A DUAS VOZES Traduo de Francisco Paiva Bolo PUBLICAES DOM QUIXOTE LISBOA 1995_ Biblioteca Nacional - Catalogao na Publicao Mitterand, Franois, 14 l 6- Memria a duas vozes Franois Mitterrand/Elie Wiesel (Biblioteca Dom Quixote, 14) ISBN 972-20-1284-3 I. Wiesel, Elie, 1928- CDU 821.133.1-94 " 14" Publicaes Dom Quixote, Lda. Rua Luciano Cordeiro, 116-2.a 1098 Lisboa Codex - Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislao em vigor O ditions Odile Jacob, Abril 1995 Ttulo original: Mmoire deux voix Fotos: Agncia Dias da Silva O James Andanson - SYGMA (capa) O D. Goldberg - SYGMA (contracapa) 1.a edio: Julho de 1995 Depsito legal n.o 89477/95 Fotocomposio: MarianoImpresso e acabamento: Grfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda. ISBN: 972-20- 1284-3 NDICEPrefcio. . .9I. Infncias... 11II. F... 49III. Guerras. . .107IV Escrita, literatura . . .149V Poder . . . 175VI. Momentos. . . 195 Para Lcia PREFCIO O homem poltico exprime-se em primeiro lugar atravs dos seus actos; deles que tem de prestar contas; discursos e escritos no so mais do que peas de apoio ao servio da sua obra de aco. Mas quando o mandato chega ao fim, quando a obra termina e quando, devido idade, o horizonte se encurta, nasce muitas vezes a necessidade de reunir os pensamentos dispersos e de confiar escrita o cuidado de pr em ordem a sua vida. Tendo chegado onde cheguei, sinto tambm eu, agora, a necessidade de dizer, em poucas palavras, durante muito tempo contidas, aquilo que para mim importante. Tal o objectivo deste livro. Foi por isso que empreendi com Elie Wiesel este trabalho de memria. Odile Jacob convenceu-me a p-lo em letra de forma. Aqui fica o meu agradecimento Franois MITTERRAND ELIE WIESEL - Para ns, judeus, o comeo uma necessidade fundadora. O incio preocupa-nos mais do que o fim. Como dizia Walter Benjamin, mergulhamos no futuro s arrecuas. Pessoalmente,procuro-me no passado: a criana que existe em mim que, muitas vezes, determina o curso da minha aco. Quase diria que essa criana que me julga. feliz agora? Foi feliz outrora? So estas as perguntas que fao a mim prprio. Comecemos ento pelo princpio: como foi a sua infncia? FRANOIS MITTERRAND - A minha infncia,que foi feliz, iluminou a minha vida. Os meus pais eram pessoas atentas e livres. No me constrangiam.No exerciam sobre mim uma autoridade cega. Mas inculcaram em mim uma disciplina de vida. ramos uma famlia numerosa: oito irmos, mais dois primos direitos, todos criados juntos. Eu no me sentia perdido no meio de uma caravana ruidosa. Podia, quando me apetecia, conquistar os meus momentos de solido.13 At aos catorze anos, passei as frias no campo, com os meus avs, numa casa situada no cimo de um outeiro, a trs quilmetros da aldeia mais prxima, de onde se avistava uma vasta paisagem.Ficava a setenta quilmetros de Jarnac, exactamente na juno de dois departamentos: Charente e Dordogne, separados por um lindssimo ribeiro, o Drome. Ali fui acumulando sensaes em contacto com o vento, o ar, a gua, os caminhos, os animais. Estas experincias criaram em mim uma espcie de filosofia. Eu era j capaz de adivinhar que, no slex do caminho, havia uma energia escondida. Tinha uma profunda conscincia da natureza, umautntico relacionamento com ela. Todos os dias descobria novas maravilhas. Durante esta primeira poca da minha vida, nunca fui constrangido, nunca exerceram sobre mim qualquer espcie de brutalidade. A minha infncia foi poupada guerra. Em 1923, tinha eu sete anos, vivia mais de esperanas do que de lamentaes oumgoas. Em resumo, o maior perigo era eu poder vir a tornar-me um anjo! Mas aos nove anos, fui para o colgio de Angoulme, e s ia a casa de trs em trs meses. Levantava-me s seis da manh, e no Inverno no havia outro remdio seno apanhar frio. No colgio, tudo me interessava. Era evidente que tinha a percepo do sofrimento, mas no andava atormentado com problemas existenciais. A minha evoluo processava-se num mundo inalterado. ELIE WIESEL - Na minha aldeia, encafuada na neve, nos Crpatos, as crianas judias levantavam-se14Cedssimo para irem para a escola - o heder- onde rezavam as oraes da manh e estudavam e comentavam a Bblia. No Inverno, eu alumiava o caminho com um candeeiro de petrleo. Estava escuro e eu tinha medo. O incio da minha infncia foi um pouco isso: o medo dos vadios anti-semitas, dos demnios, de Deus. Mas diga-me: quandocomeou de facto a sua infncia? FRANOIS MITTERRAND - Por volta dos quatro ou cinco anos, quando abri os olhos para o mundo minha volta. Nessa altura, no havia entre mim e as coisas que me rodeavam a cortina que as pessoas,os preconceitos, o tempo mais tarde colocaram. Eu vivia no imediato. O mundo crescia comigo. Tinha a cabea cheia da msica da natureza: o vento, seco, a uivar; o ribeiro. Cada hora do dia tinha o seu odor. A minha vida era uma vida sensorial. As crianas tm uma notvel faculdade de imaginar. Se durante a minha vida tive algumas ideias, no foram to fortes como as que tive aos quinze anos. Atravs do meu microcosmo, eu via o universo. Sem conhecer o mundo, eu dominava-o. Da reinei, sem saber qual seria, uma ambio de conquista, mas no meu esprito nem sabia ainda que meios utilizar. Vivi muito tempo com os meus avs maternos. Quanto aos meus pais, iam ver-me de vez em quando ao colgio e estvamos juntos nas frias. ELIE WIESEL - Sentiu que eles o esqueciam? Que o abandonavam?15 FRANOIS MITTERRAND - De modo nenhum! Sabia que eles estavam ocupados a trabalhar para poderem educar os outros filhos. ELIE WIESEL - Os meus pais tambm estavam sempre ocupados. Trabalhavam na loja de manh noite. Nas vsperas dos feriados, ns, as crianas, tnhamos de os ajudar. De um modo geral, era quinta-feira que via o meu pai. Era nesse dia que ele ia sinagoga. Eu orgulhava-me de ser seu filho. Enquanto intercessor quase oficial, dedicava-se a servir a comunidade. Conseguia documentos e autorizaes para os necessitados, e a libertao de presos. Mas aos sbados estava em casa. S para mim. De facto, foi no campo de concentrao que me senti verdadeiramente perto dele. Uma criana, como eu era, procura mais a proximidade dos amigos. E o senhor, tinha amigos? Eu, para ter amigos, "comprava-os" com fruta e guloseimas. Precisava de amigos. FRANOIS MITTERRAND - No tive amigos da minha idade a no ser no colgio, e no o lamento. No sentia afinidade com os filhos dos amigos da minha famlia. No nos misturvamos, os contactos eram escassos. S aos domingos os meus pais e avs convidavam amigos para jantar. Alm disso, eu era tmido. Nunca me atreveria a impor-me. No colgio, creio que no dcimo ano, um professor deu-me a conhecer a NRF.1 Eu tinha grandes discusses com 1 NRF - Nouvelle Revue Franaise. (N. T.)16o meu velho amigo, Claude Roy, tambm ele de Jarnac, e que andava no liceu de Angoulme. Que revelaes, que conversas maravilhosas! Graas a ele, entrei num mundo paradisaco, onde imperava o estilo. Ele tinha um esprito literrio mais consistente do que o meu; continuo ainda hoje a descobrir, nos livros que ele escreveu, uma harmonia que s dele. ELIE WIESEL - Alguma vez tencionou ser um grande escritor? FRANOIS MITTERRAND - Se eu tivesse tido uma ambio; teria sido essa. Mas via-me mais na pele de um tribuno da Conveno: escrevia os seus discursos. ELIE WIESEL - Mas se durante a sua infncia no tinha amigos, e estava pouco com os seus pais, a quem confiava as suas mgoas? FRANOIS MITTERRAND - A ningum. Ia para o campo, para o celeiro de minha casa, olhava a paisagem. Fazia inflamados discursos interiores a um povo invisvel. Lembro-me claramente disso. A paisagem em torno de Touvent inspirava-me, e como nessa altura eu lia muito os oradores da Revoluo, quer os de 1789 quer os de 1848, sem dvida que isso me exaltava. Dali, do celeiro juncado de cascas de milho, pela janelinha que dava para o jardim, lanava apelos Histria, cujo curso eu ia modificando segundo as minhas preferncias.17 ELIE WIESEL - Eu tambm sou assim. Quando oio msica, gosto de fingir que dirijo uma orquestra invisvel. Mas nessa altura, o que que o fazia sofrer? FRANOIS MITTERRAND - A injustia, a parcialidade. Sofria quando era incompreendido. Era susceptvel, sensvel s crticas. Por exemplo, era distrado. Mas quando me diziam que eu "andava nalua", expresso corrente em minha casa, zangava-me. Vexavam o meu amor-prprio. E tambm era ambicioso. Quando estava a estudar em Paris, sonhava com aventuras. No pensava na poltica, mas de certo modo via-me no papel de um homem de poder. Paradoxalmente, sentia-me tambm tentado por uma vida discreta, dedicada ao estudo. Os meus desejos entrecruzavam-se. Gostava de ser como os escritores da poca. Sentia prazer na palavra, no verbo, qualquer que fosse o modo de expresso. E no entanto no era falador. Diziam que eu mefechava, que tinha dificuldade em comunicar com os outros. De facto, nunca tive tendncia para fazer confidncias. Se a minha maneira de ser era objecto de ironia, isso aborrecia-me. No colgio, ficava incomodado com situaes de injustia. Tinha uma imaginao destrutiva. Sou pouco rancoroso, mas vivi anos com essa ferida. ELIE WIESEL - Hoje em dia ainda se fecha sobre si mesmo, ainda tmido? FRANOIS MITTERRAND - Ainda. 18 ELIE WIESEL - A est um aspecto que as "pessoas grandes" so incapazes de compreender: que as crianas tm o seu orgulho, o seu amor-prprio. Houve na sua vida momentos de revolta? Na vidade uma criana h sempre revoltas: contra a me, contra o pai, contra os grandes, contra o adulto, contra o inevitvel. . . FRANOIS MITTERRAND - Nunca os meus sentimentos chegaram a esse ponto. ELIE WIESEL - Nunca sentiu revolta? FRANOIS MITTERRAND - No. Tinha, como lhe disse, susceptibilidades, mas eram revoltas mitigadas, humores passageiros. ELIE WIESEL - s vezes amuava? FRANOIS MITTERRAND - Era susceptvel. Quando me parecia que me falavam mais rispidamente, que faziam julgamentos precipitados, eu reagia e fechava-me em mim mesmo. Mas no passava disso. No, nunca senti revolta. Nunca precisei de me revoltar, pelo menos nessa poca. Contra qu? ELIE WIESEL - Quando o mandavam para a cama, quando o proibiam de ler isto ou aquilo... FRANOIS MITTERRAND - No, de facto no. Em minha casa no havia regulamentos. Ningum andava a vigiar-me. Tnhamos uma grande liberdade19num meio familiar estrito. amos missa aos domingos. Aprendi latim com o padre. Em Touvent, depois da missa, almovamos em conjunto. Mas essas obrigaes ocupavam pouco tempo. s refeies ramos quinze ou dezasseis, com os pais, mesa. Nem nos passava pela cabea ausentarmo-nos nessa altura. s vezes havia algum que se atrasava - o meu pai no gostava, mas no dizia nada, limitava-se a mostrar uma cara mais sombria. E noite, quando queramos ler, jogar s cartas ou ao futebol miniatura, ouvir msica, ningum nos dizia: "Vo para a cama." A minha famlia era uma famlia da pequena burguesia, mas tinha uma certa independncia de esprito. Nunca tive de lutar contra ela. ELIE WIESEL - Era uma criana turbulenta? FRANOIS MITTERRAND - No, de modo nenhum. Era calmo, silencioso, mais brincalho do que turbulento - alguns diriam implicativo. Mas de um modo geral, no, no era especialmente galhofeiro ou turbulento. ELIE WIESEL - Sonhador? FRANOIS MITTERRAND - Sim. Numa famlia numerosa, temos de encontrar zonas de solido. ELIE WIESEL - como conseguia essas zonas de solido?20 FRANOIS MITTERRAND - Por meio da leitura ou da contemplao do passar das horas do dia ou da noite. Estava atento ao que a luz d e ao que tira. A luz basta para dar ao teatro da infncia os maisdiferentes cambiantes. O simples caminhar da sombra numa parede um mundo. ELIE WIESEL - Nessa poca escrevia poemas? FRANOIS MITTERRAND - Claro! Como toda a gente. ELIE WIESEL - Poemas de amor? De reflexo? FRANOIS MITTERRAND - Interessava-me pela palavra, pelo verbo, pela escrita, em todas as suas formas. Mas era sensvel s coisas. ELIE WIESEL - natureza? FRANOIS MITTERRAND - Principalmente natureza. Os poemas de amor vieram mais tarde, por volta dos dezoito anos. ELIE WIESEL - No antes? FRANOIS MITTERRAND - No. Pelo contrrio, tentava, com muita vaidade, escrever poemas clssicos sobre assuntos que eu ignorava, inspirados pela leitura dos grandes escritores dos sculos XVIIe XIX.21 ELIE WIESEL: - Nessa altura era j adolescente? FRANOIS MITTERRAND - Era ainda mais criana do que adolescente. Eram sobretudo os locais e as paisagens que me inspiravam. Tinha uma inclinao muito acentuada para os rios e ribeiros. E disse a mim mesmo que, sempre que visse um curso de gua, faria um poema em sua honra. Mas faltei minha palavra! A princpio, era modesto,limitava-me ao ambiente imediato: o Charante, o Seudre, o Gironde. Depois, medida que o meu mundo foi crescendo, alarguei os meus horizontes ao Reno, ao Rdano, ao Garona, depois ao Nilo, aoNger. . . Ainda guardo alguns desses poemas. s vezes entretenho-me a rel-los. ELIE WIESEL - Porqu os rios? Por que no as nuvens? FRANOIS MITTERRAND - No sei ELIE WIESEL - Por que no o vento? FRANOIS MITTERRAND - Creio que a gua, com o seu movimento que atravessa continentes e que finalmente se lana no mar, representava simultaneamente a fatalidade e um conjunto de evocaes e de smbolos que me comovia, me inspirava. ELIE WIESEL - Claro que um psicanalista retiraria disso um sentido!22 FRANOIS MITTERRAND - Acha que sim? Talvez! Mas eu nunca consultei psicanalistas. ELIE WIESEL - Nem eu FRANOIS MITTERRAND - Portanto nunca ningum teve a possibilidade de me explicar. ELIE WIESEL - Voltemos sua famlia. Das pessoas que se sentavam mesma mesa, de qual se sentia mais prximo? FRANOIS MITTERRAND - Refere-se aos meus irmos e irms? ELIE WIESEL - Irmos e irms, pai ou me FRANOIS MITTERRAND - Pai ou me? Na verdade no sei dizer. Ns formvamos um grupo humano solidrio, homogneo. Alm disso, como j referi, a partir dos nove anos, nove anos e meio, no tive oportunidade de viver no seio familiar. At aos dezassete anos estive num colgio interno. A minha me morreu quando eu tinha dezanove anos. Como o meu pai lhe sobreviveu dez anos, foi naturalmente ele que melhor conheci. Eu estava a atingir a idadeadulta, e podia assim conhec-lo melhor. ELIE WIESEL - As crianas no conseguem identificar a altura exacta em que deixam de ser crianas. Consegue dizer-me em que momento nos tornamos adolescentes?23 FRANOIS MITTERRAND - Depende. Mas devo dizer que, aos catorze anos, a venda da propriedade dos meus avs, a experincia da morte, a entrada para o dcimo ano, foram para mim uma verdadeira sacudidela, que marcou o fim da minha infncia. Eu pensava que o meu meio familiar, to unido, ia durar para sempre. Mas rapidamente se destruiu: no espao de seis anos, perdi a minha av, a minhame e o meu av. Nunca reneguei a minha infncia. A partir do momento em que, aos dezassete anos, terminei os meus estudos secundrios e fui estudar para Paris, comeou uma nova fase da minha vida. Naturalmente que eu j no era uma criana na verdadeira acepo da palavra, abria os olhos para outras coisas, interessava-me por problemas dos adultos, as minhas leituras mudavam. ELIE WIESEL - Teve uma infncia sem sobressaltos. Disse-me que aos quinze anos tinha j amadurecido. De um modo geral, recusamos desligar-nos da infncia. FRANOIS MITTERRAND - NO campo, h gestos imemoriais, ritmos imutveis: as estaes, as sementeiras. . . portanto mais fcil uma criana amadurecer. A grande mudana foi a guerra: aprendi o que era a multido, as massas humanas, a misria, a sujidade, a violncia. ELIE WIESEL - Sente que houve uma ruptura entre a sua infncia e a sua adolescncia? 24 FRANOIS MITTERRAND - No, pelo menos dentro de mim. ELIE WIESEL - Portanto, tudo se processou normalmente? FRANOIS MITTERRAND - No houve nenhum corte radical, mas houve uma mudana profunda quando passei do meu colgio de Angoulme para a vida de estudante de direito e de cincias polticas em Paris. Quando entrei no meu quarto, pequeno e inspito, no disse: "Paris, cheguei!" Senti-me perdido, no sop de uma montanha que tinha de escalar. Sentia-me sem identidade. ELIE WIESEL - Entre ns, no havia o direito de falar do pai na terceira pessoa, na sua presena. Pai pai, e no. . . "ele". O pai no um estranho. FRANOIS MITTERRAND - O estranho comea fora do crculo familiar. Em minha casa, como havia poucos convidados, entravam como que por efraco, era com curiosidade que os observvamos. Por isso, em Paris, eu vivia num mundo indiferente, em condies difceis, de solido, que exigiam de mim todos os recursos da luta e da conquista. ELIE WIESEL - Nem ento teve sentimentos de revolta? FRANOIS MITTERRAND - No, no. . .25 ELIE WIESEL - Interior? FRANOIS MITTERRAND - Nem mesmo interior, ELIE WIESEL - Contra a injustia? FRANOIS MITTERRAND - Ah, isso sim! Contra o mundo exterior. Eu participava em muitos acontecimentos da poca, que j era agitada. Falava-se muito de tudo isso. Mas, repito, nunca tive de merevoltar contra o meu meio familiar. ELIE WIESEL - De que fazia parte, a que pertencia. . . FRANOIS MITTERRAND - Sim, sim, absolutamente. ELIE WIESEL - Um bloco slido? FRANOIS MITTERRAND - Sim. Como v, eu no tinha um esprito muito original. ELIE WIESEL - Pelo contrrio! Muito original. Quase sempre os jovens revoltam-se. Antigamente, imolavam crianas: a histria dos judeus comea com o sacrifcio falhado de Isaac. uma das passagens mais impressionantes das Escrituras: nela se reflecte todo o destino dos judeus. Penso nisso muitas vezes, quando escrevo sobre acontecimentos que eu prprio vivi. A infncia de Isaac tambm um pouco a minha. Ser a infncia impotncia?26 FRANOIS MITTERRAND - mais uma fora. Eu pensava j que nada resistia a uma vontade. Era a minha filosofia. Vou buscar minha infncia a maior parte das reservas de que disponho. ELIE WIESEL - A medida que crescemos, chega um momento em que pensamos com mais frequncia, com mais insistncia, na nossa prpria infncia. FRANOIS MITTERRAND - verdade. E talvez um fenmeno constante, inevitvel, quando envelhecemos e nos aproximamos da morte. Regressamos s origens, s primeiras emoes, s primeirassensaes. Tenho um gosto pronunciado pelas fotografias da minha infncia ou da minha adolescncia dos meus pais, dos seus amigos, dos locais onde vivamos. Colecciono-as. Quando as revejo, perco anoo do tempo. Tento encontrar, atravs delas, o que me escapou. Descubro um mundo que eu julgava conhecer. Vou cada vez com mais frequncia provncia de Saintonge, na Charente, onde nasci, epercorro os seus caminhos. Apesar de j l no viver h muito tempo, conservo amarras nessa regio. E veja, porque percorro esses caminhos muitas vezes, conheo hoje melhor as cidades e aldeias doque no tempo em que l vivia. D a ideia que uma distncia me separava delas, uma distncia interior, e que os meus passeios de bicicleta ou no automvel fatigado do meu pai me no tornaram suficientemente sensvel sua beleza, ao seu charme discreto. No sou nostlgico, apenas melanclico. Porque sei que o passado, que revive em mim de 27forma to viva, se afunda na noite medida que o tempo passa, e que desaparecer comigo. Depois de eu morrer, quem se preocupar com o que senti ao lado dos meus pais e avs, na minha casa e naminha pequena cidade? ELIE WIESEL - O que aconteceu a essa casa, onde nasceu, onde cresceu? FRANOIS MITTERRAND - Quando o meu pai morreu, recebemo-la em herana indivisa. Recordo-lhe que somos oito irmos e irms. Como sucede muitas vezes, cada um esperou que os outros cuidassem da casa, de modo que ao fim de alguns anos constatmos que corria o risco, pura e simplesmente, de ficar abandonada e de cair em runas. Decidimos ento ceder a casa a uma das minhas irms, que l vive parte do ano. Como ela no rica e de um modo geral dispomos de poucos meios materiais, tudo ficou como estava. A decorao a mesma, o cheiro do p, da humidade, do salitre, do estuque, o mesmo, e tambm os perfumes do jardim. Proust disse-o muito melhor do que eu, mas por meio destes odores que reencontro poderosas sensaes. A casa ainda tem vida, est cheia de recordaes intactas. Tem o quarto onde nasci, onde nasceramtodos os meus irmos e irms excepo de um, que nasceu em Angoulme. Na altura do parto, uma parteira que vivia na casa em frente ia ajudar a minha me. Chamava-se depois o mdico da famlia. Chamava-se Jules Hubert, lembro-me bem, um bom homem, muito simptico, calvo. Quando l voltei,28encontrei a minha casa tal qual como era. As mesmas divises, a mesma decorao. Penso que h muito poucos locais como este, em que tudo se mantm, enquanto volta o mundo se transforma to depressa. ELIE WIESEL - Tambm eu, evidentemente, regresso cada vez mais minha infncia, mas comigo as coisas passam-se de maneira diferente, porque a histria da minha vida foi diferente. Souinexoravelmente atrado para os locais da minha infncia. J fui duas vezes, trs vezes a Sighet, mas no consegui ficar, tive de partir imediatamente. FRANOIS MITTERRAND - As suas recordaes tm uma carga diferente da minha, pois voc esteve exilado. Viveu uma vida de exilado, e encontrou uma ptria noutro local. ELIE WIESEL - Absolutamente FRANOIS MITTERRAND - Esteve exilado na sua infncia, ou pelo menos na sua juventude: a Hungria, depois a guerra, a deportao. A minha vida, pelo contrrio, foi estvel at aos vinte e dois anos.As minhas recordaes so claras, no houve sobre impresso de recordaes. ELIE WIESEL - De certo modo, estamos sempre mais ou menos exilados: do ventre da nossa me, depois de toda a famlia, dos locais, da recordao.29 FRANOIS MITTERRAND - exactamente assim. Mudamos de pele, fazemos como as serpentes. ELIE WIESEL - Recordo-me de quando regressei a minha casa: tive a impresso de no reconhecer nem a cidade nem a casa onde tnhamos vivido. E no entanto l estava. Viviam l uns estrangeiros. FRANOIS MITTERRAND - Onde era a sua casa? ELIE WIESEL - Em Sighet, numa regio da Romnia que tinha feito parte da Hungria. O local era o mesmo, mas o nome tinha mudado. FRANOIS MITTERRAND - passados dois ou trs dias no conseguia suportar? ELIE WIESEL - Passadas algumas horas FRANOIS MITTERRAND - Algumas horas.. Ficava aborrecido? ELIE WIESEL - No, no. . . pelo contrrio. Senti de repente uma angstia, como se estivesse num pas hostil. Tinha de sair de l o mais depressa possvel, tinha de fugir. Para qualquer lado, o importante era no ficar ali. No dia seguinte regressei a minha casa, nos Estados Unidos. FRANOIS MITTERRAND - Foi porque voc perdeu. . . insuportvel. 30 ELIE WIESEL - Foi porque nada tinha mudado. Os mveis estavam l, a porta ao abrir-se rangia da mesma maneira. . . FRANOIS MITTERRAND - A sua casa pertence a outras pessoas? ELIE WIESEL - Pertence. So pessoas que no conheo, que nunca me viram e que no sabem quem eu sou.. FRANOIS MITTERRAND - De um modo mais atenuado, sinto a mesma impresso quando vou a Touvent. . . ELIE WIESEL - Acontece-lhe rever-se como criana? FRANOIS MITTERRAND - As vezes. So imagens que refluem: um caminho ngreme que eu subo, um rio, tlias sombra das quais eu repousava. L, reconstru o meu mundo. Essas percepes informes continuam a ser um refgio. ELIE WIESEL - Ns gostamos da nossa infncia, a ela voltamos, julgamo-la e ela julga-nos. O que diz hoje criana que foi? FRANOIS MITTERRAND - No tenho nada a dizer-lhe interiormente. ELIE WIESEL - No h dilogo entre ambos?31 FRANOIS MITTERRAND - No, enfim, no muito. ELIE WIESEL - no entanto a literatura esse dilogo entre o adulto e a criana. E a filosofia tambm. FRANOIS MITTERRAND - Talvez tenha razo. Sinto que existe em mim um local imutvel, onde a criana que eu era, com o seu carcter, a sua natureza, a sua personalidade, no mudou. Naturalmente que isso ocupa um espao pequeno em superfcie, mas importante em valor. E depois h tudo o que nossa volta mudou. Enfim. . . O pequeno diamante que l est, perpetuou-se. ELIE WIESEL - a ncora? FRANOIS MITTERRAND - . E se eu entrasse na sua explicao do dilogo com a minha infncia - o que no sinto pessoalmente -, seria para lhe dizer que isso me serve de referncia. Tenho aimpresso de que aquilo que eu ento possua e o pouco que guardei (mas guardei) representam a fraco mais pura e mais ntida da minha personalidade. ELIE WIESEL - Para mim, trata-se de um dilogo. Um dilogo entre a criana que tenho em mim o adulto em que se tornou. Tem muito peso na minha obra. Por vezes sinto que a criana me acompanha, me interroga e me julga.32 FRANOIS MITTERRAND - Compreendo muito bem o que quer dizer: em relao s ambies, aos sonhos, s exigncias da infncia. Vejo com clareza quais foram as falhas e o que faltou. Desse ponto devista, a minha infncia seria o meu juiz. Mas no dramatizemos, acima de tudo sinto a continuidade. ELIE WIESEL - Quando a criana nasce, nasce com todos os matizes do mundo. Tem as suas exigncias, as suas ambies. Foi a criana que tenho em mim que me criou. E a si? FRANOIS MITTERRAND - J tive oportunidade de lhe dizer: eu aos quinze anos tinha mais intuies do que tenho hoje. A minha infncia estava cheia de sabedoria. Tinha uma percepo da fugacidade muito conforme ao que vivi depois. Hoje, o que em mim sensorial, e tambm o que importante, corresponde a impulsos da minha infncia. A criana de antigamente determina as minhas impresses e o meu julgamento, no a minha aco. ELIE WIESEL - Hoje em dia no influencia ainda mais a sua vida? FRANOIS MITTERRAND - uma referncia que obsessiva. Quando estou numa situao difcil, basta recordar-me do que j pressentia. ELIE WIESEL - no entanto a criana que lhe pergunta: "O que fizeste do meu futuro?"33 FRANOIS MITTERRAND - Antes de termos enfrentado o mundo, somos muito exigentes. Para ns prprios e para o mundo. ELIE WIESEL - O que alis muito belo. No se mente, no temos o direito de mentir a uma criana. gravssimo. Uma criana, hoje, pode fazer de mim o que quiser. Choro, rio, fico feliz, fico infeliz, pelo simples facto de uma criana me olhar e de eu olharuma criana. E quando, por exemplo, tento ilustrar a tragdia, a condio humana hoje, fao-o sempre com crianas. Sempre que me empenho na causa dos Direitos do Homem, pela causa das crianas que o fao. Vejo uma fotografia de uma criana que chora, vejo ascrianas do Biafra, agora as crianas na Jugoslvia. . Deve ter visto aquela fotografia, em Agosto de 1993, e lido os artigos que se escreveram: cento e vinte crianas doentes, com problemas mentais, abandonadas a cento e cinquenta quilmetros de Sarajevo. . FRANOIS MITTERRAND - de facto terrvel, uma mgoa insuportvel. ELIE WIESEL - Intolervel! E pensei: se estivesse fisicamente mais perto de si, tinha-o aconselhado, sei l, a enviar imediatamente avies para trazer essas crianas - crianas abandonadas, esfomeadas de solido, mentalmente e fisicamente doentes, essas cento e vinte crianas, sujas porque at os enfermeiros as abandonaram. . . O que se pode fazer, neste nosso mundo de hoje, para que a infncia dos homens seja protegida?34 FRANOIS MITTERRAND - Tomar cada vez mais conscincia dos factos. ELIE WIESEL - O que se poder fazer? E como? FRANOIS MITTERRAND - Onde estivermos, fazer o que pudermos. ELIE WIESEL - ISSO uma confisso de impotncia? FRANOIS MITTERRAND - Faz parte da infelicidade do mundo. Isso no quer dizer que eu me incline perante a fatalidade, mas ainda no samos da barbrie. Tudo se passa bem diante dos nossosolhos. ELIE WIESEL - Dir-se-ia que o mundo de hoje no pode coexistir com as crianas. . . FRANOIS MITTERRAND - Julgo que voc tem uma viso. . . ELIE WIESEL - Idealista? Talvez. . . FRANOIS MITTERRAND - Romanesca, talvez mstica, no? Esses seus sentimentos no so muito vulgares. Eu penso que a nossa quota de barbrie. A vida avana e no se preocupa com os sereshumanos, crianas ou velhos, que esmaga na sua passagem.35 ELIE WIESEL - Isso quer dizer que as pessoas pagam um preo para poderem avanar. Matam-se crianas, mata-se a infncia para que o homem se torne adulto. FRANOIS MITTERRAND - No sei se para isso, de facto no sei. ELIE WIESEL - Hoje, Sarajevo. Mas eu penso que Sarajevo acabou. Onde quer que eu v, dizem-me: "Sarajevo acabou." FRANOIS MITTERRAND - certo que Sarajevo, situada numa regio dominada pelos Srvios da Bsnia, est muito exposta. Mesmo nos planos de reagrupamento srvio, croata e muulmano da Bsnia,Sarajevo ainda no tem nos mapas uma passagem, um corredor que lhe permita juntar-se ao bloco muulmano. Mas agora as foras das Naes Unidas - que incluem muitos Franceses - esto l, e doravante preciso que os Srvios se arrisquem muito para atacarem Sarajevo e tentarem domin-la: teriam de passar sobre os cadveres dos soldados das Naes Unidas. Mas se estes se forem embora. . . ELIE WIESEL - Soube h pouco que as foras srvias conquistaram uma montanha estratgica muito importante, que lhes abre o caminho de Sarajevo. FRANOIS MITTERRAND - Sabe, os caminhos. . . Os Srvios j esto h muito tempo nas colinas que 36rodeiam Sarajevo. Podem ver o que se passa na cidade. Alis, os bairros perifricos de Sarajevo esto praticamente nas mos dos Srvios. ELIE WIESEL - Eu tenho medo. . . Tenho medo que os Srvios l entrem, tenho medo das atrocidades que sero cometidas. Pergunto a mim mesmo se no imperioso que se tome uma atitude. FRANOIS MITTERRAND - Que atitude? Esto l soldados nossos. ELIE WIESEL - Gostava de lhe fazer uma pergunta. Para estarem l, enquanto testemunhas, quando os Srvios chegarem - se l chegarem -, no poderia enviar a Sarajevo meia centena de intelectuais? Para que estivessem l, apenas como testemunhas, para se salvarem vidas humanas. Tenho a certeza de que salvaramos muitas vidas, pelo simples facto de l estarmos. FRANOIS MITTERRAND - um projecto que muitos espritos j ponderaram. ELIE WIESEL - Se o conseguir, evidente que o apoio. Mas vou voltar atrs, eu acredito no mistrio da infncia. Tambm acredita? FRANOIS MITTERRAND - No. O mistrio da vida mantm-se: o nascer do dia, o comeo da luz. Mas a criana, enquanto tal, no um mistrio.37 ELIE WIESEL - A vida da criana misteriosa FRANOIS MITTERRAND - A vida. . . Comeamos, continuamos, envelhecemos, desaparecemos. um ritmo geral. ELIE WIESEL - isso a vida: comeamos.. FRANOIS MITTERRAND - O que sucede que, quando somos crianas, chegamos a um planeta do qual no conhecemos nada - talvez que alguns genes transmitidos pelas geraes precedentes nos preparem para a existncia -, temos tudo a aprender, a sentir. As primeiras sensaes so muito fortes e dominam todo o resto da vida, porque so as primeiras. Impressionam uma tela virgem. ELIE WIESEL. - Tem razo. Um sbio talmdico compara uma criana a uma pgina em branco - por muito que isso contrarie os psiclogos. Mas assim. o comeo, o mistrio do comeo. Antes,no havia nada. E tudo se inscreve ali, naquele nada, e esse nada torna-se qualquer coisa que existe, que se desenvolve. FRANOIS MITTERRAND - Sim, mas no durante muito tempo. . ELIE WIESEL - a prpria vida? FRANOIS MITTERRAND - A infncia passa muito rapidamente. Alm disso, h vrias infncias.38Se olhar para um recm-nascido, dir que dentro de trs, de seis meses, j no ser a mesma criana, quer no aspecto fsico quer, evidentemente, no aspecto moral e intelectual. Depois, cristalizar por volta dos dois, trs anos, e uma criana que mudar, que j no ser a mesma trs ou quatro anos depois. Quando se olha para uma criana, temos de pensar que a conhecemos apenas durante um instante, que outra criana lhe suceder. Estamos permanentemente a ver a criana pela ltima vez. ELIE WIESEL - As minhas referncias so quase sempre de ordem religiosa. Talvez porque a minha infncia esteve exclusivamente impregnada de Bblia. Teve uma educao religiosa? FRANOIS MITTERRAND - A minha famlia era catlica praticante. ELIE WIESEL - Ajudou missa? FRANOIS MITTERRAND - Sim, claro. ELIE WIESEL -...com o general de Bnouville? FRANOIS MITTERRAND - possvel, pois estamos na mesma turma no colgio. Quanto aos meus pais, eram catlicos. Do lado do meu pai, h vrias geraes. Do lado da minha me, do meu av materno, o catolicismo mais recente, porque eram burgueses mais racionalistas. Mas do lado da minha 39 av materna, havia uma dominante crist, catlica activa, crente, empenhada. Eu vivia nesse clima. ELIE WIESEL - Era enriquecedor, ou era praticante por obrigao? FRANOIS MITTERRAND - Era enriquecedor. H valores msticos - impresso de msicas, de cantos, um odor especfico das igrejas, feito de incenso e flor-de-lis (claro que havia mais flores, mas sobretudo dessa que me lembro) que criavam uma intensa poesia. Quando l voltei, como sucedeu h pouco tempo, igreja de Jarnac para ver as transformaes que lhe fizeram, senti imediatamente esse odor, que continua a ser o mesmo. ELIE WIESEL - Eu tinha medo desse cheiro. Sempre que passava diante da igreja e sentia o cheiro do incenso, mudava de passeio. certo que todos temos de enfrentar as nossas recordaes.Todas as religies pem o acento tnico na infncia: infncia de Jesus, infncia de Moiss, infncia do Buda. Haver alguma mensagem no facto de os fundadores das religies invocarem a infncia? FRANOIS MITTERRAND - O esprito da infncia supostamente o esprito da pureza, a autenticidade. aquilo que voc h pouco referiu: o comeo. O desejo de comeo e de recomeo e de eterno recomeo para maior rigor de toda a vida humana, um alimento poderoso para uma religio.40 ELIE WIESEL - Julgo que as religies apelam tambm inocncia, portanto infncia. FRANOIS MITTERRAND - Sim, muito. ELIE WIESEL - infncia dos homens e das mulheres. FRANOIS MITTERRAND - Porque sabem que nesse perodo que se imprimem (j h pouco empreguei esta expresso) para sempre muitos dos elementos da existncia. ELIE WIESEL - do destino! H uma curiosa expresso talmdica: depois da destruio do Templo de Jerusalm, deixou de haver profetas; o dom de profetizar apangio dos loucos e das crianas. FRANOIS MITTERRAND - Pois , bem sei. As crianas e os loucos no so dominados pela razo. Ora, uma religio exige uma f, e a f tem valores ELIE WIESEL - So livres de raciocinar para l do raciocnio. FRANOIS MITTERRAND - verdade. ELIE WIESEL - Para mim, a infncia tambm doena. Eu estava muitas vezes doente. A minha me levava-me a mestres hassdicos ilustres para que me abenoassem, e consultava professores de41renome. Pude ir a Budapeste porque os mdicos para l me mandavam, para eu ser examinado por grandes especialistas. A primeira ruptura com a infncia quando a morte se intromete. Uma criana de lutodeixa de ser criana. Conheceu a angstia da morte? FRANOIS MITTERRAND - No. No fomos educados num casulo. Eu ia onde queria. A nica proibio era entrar no rio sem saber nadar. Mas descobri um vau com os meus irmos, o que prova que no eramuito obediente. A primeira vez que me vi perante a morte, foi por volta dos meus doze anos. Estvamos em Junho, chovia, e um dos meus colegas de turma, Alphonse, um negro, queria a todo o custo tomarbanho no rio. Por fim l entrou na gua, para morrer pouco depois: hidrocusso. Eu estava a cerca de cem metros dele, e portanto no assisti ao afogamento. Mas estava bem perto quando tiraram da gua o corpo do Alphonse. No fui ao enterro porque no conhecia os pais dele. Mas essa morte, e mais tarde a de outros colegas de turma, impressionaram-me. No entanto, durante muito tempo pensei que era imortal. Isto uma fora de expresso! A morte dos outros impressionava-me, mas eu pensava que iria ter uma vida longa. Mesmo durante a guerra, exposto morte, nunca tive esse receio. Excepto talvez no primeiro dia, quando realizei que estava na linha da frente. Quando os alemes comearam a usar artilharia, isso criou em mim uma impresso intensa, como que um receio fsico. Eu no pensava que ia morrer, mas o meu corpo e os meu sentidos reagiam. A coragem no consiste em no ter medo, mas sim em domin-lo.42 ELIE WIESEL - Recorda-se do seu primeiro luto? Eu lembro-me do enterro de uma prima, as velas cabeceira da cama, as lgrimas da minha tia, os murmrios das visitas. Recordo-me tambm da morte de um mestre hassdico. Todas as lojas fecharam em sinal de luto. passagem do cortejo fnebre, as pessoas na rua choravam. FRANOIS MITTERRAND - Antes da guerra, durante a grande crise de 1929-1930, os meus avs venderam a propriedade que tinham em Touvent. Foi esse o meu primeiro luto. Um luto autntico, comose tivesse perdido um ente querido. Comearam a tirar todos os mveis da casa. A minha av estava sentada numa cadeira, ao canto de uma sala vazia. Tinha os olhos vermelhos das lgrimas, e eu aliestava, ao lado dela, desesperado. Pouco depois da venda da propriedade, a minha av morreu. A minha infncia era abalada. certo que tive a sorte de no ter enfrentado a morte mais. Quando a minha av morreu, fiquei petrificado, sentado numa cadeira, com os olhos rasos de gua durante horas. Se me tivesse ido embora, teria tido a impresso de estar a cometer uma traio. A morte no uma separao passageira. Por isso n deixei de olhar para a minha av at ela ser colocada no caixo. Era uma velha senhora respeitvel; tinha setenta e cinco anos. Guardo dela o privilgio de um amor autntico. ELIE WIESEL - Estava bom tempo nesse dia?43 FRANOIS MITTERRAND - Foi em Agosto, durante as frias. Ela morreu durante a noite. Os meus pais no queriam que ns, as crianas, ficssemos ao p dela. Mas mal se soube da morte preveniram-me, e eu no a abandonei. ELIE WIESEL - Chorou? FRANOIS MITTERRAND - Tive sempre relutncia em exprimir a minha dor, especialmente em pblico. ELIE WIESEL - Essa morte marcou-o? FRANOIS MITTERRAND - Pela primeira vez, a morte entrava no crculo das pessoas de quem eu gostava. Eu no pensava na morte, mas na morta. Sentia-me solidrio. A minha av tinha-me chamadoantes de morrer. Foram as suas ltimas palavras. A minha mgoa era ainda maior, por sentir que um dia esse sentimento de mgoa diminuiria. Eu pensava que o tempo e a prpria vida me fariam esquecer, e que portanto estava a trair um pouco. ELIE WIESEL - Quando algum morre, somos chamados pela sua morte. um terrvel mistrio. O Anjo da Morte descrito como "emissrio das gentes". Diz-se que tem muitos olhos: quando olha,mata. A morte, o olhar dos vivos. FRANOIS MITTERRAND - Eu pensava na separao eterna.44 ELIE WIESEL - No entanto, os catlicos acreditam que as pessoas se vo encontrar no outro mundo. FRANOIS MITTERRAND - Para mim, a separao era para sempre. Eu dizia para comigo que na vida era preciso ser fiel aos mortos. Muitas vezes jurei que no passaria um dia sem que me recordasse. Mantive quase sem excepes esse juramento. Todas as noites dedico algum tempo reflexo. No esqueo nenhum daqueles com quem convivi, que me acompanharam, mesmo dos que no estavam ligados a mim por laos afectivos muito fortes. Tive sempre o sentimento de que seria o tmulo da recordao. Pensar nos mortos, garantir a vida daqueles que amamos, desejando que outros o faam por ns. um dever de memria. Vejo-me como um guardio porta de uma fortaleza - guardio da memria, guardio da recordao. A minha av chamava-se Eugnia. Tinha nascido durante o Segundo Imprio. Eu sentia-me responsvel pela sua memria, testemunha da sua vida. ELIE WIESEL - Ela foi feliz? FRANOIS MITTERRAND - Teve quatro filhos. Perdeu o primeiro, ainda criana. O segundo filho morreu aos vinte anos, de tsica galopante. Ficou absolutamente despedaada. ELIE WIESEL - Transferiu o amor para si?45 FRANOIS MITTERRAND - Julgo que sim. Tinha muita ternura por mim. O meu av era uma pessoa que mudava de opinio, tinha ideias acerca de todos os assuntos. Viveu at aos oitenta e cinco anos.Quando ele morreu, eu tinha vinte anos, e j estava mais endurecido. Tive muita pena, mas era a ordem natural das coisas. ELIE WIESEL - Tambm conheci uma das minhas avs. Vivia em nossa casa, connosco, em Sighet. Mas no cheguei a conhecer o meu avpaterno. Era maqueiro, e morreu na Primeira Guerra Mundial. H alguns anos, quando fui visitar o cemitrio, encontrei a pedra tumular. Vi o nome dele, que o mesmo que o meu. FRANOIS MITTERRAND - Ns no temos essa tradio, que muito bonita. Na famlia Mitterrand, o nome Gilbert aparece muitas vezes a partir do sc. XVI. ELIE WIESEL - Podemos remontar a Abrao e David. Quando o inimigo actuou, f-lo tambm contra os nomes. Percebeu que os nomes so a memria. FRANOIS MITTERRAND - verdade. O meu Av chamava-se Jules, como Fabre, Guesde, Gambetta. ELIE WIESEL - Recorda-se da morte da sua me?46 FRANOIS MITTERRAND - Morreu cinco anos depois da minha av. Eu estava l em casa. A minha me, que era cardaca, levou dois anos a morrer. Esteve numa cama durante um ano. Eu, os meus irmos, as minhas irms, revezvamo-nos sua cabeceira. Quando morreu, estava j inconsciente h trs dias. No houve o chamado "momento" damorte. ELIE WIESEL - O luto pela sua me significou para si o mesmo que pela sua av? FRANOIS MITTERRAND - Significou. Mas j estava espera. Sofri com a sua longa agonia.47II F ELIE WIESEL - O senhor, quando era criana, era crente. Alis, estudou em Angoulme, num colgio de "bons padres".. FRANOIS MITTERRAND - No era um colgio de "bons padres". Um colgio diocesano de padres seculares, como era o de Saint-Paul de Angoulme, no era uma ordem de ensino. Eu estudava numa instituio privada catlica, onde os professores eram muitas vezes padres camponeses. No era uma escola de pensamento, o temperamento era diferente do dos jesutas. ELIE WIESEL - O que eu pretendia dizer era que, semelhana do que se passou comigo, desde o incio e na sua sequncia, a f desempenhou no seu caso um papel importante, se no mesmocentral. FRANOIS MITTERRAND - No, no sou dessa opinio. A minha f era a que me tinha sido 51ensinada pela minha famlia e pelos meus professores. Eu tenho um temperamento a que se pode chamar religioso. Interesso-me por esse gnero de questes. Eu prprio sou levado naturalmente a procur-las. No fundo, admito a existncia de um princpio e deuma explicao, mas o meu esprito hesita nas modalidades de explicao. Esta maneira de ser influenciou muito a minha educao. Tenho uma cultura voltada para o estudo destes problemas ou para obras dedicadas a estes problemas. Agrada-me a sua forma literria e a sua expresso estilstica. Tudo isso faz com que, aparentemente, se possa dizer de mim aquilo que eu lhe disse. Na realidade, sou agnstico. No sei se sei, no sei se no sei: aisso, no se pode chamar f. ELIE WIESEL - No entanto, afirmou um dia, ao evocar a sua infncia: "O tempo e as coisas falavam de Deus como uma evidncia." FRANOIS MITTERRAND - verdade. Tive essa espcie de certeza. Mas se se trata da ideia de um princpio - para no dizer de um Deus - que ordena as coisas, eu diria, no meu agnosticismo, que,se pendo para um lado, para esse lado. No entanto, no pratico e duvido dos dogmas. ELIE WIESEL - Eu penso que nos podemos revoltar contra Deus. Por vezes, a nica f do crente consiste em rejeitar essa f, ou pelo menos em p-la em questo.52 FRANOIS MITTERRAND - No me rebelei contra Deus. No tive de rasgar nenhum pedido de adeso, nem de abandonar uma Igreja. No tive de cortar nenhum cordo umbilical. Insensivelmente, ao longo do tempo, distanciei-me, e essa evoluo foi-se processando em mim ao acaso da vida. ELIE WIESEL - No houve portanto nem drama nem ruptura, mas apenas uma lenta evoluo. . . Recorda-se do momento em que comeou a perder a f? FRANOIS MITTERRAND - No tendo eu tido nem noite de Pascal nem pilar de catedral, como Claudel, no poderia situar esse momento com preciso. Mas creio que foi durante a guerra. ELIE WIESEL - Recordo-me da primeira vez que no pus as filacteras. Foi em 1949, em Israel. Eu estava l na situao de jornalista. Estava de tal modo ocupado nesse dia, que me esqueci por completo de as colocar. E, para mim, foi terrvel, porque sou muito piedoso. Mas o mundo no se desmoronou. No entanto, estava convencido de que, se cometesse tal acto, morreria imediatamente com uma crise cardaca! FRANOIS MITTERRAND - Mas sobreviveu! ELIE WIESEL - Pois sobrevivi, porque Deus paciente. O senhor disse algures: "A liberdade, uma ruptura."53 FRANOIS MITTERRAND - verdade. Sempre. Em primeiro lugar, na prtica, a liberdade conquista-se. A liberdade consiste em passar de um estado a outro, em separarmo-nos de qualquer coisa. Portanto, uma ruptura. Eu partia de um exemplo vivido, que foi: para conquistar a minha liberdade de prisioneiro de guerra, foi necessrio que numa manh de Maro eu rompesse com a prtica quotidiana de um campo de prisioneiros e que aceitasse correr uma srie de riscos que tal atitude pressupunha. Atravessar uma vedao de arame farpado, uma ruptura. Essa imagem continua gravada na minha memria. A perda da liberdade, como sabe, pode ser confortvel, mesmo na misria. O conforto nasce muito naturalmente no interior de uma ordem estabelecida, mesmo que esta actue contra ns. H que preferir um outro conforto, o do esprito na liberdade, de modo a poder romper. ELIE WIESEL - H muito tempo, passei um ano no hospital por causa de um acidente vascular. Pois bem, no dia em que o mdico me disse: "Amanh vai-se embora", tive medo. FRANOIS MITTERRAND - Compreendo isso perfeitamente. Eu quase ia falhando a tentativa de evaso, em Maro de 1941, porque tinha recebido da minha famlia, alguns dias antes, e pela primeiravez, uma encomenda que continha um par de magnficos borzeguins. Como eram novos, no podia lev-los comigo. Teria chamado imediatamente a ateno. absurdo, mas estive tentado a ficar parano perder as minhas botas.54 ELIE WIESEL - A liberdade de no ser livre talvez tambm uma forma de liberdade. FRANOIS MITTERRAND - Nesse caso, preciso que a escolha seja livre. Eu podia ter optado por ficar onde estava. A minha liberdade era poder ir para onde queria, regressar ao meu pas, voltar a combater, reencontrar as pessoas de quem gostava - em resumo, sair do estado de sujeio que era o meu. evidente que eu tambm tinha a liberdade de dizer: "Posso regressar a casa, mas prefiro ficar." Um amigo meu, Antoine Mauduit, era um homem admirvel. Foi deportado para Bergen-Belsen, e depois da sua libertao, ficou alguns dias para tratar dos outros, recusando-se a seguir no primeiro comboio, como lhe foi proposto, para ir ter com a mulher, que comigo o esperava no cais da Gare de l'Est. Apanhou tifo e morreu. Isso, a liberdade levada ao seu estdio supremo, a liberdade do sacrifcio. ELIE WIESEL - a liberdade transformada em f. FRANOIS MITTERRAND - Exactamente. Para ele, que era um catlico convertido extremamente crente, e que tinha o sentido da santidade, era a f. S podia agir no absoluto. ELIE WIESEL - Quais eram as crenas dele, antes de se converter? FRANOIS MITTERRAND - No sei quais eram os antecedentes religiosos. No tinha nenhum credo 55at ao dia em que, antes da guerra, teve uma revelao, uma iluminao. Ele, que era oriundo de uma famlia abastada, fez-se operrio agrcola e trabalhou em vrios locais. Depois foi para a Legio Estrangeira para romper com tudo. Entrou na guerra a essettulo, foi feito prisioneiro, e regressou em condies de que j no me recordo. Organizou ento, no Dvoluy, um macio montanhoso dos Alpes, situado um pouco a sul de Vercors, uma espcie de falanstrio, uma comunidade de esprito religioso que agrupavapessoas de todas as camadas, porque ali sentiam-se seguras, at que foi preso e deportado. ELIE WIESEL - Camus interrogava-se, se se pode ser santo sem crer em Deus. FRANOIS MITTERRAND - Penso que sim. Deus um aguilho, uma motivao superior a qualquer outra. Alguns leigos, alguns descrentes, conheceram a mais rida das santidades; a sua referncia era uma maneira de ser, uma moral individual, uma tica,sem qualquer outra recompensa que no seja o sentimento do dever cumprido. ELIE WIESEL - Eu julgo que com os comunistas se passa um fenmeno semelhante. FRANOIS MITTERRAND - A f traduz-se em dogma, e pode ser-se dogmtico em qualquer campo. Os comunistas tambm tm os seus heris e os seus santos que, respeitando em absoluto o seu dogma,foram at ao sacrifcio. 56 ELIE WIESEL - O vocabulrio comunista um vocabulrio religioso, se no mesmo mstico, e o comunismo aparenta-se a uma religio. Tinham Marx, Lenine e os outros, os profetas. FRANOIS MITTERRAND - Exactamente. De um modo geral, a religio procura controlar a vida do indivduo, sem deixar nada ao acaso. A linguagem, o esprito, todos os actos da vida eram controladosao servio da ideologia comunista. Voc notar que, a este respeito, foi nos pases catlicos do sul da Europa que os comunistas tiveram maior sucesso, onde mais se desenvolveu a passagem de uma parte da sociedade, do catolicismo praticante para o comunismo militante. E isto exigiu seguramente muitos dilaceramentos, mas no uma mudana de natureza. ELIE WIESEL - Pensa de facto que a f tem de estar necessria e inevitavelmente ligada a dogmas? No acha que pode haver f sem dogmas? FRANOIS MITTERRAND - O que eu disse, referia-se apenas aos comunistas. excepo de alguns espritos superiores, para a maior parte dos homens uma f tem de manter-se, tem de durar. Ora, ocomum dos mortais tem necessidade, para manter a sua f, de a estruturar em torno de ideias-chave e de uma prtica. esse o papel das Igrejas, que produzem os seus dogmas. No pertencer a uma Igreja, quando se crente, exige um grande herosmo, uma aventura individual do esprito, muito difcil.57 ELIE WIESEL - Poder ter-se, dever ter-se f enquanto se procura a f? Ser sempre, para os cristos, um dom, uma espcie de graa? FRANOIS MITTERRAND - "No me procurarias, se no me tivesses encontrado", diz Pascal. Continua-se a procurar a f, quando ela j foi encontrada. Muitas descries testemunham-no. Veja SantaTeresa de vila, grande mstica; e Teresa de Lisieux, uma religiosa inculta. No fundo, os grandes msticos tero passado grande parte da sua vida a duvidar, ao mesmo tempo que tinham uma f interiorizada: duvido, estou no deserto, Deus est ausente, mascontinuo a acreditar nele e a servi-lo. ELIE WIESEL - Por outras palavras, a f um desafio. FRANOIS MITTERRAND - , se se tratar de uma f verdadeira. A dvida acompanha fatalmente a f. No estou a falar daqueles que tm f apenas porque a receberam, e que mantm a fogo brando,como um hbito cmodo. ELIE WIESEL - O misticismo interessa-o, no verdade? Sinto que o intriga e o atrai. Porqu? FRANOIS MITTERRAND - Todos ns temos impulsos msticos. Mas talvez voc tenha razo. Porqu esta atraco? Por causa da poesia. Os msticos cobrem os seres e as coisas com uma lufada de poesia, o que me leva imediatamente a ter o desejo de 58compreender o mundo e a existncia de modo diferente do que resulta de uma compreenso baseada em leis da razo ou nos mandamentos da cincia. ELIE WIESEL - Continua a ler livros sobre misticismo? FRANOIS MITTERRAND - Pelo menos, sobre os msticos. Teresa de vila, Francisco de Assis, S. Joo da Cruz, mesmo a ltima "Terezinha", Santa Tereza do Menino Jesus, personalidade muito forte. So referncias clssicas, e os seus livros encontram-se com facilidade nas livrarias. ELIE WIESEL - No l nada sobre as tradies judaicas, sufistas ou bdicas? FRANOIS MITTERRAND - Nada de especial. Conheo os vrios livros da Bblia, mas mais nada. A Bblia no muito mstica... ELIE WIESEL - A Bblia serve de fundamento tradio judaica, no seu todo. Mas tambm l encontramos aspectos que relevam do irracional. FRANOIS MITTERRAND - Julgo que no se pode dizer que tudo o que irracional mstico. A Bblia um livro racional, o livro de famlia de um povo. ELIE WIESEL - O senhor h pouco falava de cincia para a opor f. Mas um intelectual puro, 59que conceba o universo como uma categoria de ideias, no ter, tambm ele, necessidade de f? FRANOIS MITTERRAND - No sei se ter necessidade de f, mas muitos sbios, nas nossas sociedades ocidentais, tm f, uma f crist. Admitem o milagre, a Santssima Trindade, admitem todos osmistrios que envolvem o nascimento de Jesus Cristo... O que prova que a f, quando se apodera e um esprito ou de uma alma, mais forte do que a razo cientfica. O maior sbio, que exige do seupensamento, como voc diz, a clareza das categorias, de sbito capaz de mergulhar: no tem resposta quando se interroga acerca do seu destino pessoal; e como no tem resposta, se tem f, esta d-lhe o conforto de que necessita. ELIE WIESEL - Eu prprio j encontrei grandes fsicos em Oxford e em Harvard, que so fervorosos catlicos, que tm f e que acreditam nos dogmas. FRANOIS MITTERRAND - Mas se no tm f, ento bem diferente. Eminentes sbios e grandes intelectuais tinham f por meio da cincia; para outros, pelo contrrio, foi a cincia que os afastouda f. ELIE WIESEL - Um dia, cientistas da NASA convidaram-me a fazer uma conferncia sobre o misticismo. Fiquei surpreendido, mas aceitei. Perguntei-lhes por que razo eles, que se ocupavamcom a cincia, o espao, queriam conhecer o misticismo.60Responderam-me que, tendo atingido os limites do saber, procuravam o que haveria para l disso, e que, se essa f existisse, s podia ser de natureza mstica. FRANOIS MITTERRAND - Se ouvir o maior dos sbios, ele dir-lhe- que hoje em dia o esprito humano no tem resposta para o "porqu"; acumula respostas sobre o "como", mas entre o mais refinado, o mais completo "como" da descoberta mais audaciosa dos nossos dias - na matemtica, na biologia ou na astronomia - o "porqu", continua ahaver distncias siderais a percorrer. Alis, esse ltimo "como" ser ultrapassado por outro "como" que, no momento em que falo, foi tambm j ultrapassado. No h mudana de natureza. Penso portanto que necessrio, se assim se pode dizer, lanarmo-nos gua. O esprito mais exigente no seu rigor de anlise deve, em certas alturas, ter a f inocente de uma criana, como dizia Cristo. ELIE WIESEL - "Porqu" seria a pergunta das perguntas. Por que que Deus criou o mundo? Por que que existe? FRANOIS MITTERRAND - A origem do mundo... Acrescentamos os "como" sem no entanto avanarmos. Fala-se de quarks, de buracos negros, mas mesmo que durante milhares de anos se avanasse no conhecimento dos fenmenos originais, no conseguiramos explicar o "porqu".61 ELIE WIESEL - o misticismo, o mistrio do princpio. FRANOIS MITTERRAND - No princpio era o Verbo. ELIE WIESEL - No para os judeus. Bereshit Bara...: "No princpio, Deus criou os cus e a Terra." Por meio do Verbo. Mas o que havia antes do Verbo? FRANOIS MITTERRAND - Se eu tivesse a resposta, teria f. ELIE WIESEL - Eu, pelo contrrio, julgo que se o senhor tivesse a resposta, no teria f. FRANOIS MITTERRAND - Pelo menos, teria uma certeza. Se eu procurasse a explicao com raciocnios puramente materialistas, teria razo para ter f em qualquer outra coisa que no o conhecimento de mecanismos. Julgo que tem de haver qualquer coisa que ponha a mquina em movimento. Voltaire j o disse, no aplogo do relojoeiro. ELIE WIESEL - Quais so as armadilhas da f? FRANOIS MITTERRAND - A mais evidente, que nos contentamos com uma resposta, recusamo-nos a ir mais alm na nossa prpria investigao. O obscurantismo nasce a: lana-se o antema sobreGalileu ou os alquimistas; todas as novas experincias,62todas as descobertas cientficas, foram associadas bruxaria. ELIE WIESEL - A isso chama-se fanatismo FRANOIS MITTERRAND - Exactamente. A f - eu deveria talvez dizer dogmatismo - leva ao sectarismo, intolerncia, e portanto perseguio. O instinto do homem impe-se e fazem-se perseguies; ao mesmo tempo, garante-se o poder. Para uma Igreja, o modo mais seguro de garantir a perenidade do seu prprio ensino, da sua prpria f, dispor do poder. A Histria est cheia de exemplos a este respeito. ELIE WIESEL - A religio no deveria conduzir ao fanatismo. E no entanto, pertinazmente, isso que sucede. A f, profunda e total, e a tolerncia parecem ser incompatveis. FRANOIS MITTERRAND - No no meu esprito. Mas reconheo que cada dia que passa, os factos lhe do razo. So raras as pessoas de f tolerantes. O mais vulgar, as pessoas quererem que o mundoseja regido pelas regras que regem a sua prpria vida. ELIE WIESEL - Os msticos, qualquer que seja a sua crena, so casos parte. Dir-se-ia que se entendem melhor. FRANOIS MITTERRAND - Porque vo "mais alm". 63 ELIE WIESEL - H uma diferena entre cristos, judeus e muulmanos. E no entanto uma diferena apenas aparente. Os msticos encontram-se "mais alm" - na unidade. Mas h a tal diferena, que leva a que a f transborde e desague no fanatismo... FRANOIS MITTERRAND - Talvez as religies tenham gerado tipos de f tolerantes, mas no me vem ao esprito nenhum exemplo. certo que houve homens que souberam, por meio da experincia e do ensino, conciliar f e tolerncia: S. Francisco de Assis, por exemplo. Mas so muitos mais os que tm alma guerreira, e gritam: "Morte ao Infiel!" ELIE WIESEL - Alis, isso ainda hoje sucede. para si motivo de preocupao o crescendo de integrismo a que assistimos por toda a parte? FRANOIS MITTERRAND - Revolta-me. Sem querer empregar palavras excessivas, penso que os integristas tm algo de estpido. Foram tocados por que tipo de revelao? Quem os autoriza a julgar tudo, a castigar, a ferir, a... ELIE WIESEL - A matar? Hoje em dia mata-se na Arglia, mata-se no Iro. O fanatismo cego, torna as pessoas surdas e cegas. FRANOIS MITTERRAND - A meu ver, o fanatismo , em todas as circunstncias, um acto de estupidez. Causa-me horror. um dos males mais perigosos para a espcie humana.64 ELIE WIESEL - Porque nega a interrogao, e portanto a cultura. FRANOIS MITTERRAND - Porque nega a vida. ELIE WIESEL - Alm do mais, o fanatismo no coloca questes, no tem dvidas: sabe, pensa que sabe. FRANOIS MITTERRAND - A dvida til. ELIE WIESEL - , mas apenas quando conduz interrogao. isso que permite que haja cultura. Como se pode lutar contra o fanatismo? FRANOIS MITTERRAND - No opondo-lhe outro fanatismo. ELIE WIESEL - Quer com isso dizer que o anti-fanatismo to perigoso como o prprio fanatismo? FRANOIS MITTERRAND - Evidentemente. grande a tentao de utilizar as mesmas armas: batem-me, ento bato ainda com mais fora. preciso respeitar as leis, evitar o desvio a que o fanatismo nos conduz. Mas um assunto muito delicado, porque no se pode ser fraco. Com perspiccia, prudncia e firmeza, consegue-se: desde h meio sculo, depois do fim das ideologias fascistas e nazis, o fanatismo e o terrorismo no tiveram sucesso nas sociedades ocidentais.65 ELIE WIESEL - Graas a quem? A qu? A vitria do tempo? No ser a educao um remdio para fanatismo? No ser alis esse o nico remdio? FRANOIS MITTERRAND - um remdio, mas no o nico. Como sabe, Pico de Mirandola foi um dos mais fanticos partidrios de Savonarola.. considerado um dos maiores humanistas da poca,e no entanto queimou os livros, juntamente com o seu mestre. ELIE WIESEL - Era tambm discpulo de um grande filsofo e mstico judeu: Abrao Abulefia. O senhor h pouco disse que se podia ser santo sem ter f. Eu coloco uma outra questo: poder ser-se leigo, ou mesmo agnstico, e ter f? FRANOIS MITTERRAND - Os termos so semanticamente incompatveis: o agnosticismo o no-conhecimento, neste caso, de uma f. ELIE WIESEL - O que eu pretendo dizer o seguinte: a f no homem e a f em Deus sero conciliveis? FRANOIS MITTERRAND - Mais do que isso. Muitos tm uma f no homem tanto maior quanto menos recorreram a explicaes sobrenaturais. Mas eu creio que o homem, na conquista da sua liberdade, na sua libertao progressiva, no seu domnio do mundo, na descoberta do seu esprito, portador de uma mensagem que o ultrapassa. A f no homem 66e a f em Deus no se excluem mutuamente, bem pelo contrrio. ELIE WIESEL - Eu coloquei esta questo porque, em nome da f no homem, recusou-se por vezes a f em Deus. FRANOIS MITTERRAND - Esses dois tipos de esprito coexistem, e so muitas vezes complementares. Mas existe uma outra forma de esprito, o de quem tem f no homem e que pensa que mais beloe mais nobre, quando no se tem a perspectiva de outra vida, assumir a sua prpria vida em funo de uma certa tica, de uma moral, de uma realizao superior. ELIE WIESEL - Eu conheci bem Franois Mauriac. Ele estava quase apaixonado por Cristo. Mais do que o cristianismo, era Jesus que o atraa. Interessa-se pela morte de Jesus? FRANOIS MITTERRAND - Interesso-me, e muito. um homem que, para os seus discpulos, era o prprio Deus. Como isso possvel? Desde a origem do cristianismo que se coloca a pergunta: Cristo era mais homem que Deus ou mais Deus que homem? Por causa desta questo houve seitas que se dizimaram e se massacraram durante sculos. ELIE WIESEL - Poderemos considerar que todos os homens so um pouco Deus e um pouco homem?67 FRANOIS MITTERRAND - De um ponto de vista mstico, claro que sim. Para os cristos, todos os homens so criados imagem de Deus. Na imagem, h forosamente um reflexo de Deus, e at talvezmais do que um reflexo... ELIE WIESEL - O que teria sucedido se Cristo morresse de morte natural? FRANOIS MITTERRAND - No teria havido mensagem. Cristo morreu para servir a humanidade... ELIE WIESEL - Portanto, tomou sobre os seus ombros o fardo de sofrer pelos homens. FRANOIS MITTERRAND - de morrer. Se assim no fosse, no teria cumprido a sua misso. ELIE WIESEL - Em sua opinio, possvel sofrer-se pelos outros? FRANOIS MITTERRAND - Foi exactamente essa a ideia que presidiu vida e morte de Jesus. ELIE WIESEL - o senhor, acredita nisso? FRANOIS MITTERRAND - Li tudo o que se pode ler a esse respeito: historicamente, acredito na existncia de Cristo. E acredito que um homem pode aceitar cumprir essa tarefa. Est dentro das suascapacidades. Santos ou heris, existe um nmero68suficiente de homens inspirados que aceitam morrer para salvao de outros homens. ELIE WIESEL - Eu concebo que essa era a ideia de Jesus ou dos que acreditam nele. Mas pessoalmente, enquanto judeu, no compreendo. Para ns, no possvel sofrer por algum. Posso sofrer com,e talvez at morrer com algum, mas no posso sofrer nem morrer em seu lugar. FRANOIS MITTERRAND - Eu acredito que a morte de Jesus estava ligada mensagem que ele tinha por misso transmitir. ELIE WIESEL - Em perodos de depresso, tanto nos aproximamos de Deus como nos afastamos. FRANOIS MITTERRAND - A maior parte das vezes aproximamo-nos. Mas no reside a o movimento mais nobre de aproximao a Deus, pois estamos muito receosos do desconhecido. Todos os medos acumulados de toda a histria do mundo apoderam-se subitamente de ns, e tentamos ento procurar um refgio. Isso tambm nos pode afastar deDeus. Quem presenciou as maiores atrocidades, muitas vezes rejeitou Deus. ELIE WIESEL - Conheci alguns crentes que durante a guerra se tornaram ateus; mas tambm conheci ateus que durante a mesma guerra se tornaram crentes. Napoleo dizia: "No nos tornamos ateus por desejo."69 FRANOIS MITTERRAND - Por que razo quereria algum tornar-se ateu? No vejo qual o objectivo dessa deciso. ELIE WIESEL - Para nos revoltarmos contra a autoridade. O comunismo, por exemplo, representava um desejo de se libertar de Deus. FRANOIS MITTERRAND - Os comunistas consideravam que as religies eram opressivas e aliadas das classes dirigentes, do sistema vigente. Impediam que as massas se educassem e reflectissem. Neste aspecto, esse ponto de vista tem o seu fundo de verdade. Mas como os prprios comunistas substituram uma forma de Igreja por outra, no se podem orgulhar do resultado. Mas voltando atrs, durante a guerra senti um movimento natural que me aproximava de Deus, pois todos os meus reflexos actuavam e eu tinha sido educado nesse sentido. Mas, e com toda a objectividade, esse perodo e o que se seguiu de facto no me aproximaram verdadeiramente de Deus. Chamei por socorro, quase instintivamente, e no entanto, quando a guerra acabou, eu estava ainda mais cptico. ELIE WIESEL - A sua f, a que chamam agnstica, comunicvel? FRANOIS MITTERRAND - No falemos da minha f. Como muita gente, coloco questes, e, repito, tenho uma tendncia espiritualista. No posso argumentar consigo acerca da base da minha f. Se70me fala de f, eu responderei que no tenho f suficiente para estar em condies de a comunicar. ELIE WIESEL - Mesmo perante um homem de f? FRANOIS MITTERRAND - Se a sua vida est de acordo com os seus propsitos, esse homem pode impressionar-me, pode influenciar o meu comportamento e o meu pensamento. ELIE WIESEL - Durante a sua vida, conheceu vrios grandes homens de f, no verdade? Vrios papas? FRANOIS MITTERRAND - Homens de f, sim. Mauriac, Massignon, Mauduit, monges do Sinai, um jesuta, o padre Delobre - outros, o meu pai, por exemplo. Papas? Conheci vrios: Pio XII, Joo XXIII, Paulo VI. No conheci Joo Paulo I, que foi papa durante muito pouco tempo. Com quem estive mais vezes foi evidentemente com Joo Paulo II, porque me sentia em condies de poder discutircom ele. ELIE WIESEL - A Frana um pas de tradio e de maioria catlica. Qual a natureza das relaes entre a Igreja e o Estado? So relaes conflituosas? FRANOIS MITTERRAND - H pequenos acessos de febre quando a Igreja pretende recuperar mais do que a parte de que dispe na educao, quando se71preocupa com o ensino religioso. Se se resiste s pretenses da Igreja, surgem tenses. Mas muito raro. ELIE WIESEL - O senhor afirmou um dia: "Compreendi o que a injustia quando li o Sermo da Montanha." FRANOIS MITTERRAND - um dos textos mais belos que conheo. E veja que Cristo pronunciou essas palavras h cerca de dois mil anos, e que no fundo nada mudou! Cristo podia perfeitamente justificar o seu regresso para pronunciar exactamente as mesmas palavras. Mas em vez de ir montanha, onde corria o risco de no ser ouvido, iria a Bobigny.1 ELIE WIESEL - Se Cristo voltasse, como seria acolhido? FRANOIS MITTERRAND - O prefeito, influenciado pelo bispo, provavelmente pedia-lhe que fosse para a comuna vizinha... ELIE WIESEL - J lhe sucedeu interrogar-se sobre se Deus justo ou injusto? No essa a histria do "Grande Inquisidor" de Dostoievski? FRANOIS MITTERRAND - Sempre ouvi dizer que Deus justo. Pergunto a mim mesmo o que 1 Bairro perifrico da regio de Paris. (N.T.) 72que permite apoiar esta assero. Como j ter notado, em muitos sermes e discursos de circunstncia pronunciados por ocasio de um funeral ou depois de um acontecimento grave, o orador afirmaque Deus justo - bom. Parece-me difcil harmonizar este postulado com as catstrofes que o acompanham... ELIE WIESEL - De um modo geral, quem pronuncia as oraes fnebres no o faz pelos mortos, mas pelos sobreviventes, para consolar, para tranquilizar. FRANOIS MITTERRAND - H o que aprendi, aquilo em que quero acreditar, e h o que vejo e sei. E nada me demonstra a existncia de uma justia superior. ELIE WIESEL - Justia aos olhos de Deus, mas no aos olhos dos homens. Sempre que me interrogo sobre estas questes, concluo que no entendo nada. FRANOIS MITTERRAND - Eu estou na mesma situao. No digo que Deus injusto, digo: "No sei se ele justo." Considero que a ordem do mundo, ou a sua desordem, como se quiser, no obedece a nenhuma lei de justia, pelo menos segundo as nossas normas. ELIE WIESEL - Em sua opinio o que seria a justia?73 FRANOIS MITTERRAND - Que os actos generosos suscitassem admirao e emulao, e que os actos cruis fossem reconhecidos como tal. Ora, eu no vejo em lado nenhum, na vida de todos os dias, diferenas nas consequncias dos actos. Haver na conscincia de quem os pratica mais alegria num caso e tristeza noutro, quando pensa que no est a agir como sente que deveria agir? possvel. A isso chama-se conscincia moral. Nem toda a gente a tem, e por vezes nem ns prprios. ELIE WIESEL - Se algum punido, no o nico a sofrer o castigo. Os filhos, a famlia, tambm sofrem. No se sofre sozinho, sofre-se sempre com os que sofrem por causa do nosso sofrimento.Mas regressando injustia, conheo o suficiente para saber que tenta corrigi-la... FRANOIS MITTERRAND - So certamente o reflexo e a reflexo que inspiram a maior parte da minha aco. No suporto a injustia. Sou muito imperfeito, mas da injustia tenho uma conscincia clara. ELIE WIESEL - Afinal, o que resta de um homem no o combate que ele trava contra a injustia? FRANOIS MITTERRAND - seguramente um dos mais belos combates. Justificou a minha escolha poltica e continuo a pensar que tive razo. A esse sentimento de injustia, que me levava a agir, 74acresceu, ao longo do tempo, uma vontade de explicao. Porque o sentimento de injustia no basta para combater a injustia. Organizar a sociedade corrigindo a sua injustia, exige uma aco quase cientfica, uma anlise da sociedade. Por que existeminjustias? So geralmente devidas s lutas de classes, s formas que a explorao do homem pelo homem revestem, e ao gosto dos homens pelo poder. Em resumo, so devidas a uma lei da selva, que faz com que uns tenham necessidade de devorar outros para sobreviver. ELIE WIESEL - J foi injusto para com algum? FRANOIS MITTERRAND - J, claro que sim. Devo ter cometido muitas injustias, mas nunca o fiz conscientemente. Por um impulso de humor, ou porque no reflecti suficientemente nas consequnciasdas minhas aces. ELIE WIESEL - Quando isso sucede, o que faz? FRANOIS MITTERRAND - Tento reparar a minha injustia. E quando isso no possvel, fico triste. ELIE WIESEL - Para mim, a pior das injustias a humilhao. Dentro das minhas possibilidades, quando vejo algum ser humilhado, sinto a necessidade de protestar, de agir. FRANOIS MITTERRAND - Eu sinto o mesmo. Sem dvida que j me aconteceu humilhar algum, 75mas perdoam-me, quando compreendem que no fiz de propsito. Em quaisquer circunstncias, humilhar implica uma falta de controle sobre ns mesmos, uma falta de educao. ELIE WIESEL - J alguma vez foi humilhado? Durante a guerra, quando foi feito prisioneiro, sentiu-se humilhado por ter perdido? FRANOIS MITTERRAND - De modo nenhum. No senti nenhuma humilhao pessoal. Mas clera, sim. Eu participava de uma clera colectiva, de um sentimento de humilhao nacional. ELIE WIESEL - Muito l no fundo, o senhor continuava a combater. FRANOIS MITTERRAND - Continuava. Nunca pensei que a guerra estivesse perdida. Digo-lhe isto com uma vaga impresso que eu tinha, no era uma anlise histrica. Muito simplesmente eu pensavaque o amanh iria corrigir o ontem. ELIE WIESEL - Em sua opinio, isso aplica-se a Cristo? Vive no presente mas morre no intemporal? FRANOIS MITTERRAND - No caso da condenao morte e da crucificao de Cristo, h explica prprias situao local. ELIE WIESEL - Os romanos foram responsveis?76 FRANOIS MITTERRAND - No, eles ficaram de fora. Era um assunto que dizia essencialmente respeito aos Judeus e eterna luta entre a ortodoxia consagrada pelo dogma e a hierarquia, e o que sechama heresia - uma diferena em relao ao costume. ELIE WIESEL - Para os Gregos, heresia significava dvida, e mais tarde era passvel de pena capital. FRANOIS MITTERRAND - Nunca li nada que me levasse a pensar de outro modo, incluindo Renan. ELIE WIESEL - Mas Renan no uma autoridade em assuntos judaicos. FRANOIS MITTERRAND - Ele considerava os Judeus como uma tribo rabe... Vejo que isso o incomoda. Porqu? Renan contribuiu em muito para que o debate avanasse. Por outro lado, os descrentescontaram essa histria e interpretaram-na como eu: Cristo incomodava a hierarquia dirigente do judasmo. Produziu-se aquilo que inspirar, do sculo III ao sculo XVIII, nos nossos pases, a conduta da Igreja em relao aos seus prprios herejes. Repare que no sculo VIII foi condenado morte e executado um rapaz de dezanove anos, o cavaleiro Jean-Franois Lefebvre de la Barre. Era acusado de no ter tirado o chapu e de ter feito um sorriso sarcstico passagem do santo sacramento. Como, alm disso, tinhasido vista uma cruz quebrada numa ponte e tinha sido77ouvido um grupo de jovens entoar canes ligeiras, cortaram a lngua do desgraado, torturaram-no... e decapitaram-no. Mas isso no basta para condenar a Igreja; tenho a certeza de que, ainda hoje, muitos padres lamentam esse crime. A culpa das hierarquias, que levam ao extremo a defesa do seu dogma. Por isso me parece aceitvel dizer que Cristo embaraava a hierarquia judaica. Depois, muitos outros cristos foram mortos pela mesma razo. Foi esse ocaso de Tiago, de Filipe, de Estevo, que eram elementos de perturbao para os judeus ortodoxos. ELIE WIESEL - No entanto Jeremias perturbou o rei muito mais do que Cristo. E no foi condenado morte. FRANOIS MITTERRAND - De todos os profetas, Jeremias o que me suscita maior antipatia. Era um fala-barato, um tanto colaborador, ambicioso. Da a minha surpresa quando os meus amigos do aosfilhos o nome de Jeremias. Apesar de, foneticamente, ser um belo nome. ELIE WIESEL - No concordo consigo. Julgo que est a ser injusto para com Jeremias. Ele no queria ser rei. Nem sequer queria ser profeta, coitado. Eu lamento-o. Ele exprimia-se num idioma muito bonito, quase to bonito como o de Isaas. Tentarei mais tarde reabilitar Jeremias no seu conceito. Mas gostava agora de voltar a Dostoievski. Escreveu ele: "Se Deus no existe, ento tudo permitido." Considera vlida esta proposio?78 FRANOIS MITTERRAND - No, no justa. Deus seguramente um bom socorro para conduzirmos as nossas vidas; mas mesmo sem essesocorro, Dostoievski no tem razo. ELIE WIESEL - O que me desagrada em Dostoievski, que encontramos Deus em toda a parte: ao lado dos vencedores e dos vencidos, ao lado dos que sofrem e dos que fazem sofrer. Repare que os padres benziam os exrcitos antes de estes se destrurem mutuamente; e no era para provar que a terra no gira em torno do sol! Assim, poderamos supor que a f, para os que dela necessitam, um remdio contra o absurdo. FRANOIS MITTERRAND - Eu no fao parte dos que afirmam que a f um absurdo; isso seria ir demasiado longe na afirmao de uma contra-f. ELIE WIESEL - O absurdo mete medo. FRANOIS MITTERRAND - Seria demasiada vaidade pretendermos conduzir toda a nossa vida contando apenas com as nossas prprias foras. E depois, h a esperana! A transcendncia uma formidvel portadora de esperana. ELIE WIESEL - Quando era jovem sentia necessidade de rezar? FRANOIS MITTERRAND - Claro que sim. Sinceramente, profundamente.79 ELIE WIESEL - Sente ainda, por vezes, essa necessidade? FRANOIS MITTERRAND - Por vezes acontece. Mas minha maneira. No me refiro a nada de especial. No uma consolao. Creio que temos necessidade de rezar, isto , de procurar comunicar por meio do pensamento. Uma das coisas bonitas da religio catlica, a Comunicao dos Santos, que no fundo a comunidade de orao e que se aproxima das prticas esotricas. O facto de rezar aqui, enquanto no mesmo momento, a milhares de quilmetros, algum reza tambm, o facto de ser assim em todo o planeta, suposto estabelecer uma comunicao entre todas estas pessoas. Quando eu vejo, e corro o risco de ser simplista, o modo como as ondas transportam som e imagem, no podero elas transportar tambm uma grande intensidade de pensamento? No me parece absurdo; em todo o caso, uma imagem bonita. Honestamente, se me acontece rezar, no no sentido estrito do termo, mas no seu verdadeiro sentido, no me coloco na situao de um homem mais liberto do seu destino do que de facto est. ELIE WIESEL - Quando foi a ltima vez que rezou? FRANOIS MITTERRAND - No lhe sei dizer. Tudo depende do sentido que se der orao. Se se trata de dirigir o pensamento para uma fora superior e no fundo desconhecida, acontece-me frequentemente.80Isto no parece ser muito razovel, mas a educao que tive e a minha prpria natureza levam-me a isso, muito simplesmente. Mas a minha razo rapidamente me convida a interromper esse dilogo,que talvez no passe de monlogo... ELIE WIESEL - Deus precisa de oraes? FRANOIS MITTERRAND - Voc fala como se fosse crente! ELIE WIESEL - verdade, situo-me no interior da f. FRANOIS MITTERRAND - Eu no reajo do mesmo modo. Se se trata de recitar palavras aprendidas para implorar uma interveno divina, comunicar com um mundo transcendente, ento sim, rezo, repito as palavras, por hbito, por educao, por vezes mesmo por necessidade. Mas no rezo como homem de f, com o sentimento de comunicar e de ser ouvido. ELIE WIESEL - Tradicionalmente, distinguem-se duas espcies de oraes: de solicitao e de gratido. Mas preciso ser crente. FRANOIS MITTERRAND - H tendncia para pedir proteco nos momentos difceis e para esquecer o agradecimento quando estamos felizes. Tudo isso me parece suspeito. 81 ELIE WIESEL - Mas quando lhe deram a conhecer a sua doena, quando entrou no bloco operatrio, rezou? FRANOIS MITTERRAND - No sou mais corajoso do que os outros! Sabia que era grave, e que podia ser mortal; mas no fundo, no acreditava nisso. No momento de ser operado, estava serenamente passivo: tornei-me objecto. Acontece por um momento, como nos acidentes, que nos olhamos como se no fssemos ns o actor principal do drama que se desenrola. ELIE WIESEL - Eu vi-o em 10 de Setembro de 1992, portanto na vspera da sua primeira operao. Quando penso nisso retrospectivamente, fico siderado: o senhor tinha um ar to desprendido! Nunca pude imaginar... FRANOIS MITTERRAND - No sou muito dado a confidncias. Alm do mais, eu considerava, mesmo que isso para mim tivesse importncia, que me acontecera uma coisa banal, andina. certo que no me dava prazer. No gosto de sofrer, volto a cabea quando me do uma injeco ou quando me tiram sangue - o mesmo dizer que no coabito com o herosmo todas as manhs quando me levanto! Mas quando no h nada a fazer, suporto. Sou um paciente resignado. O mal que se imagina insuportvel, o que sofremos quase sempresuportvel. 82 ELIE WIESEL - De facto, quem foi torturado diz que a antecipao da tortura pior do que a prpria tortura. Isso sempre me meteu medo. Eu no sei se conseguiria suportar a tortura em silncio... FRANOIS MITTERRAND - Todas as pessoas da nossa gerao fizeram a mesma pergunta, e ningum teve a audcia de dizer: "Eu aguento!" ELIE WIESEL - Numa entrevista que deu, a respeito da sua doena, o senhor citou Arthur Ashe. Disse que quando soube da doena, pensou: "Porqu eu?" uma bela reflexo. Quando uma manh me anunciaram que me tinha sido atribudo o Prmio Nobel da Paz, lembro-me que fiz imediatamente a mesma pergunta: "Porqu eu?" E isso perturbou-me durante todo o dia. "Porqu eu?" Teria eu maismrito, seria eu mais justo do que os outros? Claro que no. Eu pensava em Buchenwald. Incio de Abril. Os alemes tinham comeado a evacuar o campo de prisioneiros. Mais de uma vez estive a umpasso da grande porta de ferro. Para l dela, era a viagem para a morte. Mas a quota estava completa. Quem que atravessou aquela porta antes de mim, e que poderia estar agora no meu lugar? Era nisso, era nessa pessoa que eu pensava no dia da cerimnia do Prmio Nobel... FRANOIS MITTERRAND - Pode atribuir isso ao acaso. A vida um formidvel jogo de lotaria. Por que que um nmero sai mais do que outro?83 ELIE WIESEL - J leu Nikos Kazantzaki? O autor de Zorba o grego, de Cristo recrucificado. Pois bem, ele cita um belssimo provrbio etrusco: "No porque duas nuvens se encontram que se produz o relmpago; duas nuvens encontram-se para que o relmpago se produza." Eu julgo que o mistrio est no encontro. O seu interesse pelo povo judeu comove-me. FRANOIS MITTERRAND - A histria do povo judeu e da sua mensagem, impem-se a todos. Mas no exagere o meu papel. O meu comportamento em relao a esse povo o que eu considero til,honesto e justo: contribuo para lhe prestar justia. Nada mais. Pessoalmente, vejo no povo judeu fontes muito importantes para mim. No foi a sua histria que inspirou o tipo de civilizao em que vivo? Qual o homem que no gostaria de procurar as suasorigens? ELIE WIESEL - De todos os povos da Antiguidade, o povo judeu foi o nico que sobreviveu. Como explica isso? FRANOIS MITTERRAND - Est-se a esquecer da China e da ndia. Mas se restringe a Antiguidade Grcia e Prsia, tem razo. Como explicar que o povo judeu tenha sobrevivido? Sem dvida porqueconstitua uma pequena minoria. Os grandes imprios, os grandes conjuntos no se baseiam numa verdadeira identidade. Eu penso que os mtodos empregados pelos inspiradores, os que melhor exprimiam84a alma desse povo, foram muito mais realistas. Veja a Bblia. o livro de Conta Corrente de um povo e no apenas de um indivduo ou de uma famlia. Acontece que o povo judeu viveu em torno de umareligio que, ela prpria, inspirou religies monotestas inscritas no nosso presente, e que esse tipo de ensino se perpetuou com muito mais perseverana nas famlias judaicas, alis porque houve a dispora, e era um modo de se ligar ao seu passado. claroque um crente no Deus de Israel acrescentar que o seu povo o povo eleito e que Deus o protegeu. ELIE WIESEL - Vocao e misso colectivas... FRANOIS MITTERRAND - uma explicao teolgica, mas h outras. Pessoalmente, no a subscrevo. Julgo que mais fcil um povo perseguido sobreviver quando constitudo por poucas pessoas.Houve a princpio um perodo de instalao numa terra estranha, que alis vos foi designada. S mais tarde se constituiu um Estado - ou melhor, dois reinos, tendo um deles desaparecido rapidamente.Quanto ao outro, ficar, embora continue a existir, sob a influncia e sujeito Sria. Apesar das deportaes, das disperses, o povo judeu manteve-se. A sua capacidade de resistncia, rudemente posta prova, forjou a sua alma. ELIE WIESEL - Sempre me espantou o facto de um povo to pequeno, sem aspiraes territoriais alm do seu prprio territrio tenha sobrevivido.85 FRANOIS MITTERRAND - por isso que sempre que vi Israel sair das suas fronteiras naturais, histricas, fosse para os Golan, o Sinai ou o Lbano, considerei que estava a ir por mau caminho, queestava a cometer um erro histrico. certo que a situao do Israel moderno ambgua: a maior parte dos territrios em que se encontra Israel pertence histria judaica, mas a sociedade internacional no reconhece o corao da sua histria: Jerusalm, oreino da Judeia, uma boa parte do antigo reino de Israel. ELIE WIESEL - O senhor quase justificou algumas escolhas que Israel fez sem ultrapassar as suas fronteiras bblicas. FRANOIS MITTERRAND - Julgo que recordei as nicas duas passagens da Bblia que parecem extrapolar, nas palavras atribudas a Deus, a noo do Grande Israel. ELIE WIESEL - Por outras palavras, o seu entendimento de Israel histrico. FRANOIS MITTERRAND - , mas tambm compreendo o embarao que tem na sua reivindicao histrica. Porque no decurso dos ltimos sculos os rabes l se instalaram, assentaram, e l fizeram asua ptria. Da resultou uma situao incrivelmente confusa, que a actual: dois profetas, duas religies, duas ptrias, mas uma s terra.86 ELIE WIESEL - Desde h muito que o senhor defende que necessrio reconhecer uma ptria palestiniana. Como fazer? um terreno minado. Mas h tanta esperana, ligada a tanta angstia, que mete medo. Dir-se-ia que se trata de uma doena incurvel. Se para os mdicos h doenas incurveis, para os homens de Estado deviam existir tambm. Entre Israelitas e rabes, no me parece que o problema possa ser facilmente resolvido, mesmo tendo sido assinado um acordo. FRANOIS MITTERRAND - Dois povos, uma s terra: seria preciso muita imaginao para conseguir desenhar as estruturas de uma espcie de federao. Recordo-me de ter recomendado aquilo que se passa hoje. No quero os louros, mas sinto-me feliz por t-lo dito suficientemente cedo para me sentir agora em harmonia com o que se seguir. Yasser Arafat veio por duas vezes falar comigo. Uma recebi-o na qualidade de chefe da OLP, e outra porque o antigo presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, que chefiava umamisso que inclua dois vice-presidentes, um dos quais Arafat, me solicitou uma audincia. H tempos, quando voc e eu falvamos acerca de Arafat, referimos a confiana depositada neste homem. No se trata de confiana, mas sim de evidncia. Fazem-se pactos com quem nos combate. No brinquemos com a Histria; e Israel, ao pretender interlocutores de seu fabrico, ou da sua confiana, estava a cometer um erro. Que Israel tenha queixas em relao ao seu adversrio, fcil de perceber, seno no seria um adversrio. Oerrorismo trgico e indesculpvel,87mas a fora poltica real, era a da OLP, nica representante militar de um pas, de um povo em combate, de um povo sem ptria. Devamos ter conscincia de que era necessrio passar por isso. ELIE WIESEL - Sem dvida, mas por certo no ignora que enquanto falava com Yasser Arafat, aqui neste gabinete, l fora Faruk Kadumi dava a saber aos seus conselheiros que o que o "velho" dissesseno valia nada, porque eles - dizia - queriam tudo, ou seja, Israel inteiro. FRANOIS MITTERRAND - Todos os movimentos incluem integristas. Alis, o acordo entre Israel e a OLP est hoje ameaado, em ambos os campos, por perigosos extremistas. Mas eu espero que consigam a paz. Sempre disse que no se podia exigir dos Palestinianos que ficassem privados da sua ptria. Aquele pedao de terra, Gaza, Jeric, possui uma fora simblica formidvel. ELIE WIESEL - a frmula, "Gaza e Jeric primeiro"? FRANOIS MITTERRAND - No esprito dos negociadores, forosamente. Um diz: "Fica assim", e o outro responde: "No me chega". E recomea nova dialctica. ELIE WIESEL - O senhor tem amor por Israel, por aquela terra. Fala de Israel sempre com muita emoo.88 FRANOIS MITTERRAND - At 1980, quando l fui, Jerusalm era para mim uma terra mtica. Mas toc-la, ver os judeus a viver naquelas terras to antigas, provocou em mim uma verdadeira emoo.Para mim, que me interesso pelo seu passado, foi uma formidvel projeco. ELIE WIESEL - Gostaria de ir um dia para Jerusalm, para l viver e escrever? FRANOIS MITTERRAND - Gostava, gostava de estar l a escrever. um local que desperta em mim toda uma srie de aspiraes. No o nico, evidentemente, mas talvez o que concentra mais elementos espirituais, intelectuais, histricos e polticos. Gostaria de l viver, livre de obrigaes, onde podia passear, sonhar, visitar os lugares santos, reencontrar personalidades, intelectuais e religiosas. ELIE WIESEL - Um fotgrafo disse-me um dia que tinha dificuldade em fotografar Jerusalm. Por causa da luz. Explicou-me que o "lux" a medida da luz, e que uma das mais belas era a luz da Provena, com dezasseis lux, depois a do Tibete, com vinte e quatro lux... Em Jerusalm, a luz chegava aos trinta e seis lux; fisicamente, o local mais luminoso do mundo! FRANOIS MITTERRAND - Nessa regio, e no s em Jerusalm, tudo intenso. Voc fala de Israel, mas repare que atravs dos sculos todos os povos dessa regio foram incendiados pela f. As guerras89civis foram sempre guerras religiosas. Nas aldeias libanesas, as pessoas matam-se umas s outras desde h sculos por causa de opes religiosas no interior de cada religio. Quantos cultos cristos diferentes h no Lbano? Seis, sete, oito? E quantos h do lado muulmano? Outros tantos. E no interior destas religies combate-se com tanta dureza como entre as duas religies. E no entanto, todos esto, desde sempre, animados pela mesma vitalidade, como se a paixo religiosa os queimasse, como se cada pedra dessa regio fosse composta de tomos explosivos de carcter religioso. uma terra queimada pela paixo. ELIE WIESEL - Conheceu os grandes chefes de Israel? Ben Gurion, Golda Meir, Begin, Moshe Dayan... FRANOIS MITTERRAND - No tive oportunidade de conhecer Ben Gurion. Mas tive um contacto muito caloroso com Golda Meir. Fui vrias vezes v-la a Israel antes de ser eleito presidente da Repblica; ela passou por Paris. Tambm trocmos correspondncia. Servi-lhe de intermedirio para que os judeus da Unio Sovitica pudessem emigrar. Era preciso agir de forma discreta, em condies difceis. Algumas vezes conseguimos. Tambm falei muitas vezes com Begin, antes de ele ser Primeiro-Ministro. Tinha muita estima por ele. Mas julgo que com a guerra do Lbano cometeu um erro. Quanto aMoshe Dayan, conheci-o muito bem. Sempre que eu ia a Jerusalm, estivesse ele no poder ou no, ia 90visit-lo. Portanto, conheci-os a todos pessoalmente, incluindo Igal Alon, um homem de nobre carcter. ELIE WIESEL - Fala-se do mistrio judeu; acredita no mistrio da existncia judaica? FRANOIS MITTERRAND - No vejo onde esteja o mistrio. Trata-se mais de uma excepo, de um exemplo de extraordinria vitalidade. Uma pequena tribo saiu do mundo mesopotmico, h trs mil equinhentos ou quatro mil anos; um homem de esprito poderoso, como Abrao, encontrou Deus e acreditou; dura desde a. ELIE WIESEL - Podamos ter desaparecido. J me interroguei por que razo, em determinado momento, no houve uma espcie de conclio no decurso do qual os nossos grandes sbios dissessema Deus: "Ouve, Deus, ou queres a nossa presena, ou no queres; deixa-nos um bocadinho em paz, deixa-nos viver em paz; seno, porque queres um mundo sem Judeus." FRANOIS MITTERRAND - Se nos ativermos explicao da Bblia, Deus precisa tanto do povo judeu como o povo judeu precisa de Deus. Se o povo judeu desaparece, prega uma grande partida a Deus. Em resumo, sustenta Deus. ELIE WIESEL - Sem o conhecer, o senhor diz quase textualmente as palavras do Talmude. Na Bblia, h um versculo que diz: "Deus disse aos 91Judeus: "Vs sois as minhas testemunhas". O Talmude acrescenta: "E Deus disse: "Se sois minhas testemunhas, eu sou Deus; se no sois as minhas testemunhas, eu no sou Deus"." H pouco, dissepalavras muito duras sobre Jeremias. Pode explicar-me porqu? FRANOIS MITTERRAND - Como lhe disse, um personagem antiptico, muito ambicioso e ambguo nas suas relaes com os Assrios. ELIE WIESEL - Mas tambm a nica personagem bblica que previu uma catstrofe (a destruio do primeiro templo, em 586 a. C.) e que sobreviveu para a descrever. E em vez de ter ido para a Assria depois da catstrofe, isto , para o pas dos babilnios, que o teriam recebido de braos abertos, j que ele tinha, como o senhor diz, quase colaborado com eles, foi para o Egipto com os exilados judeus. Para mim, ele antes o profeta mais trgico da histria judaica. E as suas obras tm uma beleza lrica quase sem igual na Bblia. FRANOIS MITTERR